Teatro, vol.IV

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TEATRO 4

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O quarto volume de peças reunidas de Bertold Brecht Teatro IV inclui as peças:Os cabeças redondas e os cabeças bicudas ou Os ricos dão-se bem com os ricos / Os sete pecados mortais dos pequeno-burgueses / Os horácios e os curiácios / As espingardas da senhora Carrar / Terror e miséria do Terceiro Reich

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TEATRO 4

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Bertolt Brecht

Cotovia

Teatro 4

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Bertolt Brecht

Cotovia

Teatro 4

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Índice

Cartas de tempos sombrios. Cinco formas deescrever a verdade,por Vera San Payo de Lemos p. 7

OS CABEÇAS REDONDAS E OS CABEÇAS BICUDAS OU

OS RICOS DÃO-SE BEM COM OS RICOS 57

OS SETE PECADOS MORTAIS DOS PEQUENO-BURGUESES 175

OS HORÁCIOS E OS CURIÁCIOS 189

AS ESPINGARDAS DA SENHORA CARRAR 215

TERROR E MISÉRIA DO TERCEIRO REICH 249

A publicação deste volume contou com o apoio do Goethe-Institut

Die RundKöpfe und die SpitzKöpfe / Os cabeças redondas e os cabeçasbicudas ou Os ricos dão-se bem com os ricos :

© Copyright Stefan S. Brecht, 1957Die sieben Todsünden der Kleinbürger / Os sete pecados mortais dos

pequeno-burgueses:© Copyright Suhrkamp Verlag, Frankfurt am Main, 1959

Die Horatier und die Kuriatier / Os Horácios e os Curiácios© Copyright Suhrkamp Verlag, Berlin, 1957

Die Geachre der Frau Carrar / As espingardas da Senhora Carrar© Copyright Suhrkamp Verlag, Berlin, 1957

Farcht und Elend des III Reich / Terror e miséria do Terceiro Reich© Copyright Suhrkamp Verlag, Berlin, 1957

Edição seguida: Große kommentierte Berliner und Frankfurter Ausgabe , Suhrkamp Verlag.

Traduções: Copyright © dos tradutores e Edições Cotovia Lda., Lisboa, 2006.Introdução: Copyright © Vera San Payo de Lemos

e Edições Cotovia Lda., Lisboa, 2006.

Capa: Silva! designers

Reservados todos os direitos

ISBN 978-972-795-184-0

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Índice

Cartas de tempos sombrios. Cinco formas deescrever a verdade,por Vera San Payo de Lemos p. 7

OS CABEÇAS REDONDAS E OS CABEÇAS BICUDAS OU

OS RICOS DÃO-SE BEM COM OS RICOS 57

OS SETE PECADOS MORTAIS DOS PEQUENO-BURGUESES 175

OS HORÁCIOS E OS CURIÁCIOS 189

AS ESPINGARDAS DA SENHORA CARRAR 215

TERROR E MISÉRIA DO TERCEIRO REICH 249

A publicação deste volume contou com o apoio do Goethe-Institut

Die RundKöpfe und die SpitzKöpfe / Os cabeças redondas e os cabeçasbicudas ou Os ricos dão-se bem com os ricos :

© Copyright Stefan S. Brecht, 1957Die sieben Todsünden der Kleinbürger / Os sete pecados mortais dos

pequeno-burgueses:© Copyright Suhrkamp Verlag, Frankfurt am Main, 1959

Die Horatier und die Kuriatier / Os Horácios e os Curiácios© Copyright Suhrkamp Verlag, Berlin, 1957

Die Geachre der Frau Carrar / As espingardas da Senhora Carrar© Copyright Suhrkamp Verlag, Berlin, 1957

Farcht und Elend des III Reich / Terror e miséria do Terceiro Reich© Copyright Suhrkamp Verlag, Berlin, 1957

Edição seguida: Große kommentierte Berliner und Frankfurter Ausgabe , Suhrkamp Verlag.

Traduções: Copyright © dos tradutores e Edições Cotovia Lda., Lisboa, 2006.Introdução: Copyright © Vera San Payo de Lemos

e Edições Cotovia Lda., Lisboa, 2006.

Capa: Silva! designers

Reservados todos os direitos

ISBN 978-972-795-184-0

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Edição seguida:Große kommentierte Berliner und Frankfurter Ausgabe (GBA), Suhrkamp Verlag.

Numa carta enviada do exílio na Dinamarca, em Dezembrode 1933, ao escritor soviético Sergei Tretiakov, Brecht escrevia: “O tempo dos apelos brilhantes, protestos, etc. por enquanto aca-bou. O que é necessário agora é um trabalho paciente, perseve-rante, árduo, de esclarecimento, de estudo”. Justificava-se assimde não aderir à Acção Antifascista, uma plataforma de concerta-ção das forças de oposição ao avanço do nazismo, proposta pelolíder comunista Ernst Thälmann em Maio de 1932. Com a subidade Hitler ao poder em 30 de Janeiro de 1933, chegara ao fim o tempode agitação social e política e de experimentação artística da Repú-blica de Weimar e dera-se início ao tempo da ordem totalitária doIII Reich que Brecht apelidaria de “barbárie castanha” em muitosdos seus escritos. Em 28 de Fevereiro de 1933, um dia após o incên-dio do Reichstag, a que se seguiriam uma caça aos opositores donovo regime e mais de 4000 detenções, Brecht abandona Berlim acaminho do exílio do qual regressaria, de facto, só alguns anosdepois de terminada a guerra, em Maio de 1949. Passando porPraga, Viena, Carona, Paris, em busca de um lugar onde pudesseter liberdade para prosseguir o seu trabalho de autor comprome-tido com o mundo à sua volta, acaba por se fixar em Agosto de1933 em Svendborg, na Dinamarca, onde permanece até Abril de1939. Nos anos seguintes, com o deflagrar da guerra e à medidaque as condições de vida como exilado político se vão tornandocada vez mais difíceis nos países invadidos e ocupados pelas tro-pas nazis, Brecht irá mudar “mais vezes de país do que de sapa-tos”, como escreve no poema An die Nachgeborenen [Aos que nas-cerem depois de nós]: depois da Dinamarca segue-se a Suécia (atéAbril de 1940), a Finlândia (até Maio de 1941), os Estados Unidosda América (até Outubro de 1947) e a Suiça (até Maio de 1949).Em 1947, no depoimento apresentado à Comissão do Congressopara Actividades Antiamericanas em Washington, descreve o estran-

Cartas de tempos sombriosCinco formas de escrever a verdade

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Edição seguida:Große kommentierte Berliner und Frankfurter Ausgabe (GBA), Suhrkamp Verlag.

Numa carta enviada do exílio na Dinamarca, em Dezembrode 1933, ao escritor soviético Sergei Tretiakov, Brecht escrevia: “O tempo dos apelos brilhantes, protestos, etc. por enquanto aca-bou. O que é necessário agora é um trabalho paciente, perseve-rante, árduo, de esclarecimento, de estudo”. Justificava-se assimde não aderir à Acção Antifascista, uma plataforma de concerta-ção das forças de oposição ao avanço do nazismo, proposta pelolíder comunista Ernst Thälmann em Maio de 1932. Com a subidade Hitler ao poder em 30 de Janeiro de 1933, chegara ao fim o tempode agitação social e política e de experimentação artística da Repú-blica de Weimar e dera-se início ao tempo da ordem totalitária doIII Reich que Brecht apelidaria de “barbárie castanha” em muitosdos seus escritos. Em 28 de Fevereiro de 1933, um dia após o incên-dio do Reichstag, a que se seguiriam uma caça aos opositores donovo regime e mais de 4000 detenções, Brecht abandona Berlim acaminho do exílio do qual regressaria, de facto, só alguns anosdepois de terminada a guerra, em Maio de 1949. Passando porPraga, Viena, Carona, Paris, em busca de um lugar onde pudesseter liberdade para prosseguir o seu trabalho de autor comprome-tido com o mundo à sua volta, acaba por se fixar em Agosto de1933 em Svendborg, na Dinamarca, onde permanece até Abril de1939. Nos anos seguintes, com o deflagrar da guerra e à medidaque as condições de vida como exilado político se vão tornandocada vez mais difíceis nos países invadidos e ocupados pelas tro-pas nazis, Brecht irá mudar “mais vezes de país do que de sapa-tos”, como escreve no poema An die Nachgeborenen [Aos que nas-cerem depois de nós]: depois da Dinamarca segue-se a Suécia (atéAbril de 1940), a Finlândia (até Maio de 1941), os Estados Unidosda América (até Outubro de 1947) e a Suiça (até Maio de 1949).Em 1947, no depoimento apresentado à Comissão do Congressopara Actividades Antiamericanas em Washington, descreve o estran-

Cartas de tempos sombriosCinco formas de escrever a verdade

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gulamento progressivo da actividade artística, cultural e intelec-tual da República de Weimar como um plano urdido para forçaros intelectuais e artistas ao exílio e preparar o terreno para a guerra:

As perseguições no campo da cultura foram aumentando gradual-mente. Pintores, editores e organizadores de revistas conhecidos eramperseguidos judicialmente. Nas universidades, encenavam--se caças políti-cas às bruxas, faziam-se esconjuros contra filmes como A Oeste nada denovo. Claro que isto eram apenas preparativos para medidas mais drásti-cas. Quando Hitler tomou o poder proibia-se os pintores de pintar, osescritores de escrever, e o partido nazi apoderou-se das editoras e dos estú-dios de cinema. Mas mesmo estes ataques à vida cultural do povo alemãoeram apenas um começo. Foram pensados e executados como preparaçãomental da guerra total que é o inimigo total da cultura. (GBA, 23, 60)

No exílio, privado da interacção entre a escrita e o palco, dacomunicação directa com o público e do livre debate de ideias nasua própria língua, impõe-se a Brecht encontrar formas de inter-venção viáveis e eficazes mesmo nas novas condições, procurarmeios de publicar os seus escritos e levar as suas peças à cena, apro-fundar a reflexão teórica sobre a arte e a sociedade, criar novas pla-taformas de debate ou participar nos fórums de discussão existen-tes, principalmente nas revistas publicadas por exilados alemães,em Moscovo e Praga, como Das Wort [A Palavra], InternationaleLiteratur ou Die Neue Weltbühne [O Novo Palco Internacional].Na realidade, a distância e o isolamento a que se vê forçado peloexílio têm efeitos ambivalentes: por um lado, a falta do palco pos-sibilita um desenvolvimento mais solto da escrita e um apuramentodas técnicas do teatro épico (“para a gaveta não é preciso fazerconcessões.”, como aponta no Diário de trabalho em Março de1939), por outro, a tomada de consciência de que o tempo da acçãodirecta, “dos apelos brilhantes, dos protestos etc.”, passou, abreespaço para o aprofundamento do estudo e eleva o nível de reflexãoda sua teoria teatral que permanece apostada em transformar a ati-tude do espectador, a função do teatro e a forma de organização dasociedade.

Na primeira estação de exílio, entre a saída da Alemanha em1933 e da Dinamarca em 1939, a produtividade de Brecht é intensa.Para além das cinco peças incluídas neste volume, escreve a pri-meira versão de Vida de Galileu e a peça em um acto Dansen, esboça

9Introdução

A boa alma de Sé-Chuão, conclui Der Dreigroschenroman [Oromance de três vinténs], reúne os seus poemas em três colectâneas,Lieder Gedichte Chöre [Canções poemas canções], DeutscheKriegsfibel [Manual de guerra alemão], Svendborger Gedichte[Poemas de Svendborg], e começa Der Messingkauf [A compra dolatão], uma explanação da teoria do teatro épico em forma de diá-logo. É também neste período que retoma o hábito de escreverum diário como fazia nos tempos de juventude. Em 20 de Julhode 1938, abre o que designa por Arbeitsjournal [Diário de trabalho]em que, até Maio de 1955, irá anotar encontros, conversas, aconte-cimentos quotidianos e comentar a actualidade política, os seus pró-prios trabalhos e os de outros autores. No plano da reflexão teórica,surgem ensaios sobre aspectos específicos do teatro épico (o efeitode estranhamento, a música, o cenário), artigos e discursos sobrea actuação de intelectuais e artistas nos chamados “tempos sombrios”do fascismo e da preparação do terreno para a guerra assim comotextos vários sobre as questões do realismo e da função política daliteratura e da arte, escritos a propósito de um debate travado essen-cialmente na revista Das Wort entre 1937 e 1938 que ficou conhe-cido como “Debate sobre o expressionismo” ou “Debate Brecht-Lukács”. Outros projectos de reflexão teórica, como o da realizaçãode uma enciclopédia, a publicar em fascículos, com reflexões de auto-res antifascistas sobre conceitos, palavras de ordem e slogans polí-ticos do fascismo, ou o da fundação de uma “sociedade Diderot”,só constituída por escritores interessados em debater as questõesespecíficas do teatro, não se chegam a concretizar.

Um dos primeiros trabalhos do exílio, ainda imbuído do espíritocombativo da República de Weimar, é a colectânea Lieder GedichteChöre, com canções, poemas e coros escritos entre 1918 e 1933. Publi-cada na primavera de 1934, por uma editora antifascista em Paris,com a partitura das canções e dos coros, de modo a poder ser usada,ou seja, cantada, esta colectânea, maioritariamente com composi-ções de Eisler, visa não só manter viva a chama dos coros operários,reportando-se ao papel congregador e interventivo desempen-hado pela música na acção política no tempo da República de Wei-mar, mas também servir de contraponto à apropriação do patrimó-nio das canções populares feita pelos nazis. No lugar da alma alemãe do espírito de comunidade nacional, celebrados pelo repertóriodas canções populares, as canções de combate de Brecht e Eisler

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gulamento progressivo da actividade artística, cultural e intelec-tual da República de Weimar como um plano urdido para forçaros intelectuais e artistas ao exílio e preparar o terreno para a guerra:

As perseguições no campo da cultura foram aumentando gradual-mente. Pintores, editores e organizadores de revistas conhecidos eramperseguidos judicialmente. Nas universidades, encenavam--se caças políti-cas às bruxas, faziam-se esconjuros contra filmes como A Oeste nada denovo. Claro que isto eram apenas preparativos para medidas mais drásti-cas. Quando Hitler tomou o poder proibia-se os pintores de pintar, osescritores de escrever, e o partido nazi apoderou-se das editoras e dos estú-dios de cinema. Mas mesmo estes ataques à vida cultural do povo alemãoeram apenas um começo. Foram pensados e executados como preparaçãomental da guerra total que é o inimigo total da cultura. (GBA, 23, 60)

No exílio, privado da interacção entre a escrita e o palco, dacomunicação directa com o público e do livre debate de ideias nasua própria língua, impõe-se a Brecht encontrar formas de inter-venção viáveis e eficazes mesmo nas novas condições, procurarmeios de publicar os seus escritos e levar as suas peças à cena, apro-fundar a reflexão teórica sobre a arte e a sociedade, criar novas pla-taformas de debate ou participar nos fórums de discussão existen-tes, principalmente nas revistas publicadas por exilados alemães,em Moscovo e Praga, como Das Wort [A Palavra], InternationaleLiteratur ou Die Neue Weltbühne [O Novo Palco Internacional].Na realidade, a distância e o isolamento a que se vê forçado peloexílio têm efeitos ambivalentes: por um lado, a falta do palco pos-sibilita um desenvolvimento mais solto da escrita e um apuramentodas técnicas do teatro épico (“para a gaveta não é preciso fazerconcessões.”, como aponta no Diário de trabalho em Março de1939), por outro, a tomada de consciência de que o tempo da acçãodirecta, “dos apelos brilhantes, dos protestos etc.”, passou, abreespaço para o aprofundamento do estudo e eleva o nível de reflexãoda sua teoria teatral que permanece apostada em transformar a ati-tude do espectador, a função do teatro e a forma de organização dasociedade.

Na primeira estação de exílio, entre a saída da Alemanha em1933 e da Dinamarca em 1939, a produtividade de Brecht é intensa.Para além das cinco peças incluídas neste volume, escreve a pri-meira versão de Vida de Galileu e a peça em um acto Dansen, esboça

9Introdução

A boa alma de Sé-Chuão, conclui Der Dreigroschenroman [Oromance de três vinténs], reúne os seus poemas em três colectâneas,Lieder Gedichte Chöre [Canções poemas canções], DeutscheKriegsfibel [Manual de guerra alemão], Svendborger Gedichte[Poemas de Svendborg], e começa Der Messingkauf [A compra dolatão], uma explanação da teoria do teatro épico em forma de diá-logo. É também neste período que retoma o hábito de escreverum diário como fazia nos tempos de juventude. Em 20 de Julhode 1938, abre o que designa por Arbeitsjournal [Diário de trabalho]em que, até Maio de 1955, irá anotar encontros, conversas, aconte-cimentos quotidianos e comentar a actualidade política, os seus pró-prios trabalhos e os de outros autores. No plano da reflexão teórica,surgem ensaios sobre aspectos específicos do teatro épico (o efeitode estranhamento, a música, o cenário), artigos e discursos sobrea actuação de intelectuais e artistas nos chamados “tempos sombrios”do fascismo e da preparação do terreno para a guerra assim comotextos vários sobre as questões do realismo e da função política daliteratura e da arte, escritos a propósito de um debate travado essen-cialmente na revista Das Wort entre 1937 e 1938 que ficou conhe-cido como “Debate sobre o expressionismo” ou “Debate Brecht-Lukács”. Outros projectos de reflexão teórica, como o da realizaçãode uma enciclopédia, a publicar em fascículos, com reflexões de auto-res antifascistas sobre conceitos, palavras de ordem e slogans polí-ticos do fascismo, ou o da fundação de uma “sociedade Diderot”,só constituída por escritores interessados em debater as questõesespecíficas do teatro, não se chegam a concretizar.

Um dos primeiros trabalhos do exílio, ainda imbuído do espíritocombativo da República de Weimar, é a colectânea Lieder GedichteChöre, com canções, poemas e coros escritos entre 1918 e 1933. Publi-cada na primavera de 1934, por uma editora antifascista em Paris,com a partitura das canções e dos coros, de modo a poder ser usada,ou seja, cantada, esta colectânea, maioritariamente com composi-ções de Eisler, visa não só manter viva a chama dos coros operários,reportando-se ao papel congregador e interventivo desempen-hado pela música na acção política no tempo da República de Wei-mar, mas também servir de contraponto à apropriação do patrimó-nio das canções populares feita pelos nazis. No lugar da alma alemãe do espírito de comunidade nacional, celebrados pelo repertóriodas canções populares, as canções de combate de Brecht e Eisler

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apelam à consciência de classe das massas trabalhadoras, alertampara as clivagens sociais entre as classes e lembram a necessidadede os operários fazerem frente à propaganda nazi e não se deixa-rem arrastar para mais uma guerra. Com excepção do poema finale dos poemas do capítulo 1933, dos quais vários, compostos paraserem cantados segundo as melodias de cânticos protestantesmuito conhecidos, são alusivos a Hitler, “o pintor de paredes”, acolectânea inclui poemas e composições já existentes, como can-ções e coros das peças A mãe e A decisão, escolhidos para lembrar,cronológica e criticamente, os passos da Alemanha em direcção aofascismo. A colectânea abre, significativamente, com Legende vomtoten Soldaten [Lenda do soldado morto], uma canção de 1918,com música do próprio Brecht, em que a tradição militar prus-siana é denunciada como substrato não só da primeira guerra, mastambém das guerras vindouras. Esta canção, que colocara Brechtna lista dos nazis já em 1923, servirá de fundamento para a queimadas suas obras em praça pública em 10 de Maio de 1933 e para asua extradição em 8 de Junho de 1935.

As perseguições, prisões e torturas praticadas na Alemanhade Hitler, a par das campanhas de mentalização desenvolvidaspela poderosa máquina de propaganda ao seu serviço, levam os artis-tas e intelectuais antifascistas a concertar formas de actuação e aprocurar realizar a ideia duma frente antifascista em plataformasde discussão como encontros, jornais e revistas. Em 1934, quandoo jornal Pariser Tageblatt [Diário de Paris] desafia os escritoresalemães exilados a pronunciarem-se sobre a missão do escritor numtempo em que os valores fundamentais da cultura se encontramameaçados, Brecht responde com um texto considerado de grandeimpacto que reformula e desenvolve em seguida como ensaio como título Fünf Schwierigkeiten beim Schreiben der Wahrheit[Cinco dificuldades no escrever da verdade]. Neste texto, que setornará uma espécie de breviário para os escritores nesta época echega a circular clandestinamente na Alemanha em separata, essascinco dificuldades são resumidas do seguinte modo:

Quem hoje quiser combater a mentira e a ignorância e escrever averdade, tem de superar pelo menos cinco dificuldades. Tem de ter a cora-gem para escrever a verdade embora ela seja reprimida em todo o lado; a inte-ligência para a reconhecer embora ela seja ocultada em todo o lado; a arte

11Introdução

para a tornar manejável como uma arma; o discernimento para escolheraqueles em cujas mãos ela se torne eficaz; a astúcia para a difundir entre eles.Estas dificuldades são grandes para os que escrevem sob o fascismo, mastambém existem para aqueles que foram expulsos ou fugiram, e até paraaqueles que escrevem nos países da liberdade burguesa. (GBA 22.1., 74)

Uma das primeiras iniciativas para congregar esforços e lan-çar linhas de acção conjuntas contra o fascismo vem a ser o Congressopara a defesa da cultura, um grande encontro internacional deartistas e intelectuais antifascistas realizado em Paris de 21 a 25 deJunho de 1935, do qual resulta, entre outras, a ideia de criação darevista Das Wort, publicada por exilados alemães na União Sovié-tica de Julho de 1936 a Março de 1939. Embora participasse nocongresso e se dispusesse a integrar a primeira comissão redacto-rial da revista Das Wort, Brecht não se identifica com a ideia polí-tica da Frente Popular que se procura concretizar no congresso nemcom a sua concepção de defesa da cultura. Na comunicação queapresenta, analisa como raiz da barbárie a propriedade privada dosmeios de produção e interpela os presentes a debruçarem-se, antesde tudo o mais, sobre as relações de propriedade existentes (cf. Einenotwendige Feststellung zum Kampf gegen die Barbarei [Umaconstatação necessária para a luta contra a barbárie], GBA 22.1.,141-146). A sua insistência num ponto de vista de classe, tambémna própria produção artística, não se coaduna também com a pro-posta estética (e política) de regresso aos grandes modelos do pas-sado, sobretudo às formas burguesas progressistas do romance, apre-sentadas como meios a utilizar na construção da sociedade socialistafutura.

Nesta perspectiva sobre a herança literária e cultural, que játinha sido defendida como um dos princípios da doutrina estéticaoficial do realismo socialista no 1º Congresso de Escritores Sovié-ticos em 1934 e viria a ser corroborada por Lukács nos ensaiospublicados em Das Wort no âmbito do chamado Debate sobre oexpressionismo de 1937-38, reconhecem-se as directrizes dadas porLenine para a política cultural do estado socialista fundado depoisda Revolução de Outubro. Como marxista sem partido, Brecht nãose deixa enquadrar pelos intelectuais e quadros partidários do queapelida de “clique moscovita”, a que associa Lukács, Alfred Kurella,Johannes R. Becher e Fritz Erpenbeck. No clima de terror dos pro-

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apelam à consciência de classe das massas trabalhadoras, alertampara as clivagens sociais entre as classes e lembram a necessidadede os operários fazerem frente à propaganda nazi e não se deixa-rem arrastar para mais uma guerra. Com excepção do poema finale dos poemas do capítulo 1933, dos quais vários, compostos paraserem cantados segundo as melodias de cânticos protestantesmuito conhecidos, são alusivos a Hitler, “o pintor de paredes”, acolectânea inclui poemas e composições já existentes, como can-ções e coros das peças A mãe e A decisão, escolhidos para lembrar,cronológica e criticamente, os passos da Alemanha em direcção aofascismo. A colectânea abre, significativamente, com Legende vomtoten Soldaten [Lenda do soldado morto], uma canção de 1918,com música do próprio Brecht, em que a tradição militar prus-siana é denunciada como substrato não só da primeira guerra, mastambém das guerras vindouras. Esta canção, que colocara Brechtna lista dos nazis já em 1923, servirá de fundamento para a queimadas suas obras em praça pública em 10 de Maio de 1933 e para asua extradição em 8 de Junho de 1935.

As perseguições, prisões e torturas praticadas na Alemanhade Hitler, a par das campanhas de mentalização desenvolvidaspela poderosa máquina de propaganda ao seu serviço, levam os artis-tas e intelectuais antifascistas a concertar formas de actuação e aprocurar realizar a ideia duma frente antifascista em plataformasde discussão como encontros, jornais e revistas. Em 1934, quandoo jornal Pariser Tageblatt [Diário de Paris] desafia os escritoresalemães exilados a pronunciarem-se sobre a missão do escritor numtempo em que os valores fundamentais da cultura se encontramameaçados, Brecht responde com um texto considerado de grandeimpacto que reformula e desenvolve em seguida como ensaio como título Fünf Schwierigkeiten beim Schreiben der Wahrheit[Cinco dificuldades no escrever da verdade]. Neste texto, que setornará uma espécie de breviário para os escritores nesta época echega a circular clandestinamente na Alemanha em separata, essascinco dificuldades são resumidas do seguinte modo:

Quem hoje quiser combater a mentira e a ignorância e escrever averdade, tem de superar pelo menos cinco dificuldades. Tem de ter a cora-gem para escrever a verdade embora ela seja reprimida em todo o lado; a inte-ligência para a reconhecer embora ela seja ocultada em todo o lado; a arte

11Introdução

para a tornar manejável como uma arma; o discernimento para escolheraqueles em cujas mãos ela se torne eficaz; a astúcia para a difundir entre eles.Estas dificuldades são grandes para os que escrevem sob o fascismo, mastambém existem para aqueles que foram expulsos ou fugiram, e até paraaqueles que escrevem nos países da liberdade burguesa. (GBA 22.1., 74)

Uma das primeiras iniciativas para congregar esforços e lan-çar linhas de acção conjuntas contra o fascismo vem a ser o Congressopara a defesa da cultura, um grande encontro internacional deartistas e intelectuais antifascistas realizado em Paris de 21 a 25 deJunho de 1935, do qual resulta, entre outras, a ideia de criação darevista Das Wort, publicada por exilados alemães na União Sovié-tica de Julho de 1936 a Março de 1939. Embora participasse nocongresso e se dispusesse a integrar a primeira comissão redacto-rial da revista Das Wort, Brecht não se identifica com a ideia polí-tica da Frente Popular que se procura concretizar no congresso nemcom a sua concepção de defesa da cultura. Na comunicação queapresenta, analisa como raiz da barbárie a propriedade privada dosmeios de produção e interpela os presentes a debruçarem-se, antesde tudo o mais, sobre as relações de propriedade existentes (cf. Einenotwendige Feststellung zum Kampf gegen die Barbarei [Umaconstatação necessária para a luta contra a barbárie], GBA 22.1.,141-146). A sua insistência num ponto de vista de classe, tambémna própria produção artística, não se coaduna também com a pro-posta estética (e política) de regresso aos grandes modelos do pas-sado, sobretudo às formas burguesas progressistas do romance, apre-sentadas como meios a utilizar na construção da sociedade socialistafutura.

Nesta perspectiva sobre a herança literária e cultural, que játinha sido defendida como um dos princípios da doutrina estéticaoficial do realismo socialista no 1º Congresso de Escritores Sovié-ticos em 1934 e viria a ser corroborada por Lukács nos ensaiospublicados em Das Wort no âmbito do chamado Debate sobre oexpressionismo de 1937-38, reconhecem-se as directrizes dadas porLenine para a política cultural do estado socialista fundado depoisda Revolução de Outubro. Como marxista sem partido, Brecht nãose deixa enquadrar pelos intelectuais e quadros partidários do queapelida de “clique moscovita”, a que associa Lukács, Alfred Kurella,Johannes R. Becher e Fritz Erpenbeck. No clima de terror dos pro-

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cessos estalinistas, ocorridos de 19 a 24 de Agosto de 1936 e de 23a 30 de Janeiro de 1937, na sequência dos quais são mortos ou pre-sos amigos e conhecidos como Tretiakov, Carola Neher e Meyer-hold, Brecht confronta-se com linhas políticas rígidas, transpostaspara um ideário estético igualmente rígido, o que explica não só oseu afastamento gradual em relação à revista Das Wort como tam-bém o facto de a maior parte dos seus textos sobre a questão dorealismo e do formalismo, escritos em reacção aos ensaios deLukács, não ter sido sequer enviada para publicação ou não terchegado a ser publicada. Curiosamente, o debate também conhe-cido por Debate Brecht-Lukács desenrola-se sem o envolvimentodirecto de Brecht na polémica, mas com a sua concepção dialéc-tica e materialista da arte e a sua própria prática artística a servirde paradigma oposto ao paradigma defendido por Lukács. Brechtcritica sobretudo o carácter modelar, restritivo e estático das teoriasde Lukács, a fixação dos grandes realistas do século XIX comoexemplos canónicos e a liquidação, com o teorema da “decadência”e do “formalismo”, das técnicas inovadoras da montagem, da repor-tagem, do monólogo interior, do estranhamento, propostas pelosmovimentos da vanguarda. No tom provocatório que o caracteriza,formula a propósito das teorias de Lukács a seguinte máxima: “O que há a fazer não é seguir a linha do velho bom, mas sim a donovo mau”. (GBA 22.1., 457) Rejeitando um método único de repre-sentação da realidade, advoga uma adequação eclética e funcionaldas diversas técnicas do passado literário às condições de uma rea-lidade em permanente transformação, a descoberta de novas for-mas e a abolição das fronteiras não só entre os géneros literários,mas também entre a literatura e outras formas de conhecimentoda realidade como a ciência.

Como Walter Benjamin descreve no diário de uma das suasvisitas a Brecht em Svendborg em Julho de 1938, ambos hesitamquanto ao envio para publicação em Das Wort de um texto com“ataques velados, mas veementes” às teorias de Lukács. Ciente deque “na Rússia vigora uma ditadura sobre o proletariado”, Brechtinibe-se de tomar uma posição pública contra a situação enquanto“essa ditadura continuar a prestar um serviço prático ao proleta-riado” (cf. Walter Benjamin, Versuche über Brecht, [Ensaios sobreBrecht], Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, pp. 133-135), masprocura reflectir em vários textos sobre o clima de terror na União

13Introdução

Soviética e os processos estalinistas para perceber melhor o que sepassa e clarificar a sua posição (cf. Über meine Stellung zur Sow-jetunion [Sobre a minha posição em relação à União Soviética] eÜber die Moskauer Prozesse [Sobre os processos de Moscovo],GBA 22.1, 297-298, 365-369) Na análise global dos tempos som-brios, vividos no final dos anos 30, o fascismo, interpretado comoconsequência do desenvolvimento brutal do capitalismo, continuaa ser aos olhos de Brecht o pior dos males cujas ramificações importaexpor, desmistificar e combater. Na comunicação apresentada noencerramento do 2º Congresso Internacional de Escritores para aDefesa da Cultura em Londres, em 17 de Julho de 1937, salientaraa relação entre a destruição das liberdades fundamentais pelos fas-cistas na Alemanha e em Itália e a destruição de Guernica e os mas-sacres das populações na Guerra Civil de Espanha. Identificando oataque à cultura como uma guerra idêntica às outras guerras emcurso, apelara a que se movesse uma guerra a todas essas guerras eque a cultura, até aí defendida apenas com armas intelectuais, pas-sasse a ser defendida com armas materiais. (cf. GBA 22.1., 323-325)

Este apelo às armas, que Brecht se abstém de especificar, surgeno contexto do congresso, que começara em Valencia e prosseguiraem Madrid, com a Guerra Civil em curso, e reflecte as ideias quese encontrava a desenvolver na peça As espingardas da SenhoraCarrar: no palco da guerra não pode haver neutralidade nem bastaprestar ajuda humanitária na rectaguarda, mas impõe-se pegar emarmas para defender os valores da vida. No pequeno texto Kunstoder Politik? [Arte ou política?], escrito em Fevereiro de 1938,Brecht recorre ao exemplo desta peça para esclarecer e fundamen-tar a sua actuação enquanto escritor nas circunstâncias históricasespecíficas do final dos anos 30, ou seja, o modo como perspectivaa relação entre a sua prática artística e a actualidade política. Emvez de se referir explicitamente ao fascismo, opta por salientar aafinidade sem fronteiras que aproxima as suas vítimas: Brecht, o escri-tor alemão exilado na Dinamarca, privado da comunicação directacom o seu público na sua própria língua; os seus compatriotas, sujei-tos a atrocidades inomináveis na Alemanha de Hitler, e a senhoraCarrar, a mulher de um pescador da Andaluzia em luta com os gene-rais franquistas. Esta afinidade cria novos laços e códigos, um novotipo de comunicação dirigido a um novo público, com expectativase necessidades diferentes. O escritor sente-se impelido a escrever,

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cessos estalinistas, ocorridos de 19 a 24 de Agosto de 1936 e de 23a 30 de Janeiro de 1937, na sequência dos quais são mortos ou pre-sos amigos e conhecidos como Tretiakov, Carola Neher e Meyer-hold, Brecht confronta-se com linhas políticas rígidas, transpostaspara um ideário estético igualmente rígido, o que explica não só oseu afastamento gradual em relação à revista Das Wort como tam-bém o facto de a maior parte dos seus textos sobre a questão dorealismo e do formalismo, escritos em reacção aos ensaios deLukács, não ter sido sequer enviada para publicação ou não terchegado a ser publicada. Curiosamente, o debate também conhe-cido por Debate Brecht-Lukács desenrola-se sem o envolvimentodirecto de Brecht na polémica, mas com a sua concepção dialéc-tica e materialista da arte e a sua própria prática artística a servirde paradigma oposto ao paradigma defendido por Lukács. Brechtcritica sobretudo o carácter modelar, restritivo e estático das teoriasde Lukács, a fixação dos grandes realistas do século XIX comoexemplos canónicos e a liquidação, com o teorema da “decadência”e do “formalismo”, das técnicas inovadoras da montagem, da repor-tagem, do monólogo interior, do estranhamento, propostas pelosmovimentos da vanguarda. No tom provocatório que o caracteriza,formula a propósito das teorias de Lukács a seguinte máxima: “O que há a fazer não é seguir a linha do velho bom, mas sim a donovo mau”. (GBA 22.1., 457) Rejeitando um método único de repre-sentação da realidade, advoga uma adequação eclética e funcionaldas diversas técnicas do passado literário às condições de uma rea-lidade em permanente transformação, a descoberta de novas for-mas e a abolição das fronteiras não só entre os géneros literários,mas também entre a literatura e outras formas de conhecimentoda realidade como a ciência.

Como Walter Benjamin descreve no diário de uma das suasvisitas a Brecht em Svendborg em Julho de 1938, ambos hesitamquanto ao envio para publicação em Das Wort de um texto com“ataques velados, mas veementes” às teorias de Lukács. Ciente deque “na Rússia vigora uma ditadura sobre o proletariado”, Brechtinibe-se de tomar uma posição pública contra a situação enquanto“essa ditadura continuar a prestar um serviço prático ao proleta-riado” (cf. Walter Benjamin, Versuche über Brecht, [Ensaios sobreBrecht], Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, pp. 133-135), masprocura reflectir em vários textos sobre o clima de terror na União

13Introdução

Soviética e os processos estalinistas para perceber melhor o que sepassa e clarificar a sua posição (cf. Über meine Stellung zur Sow-jetunion [Sobre a minha posição em relação à União Soviética] eÜber die Moskauer Prozesse [Sobre os processos de Moscovo],GBA 22.1, 297-298, 365-369) Na análise global dos tempos som-brios, vividos no final dos anos 30, o fascismo, interpretado comoconsequência do desenvolvimento brutal do capitalismo, continuaa ser aos olhos de Brecht o pior dos males cujas ramificações importaexpor, desmistificar e combater. Na comunicação apresentada noencerramento do 2º Congresso Internacional de Escritores para aDefesa da Cultura em Londres, em 17 de Julho de 1937, salientaraa relação entre a destruição das liberdades fundamentais pelos fas-cistas na Alemanha e em Itália e a destruição de Guernica e os mas-sacres das populações na Guerra Civil de Espanha. Identificando oataque à cultura como uma guerra idêntica às outras guerras emcurso, apelara a que se movesse uma guerra a todas essas guerras eque a cultura, até aí defendida apenas com armas intelectuais, pas-sasse a ser defendida com armas materiais. (cf. GBA 22.1., 323-325)

Este apelo às armas, que Brecht se abstém de especificar, surgeno contexto do congresso, que começara em Valencia e prosseguiraem Madrid, com a Guerra Civil em curso, e reflecte as ideias quese encontrava a desenvolver na peça As espingardas da SenhoraCarrar: no palco da guerra não pode haver neutralidade nem bastaprestar ajuda humanitária na rectaguarda, mas impõe-se pegar emarmas para defender os valores da vida. No pequeno texto Kunstoder Politik? [Arte ou política?], escrito em Fevereiro de 1938,Brecht recorre ao exemplo desta peça para esclarecer e fundamen-tar a sua actuação enquanto escritor nas circunstâncias históricasespecíficas do final dos anos 30, ou seja, o modo como perspectivaa relação entre a sua prática artística e a actualidade política. Emvez de se referir explicitamente ao fascismo, opta por salientar aafinidade sem fronteiras que aproxima as suas vítimas: Brecht, o escri-tor alemão exilado na Dinamarca, privado da comunicação directacom o seu público na sua própria língua; os seus compatriotas, sujei-tos a atrocidades inomináveis na Alemanha de Hitler, e a senhoraCarrar, a mulher de um pescador da Andaluzia em luta com os gene-rais franquistas. Esta afinidade cria novos laços e códigos, um novotipo de comunicação dirigido a um novo público, com expectativase necessidades diferentes. O escritor sente-se impelido a escrever,

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a partir de um substrato afectivo comum, para uma comunidade devítimas, em nome da humanidade lesada e ameaçada de extinção.O seu objectivo principal é agora apontar caminhos para que as pes-soas possam sair do sofrimento em que se encontram. Escritos nalonjura do exílio, os seus textos cumprem agora a função das car-tas que procuram manter a comunicação à distância, por cima dasfronteiras, reflectindo sobre os tempos que correm. No caso espe-cífico da senhora Carrar, a carta, escrita também em nome dos mui-tos alemães que não estão ao lado dos generais franquistas nem deHitler, é por isso também “um apelo aos oprimidos para que selevantem contra os seus opressores, em nome da humanidade” (cf.GBA 22.1., 356-357). Delineada a situação do escritor na primeiraestação do seu exílio, importa agora conhecer melhor as suas car-tas, as estratégias comunicativas, as formas e os temas encontradosnas cinco peças publicadas neste volume.

UMA PARÁBOLA

À semelhança de A vida de Eduardo II de Inglaterra (segundoMarlowe), A ópera de três vinténs (segundo Gay) e A mãe (segundoGorki), As cabeças redondas e as cabeças bicudas surge da adap-tação de um texto já existente, neste caso a peça Medida por medidade Shakespeare, que, no processo de escrita e reescrita característicodo método de trabalho de Brecht, se transforma numa peça pró-pria, com diversas versões, em que vão sendo incorporadas reflexõessobre a actualidade política e experiências com técnicas do teatroépico desenvolvidas no plano da escrita e do palco. Na escrita destapeça, reconhecem-se cinco fases de trabalho que dão origem acinco versões distintas, realizadas na Alemanha e na Dinamarcaentre 1931 e 1938: a primeira versão são os esboços da adaptação dapeça de Shakespeare, feitos em 1931/32; a segunda versão sãoesses esboços recriados numa primeira peça autónoma, publicadacomo versão de palco em 1932 e retrabalhada para uma segundapublicação, prevista para Janeiro de 1933, mas que não se chega aconcretizar devido às mudanças resultantes da subida de Hitler aopoder; a terceira versão é o texto de 1933 reformulado em 1934para o projecto de estreia da peça no Teatro Dagmar em Cope-nhaga que, no entanto, acaba por não se realizar; a quarta versãosurge de uma nova tentativa de encenação da peça, que estreia, em

15Introdução

tradução dinamarquesa, em 4 de Novembro de 1936, no TeatroRiddersalen em Copenhaga; a quinta versão é o texto revisto paraa publicação nas obras completas em 1938. Nesta edição portuguesaapresenta-se esta última versão que integra as alterações resultantesda experiência de encenação da peça em Copenhaga e fecha o ciclode trabalho de Brecht nesta peça.

Em Novembro de 1931, o encenador e realizador de cinemaLudwig Berger pede a Brecht para adaptar Medida por medida deShakespeare para um espectáculo que pretende realizar no Volks-bühne de Berlim com o “Grupo de jovens actores”. Nesta adap-tação, preparada em conjunto com o encenador, Brecht mantém aestrutura em cinco actos e a linha da fábula do original de Shakes-peare, mas perspectiva-a, logo desde o início, num sentido dife-rente: a crise do Estado, que leva Vicentio, o príncipe de Viena, adelegar, a pretexto de uma viagem a Praga, a governação numsubstituto de moral elevada chamado Angelo, incumbindo-o de pôrtermo à dissolução de valores e à imoralidade existentes, não éinterpretada como uma crise moral, mas sim económica. Interes-sado em salientar a relação entre a economia e a ideologia, assimcomo a dimensão social dos conflitos, Brecht expõe não só a inter-pretação moral da crise do Estado como uma manobra ideológicadestinada a escamotear a crise económica, mas também o pressu-posto de uma justiça igual para todos como mera ilusão numasociedade marcada pelas diferenças entre as classes sociais. “Seráque a exigência de justiça se pode realizar numa determinada basese essa exigência é o sintoma de que a base não está em ordem?”,questiona Brecht numa nota encontrada no espólio. Na adaptaçãoque faz da peça de Shakespeare, a actualização reside fundamental-mente neste novo olhar sobre a fábula em que se reconhece a influên-cia do estudo do marxismo. Mais motivado pelo trabalho de adap-tação de A mãe de Gorki, cujos ensaios começam em Dezembrode 1931, Brecht não conclui a adaptação da peça de Shakespeare eo espectáculo no Volksbühne não se realiza. Embora o texto tenhaficado incompleto (existem cinco cenas do 1º acto, três cenas do2º e uma cena do 4º e do 5º acto), o resultado desta fase de trabalho,em que Brecht observa a estrutura e a linha da fábula do originalde Shakespeare, apresenta-se como uma primeira versão, sem título,de As cabeças redondas e as cabeça bicudas.

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a partir de um substrato afectivo comum, para uma comunidade devítimas, em nome da humanidade lesada e ameaçada de extinção.O seu objectivo principal é agora apontar caminhos para que as pes-soas possam sair do sofrimento em que se encontram. Escritos nalonjura do exílio, os seus textos cumprem agora a função das car-tas que procuram manter a comunicação à distância, por cima dasfronteiras, reflectindo sobre os tempos que correm. No caso espe-cífico da senhora Carrar, a carta, escrita também em nome dos mui-tos alemães que não estão ao lado dos generais franquistas nem deHitler, é por isso também “um apelo aos oprimidos para que selevantem contra os seus opressores, em nome da humanidade” (cf.GBA 22.1., 356-357). Delineada a situação do escritor na primeiraestação do seu exílio, importa agora conhecer melhor as suas car-tas, as estratégias comunicativas, as formas e os temas encontradosnas cinco peças publicadas neste volume.

UMA PARÁBOLA

À semelhança de A vida de Eduardo II de Inglaterra (segundoMarlowe), A ópera de três vinténs (segundo Gay) e A mãe (segundoGorki), As cabeças redondas e as cabeças bicudas surge da adap-tação de um texto já existente, neste caso a peça Medida por medidade Shakespeare, que, no processo de escrita e reescrita característicodo método de trabalho de Brecht, se transforma numa peça pró-pria, com diversas versões, em que vão sendo incorporadas reflexõessobre a actualidade política e experiências com técnicas do teatroépico desenvolvidas no plano da escrita e do palco. Na escrita destapeça, reconhecem-se cinco fases de trabalho que dão origem acinco versões distintas, realizadas na Alemanha e na Dinamarcaentre 1931 e 1938: a primeira versão são os esboços da adaptação dapeça de Shakespeare, feitos em 1931/32; a segunda versão sãoesses esboços recriados numa primeira peça autónoma, publicadacomo versão de palco em 1932 e retrabalhada para uma segundapublicação, prevista para Janeiro de 1933, mas que não se chega aconcretizar devido às mudanças resultantes da subida de Hitler aopoder; a terceira versão é o texto de 1933 reformulado em 1934para o projecto de estreia da peça no Teatro Dagmar em Cope-nhaga que, no entanto, acaba por não se realizar; a quarta versãosurge de uma nova tentativa de encenação da peça, que estreia, em

15Introdução

tradução dinamarquesa, em 4 de Novembro de 1936, no TeatroRiddersalen em Copenhaga; a quinta versão é o texto revisto paraa publicação nas obras completas em 1938. Nesta edição portuguesaapresenta-se esta última versão que integra as alterações resultantesda experiência de encenação da peça em Copenhaga e fecha o ciclode trabalho de Brecht nesta peça.

Em Novembro de 1931, o encenador e realizador de cinemaLudwig Berger pede a Brecht para adaptar Medida por medida deShakespeare para um espectáculo que pretende realizar no Volks-bühne de Berlim com o “Grupo de jovens actores”. Nesta adap-tação, preparada em conjunto com o encenador, Brecht mantém aestrutura em cinco actos e a linha da fábula do original de Shakes-peare, mas perspectiva-a, logo desde o início, num sentido dife-rente: a crise do Estado, que leva Vicentio, o príncipe de Viena, adelegar, a pretexto de uma viagem a Praga, a governação numsubstituto de moral elevada chamado Angelo, incumbindo-o de pôrtermo à dissolução de valores e à imoralidade existentes, não éinterpretada como uma crise moral, mas sim económica. Interes-sado em salientar a relação entre a economia e a ideologia, assimcomo a dimensão social dos conflitos, Brecht expõe não só a inter-pretação moral da crise do Estado como uma manobra ideológicadestinada a escamotear a crise económica, mas também o pressu-posto de uma justiça igual para todos como mera ilusão numasociedade marcada pelas diferenças entre as classes sociais. “Seráque a exigência de justiça se pode realizar numa determinada basese essa exigência é o sintoma de que a base não está em ordem?”,questiona Brecht numa nota encontrada no espólio. Na adaptaçãoque faz da peça de Shakespeare, a actualização reside fundamental-mente neste novo olhar sobre a fábula em que se reconhece a influên-cia do estudo do marxismo. Mais motivado pelo trabalho de adap-tação de A mãe de Gorki, cujos ensaios começam em Dezembrode 1931, Brecht não conclui a adaptação da peça de Shakespeare eo espectáculo no Volksbühne não se realiza. Embora o texto tenhaficado incompleto (existem cinco cenas do 1º acto, três cenas do2º e uma cena do 4º e do 5º acto), o resultado desta fase de trabalho,em que Brecht observa a estrutura e a linha da fábula do originalde Shakespeare, apresenta-se como uma primeira versão, sem título,de As cabeças redondas e as cabeça bicudas.

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16 Vera San Payo de Lemos

Na elaboração da segunda versão, o primeiro texto completode As cabeças redondas e bicudas, Brecht conta com a colaboraçãode Elisabeth Hauptmann, Emil Hesse-Burri, Hermann Borchardte Margarete Steffin, uma jovem actriz muito culta, do meio operá-rio, por quem se apaixona nos ensaios de A mãe e que o irá acom-panhar e coadjuvar em todos os trabalhos realizados no exílio naDinamarca, Suécia e Finlândia. Nesta segunda versão, realizadaem 1932, num ambiente social e político cada vez mais conturbadodevido ao avanço do nazismo, a figura de Angelo (agora apelidadode Angelas) adquire os traços de um demagogo semelhante a Hit-ler. Para escamotear a crise económica, que tenta resolver tambématravés da cobrança de um imposto sobre o sal, Angelas divide a popu-lação em duas raças: os tchuchos, a população primitiva, os bons,com cabeças redondas, e os tchichos, a população imigrada, os maus,com cabeças bicudas. A introdução do movimento da Foice, que,seguindo o modelo soviético, procura organizar uma revolta dosrendeiros contra os proprietários das terras, e a acção em torno dorendeiro Callas, que se desliga do movimento da Foice e se deixailudir pela demagogia dos discursos do governante, reforçam a pers-pectiva de que a teoria da raça aplicada por Angelas é um meiodemagógico para encobrir as relações de propriedade e a lutaentre as classes. Embora com o paralelismo com a figura de Hitlere a introdução da ideologia da raça a peça se afaste decisivamentedo original de Shakespeare e se transforme numa peça autónomaem que Brecht trabalha, pela primeira vez, a temática do fascismo,os esboços da segunda versão reflectem, nos seus vários títulos,ainda a adaptação que lhe serviu de ponto de partida: Medida pormedida ou O imposto sobre o sal. De Brecht segundo Shakespeareou Os ricos dão-se bem. De Brecht segundo Shakespeare. O títulocompleto da segunda versão, que é publicada como versão de palcono fim de 1932, mas não chega a ser publicada em 1933, já se aproximado título definitivo: As cabeças bicudas e as cabeças redondas ouOs ricos dão-se bem. Esta versão, incluída juntamente com a últimaversão na actual edição das obras completas, abre com uma pequenanota em que Brecht faz o ponto da situação relativamente à peçade Shakespeare: “Esta peça de teatro surgiu de conversas quetinham como objectivo uma adaptação cénica de Medida por medidade Shakespeare. O plano de uma renovação de Medida por medidafoi abandonado no decurso do trabalho”. (GBA, 4, 8)

17Introdução

Interessado em promover a encenação da peça, Brecht envia-a de Svendborg a Ernst Josef Aufricht em Paris, a Tretiakov e aPiscator em Moscovo e a outros amigos e conhecidos em Londres,Zurique e Nova Iorque, mas nenhuma dessas possibilidades deencenação se realizam. O primeiro projecto concreto de represen-tação da peça acaba por surgir em Copenhaga, quando o encena-dor Per Knutzon se propõe levá-la à cena no Teatro Dagmar naPrimavera de 1934. Para esse projecto, Brecht retrabalha o textoda segunda versão com Margarete Steffin e Hanns Eisler e cria aterceira versão, agora com o título As cabeças redondas e as cabe-ças bicudas, que se distingue da versão anterior sobretudo nosseguintes aspectos: as quinze cenas, que na segunda versão que-braram a divisão em actos ainda conservada na primeira versão, sãoreduzidas às onze cenas que a peça manterá até à última versão,são acrescentadas dez baladas e canções, cuja música Hanns Eis-ler se compromete a compor e a figura de Angelas, agora chamadoAngelo Iberin, passa a agir não apenas a mando do vice-rei ausente,mas também da tropa de choque dos Huas em cujo comandanteZazarante se reconhecem traços de Röhm, o chefe da SA.

Para a publicação da segunda versão em 1933, na edição dasobras em curso denominada Versuche [Ensaios, experiências, ten-tativas], Brecht classificara já o género desta sua peça como um“conto de horror”. A função de parábola que atribui à peça seráacentuada nas versões posteriores. Como comparação subenten-dida, empregue para explicar uma coisa ou uma ideia abstractapela sua semelhança com outras mais conhecidas e concretas, aparábola adequa-se, por um lado, à linguagem do teatro épico,nomeadamente à criação de efeitos de estranhamento, uma vezque não pretende reproduzir a realidade como um espelho numregisto naturalista, e, por outro, apresenta-se como uma forma decomunicação inteligente e astuta, capaz de iludir a censura e per-mitir a difusão da “verdade” junto do público. Apesar de a tradu-ção estar praticamente concluída em Abril de 1934 de modo a sepoder programar o início dos ensaios, o projecto acaba por não serealizar, fundamentalmente por duas razões: uma das razões é ofacto de Hanns Eisler não se poder deslocar nessa altura a Cope-nhaga para apresentar a partitura e a outra são os receios manifes-tados pelos financiadores do espectáculo. Enquanto os financia-dores dos círculos judeus temem o tratamento da chamada questão

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Na elaboração da segunda versão, o primeiro texto completode As cabeças redondas e bicudas, Brecht conta com a colaboraçãode Elisabeth Hauptmann, Emil Hesse-Burri, Hermann Borchardte Margarete Steffin, uma jovem actriz muito culta, do meio operá-rio, por quem se apaixona nos ensaios de A mãe e que o irá acom-panhar e coadjuvar em todos os trabalhos realizados no exílio naDinamarca, Suécia e Finlândia. Nesta segunda versão, realizadaem 1932, num ambiente social e político cada vez mais conturbadodevido ao avanço do nazismo, a figura de Angelo (agora apelidadode Angelas) adquire os traços de um demagogo semelhante a Hit-ler. Para escamotear a crise económica, que tenta resolver tambématravés da cobrança de um imposto sobre o sal, Angelas divide a popu-lação em duas raças: os tchuchos, a população primitiva, os bons,com cabeças redondas, e os tchichos, a população imigrada, os maus,com cabeças bicudas. A introdução do movimento da Foice, que,seguindo o modelo soviético, procura organizar uma revolta dosrendeiros contra os proprietários das terras, e a acção em torno dorendeiro Callas, que se desliga do movimento da Foice e se deixailudir pela demagogia dos discursos do governante, reforçam a pers-pectiva de que a teoria da raça aplicada por Angelas é um meiodemagógico para encobrir as relações de propriedade e a lutaentre as classes. Embora com o paralelismo com a figura de Hitlere a introdução da ideologia da raça a peça se afaste decisivamentedo original de Shakespeare e se transforme numa peça autónomaem que Brecht trabalha, pela primeira vez, a temática do fascismo,os esboços da segunda versão reflectem, nos seus vários títulos,ainda a adaptação que lhe serviu de ponto de partida: Medida pormedida ou O imposto sobre o sal. De Brecht segundo Shakespeareou Os ricos dão-se bem. De Brecht segundo Shakespeare. O títulocompleto da segunda versão, que é publicada como versão de palcono fim de 1932, mas não chega a ser publicada em 1933, já se aproximado título definitivo: As cabeças bicudas e as cabeças redondas ouOs ricos dão-se bem. Esta versão, incluída juntamente com a últimaversão na actual edição das obras completas, abre com uma pequenanota em que Brecht faz o ponto da situação relativamente à peçade Shakespeare: “Esta peça de teatro surgiu de conversas quetinham como objectivo uma adaptação cénica de Medida por medidade Shakespeare. O plano de uma renovação de Medida por medidafoi abandonado no decurso do trabalho”. (GBA, 4, 8)

17Introdução

Interessado em promover a encenação da peça, Brecht envia-a de Svendborg a Ernst Josef Aufricht em Paris, a Tretiakov e aPiscator em Moscovo e a outros amigos e conhecidos em Londres,Zurique e Nova Iorque, mas nenhuma dessas possibilidades deencenação se realizam. O primeiro projecto concreto de represen-tação da peça acaba por surgir em Copenhaga, quando o encena-dor Per Knutzon se propõe levá-la à cena no Teatro Dagmar naPrimavera de 1934. Para esse projecto, Brecht retrabalha o textoda segunda versão com Margarete Steffin e Hanns Eisler e cria aterceira versão, agora com o título As cabeças redondas e as cabe-ças bicudas, que se distingue da versão anterior sobretudo nosseguintes aspectos: as quinze cenas, que na segunda versão que-braram a divisão em actos ainda conservada na primeira versão, sãoreduzidas às onze cenas que a peça manterá até à última versão,são acrescentadas dez baladas e canções, cuja música Hanns Eis-ler se compromete a compor e a figura de Angelas, agora chamadoAngelo Iberin, passa a agir não apenas a mando do vice-rei ausente,mas também da tropa de choque dos Huas em cujo comandanteZazarante se reconhecem traços de Röhm, o chefe da SA.

Para a publicação da segunda versão em 1933, na edição dasobras em curso denominada Versuche [Ensaios, experiências, ten-tativas], Brecht classificara já o género desta sua peça como um“conto de horror”. A função de parábola que atribui à peça seráacentuada nas versões posteriores. Como comparação subenten-dida, empregue para explicar uma coisa ou uma ideia abstractapela sua semelhança com outras mais conhecidas e concretas, aparábola adequa-se, por um lado, à linguagem do teatro épico,nomeadamente à criação de efeitos de estranhamento, uma vezque não pretende reproduzir a realidade como um espelho numregisto naturalista, e, por outro, apresenta-se como uma forma decomunicação inteligente e astuta, capaz de iludir a censura e per-mitir a difusão da “verdade” junto do público. Apesar de a tradu-ção estar praticamente concluída em Abril de 1934 de modo a sepoder programar o início dos ensaios, o projecto acaba por não serealizar, fundamentalmente por duas razões: uma das razões é ofacto de Hanns Eisler não se poder deslocar nessa altura a Cope-nhaga para apresentar a partitura e a outra são os receios manifes-tados pelos financiadores do espectáculo. Enquanto os financia-dores dos círculos judeus temem o tratamento da chamada questão

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18 Vera San Payo de Lemos

judaica, outros temem que a censura dinamarquesa venha a proi-bir o espectáculo devido às alusões à Alemanha de Hitler. Em Maiode 1934, Brecht responde a esses receios numa carta dirigida ao ence-nador Per Knutzon:

[A peça] não tem de certeza o efeito de despoletar uma discussãosobre a questão judaica. Isso só aconteceria se apresentasse os sofrimen-tos injustificados dos judeus. O que ela apresenta é que aquilo que é“judeu”, na utilização política da questão da raça pelo nacional-socialismo(e por outros sistemas reaccionários, por exemplo, o antigo czarismo, opilsudskismo), não tem importância absolutamente nenhuma. O públiconão vai de modo algum dizer: os cabeça bicudas são bons ou são maus, ébem feito ou não há direito, mas: não há realmente diferenças. Se a peçafor representada como deve ser, as pessoas vão rir e isso purifica, em todoo caso, a situação. Seja como for, tudo o que é especificamente judeu foievitado. Passados 10 minutos já só se vai ver cabeças redondas e bicudase rir como se o novo governante dividisse a sério as pessoas em ciclistas epeões. […] No palco, a peça vai resultar, como espero, mais como umconto indiano à la “Vasantasena”, suave e a troçar um pouco da simplici-dade humana. A música vai contribuir muito para isso. Não há, por exem-plo, uma única canção sobre o problema da raça., nós nem pensámos nisso!Como socialista, o problema da raça não me diz absolutamente nada; nopalco, tudo o que tiver a ver com isso vai resultar cómico. O que vai resultarsério é a questão social. Na música é onde isso se vê melhor. (GBA, 28, 414)

A música só será ouvida dois anos mais tarde, quando o pro-jecto de encenação finalmente se concretiza e o espectáculo estreia,em 4 de Novembro de 1936, no Teatro Riddersalen em Copenhaga.Distribuídas como separadores ao longo da peça, de acordo coma função atribuída à música no teatro épico, as canções e as bala-das caracterizam os diversos grupos sociais e parodiam, tanto aonível do texto como da música, que cita cânticos religiosos, cançõespopulares e ritmos de dança como o foxtrot, a “mística podre” daretórica da propaganda nazi. Devido à escassez de meios do Tea-tro Riddersalen, a instrumentação é feita apenas por dois pianos.

Tratando-se de um teatro experimental, dirigido pelo encena-dor Per Knutzon, Brecht tem a possibilidade de modificar o textodurante os ensaios e de intervir na encenação, imprimindo-lheuma série de efeitos de estranhamento e outros artifícios do teatroépico, como descreve depois com pormenor em Anmerkung zu“Die Spitzköpfe und die Rundköpfe” Beschreibung der Kopenha-

19Introdução

gener Uraufführung [Nota a “As cabeças bicudas e as cabeçasredondas” Descrição da estreia absoluta em Copenhaga] (cf.GBA, 24, 207-219) Na reformulação do texto para esta encena-ção, da qual resulta a quarta versão da peça, Brecht reforça a dimen-são ficcional e alegórica da parábola com a introdução de um pró-logo em que a figura do director do teatro, acompanhado pelosintérpretes, se dirige ao público, sublinhando a ficcionalidade dahistória que lhe irá ser contada. A simplificação narrativa própriado modelo da parábola permite-lhe, para além disso, acentuar oscontornos dos conflitos sociais. Como salientara na carta a Per Knut-zon, mais do que a ideologia fascista importava-lhe expor na peçao modo como essa ideologia, aqui apresentada na teoria da raça, erautilizada para encobrir as questões sociais. Nesse sentido, poder-se--ia interpretar o próprio título, As cabeças redondas e as cabeçasbicudas, como artifício irónico, propagandístico ou mesmo publici-tário da manobra com que os nazis procuram encobrir o fulcro daquestão, referido apenas no subtítulo, ou seja, que Os ricos dão-sebem. Essa função da teoria da raça torna-se especialmente claranas duas cenas de tribunal colocadas, em contraponto, no centroda acção: no primeiro processo, o proprietário de Guzman, um tchi-cho, é condenado à morte, alegadamente por razões rácicas, ouseja, por ter seduzido Nanna, uma tchucha, filha do rendeiro Cal-las; no segundo processo, repõe-se a ordem, retirando ao rendeiroCallas os cavalos que eram a sua fonte económica, o que para eleequivale a uma condenação à morte. A solução encontrada paraambos os casos revela, mais uma vez e de forma caricata, a verda-deira natureza da luta de classes que faz com que os pobres tchu-chos sejam levados a rebaixarem-se e sacrificarem-se pelos tchi-chos ricos. Na nota já referida, o absurdo da situação é resumidodo seguinte modo:

“Nanna Callas está disposta a prostituir-se, em troca de pagamento,para salvar o proprietário da terra que foi condenado à morte, porque aprostituiu; […] Em troca do abatimento da renda, Callas, o rendeiro decabeça redonda, dispõe-se a correr o risco de se deixar enforcar em vezdo proprietário da terra de cabeça bicuda.” (GBA, 24, 214)

Na nota escrita em Outubro de 1936 para o jornal do TeatroRiddersalen, por ocasião da estreia mundial da peça, Brecht volta

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judaica, outros temem que a censura dinamarquesa venha a proi-bir o espectáculo devido às alusões à Alemanha de Hitler. Em Maiode 1934, Brecht responde a esses receios numa carta dirigida ao ence-nador Per Knutzon:

[A peça] não tem de certeza o efeito de despoletar uma discussãosobre a questão judaica. Isso só aconteceria se apresentasse os sofrimen-tos injustificados dos judeus. O que ela apresenta é que aquilo que é“judeu”, na utilização política da questão da raça pelo nacional-socialismo(e por outros sistemas reaccionários, por exemplo, o antigo czarismo, opilsudskismo), não tem importância absolutamente nenhuma. O públiconão vai de modo algum dizer: os cabeça bicudas são bons ou são maus, ébem feito ou não há direito, mas: não há realmente diferenças. Se a peçafor representada como deve ser, as pessoas vão rir e isso purifica, em todoo caso, a situação. Seja como for, tudo o que é especificamente judeu foievitado. Passados 10 minutos já só se vai ver cabeças redondas e bicudase rir como se o novo governante dividisse a sério as pessoas em ciclistas epeões. […] No palco, a peça vai resultar, como espero, mais como umconto indiano à la “Vasantasena”, suave e a troçar um pouco da simplici-dade humana. A música vai contribuir muito para isso. Não há, por exem-plo, uma única canção sobre o problema da raça., nós nem pensámos nisso!Como socialista, o problema da raça não me diz absolutamente nada; nopalco, tudo o que tiver a ver com isso vai resultar cómico. O que vai resultarsério é a questão social. Na música é onde isso se vê melhor. (GBA, 28, 414)

A música só será ouvida dois anos mais tarde, quando o pro-jecto de encenação finalmente se concretiza e o espectáculo estreia,em 4 de Novembro de 1936, no Teatro Riddersalen em Copenhaga.Distribuídas como separadores ao longo da peça, de acordo coma função atribuída à música no teatro épico, as canções e as bala-das caracterizam os diversos grupos sociais e parodiam, tanto aonível do texto como da música, que cita cânticos religiosos, cançõespopulares e ritmos de dança como o foxtrot, a “mística podre” daretórica da propaganda nazi. Devido à escassez de meios do Tea-tro Riddersalen, a instrumentação é feita apenas por dois pianos.

Tratando-se de um teatro experimental, dirigido pelo encena-dor Per Knutzon, Brecht tem a possibilidade de modificar o textodurante os ensaios e de intervir na encenação, imprimindo-lheuma série de efeitos de estranhamento e outros artifícios do teatroépico, como descreve depois com pormenor em Anmerkung zu“Die Spitzköpfe und die Rundköpfe” Beschreibung der Kopenha-

19Introdução

gener Uraufführung [Nota a “As cabeças bicudas e as cabeçasredondas” Descrição da estreia absoluta em Copenhaga] (cf.GBA, 24, 207-219) Na reformulação do texto para esta encena-ção, da qual resulta a quarta versão da peça, Brecht reforça a dimen-são ficcional e alegórica da parábola com a introdução de um pró-logo em que a figura do director do teatro, acompanhado pelosintérpretes, se dirige ao público, sublinhando a ficcionalidade dahistória que lhe irá ser contada. A simplificação narrativa própriado modelo da parábola permite-lhe, para além disso, acentuar oscontornos dos conflitos sociais. Como salientara na carta a Per Knut-zon, mais do que a ideologia fascista importava-lhe expor na peçao modo como essa ideologia, aqui apresentada na teoria da raça, erautilizada para encobrir as questões sociais. Nesse sentido, poder-se--ia interpretar o próprio título, As cabeças redondas e as cabeçasbicudas, como artifício irónico, propagandístico ou mesmo publici-tário da manobra com que os nazis procuram encobrir o fulcro daquestão, referido apenas no subtítulo, ou seja, que Os ricos dão-sebem. Essa função da teoria da raça torna-se especialmente claranas duas cenas de tribunal colocadas, em contraponto, no centroda acção: no primeiro processo, o proprietário de Guzman, um tchi-cho, é condenado à morte, alegadamente por razões rácicas, ouseja, por ter seduzido Nanna, uma tchucha, filha do rendeiro Cal-las; no segundo processo, repõe-se a ordem, retirando ao rendeiroCallas os cavalos que eram a sua fonte económica, o que para eleequivale a uma condenação à morte. A solução encontrada paraambos os casos revela, mais uma vez e de forma caricata, a verda-deira natureza da luta de classes que faz com que os pobres tchu-chos sejam levados a rebaixarem-se e sacrificarem-se pelos tchi-chos ricos. Na nota já referida, o absurdo da situação é resumidodo seguinte modo:

“Nanna Callas está disposta a prostituir-se, em troca de pagamento,para salvar o proprietário da terra que foi condenado à morte, porque aprostituiu; […] Em troca do abatimento da renda, Callas, o rendeiro decabeça redonda, dispõe-se a correr o risco de se deixar enforcar em vezdo proprietário da terra de cabeça bicuda.” (GBA, 24, 214)

Na nota escrita em Outubro de 1936 para o jornal do TeatroRiddersalen, por ocasião da estreia mundial da peça, Brecht volta

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a apresentá-la, certamente para criar um terreno favorável à suarecepção, como “uma nova adaptação literária da velha fábula queShakespeare utilizou na sua peça Medida por medida. Medida pormedida é para muitos a mais filosófica de todas as obras shakes-pearianas, é sem dúvida a mais progressista.” (GBA, 24, 203).Numa outra nota, escrita depois da estreia, a forma da parábola éexplicitamente referida como um meio de contornar a censura:“A forma da parábola possibilitou, apesar da censura existente naDinamarca, levar à cena uma peça anti-nazi num pequeno paísque faz fronteira com a Alemanha e entretém com Alemanha rela-ções comerciais importantes para a sua sobrevivência.” (GBA, 24,205)

Anunciado como uma “comédia satírico-grotesca”, o espec-táculo é recebido pelo público da estreia com agrado, mas as crí-ticas são reservadas ou abertamente violentas, acusando Brecht desectarismo. Um grupo de fascistas locais manifesta-se à frente doteatro, exigindo a suspensão do espectáculo. Chamado a intervir,o ministro da Justiça pronuncia-se a favor da manutenção da peçaem cena em nome da liberdade de expressão, mas a peça acabapor ser retirada de cartaz depois de vinte e uma representações. Unsmeses depois, numa carta dirigida a Arnold Zweig, em 18 de Feve-reiro de 1937, Brecht avalia o espectáculo como “uma experiênciamuito interessante”, mas reconhece que para o público, tanto o deCopenhaga como, visto à distância, também o de Berlim, esta formade teatro é estranha e difícil de compreender. (cf. GBA, 29, 10)Pela descrição do espectáculo, feita na nota atrás referida, para essaestranheza e dificuldade terão sem dúvida contribuído a acentua-ção das contradições no comportamento das personagens e a muta-bilidade das suas atitudes nas diferentes situações assim comotodo um conjunto de técnicas anti-ilusionistas do teatro épico: aredução do cenário a elementos simbólicos e socialmente significa-tivos, os projectores a descoberto, a iluminação constante dos doispianos, com o mecanismo à vista, a utilização não-naturalista de sonse ruídos, o aproveitamento ocasional da plateia como espaço derepresentação e a caracterização exagerada das figuras (“As cabe-ças tinham aproximadamente 20 cm de altura. As máscaras mos-travam deformações acentuadas dos narizes, orelhas, cabelos, quei-xos. As mãos e os pés dos Huas eram gigantescos.”). (cf. GBA, 24,207-219)

21Introdução

Para a publicação de As cabeças redondas e as cabeças bicu-das em 1938, Brecht retrabalha a peça numa quinta e última ver-são com base na experiência do espectáculo de estreia em Cope-nhaga. Em carta a Otto Bork, escrita em 30 de Novembro de 1936,as modificações e os melhoramentos que se apressa a fazer sãofundamentados com o facto de a actualidade dos assuntos tratadoster suscitado “uma série de malentendidos políticos, etc.” que émuito importante esclarecer. (cf. GBA, 28, 566) Como a Nota a“As cabeças bicudas e as cabeças redondas” Descrição da estreiaabsoluta em Copenhaga documenta, as alterações procuram acen-tuar as características da parábola e esbater comparações demasiadodirectas com a actualidade política na Alemanha. De acordo comos princípios do teatro épico, pretendia-se assim quebrar os efei-tos tradicionais da ilusão teatral e apelar ao poder de abstracção eà atitude reflexiva do espectador. O facto de as técnicas do teatroépico proporcionarem, ao mesmo tempo, um disfarce para iludira censura torna-se especialmente claro no apontamento relativo àconstrução e caracterização da personagem de Angelo Iberin:

“Angelo Iberin não foi caracterizado com nenhuma semelhançaexterior a Hitler. Já o facto de ele ser, de certo modo, uma reproduçãomuito idealizada de um profeta da raça (o que para a parábola é suficiente)impediu também que isso se fizesse onde a polícia não o teria impedido.No entanto, foram utilizados alguns gestos, em parte baseados em mate-rial fotográfico.” (GBA, 24, 210-211)

A atenção à actualidade política na Alemanha, seguida atravésda rádio e acompanhada pela compilação de fotografias e recortesde jornais, mantém-se ao longo do exílio, como se verifica particu-larmente no Diário, no Manual de guerra alemão, nos vários textosteóricos sobre o fascismo e em peças como Terror e miséria do IIIReich, A resistível ascensão de Arturo Ui e Schweyk na SegundaGuerra Mundial. Depois da encenação e da reformulação de As cabe-ças redondas e as cabeças bicudas realizadas na Dinamarca Brechtnão volta a trabalhar na peça que, durante a sua vida, também nãovolta a ser representada. Hanns Eisler retrabalha a partitura paraa primeira encenação alemã da peça que estreia em 21 de Outubrode 1962 no Landestheater Hannover, pouco depois da sua morte.Num ambiente de tensão política, marcado pela construção recente

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a apresentá-la, certamente para criar um terreno favorável à suarecepção, como “uma nova adaptação literária da velha fábula queShakespeare utilizou na sua peça Medida por medida. Medida pormedida é para muitos a mais filosófica de todas as obras shakes-pearianas, é sem dúvida a mais progressista.” (GBA, 24, 203).Numa outra nota, escrita depois da estreia, a forma da parábola éexplicitamente referida como um meio de contornar a censura:“A forma da parábola possibilitou, apesar da censura existente naDinamarca, levar à cena uma peça anti-nazi num pequeno paísque faz fronteira com a Alemanha e entretém com Alemanha rela-ções comerciais importantes para a sua sobrevivência.” (GBA, 24,205)

Anunciado como uma “comédia satírico-grotesca”, o espec-táculo é recebido pelo público da estreia com agrado, mas as crí-ticas são reservadas ou abertamente violentas, acusando Brecht desectarismo. Um grupo de fascistas locais manifesta-se à frente doteatro, exigindo a suspensão do espectáculo. Chamado a intervir,o ministro da Justiça pronuncia-se a favor da manutenção da peçaem cena em nome da liberdade de expressão, mas a peça acabapor ser retirada de cartaz depois de vinte e uma representações. Unsmeses depois, numa carta dirigida a Arnold Zweig, em 18 de Feve-reiro de 1937, Brecht avalia o espectáculo como “uma experiênciamuito interessante”, mas reconhece que para o público, tanto o deCopenhaga como, visto à distância, também o de Berlim, esta formade teatro é estranha e difícil de compreender. (cf. GBA, 29, 10)Pela descrição do espectáculo, feita na nota atrás referida, para essaestranheza e dificuldade terão sem dúvida contribuído a acentua-ção das contradições no comportamento das personagens e a muta-bilidade das suas atitudes nas diferentes situações assim comotodo um conjunto de técnicas anti-ilusionistas do teatro épico: aredução do cenário a elementos simbólicos e socialmente significa-tivos, os projectores a descoberto, a iluminação constante dos doispianos, com o mecanismo à vista, a utilização não-naturalista de sonse ruídos, o aproveitamento ocasional da plateia como espaço derepresentação e a caracterização exagerada das figuras (“As cabe-ças tinham aproximadamente 20 cm de altura. As máscaras mos-travam deformações acentuadas dos narizes, orelhas, cabelos, quei-xos. As mãos e os pés dos Huas eram gigantescos.”). (cf. GBA, 24,207-219)

21Introdução

Para a publicação de As cabeças redondas e as cabeças bicu-das em 1938, Brecht retrabalha a peça numa quinta e última ver-são com base na experiência do espectáculo de estreia em Cope-nhaga. Em carta a Otto Bork, escrita em 30 de Novembro de 1936,as modificações e os melhoramentos que se apressa a fazer sãofundamentados com o facto de a actualidade dos assuntos tratadoster suscitado “uma série de malentendidos políticos, etc.” que émuito importante esclarecer. (cf. GBA, 28, 566) Como a Nota a“As cabeças bicudas e as cabeças redondas” Descrição da estreiaabsoluta em Copenhaga documenta, as alterações procuram acen-tuar as características da parábola e esbater comparações demasiadodirectas com a actualidade política na Alemanha. De acordo comos princípios do teatro épico, pretendia-se assim quebrar os efei-tos tradicionais da ilusão teatral e apelar ao poder de abstracção eà atitude reflexiva do espectador. O facto de as técnicas do teatroépico proporcionarem, ao mesmo tempo, um disfarce para iludira censura torna-se especialmente claro no apontamento relativo àconstrução e caracterização da personagem de Angelo Iberin:

“Angelo Iberin não foi caracterizado com nenhuma semelhançaexterior a Hitler. Já o facto de ele ser, de certo modo, uma reproduçãomuito idealizada de um profeta da raça (o que para a parábola é suficiente)impediu também que isso se fizesse onde a polícia não o teria impedido.No entanto, foram utilizados alguns gestos, em parte baseados em mate-rial fotográfico.” (GBA, 24, 210-211)

A atenção à actualidade política na Alemanha, seguida atravésda rádio e acompanhada pela compilação de fotografias e recortesde jornais, mantém-se ao longo do exílio, como se verifica particu-larmente no Diário, no Manual de guerra alemão, nos vários textosteóricos sobre o fascismo e em peças como Terror e miséria do IIIReich, A resistível ascensão de Arturo Ui e Schweyk na SegundaGuerra Mundial. Depois da encenação e da reformulação de As cabe-ças redondas e as cabeças bicudas realizadas na Dinamarca Brechtnão volta a trabalhar na peça que, durante a sua vida, também nãovolta a ser representada. Hanns Eisler retrabalha a partitura paraa primeira encenação alemã da peça que estreia em 21 de Outubrode 1962 no Landestheater Hannover, pouco depois da sua morte.Num ambiente de tensão política, marcado pela construção recente

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do Muro de Berlim, a apresentação, na República Federal da Ale-manha, de uma peça de dois autores com um passado assumida-mente antifascista e que depois da guerra tinham fixado residênciana República Democrática Alemã é vista como uma ousadia. Mesmoa eliminação de passagens e canções consideradas demasiado críti-cas não chega para retirar à parábola o potencial corrosivo que osdois autores lhe tinham atribuído.

UM BAILADO CANTADO

Nas críticas ao espectáculo de As cabeças redondas e as cabe-ças bicudas em Copenhaga, não houve qualquer referência à músicade Hanns Eisler, mas acusou-se Brecht de ser um autor menor quedevia a sua notoriedade à colaboração com Kurt Weill, principal-mente em A ópera de três vinténs (cf. Monika Wyss, Brecht in derKritik. Rezensionen aller Brecht-Uraufführungen sowie ausgewähl-ter deutsch-und fremdsprachiger Premieren, München, KindlerVerlag, 1977, pp. 170-176). Tal como Brecht e Eisler, também KurtWeill partira para o exílio depois da ascensão de Hitler ao poder.Em 23 de Março de 1933, rumara a Paris, onde era reconhecidocomo um compositor de prestígio, tinha contactos para trabalharno cinema com René Clair e Jean Renoir e rapidamente obteve a enco-menda do que viria a ser Os sete pecados mortais. O magnata egrande apreciador de arte inglês Edward James pede-lhe paracompor um “ballet chanté” para uma bailarina, a sua mulher TillyLosch, e uma cantora amiga, Lotte Lenya, mulher de Weill. Esse“ballet chanté” deveria ser apresentado pelo grupo Les ballets 1933,recém-fundado em Paris por Georges Balanchine e Boris Kochno,antigos colaboradores de Diaghilev. Desgastado pelos pequenos egrandes conflitos com Brecht nos últimos trabalhos em Berlim,Weill propõe Jean Cocteau como libretista, mas quando este declinao convite, por falta de tempo, aceita a sugestão de James e contactacom Brecht para a realização desse trabalho. Em meados de Abrilde 1933, Brecht desloca-se a Paris e, em duas semanas, desenvolvecom Weill a obra a que dão o título Os sete pecados mortais.

As premissas colocadas por James vão ao encontro de umtema que Brecht tinha esboçado em Berlim, por volta de 1930, parao projecto de uma peça com o título Die Ware Liebe [A mercado-ria amor, que contém também um jogo sonoro, irónico, com Die

23Introdução

wahre Liebe, O verdadeiro amor]. Na figura de uma prostituta, queé simultaneamente sujeito e objecto de uma transacção comercial,vendedora e mercadoria no mercado do amor, pretendia proble-matizar a divisão e alienação do indivíduo numa sociedade regidapelo poder do dinheiro. Este projecto será retomado e desenvol-vido entre 1939 e 1941 na peça A boa alma de Sé-Chuão, na figurade Shen Te, uma prostituta bondosa e idealista, que se vê obrigadaa desdobrar-se no seu impiedoso primo, um homem de negócioschamado Shui Ta, de modo a poder manter a loja que constitui a novabase da sua subsistência e lhe permite continuar a praticar o beme tentar melhorar o mundo em que vive.

O tema da personalidade dividida ou do desdobramento dapersonalidade adequa-se à encomenda de um bailado cantado emque o papel principal deveria ser repartido equitativamente poruma bailarina e uma cantora e é assim que, antes de Shen Te e ShuiTa em A boa alma de Sé-Chuão, Brecht cria em Os sete pecadosmortais a figura de Anna I e Anna II, duas irmãs que se apresen-tam como sendo, na realidade, uma só pessoa:”No fundo não somosduas pessoas/Mas apenas uma/Chamamo-nos as duas Anna/Temosum passado e um futuro/Um coração e uma conta bancária/E cadauma só faz aquilo que é bom para a outra”. Anna I, a cantora, é aracional, a gestora da carreira de Anna II, a bailarina, a emocional.Como instância reguladora, Anna I intervém para corrigir os impul-sos de Anna II, a sua irresistível tentação de cair em pecado e sedesviar do caminho traçado, o caminho do emigrante que abandonaa sua terra e parte para as grandes cidades para ganhar dinheiro econstruir no regresso uma casinha para si e para a sua família. Estru-turado como um pequeno drama em estações ou uma pequena peçamusical em quadros ou números, à semelhança do que Brecht e Weilltinham realizado em Berlim nas peças didácticas O voo de Lind-bergh e O que diz sim, o bailado cantado Os sete pecados mortaisnarra, tal como essas duas peças, a história de uma viagem. Partindode Louisiana, a sua terra natal, rumo às chamadas grandes cidades,situadas numa América ficcional em que Brecht localiza alguns dosseus trabalhos dos anos 20, como Na selva das cidades, Ascensãoe queda da cidade de Mahagonny, Santa Joana dos Matadouros ouos fragmentos Dan Drew e Joe Fleischhacker, Anna I e Anna II pre-vêem ter de ficar sete anos fora para conseguir realizar o seu projecto.A cada estação, número ou quadro corresponde uma cidade e um

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22 Vera San Payo de Lemos

do Muro de Berlim, a apresentação, na República Federal da Ale-manha, de uma peça de dois autores com um passado assumida-mente antifascista e que depois da guerra tinham fixado residênciana República Democrática Alemã é vista como uma ousadia. Mesmoa eliminação de passagens e canções consideradas demasiado críti-cas não chega para retirar à parábola o potencial corrosivo que osdois autores lhe tinham atribuído.

UM BAILADO CANTADO

Nas críticas ao espectáculo de As cabeças redondas e as cabe-ças bicudas em Copenhaga, não houve qualquer referência à músicade Hanns Eisler, mas acusou-se Brecht de ser um autor menor quedevia a sua notoriedade à colaboração com Kurt Weill, principal-mente em A ópera de três vinténs (cf. Monika Wyss, Brecht in derKritik. Rezensionen aller Brecht-Uraufführungen sowie ausgewähl-ter deutsch-und fremdsprachiger Premieren, München, KindlerVerlag, 1977, pp. 170-176). Tal como Brecht e Eisler, também KurtWeill partira para o exílio depois da ascensão de Hitler ao poder.Em 23 de Março de 1933, rumara a Paris, onde era reconhecidocomo um compositor de prestígio, tinha contactos para trabalharno cinema com René Clair e Jean Renoir e rapidamente obteve a enco-menda do que viria a ser Os sete pecados mortais. O magnata egrande apreciador de arte inglês Edward James pede-lhe paracompor um “ballet chanté” para uma bailarina, a sua mulher TillyLosch, e uma cantora amiga, Lotte Lenya, mulher de Weill. Esse“ballet chanté” deveria ser apresentado pelo grupo Les ballets 1933,recém-fundado em Paris por Georges Balanchine e Boris Kochno,antigos colaboradores de Diaghilev. Desgastado pelos pequenos egrandes conflitos com Brecht nos últimos trabalhos em Berlim,Weill propõe Jean Cocteau como libretista, mas quando este declinao convite, por falta de tempo, aceita a sugestão de James e contactacom Brecht para a realização desse trabalho. Em meados de Abrilde 1933, Brecht desloca-se a Paris e, em duas semanas, desenvolvecom Weill a obra a que dão o título Os sete pecados mortais.

As premissas colocadas por James vão ao encontro de umtema que Brecht tinha esboçado em Berlim, por volta de 1930, parao projecto de uma peça com o título Die Ware Liebe [A mercado-ria amor, que contém também um jogo sonoro, irónico, com Die

23Introdução

wahre Liebe, O verdadeiro amor]. Na figura de uma prostituta, queé simultaneamente sujeito e objecto de uma transacção comercial,vendedora e mercadoria no mercado do amor, pretendia proble-matizar a divisão e alienação do indivíduo numa sociedade regidapelo poder do dinheiro. Este projecto será retomado e desenvol-vido entre 1939 e 1941 na peça A boa alma de Sé-Chuão, na figurade Shen Te, uma prostituta bondosa e idealista, que se vê obrigadaa desdobrar-se no seu impiedoso primo, um homem de negócioschamado Shui Ta, de modo a poder manter a loja que constitui a novabase da sua subsistência e lhe permite continuar a praticar o beme tentar melhorar o mundo em que vive.

O tema da personalidade dividida ou do desdobramento dapersonalidade adequa-se à encomenda de um bailado cantado emque o papel principal deveria ser repartido equitativamente poruma bailarina e uma cantora e é assim que, antes de Shen Te e ShuiTa em A boa alma de Sé-Chuão, Brecht cria em Os sete pecadosmortais a figura de Anna I e Anna II, duas irmãs que se apresen-tam como sendo, na realidade, uma só pessoa:”No fundo não somosduas pessoas/Mas apenas uma/Chamamo-nos as duas Anna/Temosum passado e um futuro/Um coração e uma conta bancária/E cadauma só faz aquilo que é bom para a outra”. Anna I, a cantora, é aracional, a gestora da carreira de Anna II, a bailarina, a emocional.Como instância reguladora, Anna I intervém para corrigir os impul-sos de Anna II, a sua irresistível tentação de cair em pecado e sedesviar do caminho traçado, o caminho do emigrante que abandonaa sua terra e parte para as grandes cidades para ganhar dinheiro econstruir no regresso uma casinha para si e para a sua família. Estru-turado como um pequeno drama em estações ou uma pequena peçamusical em quadros ou números, à semelhança do que Brecht e Weilltinham realizado em Berlim nas peças didácticas O voo de Lind-bergh e O que diz sim, o bailado cantado Os sete pecados mortaisnarra, tal como essas duas peças, a história de uma viagem. Partindode Louisiana, a sua terra natal, rumo às chamadas grandes cidades,situadas numa América ficcional em que Brecht localiza alguns dosseus trabalhos dos anos 20, como Na selva das cidades, Ascensãoe queda da cidade de Mahagonny, Santa Joana dos Matadouros ouos fragmentos Dan Drew e Joe Fleischhacker, Anna I e Anna II pre-vêem ter de ficar sete anos fora para conseguir realizar o seu projecto.A cada estação, número ou quadro corresponde uma cidade e um

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24 Vera San Payo de Lemos

dos sete pecados mortais: à primeira cidade, a única não nomeada,a preguiça; à segunda, Memphis, o orgulho; à terceira, Los Angeles,a ira; à quarta, Filadélfia, a gula; à quinta, Boston, a luxúria; à sexta,Tennessee, a avareza; à sétima, San Francisco, a inveja. Na partitura,há um prólogo que enuncia o objectivo da viagem e um epílogo quenarra o regresso a casa e apresenta na casinha entretanto construídaem Louisiana, junto ao Mississipi, a concretização do objectivo. Emcada um dos sete andamentos, que marcam as sete etapas da viagem,Weill cita, adapta e recria, numa mistura com sonoridades sinfóni-cas, uma forma de música ligeira, como a valsa, o foxtrott, a marcha,o shimmy ou a tarantela, desenvolvendo com grande virtuosismoo estilo que o celebrizara sobretudo com A ópera de três vinténs.

À semelhança do processo utilizado em Hauspostille [Sermõesdomésticos], o primeiro livro de poemas, publicado em 1927, emque as formas dos cânticos protestantes são irreverentemente des-construídas por conteúdos profanos, Brecht recorre em Os sete peca-dos mortais ao catálogo dos sete pecados capitais, instituído no séculoXII pela teologia moral católica, para o secularizar e subverter. O cal-vário marcado pelas sete cidades e pelos sete pecados não visa a reden-ção da humanidade nem revela nenhum ideal elevado de sacrifícioindividual em prol da comunidade, mas apenas a realização do pro-jecto, mais tarde caracterizado como pequeno-burguês, da constru-ção de uma casinha para a família na terra natal. A esta luz, os pró-prios pecados (ou vícios privados) de Anna II, a artista que se vêtransformada em mercadoria, surgem como prováveis virtudes ouideais que são censurados pelas leis do mercado e pela necessidadede adequação às condições económicas e sociais existentes, aqui apre-sentadas por Anna I como o preço a pagar para o seu empreendi-mento individual e familiar ter sucesso. Anna II não pode cometero pecado do orgulho, que se reflecte no seu desejo de “ser artistae fazer arte em Memphis”, mas tem de se vender e ir ao encontrodo desejo do público que pagou para lhe ver o corpo. Do mesmomodo, depois de conseguir um contrato como bailarina em Fila-délfia, não pode cometer o pecado da gula e comer a seu bel-pra-zer, porque a entidade empregadora zela pelo investimento que feze pesa-a todos os dias para se certificar que a mercadoria não excedeos 52 quilos pelos quais foi comprada. No último pecado, opecado da inveja, resumem-se todos os outros pecados: Anna II échamada a não invejar aqueles que se podem dar ao luxo de não tra-

25Introdução

balhar e não se vender, de se enfurecer com a brutalidade, se entre-gar aos prazeres do amor e da comida e ficar com aquilo de que seprecisa sem pesos na consciência. Para fundamentar o pedido desteúltimo esforço, Anna I cita a parábola bíblica das virgens pruden-tes e imprudentes: os pecados são cometidos por gente tonta que,no fim, ficará “tremendo no nada diante de uma porta fechada”enquanto Anna II irá ver o seu esforço recompensado e triunfar.

Para além de Anna I, que acompanha de perto a viagem da irmã,também a família, a mãe, o pai e os dois irmãos, que ficaram emLouisiana e a acompanham através de cartas e notícias de jornais,relatam a acção e exercem a função de entidade reguladora noscomentários que vão fazendo, ora expressando os seus temoresem relação a possíveis desvios comportamentais de Anna II oraqueixando-se do pouco dinheiro que lhes é enviado para a constru-ção da ambicionada casinha junto ao Mississipi. Na partitura, Weillrepresenta a família, inclusive a mãe, por um quarteto de vozes mas-culinas que recorda, por vezes, o grupo na altura muito populardos Comedian Harmonists. O humor subtil que pontua a compo-sição das Canções da família contrasta com a tristeza de um leitmo-tiv que atravessa a linha musical das Canções da irmã, cantadas porAnna I. Ao associar Anna II ao princípio do prazer, às emoções eà afirmação do indivíduo, e Anna I e a família ao princípio da rea-lidade, à razão e às regras da sociedade, seja no espaço privado dafamília seja no espaço público do mundo do trabalho, Brecht retomao tema do “acordo”, do apagamento, da dissolução e da morte do indi-víduo no confronto com os imperativos da sociedade e do colectivo,tratado de diversos modos nas peças didácticas e também em Umhomem é um homem.

Um apontamento, conservado no espólio e anterior ao primeiroesboço de Os sete pecados mortais, revela que o ponto de partidade Brecht não foi a conhecida lista dos sete pecados capitais, massim uma lista própria, em que se encontram enumerados compor-tamentos, situações, ideias e valores, entre os quais figuram a pobreza,a doença, o amor verdadeiro, o amor à justiça, a afirmação da ver-dade, a fidelidade a si próprio, o amor ao próximo, que impedemo indivíduo de singrar na sociedade (cf. GBA, 4, 494). Nesta lista,reconhece-se a influência da leitura de The Fable of the Bees orPrivate Vices, Publick Benefits, uma obra do médico e escritor inglêsBernard de Mandeville, datada de 1705, que Brecht deve ter conhe-

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dos sete pecados mortais: à primeira cidade, a única não nomeada,a preguiça; à segunda, Memphis, o orgulho; à terceira, Los Angeles,a ira; à quarta, Filadélfia, a gula; à quinta, Boston, a luxúria; à sexta,Tennessee, a avareza; à sétima, San Francisco, a inveja. Na partitura,há um prólogo que enuncia o objectivo da viagem e um epílogo quenarra o regresso a casa e apresenta na casinha entretanto construídaem Louisiana, junto ao Mississipi, a concretização do objectivo. Emcada um dos sete andamentos, que marcam as sete etapas da viagem,Weill cita, adapta e recria, numa mistura com sonoridades sinfóni-cas, uma forma de música ligeira, como a valsa, o foxtrott, a marcha,o shimmy ou a tarantela, desenvolvendo com grande virtuosismoo estilo que o celebrizara sobretudo com A ópera de três vinténs.

À semelhança do processo utilizado em Hauspostille [Sermõesdomésticos], o primeiro livro de poemas, publicado em 1927, emque as formas dos cânticos protestantes são irreverentemente des-construídas por conteúdos profanos, Brecht recorre em Os sete peca-dos mortais ao catálogo dos sete pecados capitais, instituído no séculoXII pela teologia moral católica, para o secularizar e subverter. O cal-vário marcado pelas sete cidades e pelos sete pecados não visa a reden-ção da humanidade nem revela nenhum ideal elevado de sacrifícioindividual em prol da comunidade, mas apenas a realização do pro-jecto, mais tarde caracterizado como pequeno-burguês, da constru-ção de uma casinha para a família na terra natal. A esta luz, os pró-prios pecados (ou vícios privados) de Anna II, a artista que se vêtransformada em mercadoria, surgem como prováveis virtudes ouideais que são censurados pelas leis do mercado e pela necessidadede adequação às condições económicas e sociais existentes, aqui apre-sentadas por Anna I como o preço a pagar para o seu empreendi-mento individual e familiar ter sucesso. Anna II não pode cometero pecado do orgulho, que se reflecte no seu desejo de “ser artistae fazer arte em Memphis”, mas tem de se vender e ir ao encontrodo desejo do público que pagou para lhe ver o corpo. Do mesmomodo, depois de conseguir um contrato como bailarina em Fila-délfia, não pode cometer o pecado da gula e comer a seu bel-pra-zer, porque a entidade empregadora zela pelo investimento que feze pesa-a todos os dias para se certificar que a mercadoria não excedeos 52 quilos pelos quais foi comprada. No último pecado, opecado da inveja, resumem-se todos os outros pecados: Anna II échamada a não invejar aqueles que se podem dar ao luxo de não tra-

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balhar e não se vender, de se enfurecer com a brutalidade, se entre-gar aos prazeres do amor e da comida e ficar com aquilo de que seprecisa sem pesos na consciência. Para fundamentar o pedido desteúltimo esforço, Anna I cita a parábola bíblica das virgens pruden-tes e imprudentes: os pecados são cometidos por gente tonta que,no fim, ficará “tremendo no nada diante de uma porta fechada”enquanto Anna II irá ver o seu esforço recompensado e triunfar.

Para além de Anna I, que acompanha de perto a viagem da irmã,também a família, a mãe, o pai e os dois irmãos, que ficaram emLouisiana e a acompanham através de cartas e notícias de jornais,relatam a acção e exercem a função de entidade reguladora noscomentários que vão fazendo, ora expressando os seus temoresem relação a possíveis desvios comportamentais de Anna II oraqueixando-se do pouco dinheiro que lhes é enviado para a constru-ção da ambicionada casinha junto ao Mississipi. Na partitura, Weillrepresenta a família, inclusive a mãe, por um quarteto de vozes mas-culinas que recorda, por vezes, o grupo na altura muito populardos Comedian Harmonists. O humor subtil que pontua a compo-sição das Canções da família contrasta com a tristeza de um leitmo-tiv que atravessa a linha musical das Canções da irmã, cantadas porAnna I. Ao associar Anna II ao princípio do prazer, às emoções eà afirmação do indivíduo, e Anna I e a família ao princípio da rea-lidade, à razão e às regras da sociedade, seja no espaço privado dafamília seja no espaço público do mundo do trabalho, Brecht retomao tema do “acordo”, do apagamento, da dissolução e da morte do indi-víduo no confronto com os imperativos da sociedade e do colectivo,tratado de diversos modos nas peças didácticas e também em Umhomem é um homem.

Um apontamento, conservado no espólio e anterior ao primeiroesboço de Os sete pecados mortais, revela que o ponto de partidade Brecht não foi a conhecida lista dos sete pecados capitais, massim uma lista própria, em que se encontram enumerados compor-tamentos, situações, ideias e valores, entre os quais figuram a pobreza,a doença, o amor verdadeiro, o amor à justiça, a afirmação da ver-dade, a fidelidade a si próprio, o amor ao próximo, que impedemo indivíduo de singrar na sociedade (cf. GBA, 4, 494). Nesta lista,reconhece-se a influência da leitura de The Fable of the Bees orPrivate Vices, Publick Benefits, uma obra do médico e escritor inglêsBernard de Mandeville, datada de 1705, que Brecht deve ter conhe-

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cido através de O capital de Marx e utiliza para a sua reflexãosobre o comportamento do indivíduo na sociedade. Enquanto Man-deville realça a utilidade dos pecados para o desenvolvimento dasociedade, Brecht interessa-se sobretudo em focar o problema daperspectiva do indivíduo, realçando, especialmente em Vida deGalileu, Mãe Coragem e os seus filhos e A boa alma de Sé-Chuão,os chamados grandes dramas do exílio, quanto o apego a ideais evirtudes se pode revelar nefasto para a sobrevivência do indivíduona sociedade. Esta temática do confronto do indivíduo com a socie-dade, da relação dialéctica entre os ideais e as condições materiais,entre a superstrutura formada pelas ideias e a base económica esocial, que surge como um leitmotiv na obra de Brecht, adquire nostempos sombrios do exílio e da guerra uma acuidade particular, umavez que contempla uma componente biográfica e se aplica à situaçãoconcreta em que se encontram os intelectuais e os artistas antifas-cistas. Como Brecht sintetiza numa pequena nota, escrita em 1935e intitulada Der Künstler im Dritten Reich [O artista no TerceiroReich], o cerne da questão é o seguinte: “O artista no TerceiroReich tem de escolher entre a prática de duas artes incompatíveis:a de fazer obras de arte e a de continuar vivo”. (GBA, 22.1., 182)

O bailado, cantado em alemão, estreia em 7 de Junho de 1933,no Théâtre des Champs-Elysées, com coreografia de Georges Balan-chine, cenário de Caspar Neher, encenação de Edward James e direc-ção musical de Maurice Abravanel, num programa em que são apre-sentadas cinco outras peças da companhia, com música de Mozart,Tchaikovski, Milhaud, Schubert, Sauguet e Beethoven. Os exiladosalemães em Paris e os especialistas consideraram o bailado criadopor Brecht e Weill um acontecimento artístico de relevo e louva-ram as prestações de Tilly Losch, Lotte Lenya e Caspar Neher, masa maior parte do público esperava mais de Weill e manifesta, talcomo a crítica e os próprios artistas durante os ensaios do espec-táculo, estranheza e desconforto tanto em relação à inusitada crí-tica social como à forma inovadora de um bailado cantado, difícil declassificar, como revelam as designações híbridas de cantata mímica,pantomima balética ou ópera curta com características do teatroépico e do songspiel na base de um bailado que foram propostasmais tarde.

Depois da estreia em Paris, o bailado vai em tournée até Lon-dres, onde é apresentado como Anna Anna. Music by Kurt Weill

27Introdução

from the poems of Bert Brecht no Savoy Theatre de 28 de Junhoa 15 de Julho de 1933. Publicado em francês e alemão no programado espectáculo da estreia em Paris, com o título Les sept péchéscapitaux. Spectacle sur des poèmes de Bert Brecht. Musique de KurtWeill. Décor e costumes de Caspard Neher, mas sem a indicação dascenas e a descrição da coreografia, o texto completo em alemão nãochega a ser editado em vida de Brecht que, possivelmente por a crí-tica não ter salientado o seu contributo, não atribuiu a esta sua últimacolaboração com Weill nenhum significado artístico especial, antesa confirmação de que não seria Paris, mas sim a Dinamarca o lugaronde poderia continuar a desenvolver melhor o seu trabalho. Defacto, é no Kongeligen Teater em Copenhaga que, em 12 de Novem-bro de 1936, estreia a segunda encenação do bailado, sob a direc-ção de Harald Lander. A sua recepção é no entanto ensombradapela campanha de imprensa desencadeada contra Brecht depoisda estreia de As cabeças redondas e as cabeças bicudas, ocorridauma semana antes. Embora a música de Weill fosse apreciada pelacrítica, o bailado é desqualificado, por causa do texto, como “umapeçazinha de propaganda encapotada sem espírito e sem graça”, eretirado de cena após o segundo espectáculo por pressão exercidapelo governo alemão na Embaixada da Dinamarca em Berlim.

A terceira encenação de Os sete pecados mortais retoma,depois da morte de Weill e de Brecht, a coreografia de GeorgesBalanchine para a estreia mundial do bailado em Paris. Estreadoem 4 de Dezembro de 1958, no City Theatre em Nova Iorque,com tradução de W.H.Auden e Chester Kalman e interpretaçãode Lotte Lenya como Anna I e Allegra Kent como Anna II, o espec-táculo é celebrado como redescoberta de uma obra esquecida e abrecaminho para o sucesso junto do público e a grande variedade deinterpretações que tem suscitado até aos dias de hoje. Contam-se,entre as gravações mais recentes e disponíveis em cd, as interpre-tações de Doris Bierett (Capriccio, 1993), Anne Sofie von Otter(Deutsche Grammophon, 1994), Angelina Réaux (Teldec Classics,1994) e Marianne Faithfull (RCA Victor, 1997). A primeira publi-cação integral do texto, a cujo título foi acrescentado ”dos pequeno--burgueses” numa correcção feita já depois da estreia em 1933,ocorre no entanto apenas em 1959. Escolhida para a última ediçãodas obras completas de Brecht, é essa versão que se publica nestaedição portuguesa.

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cido através de O capital de Marx e utiliza para a sua reflexãosobre o comportamento do indivíduo na sociedade. Enquanto Man-deville realça a utilidade dos pecados para o desenvolvimento dasociedade, Brecht interessa-se sobretudo em focar o problema daperspectiva do indivíduo, realçando, especialmente em Vida deGalileu, Mãe Coragem e os seus filhos e A boa alma de Sé-Chuão,os chamados grandes dramas do exílio, quanto o apego a ideais evirtudes se pode revelar nefasto para a sobrevivência do indivíduona sociedade. Esta temática do confronto do indivíduo com a socie-dade, da relação dialéctica entre os ideais e as condições materiais,entre a superstrutura formada pelas ideias e a base económica esocial, que surge como um leitmotiv na obra de Brecht, adquire nostempos sombrios do exílio e da guerra uma acuidade particular, umavez que contempla uma componente biográfica e se aplica à situaçãoconcreta em que se encontram os intelectuais e os artistas antifas-cistas. Como Brecht sintetiza numa pequena nota, escrita em 1935e intitulada Der Künstler im Dritten Reich [O artista no TerceiroReich], o cerne da questão é o seguinte: “O artista no TerceiroReich tem de escolher entre a prática de duas artes incompatíveis:a de fazer obras de arte e a de continuar vivo”. (GBA, 22.1., 182)

O bailado, cantado em alemão, estreia em 7 de Junho de 1933,no Théâtre des Champs-Elysées, com coreografia de Georges Balan-chine, cenário de Caspar Neher, encenação de Edward James e direc-ção musical de Maurice Abravanel, num programa em que são apre-sentadas cinco outras peças da companhia, com música de Mozart,Tchaikovski, Milhaud, Schubert, Sauguet e Beethoven. Os exiladosalemães em Paris e os especialistas consideraram o bailado criadopor Brecht e Weill um acontecimento artístico de relevo e louva-ram as prestações de Tilly Losch, Lotte Lenya e Caspar Neher, masa maior parte do público esperava mais de Weill e manifesta, talcomo a crítica e os próprios artistas durante os ensaios do espec-táculo, estranheza e desconforto tanto em relação à inusitada crí-tica social como à forma inovadora de um bailado cantado, difícil declassificar, como revelam as designações híbridas de cantata mímica,pantomima balética ou ópera curta com características do teatroépico e do songspiel na base de um bailado que foram propostasmais tarde.

Depois da estreia em Paris, o bailado vai em tournée até Lon-dres, onde é apresentado como Anna Anna. Music by Kurt Weill

27Introdução

from the poems of Bert Brecht no Savoy Theatre de 28 de Junhoa 15 de Julho de 1933. Publicado em francês e alemão no programado espectáculo da estreia em Paris, com o título Les sept péchéscapitaux. Spectacle sur des poèmes de Bert Brecht. Musique de KurtWeill. Décor e costumes de Caspard Neher, mas sem a indicação dascenas e a descrição da coreografia, o texto completo em alemão nãochega a ser editado em vida de Brecht que, possivelmente por a crí-tica não ter salientado o seu contributo, não atribuiu a esta sua últimacolaboração com Weill nenhum significado artístico especial, antesa confirmação de que não seria Paris, mas sim a Dinamarca o lugaronde poderia continuar a desenvolver melhor o seu trabalho. Defacto, é no Kongeligen Teater em Copenhaga que, em 12 de Novem-bro de 1936, estreia a segunda encenação do bailado, sob a direc-ção de Harald Lander. A sua recepção é no entanto ensombradapela campanha de imprensa desencadeada contra Brecht depoisda estreia de As cabeças redondas e as cabeças bicudas, ocorridauma semana antes. Embora a música de Weill fosse apreciada pelacrítica, o bailado é desqualificado, por causa do texto, como “umapeçazinha de propaganda encapotada sem espírito e sem graça”, eretirado de cena após o segundo espectáculo por pressão exercidapelo governo alemão na Embaixada da Dinamarca em Berlim.

A terceira encenação de Os sete pecados mortais retoma,depois da morte de Weill e de Brecht, a coreografia de GeorgesBalanchine para a estreia mundial do bailado em Paris. Estreadoem 4 de Dezembro de 1958, no City Theatre em Nova Iorque,com tradução de W.H.Auden e Chester Kalman e interpretaçãode Lotte Lenya como Anna I e Allegra Kent como Anna II, o espec-táculo é celebrado como redescoberta de uma obra esquecida e abrecaminho para o sucesso junto do público e a grande variedade deinterpretações que tem suscitado até aos dias de hoje. Contam-se,entre as gravações mais recentes e disponíveis em cd, as interpre-tações de Doris Bierett (Capriccio, 1993), Anne Sofie von Otter(Deutsche Grammophon, 1994), Angelina Réaux (Teldec Classics,1994) e Marianne Faithfull (RCA Victor, 1997). A primeira publi-cação integral do texto, a cujo título foi acrescentado ”dos pequeno--burgueses” numa correcção feita já depois da estreia em 1933,ocorre no entanto apenas em 1959. Escolhida para a última ediçãodas obras completas de Brecht, é essa versão que se publica nestaedição portuguesa.

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UMA PEÇA DIDÁCTICA

A peça Os horácios e os curiácios, escrita entre o fim de Agostoe o princípio de Outubro de 1935 em Svendborg, foi desde o iní-cio concebida como peça didáctica, ou seja, tal como O voo dos Lind-berghs, A peça didáctica de Baden-Baden sobre o acordo, O quediz sim, O que diz não e A decisão, dos últimos anos da Repúblicade Weimar, como uma peça de música vocal, construída em estreitacolaboração com um compositor, curta e simples de modo a serexecutada também por intérpretes amadores, à margem dos circui-tos profissionais e comerciais dos teatros e das salas de concerto.Visando a demonstração e problematização de atitudes do indiví-duo face ao colectivo, a peça didáctica pretende proporcionar aosseus intérpretes uma reflexão filosófica através da arte, um “exercí-cio de flexibilidade” intelectual, que, no espírito do learning by doing,não envolve apenas a mente, mas o corpo e todos os sentidos. Des-tinada fundamentalmente aos intérpretes e à promoção do seu auto--conhecimento por meio de uma experiência artística colectiva, apeça didáctica dispensa a presença de espectadores, mas, no caso deestes estarem presentes, transforma-os também em elementos par-ticipativos, englobando-os, por exemplo, na interpretação dos coros,que constituem também um dos elementos característicos da suacomposição.

Como aconteceu com as outras peças didácticas, a iniciativadeste projecto partiu de um compositor, neste caso de Hanns Eisler,com quem Brecht tinha trabalhado por último em A decisão, A mãee As cabeças redondas e as cabeças bicudas, mas, por contingên-cias próprias da situação do exílio, como a distância e incompati-bilidades de calendário, o trabalho conjunto acaba por não se efec-tuar. Sem a colaboração do compositor, mas com uma composiçãomusical em mente, Brecht escreve Os horácios e os curiácios como apoio de Margarete Steffin e publica a peça em 1936, na revistaliterária de exilados alemães na União Soviética chamada Interna-tionale Literatur, juntamente com um texto em oito pontos intitu-lado Anweisung für die Spieler [Indicação aos intérpretes], comsugestões para a realização cénica e a indicação de que para suprira falta da música se poderia recorrer simplesmente a tambores (cf.GBA, 24, 221-222). Apesar do carácter de urgência que imprimedesde o início à realização do projecto, do qual resulta uma des-

29Introdução

avença com Eisler e a decisão de desenvolver o trabalho mesmosem a sua colaboração, Os horácios e os curiácios só será estreadapostumamente. Trabalhando sempre em vários projectos ao mesmotempo, Brecht ia estabelecendo prioridades de acordo com as cir-cunstâncias, que podiam ser ditadas por uma encomenda, como nocaso de Os sete pecados mortais dos pequeno-burgueses, pela opor-tunidade de levar uma peça à cena, como no caso de As cabeçasredondas e as cabeças bicudas, ou pelo significado político, pelo valorde agitação e propaganda, atribuído à apresentação de uma deter-minada temática numa determinada conjuntura, como no caso deAs espingardas da senhora Carrar, escrita em 1937, a pedido do rea-lizador e encenador Slatan Dudow, com o objectivo de interven-ção directo e imediato de promover a ajuda internacional às forçasrepublicanas na Guerra Civil de Espanha iniciada em 1936. Comose depreende de uma carta dirigida a Eisler em 29 de Agosto de1935, dias depois da desavença, resultante do facto de o composi-tor ter outros compromissos e não se mostrar disponível para tra-balhar em Os horácios e os curiácios em Svendborg, nos prazosdesejados por Brecht, a urgência surge motivada tanto pela neces-sidade de dar uma resposta rápida a uma encomenda como ao signi-ficado político atribuído ao projecto:

O trabalho na peça didáctica começou por iniciativa tua, apesar deeu estar a meio do trabalho na minha peça de teatro [As cabeças redondase as cabeças bicudas], uma vez que se tratava de uma encomenda do Exér-cito Vermelho e se podia contar com um efeito de propaganda considerá-vel se a peça fosse levada à cena nas escolas americanas, inglesas, francesas enórdicas com posições de esquerda. […] Nas dificuldades enormes do exí-lio, só se pode dar continuidade a uma produção político-artística com oempenho de todas as forças. Mesmo se tivesses concordado, como eu teestava a exigir, a conclusão do trabalho na peça didáctica não estaria garan-tido, tendo em conta as dificuldades objectivas, mas sem isso a continuaçãodo trabalho por mim não fazia qualquer sentido. Não vais com certezaquerer insistir na tua afirmação de que tu não serias necessário para o texto eeu não seria necessário para a forma musical. (GBA, 28, 518-520)

Embora não se tenha conseguido apurar se o Exército Ver-melho fez realmente essa encomenda e se possa estranhar o factode a peça, publicada em Moscovo, nunca ter sido utilizada para osreferidos efeitos, é certo que o estímulo para a realização de Os horá-

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UMA PEÇA DIDÁCTICA

A peça Os horácios e os curiácios, escrita entre o fim de Agostoe o princípio de Outubro de 1935 em Svendborg, foi desde o iní-cio concebida como peça didáctica, ou seja, tal como O voo dos Lind-berghs, A peça didáctica de Baden-Baden sobre o acordo, O quediz sim, O que diz não e A decisão, dos últimos anos da Repúblicade Weimar, como uma peça de música vocal, construída em estreitacolaboração com um compositor, curta e simples de modo a serexecutada também por intérpretes amadores, à margem dos circui-tos profissionais e comerciais dos teatros e das salas de concerto.Visando a demonstração e problematização de atitudes do indiví-duo face ao colectivo, a peça didáctica pretende proporcionar aosseus intérpretes uma reflexão filosófica através da arte, um “exercí-cio de flexibilidade” intelectual, que, no espírito do learning by doing,não envolve apenas a mente, mas o corpo e todos os sentidos. Des-tinada fundamentalmente aos intérpretes e à promoção do seu auto--conhecimento por meio de uma experiência artística colectiva, apeça didáctica dispensa a presença de espectadores, mas, no caso deestes estarem presentes, transforma-os também em elementos par-ticipativos, englobando-os, por exemplo, na interpretação dos coros,que constituem também um dos elementos característicos da suacomposição.

Como aconteceu com as outras peças didácticas, a iniciativadeste projecto partiu de um compositor, neste caso de Hanns Eisler,com quem Brecht tinha trabalhado por último em A decisão, A mãee As cabeças redondas e as cabeças bicudas, mas, por contingên-cias próprias da situação do exílio, como a distância e incompati-bilidades de calendário, o trabalho conjunto acaba por não se efec-tuar. Sem a colaboração do compositor, mas com uma composiçãomusical em mente, Brecht escreve Os horácios e os curiácios como apoio de Margarete Steffin e publica a peça em 1936, na revistaliterária de exilados alemães na União Soviética chamada Interna-tionale Literatur, juntamente com um texto em oito pontos intitu-lado Anweisung für die Spieler [Indicação aos intérpretes], comsugestões para a realização cénica e a indicação de que para suprira falta da música se poderia recorrer simplesmente a tambores (cf.GBA, 24, 221-222). Apesar do carácter de urgência que imprimedesde o início à realização do projecto, do qual resulta uma des-

29Introdução

avença com Eisler e a decisão de desenvolver o trabalho mesmosem a sua colaboração, Os horácios e os curiácios só será estreadapostumamente. Trabalhando sempre em vários projectos ao mesmotempo, Brecht ia estabelecendo prioridades de acordo com as cir-cunstâncias, que podiam ser ditadas por uma encomenda, como nocaso de Os sete pecados mortais dos pequeno-burgueses, pela opor-tunidade de levar uma peça à cena, como no caso de As cabeçasredondas e as cabeças bicudas, ou pelo significado político, pelo valorde agitação e propaganda, atribuído à apresentação de uma deter-minada temática numa determinada conjuntura, como no caso deAs espingardas da senhora Carrar, escrita em 1937, a pedido do rea-lizador e encenador Slatan Dudow, com o objectivo de interven-ção directo e imediato de promover a ajuda internacional às forçasrepublicanas na Guerra Civil de Espanha iniciada em 1936. Comose depreende de uma carta dirigida a Eisler em 29 de Agosto de1935, dias depois da desavença, resultante do facto de o composi-tor ter outros compromissos e não se mostrar disponível para tra-balhar em Os horácios e os curiácios em Svendborg, nos prazosdesejados por Brecht, a urgência surge motivada tanto pela neces-sidade de dar uma resposta rápida a uma encomenda como ao signi-ficado político atribuído ao projecto:

O trabalho na peça didáctica começou por iniciativa tua, apesar deeu estar a meio do trabalho na minha peça de teatro [As cabeças redondase as cabeças bicudas], uma vez que se tratava de uma encomenda do Exér-cito Vermelho e se podia contar com um efeito de propaganda considerá-vel se a peça fosse levada à cena nas escolas americanas, inglesas, francesas enórdicas com posições de esquerda. […] Nas dificuldades enormes do exí-lio, só se pode dar continuidade a uma produção político-artística com oempenho de todas as forças. Mesmo se tivesses concordado, como eu teestava a exigir, a conclusão do trabalho na peça didáctica não estaria garan-tido, tendo em conta as dificuldades objectivas, mas sem isso a continuaçãodo trabalho por mim não fazia qualquer sentido. Não vais com certezaquerer insistir na tua afirmação de que tu não serias necessário para o texto eeu não seria necessário para a forma musical. (GBA, 28, 518-520)

Embora não se tenha conseguido apurar se o Exército Ver-melho fez realmente essa encomenda e se possa estranhar o factode a peça, publicada em Moscovo, nunca ter sido utilizada para osreferidos efeitos, é certo que o estímulo para a realização de Os horá-

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30 Vera San Payo de Lemos

cios e os curiácios resultou de uma estadia dos dois autores em1935 em Moscovo: Brecht esteve entre meados de Março e mea-dos de Maio desse ano em Moscovo para dar a conhecer, sobretudoatravés da rádio, a dramaturgia e o teatro revolucionário alemão eestabelecer contactos com o meio do teatro e do cinema soviéti-cos, Eisler entre meados de Junho e meados de Agosto para reor-ganizar a estrutura do Internationales Musikbüro do qual era pre-sidente.

O interesse de Brecht pela lenda romana da guerra entre oshorácios e os curiácios, narrada por Tito Lívio em Ab urbe condita,é no entanto anterior à sua estadia em Moscovo. Num aponta-mento de 1934, Brecht reflectia sobre a construção da fábula destalenda, imaginando já então dividir a acção de forma diferente dooriginal, em três partes, marcadas pelas três batalhas: “A primeirabatalha poderia ser ganha por um melhor aproveitamento da qua-lidade do armamento. A segunda pelo aproveitamento do terreno.A terceira depois pela organização.” (GBA, 24, 220) Outras dife-renças introduzidas posteriormente, quando resolve utilizar estafábula na peça didáctica, visam reforçar a oposição entre as duasfacções. As duas famílias da lenda são substituídas por dois povosque não são iguais nem lutam para decidir quem merece obter asupremacia: para escamotear os conflitos internos pela posse daterra e das minas de cobre, os curiácios unem-se para mover umaguerra de ataque contra os horácios que, sendo militarmente infe-riores, ostentam a superioridade moral de uma comunidade soli-dária obrigada a recorrer a tácticas inteligentes para se defender dosseus agressores. Num jogo de representações contrastantes, os doiscoros, o coro dos horácios e o coro dos curiácios, assim como as res-pectivas mulheres, posicionam-se ao lado de cada uma das facções,representando, como grupo, cada uma das comunidades a que oscombatentes pertencem, enquanto estes representam, como indi-víduos, não só a respectiva comunidade, mas também, especifica-mente, cada um dos corpos do exército chamado a intervir no campode batalha: os arqueiros, os lanceiros e os espadeiros.

De acordo com a importância atribuída ao coro no novo tipode oratória que a peça didáctica pretende ser, cabe-lhe desempe-nhar uma multiplicidade de funções: o coro narra o decurso das bata-lhas, incita os combatentes, dialoga com eles, comenta o seu com-portamento e aconselha-os quanto à táctica a adoptar no pros-

31Introdução

-seguimento da luta. O plano inicial de colocar o coro a dialogartambém com os espectadores, incluindo-os como elementos par-ticipativos no espectáculo, à semelhança do que tinha acontecidona estreia de A peça didáctica de Baden-Baden sobre o acordo, ficaapenas em esboço. Acompanhando a acção a par e passo e influindocom apelos, comentários e conselhos no seu decurso, é ao coroque cabe demonstrar a relação dialéctica entre a prática e a teoria,entre a actuação em campo e a reflexão sobre essa mesma actua-ção, e formular, no fim, a síntese, a constatação de que a vitória doshorácios não se deve apenas à táctica hábil do último horácio, mascontempla igualmente a acção dos outros dois: “O nosso arqueirodebilitou o inimigo. / O nosso lanceiro feriu gravemente o inimigo. /E o nosso espadeiro consumou a vitória.”

Outra dimensão particularmente interessante da vitória doshorácios reside no facto de esta resultar de uma atitude de incon-formismo do indivíduo face ao colectivo. Embora o coro incite oúltimo horácio a persistir e a fazer frente ao adversário, mesmo nascondições objectivamente desfavoráveis em que se encontra, estedecide não cumprir a ordem da instância superior, que representaos interesses da comunidade, e fugir. Nesta atitude de dizer que não,de recusar o acordo, reconhece-se mais uma variação do tema doacordo, recorrente nas peças didácticas, mas também a problema-tização da relação dialéctica entre os ideais e as condições materiais,recorrente nos chamados grandes dramas do exílio: enquanto os filhosde Mãe Coragem sucumbem aos ideais de coragem, honestidadee amor ao próximo, que norteiam o seu comportamento, Galileumantém-se vivo e dá continuidade à sua obra por assumir a atitudenão heróica da abjuração e negar as suas teorias com medo da tor-tura e da morte. À afirmação revoltada do seu jovem discípuloAndrea Sarti, “Infeliz o país que não tem heróis”, o velho mestrecontrapõe “Infeliz o país que precisa de heróis”. Em Os horáciose os curiácios, assim como em Mãe Coragem e os seus Filhos e Vidade Galileu, Brecht lança de diversas formas uma luz crítica sobrea historiografia baseada no culto dos heróis e, mais especificamente,sobre a propaganda nazi que prepara o terreno da Segunda GuerraMundial, apelando ao sacrifício individual em prol de pretensosideais de toda a comunidade, com slogans como “Tu nasceste paramorrer pela Alemanha” ou “Tu não és nada, o teu povo é tudo”.

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cios e os curiácios resultou de uma estadia dos dois autores em1935 em Moscovo: Brecht esteve entre meados de Março e mea-dos de Maio desse ano em Moscovo para dar a conhecer, sobretudoatravés da rádio, a dramaturgia e o teatro revolucionário alemão eestabelecer contactos com o meio do teatro e do cinema soviéti-cos, Eisler entre meados de Junho e meados de Agosto para reor-ganizar a estrutura do Internationales Musikbüro do qual era pre-sidente.

O interesse de Brecht pela lenda romana da guerra entre oshorácios e os curiácios, narrada por Tito Lívio em Ab urbe condita,é no entanto anterior à sua estadia em Moscovo. Num aponta-mento de 1934, Brecht reflectia sobre a construção da fábula destalenda, imaginando já então dividir a acção de forma diferente dooriginal, em três partes, marcadas pelas três batalhas: “A primeirabatalha poderia ser ganha por um melhor aproveitamento da qua-lidade do armamento. A segunda pelo aproveitamento do terreno.A terceira depois pela organização.” (GBA, 24, 220) Outras dife-renças introduzidas posteriormente, quando resolve utilizar estafábula na peça didáctica, visam reforçar a oposição entre as duasfacções. As duas famílias da lenda são substituídas por dois povosque não são iguais nem lutam para decidir quem merece obter asupremacia: para escamotear os conflitos internos pela posse daterra e das minas de cobre, os curiácios unem-se para mover umaguerra de ataque contra os horácios que, sendo militarmente infe-riores, ostentam a superioridade moral de uma comunidade soli-dária obrigada a recorrer a tácticas inteligentes para se defender dosseus agressores. Num jogo de representações contrastantes, os doiscoros, o coro dos horácios e o coro dos curiácios, assim como as res-pectivas mulheres, posicionam-se ao lado de cada uma das facções,representando, como grupo, cada uma das comunidades a que oscombatentes pertencem, enquanto estes representam, como indi-víduos, não só a respectiva comunidade, mas também, especifica-mente, cada um dos corpos do exército chamado a intervir no campode batalha: os arqueiros, os lanceiros e os espadeiros.

De acordo com a importância atribuída ao coro no novo tipode oratória que a peça didáctica pretende ser, cabe-lhe desempe-nhar uma multiplicidade de funções: o coro narra o decurso das bata-lhas, incita os combatentes, dialoga com eles, comenta o seu com-portamento e aconselha-os quanto à táctica a adoptar no pros-

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-seguimento da luta. O plano inicial de colocar o coro a dialogartambém com os espectadores, incluindo-os como elementos par-ticipativos no espectáculo, à semelhança do que tinha acontecidona estreia de A peça didáctica de Baden-Baden sobre o acordo, ficaapenas em esboço. Acompanhando a acção a par e passo e influindocom apelos, comentários e conselhos no seu decurso, é ao coroque cabe demonstrar a relação dialéctica entre a prática e a teoria,entre a actuação em campo e a reflexão sobre essa mesma actua-ção, e formular, no fim, a síntese, a constatação de que a vitória doshorácios não se deve apenas à táctica hábil do último horácio, mascontempla igualmente a acção dos outros dois: “O nosso arqueirodebilitou o inimigo. / O nosso lanceiro feriu gravemente o inimigo. /E o nosso espadeiro consumou a vitória.”

Outra dimensão particularmente interessante da vitória doshorácios reside no facto de esta resultar de uma atitude de incon-formismo do indivíduo face ao colectivo. Embora o coro incite oúltimo horácio a persistir e a fazer frente ao adversário, mesmo nascondições objectivamente desfavoráveis em que se encontra, estedecide não cumprir a ordem da instância superior, que representaos interesses da comunidade, e fugir. Nesta atitude de dizer que não,de recusar o acordo, reconhece-se mais uma variação do tema doacordo, recorrente nas peças didácticas, mas também a problema-tização da relação dialéctica entre os ideais e as condições materiais,recorrente nos chamados grandes dramas do exílio: enquanto os filhosde Mãe Coragem sucumbem aos ideais de coragem, honestidadee amor ao próximo, que norteiam o seu comportamento, Galileumantém-se vivo e dá continuidade à sua obra por assumir a atitudenão heróica da abjuração e negar as suas teorias com medo da tor-tura e da morte. À afirmação revoltada do seu jovem discípuloAndrea Sarti, “Infeliz o país que não tem heróis”, o velho mestrecontrapõe “Infeliz o país que precisa de heróis”. Em Os horáciose os curiácios, assim como em Mãe Coragem e os seus Filhos e Vidade Galileu, Brecht lança de diversas formas uma luz crítica sobrea historiografia baseada no culto dos heróis e, mais especificamente,sobre a propaganda nazi que prepara o terreno da Segunda GuerraMundial, apelando ao sacrifício individual em prol de pretensosideais de toda a comunidade, com slogans como “Tu nasceste paramorrer pela Alemanha” ou “Tu não és nada, o teu povo é tudo”.

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Na apresentação da fuga do último horácio como uma mano-bra táctica, inteligente, para alcançar a vitória, reconhece-se tambéma problemática do exílio, a fuga da Alemanha, a que Brecht e outrosintelectuais e artistas se viram forçados depois da subida de Hitlerao poder. A vida, a possibilidade de continuar vivo e trabalhar, surgecomo o valor elementar e fundamental a defender. Em Os horá-cios e os curiácios, essa defesa é feita, de forma muito subtil, sobre-tudo pelas mulheres. No início, perante a insuficiência das armas,as mulheres dos horácios mostram-se apenas apreensivas: “Quandoo arqueiro não está de acordo com o seu arco / Não pode comba-ter”. Antes da última batalha, depois de a mulher do arqueiro e amulher do lanceiro terem envergado o traje de viúvas, o lamentopelos mortos não nega a necessidade da luta, mas lembra queaquela que importa vencer é a da vida: “Se choramos é porque tom-baram / E não porque lutaram. Ai, nem todos os / Que regressam,são vencedores, mas / Não venceram aqueles que não regressa-rem”. Neste lamento ecoam as palavras parcas, e por isso especial-mente incisivas, pronunciadas no início pelas mulheres dos horá-cios e dos curiácios em conjunto: “Agora ide. Nem todos / Hão-deregressar”. Sendo o único momento em que a oposição entre asduas facções é abolida, esta afirmação adquire uma força expres-siva e um significado particulares.

Como as reflexões sobre a construção da fábula no aponta-mento de 1934 denotam, Brecht encontra na lenda romana dos horá-cios e dos curiácios a apresentação depurada, quase abstracta, deum conflito e da variedade de comportamentos que vão sendo adop-tados nas diversas situações do seu decurso. A etapa seguinte, o tra-tamento da fábula na forma simples, curta e também depurada dapeça didáctica, revela, mesmo sem a certeza de ter havido umaencomenda por parte do Exército Vermelho, a influência marcantede uma experiência tida durante a sua estadia entre Março e Maiode 1935 em Moscovo: o contacto com o teatro chinês a que teveoportunidade de assistir ao vivo por ocasião de uma tournée reali-zada na União Soviética pelo célebre actor chinês Mei Lan-fang eo seu grupo. Na primeira carta que escreve a Helene Weigeldepois de chegar a Moscovo, Brecht confessa-se admirado com adiversidade da oferta cultural no âmbito do teatro e do cinema erefere a expectativa com que no meio artístico se aguarda as actua-ções de Mei Lan-fang, “o maior actor chinês”(cf. GBA, 28, 495).

33Introdução

Através de Tretiakov, o escritor responsável pelo acompanha-mento dos artistas chineses, Brecht e Margarete Steffin têm acessonão só aos dois espectáculos da tournée, Kuei-fei tsui-chiu [A belezaembriagada], uma peça sobre uma das concubinas mais famosasdas lendas chinesas, e Ta-yü sha chia [A vingança do pescador], umapeça de entretenimento popular com canções, mas também a encon-tros e sessões especiais, mais restritas, como o espectáculo apresen-tado na residência do embaixador chinês em 19 de Março, a ses-são feita no dia a seguir para os directores e actores dos teatros deMoscovo, com uma palestra sobre o teatro chinês em que Mei Lan-fang representava os exemplos referidos, ou o debate final, reali-zado em 14 de Abril, sobre as questões artísticas suscitadas por esteencontro com o teatro chinês.

O interesse de Brecht pelo teatro asiático e pela filosofia chi-nesa manifestara-se já em finais dos anos 20 na escrita de duaspeças didácticas: na adaptação de uma peça de teatro nô para o libretode O que diz sim e de uma narrativa chinesa para A excepção e aregra. Para além disso, na sua procura de modelos para o teatroépico, destacara, num texto teórico de 1929, intitulado Weg zugro?em zeitgenössischem Theater [Caminho para um grande tea-tro contemporâneo], “o modelo asiático” como um caminho a seguirpelo teatro contemporâneo ocidental. Os conhecimentos superfi-ciais sobre o teatro asiático, transmitidos por algumas fotografiase descrições de encenações, poderiam servir de ponto de partida.Para frisar que não era a estranheza do exotismo asiático que o inte-ressava, mas sim o exemplo de um estilo de representação marca-damente teatral, não naturalista e não psicológico, referira que ascaracterísticas “asiáticas” também se podiam encontrar nos espec-táculos do conhecido cómico de Munique Karl Valentin. (cf.GBA, 21, 377-381)

Na estadia em Moscovo, Brecht tem a oportunidade de assis-tir pela primeira vez ao vivo a espectáculos de teatro asiático e apro-fundar a reflexão sobre o que considera ser um modelo não só parao teatro épico em particular, mas também para a renovação de todoo teatro contemporâneo ocidental. Numa série de pequenos tex-tos, como Über die Zuschaukunst [Sobre a arte do espectador],Theater und Publikum [Teatro e público], Über das Theater derChinesen [Sobre o teatro dos chineses], Über ein Detail des chi-nesischen Theaters [Sobre um pormenor do teatro chinês], Die

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Na apresentação da fuga do último horácio como uma mano-bra táctica, inteligente, para alcançar a vitória, reconhece-se tambéma problemática do exílio, a fuga da Alemanha, a que Brecht e outrosintelectuais e artistas se viram forçados depois da subida de Hitlerao poder. A vida, a possibilidade de continuar vivo e trabalhar, surgecomo o valor elementar e fundamental a defender. Em Os horá-cios e os curiácios, essa defesa é feita, de forma muito subtil, sobre-tudo pelas mulheres. No início, perante a insuficiência das armas,as mulheres dos horácios mostram-se apenas apreensivas: “Quandoo arqueiro não está de acordo com o seu arco / Não pode comba-ter”. Antes da última batalha, depois de a mulher do arqueiro e amulher do lanceiro terem envergado o traje de viúvas, o lamentopelos mortos não nega a necessidade da luta, mas lembra queaquela que importa vencer é a da vida: “Se choramos é porque tom-baram / E não porque lutaram. Ai, nem todos os / Que regressam,são vencedores, mas / Não venceram aqueles que não regressa-rem”. Neste lamento ecoam as palavras parcas, e por isso especial-mente incisivas, pronunciadas no início pelas mulheres dos horá-cios e dos curiácios em conjunto: “Agora ide. Nem todos / Hão-deregressar”. Sendo o único momento em que a oposição entre asduas facções é abolida, esta afirmação adquire uma força expres-siva e um significado particulares.

Como as reflexões sobre a construção da fábula no aponta-mento de 1934 denotam, Brecht encontra na lenda romana dos horá-cios e dos curiácios a apresentação depurada, quase abstracta, deum conflito e da variedade de comportamentos que vão sendo adop-tados nas diversas situações do seu decurso. A etapa seguinte, o tra-tamento da fábula na forma simples, curta e também depurada dapeça didáctica, revela, mesmo sem a certeza de ter havido umaencomenda por parte do Exército Vermelho, a influência marcantede uma experiência tida durante a sua estadia entre Março e Maiode 1935 em Moscovo: o contacto com o teatro chinês a que teveoportunidade de assistir ao vivo por ocasião de uma tournée reali-zada na União Soviética pelo célebre actor chinês Mei Lan-fang eo seu grupo. Na primeira carta que escreve a Helene Weigeldepois de chegar a Moscovo, Brecht confessa-se admirado com adiversidade da oferta cultural no âmbito do teatro e do cinema erefere a expectativa com que no meio artístico se aguarda as actua-ções de Mei Lan-fang, “o maior actor chinês”(cf. GBA, 28, 495).

33Introdução

Através de Tretiakov, o escritor responsável pelo acompanha-mento dos artistas chineses, Brecht e Margarete Steffin têm acessonão só aos dois espectáculos da tournée, Kuei-fei tsui-chiu [A belezaembriagada], uma peça sobre uma das concubinas mais famosasdas lendas chinesas, e Ta-yü sha chia [A vingança do pescador], umapeça de entretenimento popular com canções, mas também a encon-tros e sessões especiais, mais restritas, como o espectáculo apresen-tado na residência do embaixador chinês em 19 de Março, a ses-são feita no dia a seguir para os directores e actores dos teatros deMoscovo, com uma palestra sobre o teatro chinês em que Mei Lan-fang representava os exemplos referidos, ou o debate final, reali-zado em 14 de Abril, sobre as questões artísticas suscitadas por esteencontro com o teatro chinês.

O interesse de Brecht pelo teatro asiático e pela filosofia chi-nesa manifestara-se já em finais dos anos 20 na escrita de duaspeças didácticas: na adaptação de uma peça de teatro nô para o libretode O que diz sim e de uma narrativa chinesa para A excepção e aregra. Para além disso, na sua procura de modelos para o teatroépico, destacara, num texto teórico de 1929, intitulado Weg zugro?em zeitgenössischem Theater [Caminho para um grande tea-tro contemporâneo], “o modelo asiático” como um caminho a seguirpelo teatro contemporâneo ocidental. Os conhecimentos superfi-ciais sobre o teatro asiático, transmitidos por algumas fotografiase descrições de encenações, poderiam servir de ponto de partida.Para frisar que não era a estranheza do exotismo asiático que o inte-ressava, mas sim o exemplo de um estilo de representação marca-damente teatral, não naturalista e não psicológico, referira que ascaracterísticas “asiáticas” também se podiam encontrar nos espec-táculos do conhecido cómico de Munique Karl Valentin. (cf.GBA, 21, 377-381)

Na estadia em Moscovo, Brecht tem a oportunidade de assis-tir pela primeira vez ao vivo a espectáculos de teatro asiático e apro-fundar a reflexão sobre o que considera ser um modelo não só parao teatro épico em particular, mas também para a renovação de todoo teatro contemporâneo ocidental. Numa série de pequenos tex-tos, como Über die Zuschaukunst [Sobre a arte do espectador],Theater und Publikum [Teatro e público], Über das Theater derChinesen [Sobre o teatro dos chineses], Über ein Detail des chi-nesischen Theaters [Sobre um pormenor do teatro chinês], Die

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Beibehaltung der Gesten durch verschiedene Generationen [A conser-vação dos gestos através de várias gerações] (cf. GBA, 22.1., 124-134), regista primeiras ideias e impressões que irá desenvolvermais tarde, no regresso à Dinamarca, em Bemerkungen über diechinesische Schauspielkunst [Observações sobre a arte teatral chi-nesa] e Verfremdungseffekte in der chinesischen Schauspielkunst[Efeitos de estranhamento na arte teatral chinesa] (cf. GBA, 22.1.,151-155, 200-210). Este último texto, escrito em 1936 e publicadopela primeira vez em inglês, com o título The Fourth Wall ofChina. An essay on the effect of disillusion in the Chinese Thea-tre, tem uma particularidade curiosa: surge aqui pela primeira vezpor escrito um dos conceitos mais citados, polémicos e tambémmalentendidos da teoria do teatro épico, o efeito de estranhamento.Recordando que esse efeito se encontra, de forma primitiva, noteatro de feira, e, de forma mais elaborada, nas experiências doteatro épico, Brecht descobre no teatro chinês apresentado porMei Lan-fang outro modelo da linguagem cénica que pretendecriar, uma linguagem de assumida teatralidade e invenção, delibe-radamente “estranha” por não se querer reger pelo princípio daimitação da realidade. Mei Lan-fang, vestido de smoking, repre-sentando com gestos lentos, coreograficamente definidos, umamulher a esconder o choro ou a preparar o chá, dá um exemploclaro do efeito de estranhamento: a sua representação não é natu-ralista nem psicológica, ele não é ela, o actor não procura transfor-mar-se na personagem e dar ao espectador a ilusão de o actor e apersonagem serem realmente a pessoa representada como acon-tece, por exemplo, no teatro praticado por Stanislavski. A teatra-lidade da sua representação não visa exprimir as idiossincrasias doindivíduo, mas sobretudo expor atitudes e formas de comporta-mento em diversas situações. Contudo, como refere Brecht, o prin-cípio da imitação da realidade e a subsequente identificação emo-cional do espectador com as personagens estão de tal modo enraizadosna cultura do teatro ocidental que Mei Lan-fang, nas suas tournéespelo Ocidente, faz questão de explicar que representa, mas não imitafiguras de mulher e que, na realidade, é um “homem viril, bom paide família e até banqueiro”.

Para além do estilo de representação não naturalista, Brechtencontra no teatro chinês outras possibilidades de produzir efeitosde estranhamento, nomeadamente nos vários símbolos próprios

35Introdução

da linguagem cénica que, sendo concretos, mas também abstrac-tos, permitem criar uma grande teatralidade com uma economia demeios. Contam-se entre esses efeitos a caracterização das persona-gens apenas pela maquilhagem ou por determinados adereços e figu-rinos e a construção do espaço cénico por gestos ou apontamentoscenográficos muito simples e inventivos. Como se verifica no textoIndicação aos intérpretes, que acompanha a primeira publicaçãode Os horácios e os curiácios em 1936, é esta simplicidade inven-tiva e eminentemente teatral do teatro chinês visto em Moscovo queinspira Brecht na escrita e na concepção cénica desta peça:

Os comandantes dos exércitos são ao mesmo tempo os representan-tes desses exércitos. Segundo um costume do teatro chinês, as várias for-mações do exército podem ser indicadas por pequenas bandeiras que oscomandantes ostentam numa ripa de madeira presa à nuca, mais larga doque os ombros. Os movimentos dos intérpretes têm de ser lentos e resul-tar da sensação de terem as tábuas nos ombros e de uma certa amplitude.Os intérpretes indicam a eliminação das suas formações tirando uma sériede bandeiras da ripa de madeira e deitando-as fora. (GBA, 24, 221)

A força expressiva da simplicidade da linguagem teatral chi-nesa, que anima a concepção da peça, reflecte-se também na indica-ção de que “ na batalha dos arqueiros não são precisas setas” e deque “para indicar a queda da neve são espalhados alguns pedacin-hos de papel sobre o lanceiro”. Embora um dos últimos pontosdeste texto refira que “se pode prescindir da música e utilizar ape-nas tambores”, esta possibilidade surge, na realidade, como umasolução de compromisso uma vez esgotadas as hipóteses de Eislercompor a partitura no tempo pretendido. De facto, depois da des-avença com Eisler no fim de Agosto de 1935 e com o esboço dapeça já concluído, Brecht voltara a insistir na importância da músicae na colaboração do compositor numa carta que lhe dirigira no prin-cípio de Setembro:

Seria agora muito necessário nós discutirmos o assunto. Nos corospus por enquanto só o que é necessário para a acção. Ainda haveria deter-minadas partes a fazer. A questão da música desta vez não é mesmo nadafácil, para diversas partes falta-me por enquanto a forma. Tal como estáagora, não pode ser tudo cantado. Mas a música é necessária em todo o ladouma vez que o movimento dos “exércitos” tem de ser fixado com preci-

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Beibehaltung der Gesten durch verschiedene Generationen [A conser-vação dos gestos através de várias gerações] (cf. GBA, 22.1., 124-134), regista primeiras ideias e impressões que irá desenvolvermais tarde, no regresso à Dinamarca, em Bemerkungen über diechinesische Schauspielkunst [Observações sobre a arte teatral chi-nesa] e Verfremdungseffekte in der chinesischen Schauspielkunst[Efeitos de estranhamento na arte teatral chinesa] (cf. GBA, 22.1.,151-155, 200-210). Este último texto, escrito em 1936 e publicadopela primeira vez em inglês, com o título The Fourth Wall ofChina. An essay on the effect of disillusion in the Chinese Thea-tre, tem uma particularidade curiosa: surge aqui pela primeira vezpor escrito um dos conceitos mais citados, polémicos e tambémmalentendidos da teoria do teatro épico, o efeito de estranhamento.Recordando que esse efeito se encontra, de forma primitiva, noteatro de feira, e, de forma mais elaborada, nas experiências doteatro épico, Brecht descobre no teatro chinês apresentado porMei Lan-fang outro modelo da linguagem cénica que pretendecriar, uma linguagem de assumida teatralidade e invenção, delibe-radamente “estranha” por não se querer reger pelo princípio daimitação da realidade. Mei Lan-fang, vestido de smoking, repre-sentando com gestos lentos, coreograficamente definidos, umamulher a esconder o choro ou a preparar o chá, dá um exemploclaro do efeito de estranhamento: a sua representação não é natu-ralista nem psicológica, ele não é ela, o actor não procura transfor-mar-se na personagem e dar ao espectador a ilusão de o actor e apersonagem serem realmente a pessoa representada como acon-tece, por exemplo, no teatro praticado por Stanislavski. A teatra-lidade da sua representação não visa exprimir as idiossincrasias doindivíduo, mas sobretudo expor atitudes e formas de comporta-mento em diversas situações. Contudo, como refere Brecht, o prin-cípio da imitação da realidade e a subsequente identificação emo-cional do espectador com as personagens estão de tal modo enraizadosna cultura do teatro ocidental que Mei Lan-fang, nas suas tournéespelo Ocidente, faz questão de explicar que representa, mas não imitafiguras de mulher e que, na realidade, é um “homem viril, bom paide família e até banqueiro”.

Para além do estilo de representação não naturalista, Brechtencontra no teatro chinês outras possibilidades de produzir efeitosde estranhamento, nomeadamente nos vários símbolos próprios

35Introdução

da linguagem cénica que, sendo concretos, mas também abstrac-tos, permitem criar uma grande teatralidade com uma economia demeios. Contam-se entre esses efeitos a caracterização das persona-gens apenas pela maquilhagem ou por determinados adereços e figu-rinos e a construção do espaço cénico por gestos ou apontamentoscenográficos muito simples e inventivos. Como se verifica no textoIndicação aos intérpretes, que acompanha a primeira publicaçãode Os horácios e os curiácios em 1936, é esta simplicidade inven-tiva e eminentemente teatral do teatro chinês visto em Moscovo queinspira Brecht na escrita e na concepção cénica desta peça:

Os comandantes dos exércitos são ao mesmo tempo os representan-tes desses exércitos. Segundo um costume do teatro chinês, as várias for-mações do exército podem ser indicadas por pequenas bandeiras que oscomandantes ostentam numa ripa de madeira presa à nuca, mais larga doque os ombros. Os movimentos dos intérpretes têm de ser lentos e resul-tar da sensação de terem as tábuas nos ombros e de uma certa amplitude.Os intérpretes indicam a eliminação das suas formações tirando uma sériede bandeiras da ripa de madeira e deitando-as fora. (GBA, 24, 221)

A força expressiva da simplicidade da linguagem teatral chi-nesa, que anima a concepção da peça, reflecte-se também na indica-ção de que “ na batalha dos arqueiros não são precisas setas” e deque “para indicar a queda da neve são espalhados alguns pedacin-hos de papel sobre o lanceiro”. Embora um dos últimos pontosdeste texto refira que “se pode prescindir da música e utilizar ape-nas tambores”, esta possibilidade surge, na realidade, como umasolução de compromisso uma vez esgotadas as hipóteses de Eislercompor a partitura no tempo pretendido. De facto, depois da des-avença com Eisler no fim de Agosto de 1935 e com o esboço dapeça já concluído, Brecht voltara a insistir na importância da músicae na colaboração do compositor numa carta que lhe dirigira no prin-cípio de Setembro:

Seria agora muito necessário nós discutirmos o assunto. Nos corospus por enquanto só o que é necessário para a acção. Ainda haveria deter-minadas partes a fazer. A questão da música desta vez não é mesmo nadafácil, para diversas partes falta-me por enquanto a forma. Tal como estáagora, não pode ser tudo cantado. Mas a música é necessária em todo o ladouma vez que o movimento dos “exércitos” tem de ser fixado com preci-

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são. Se ainda dispuseres de algum tempo, valeria de facto a pena semprepassares ainda pela Dinamarca. (GBA, 28, 524)

A caminho de Nova Iorque, onde ia desempenhar funçõesdocentes na New School for Social Research, Eisler acaba por nãoter tempo para passar pela Dinamarca, mas dispõe-se a fazer suges-tões, pedindo que lhe seja mandada uma cópia da peça. Brecht nãoacede a este pedido. Quando envia Os horácios e os curiácios parapublicação com a Indicação para os intérpretes, desiste da colabo-ração de Eisler nesta peça, mas não da sua amizade e da sua parti-cipação noutros projectos: em Outubro desse ano, encontram-seem Nova Iorque para acompanhar a encenação de A mãe e poste-riormente, tanto no exílio nos Estados Unidos como no regresso àAlemanha depois da guerra, irão voltar a colaborar em diversos tra-balhos.

Mesmo sem música, a peça é publicada em 1936 com a designa-ção de “peça didáctica”, mas em 1938, quando surge, com ligeirasalterações, no âmbito da primeira edição das obras completas, apre-senta a designação de “peça escolar”. No entanto, Brecht não desistedo papel fundamental que atribui à música desde o início da suaconcepção e em 1941, no tempo do exílio na Finlândia, propõe aocompositor Simon Parmet, que se encontrava a trabalhar na par-titura de Mãe Coragem e os seus Filhos, a composição de Os horá-cios e os curiácios. Este novo alento resulta de um novo olhar sobrea peça, motivado pela avaliação do decurso da guerra. Nesse ano,em que a União Soviética ainda não tinha sido invadida pela Ale-manha, mas o confronto se revelava próximo, Brecht prevê a der-rota da Alemanha e a subsequente necessidade de reflectir sobreo modo de lidar com os vencidos, nomeadamente com os alemãesvítimas de Hitler, com essa outra Alemanha em cuja existêncianunca deixara de acreditar. Essas considerações levam-no a reto-mar a peça e a pensar acrescentar-lhe um capítulo final, comoanota em 16 de Abril de 1941 no diário:

tenho falado com o músico parmet sobre a peça didáctica OS HORÁ-CIOS E OS CURIÁCIOS (há 8 anos que está sem trabalho apesar de sero melhor maestro do país, e não consegue obter um emprego público,porque é judeu para os suecos e sueco para os finlandeses.) na realidade,falta um capítulo final. os horácios triunfam no terreno militar, mas os curiá-

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cios passam por uma revolução e combatem com meios novos que possi-bilitam uma paz autêntica, justa para ambos os povos. (GBA, 26, 458)

A derrota da Alemanha não estava, no entanto, ainda assimtão próxima. Brecht abandona a Finlândia em Maio de 1941 rumoà União Soviética para daí partir para os Estados Unidos e tanto areformulação como a composição da peça ficam por fazer. Só em1954, no regresso a Berlim depois da guerra, é que volta a surgiroutra oportunidade de se criar a música para Os horácios e oscuriácios e levar finalmente a peça à cena. Quando Hella Brock,uma musicóloga de Halle, pretende desenvolver um projecto deuma “ópera escolar” semelhante ao de O que diz sim, mas comuma temática mais actual, Brecht sugere-lhe o texto pouco conhe-cido e ainda não musicado da sua última peça didáctica: no ambientetenso da guerra fria, com a remilitarização em curso, o tema daguerra parecia-lhe actual e o exercício de reflexão dialéctica pro-posto pela peça um instrumento útil para questionar o dogmatismooficial cada vez mais acentuado no estado socialista em construçãona Alemanha Oriental em que vivia. O compositor escolhido paraescrever a música de Os horácios e os curiácios é Kurt Schwaenque, no ano anterior, trabalhara para um espectáculo no BerlinerEnsemble. Segundo Isot Kilian, uma das assistentes de encenaçãonessa altura, Brecht tinha ideias muito definidas tanto para a músicacomo para toda a realização do projecto: os intérpretes deveriamser alunos entre o segundo e o sexto ano de escolaridade, criançasentre os 7 e os 12 anos de idade, e, por conseguinte, a músicadeveria ser simples, fácil de cantar e de executar pelos pequenosintérpretes; os coros deveriam tornar o texto sempre perceptível;os adereços e os figurinos deveriam ser bonitos de modo a dar pra-zer às crianças usá-los; todo o espectáculo deveria ter uma concep-ção coral e resultar “como um grande bailado”. Embora a peçadidáctica fosse, na teoria e na prática, principalmente um exercí-cio para os intérpretes, neste caso para ser realizado no espaço esco-lar, pensava-se apresentar o projecto também ao grande público noTheater am Schiffbauerdamm, o espaço do Berliner Ensemble (cf.Klaus-Dieter Krabiel, Brechts Lehrstücke. Entstehung und Entwick-lung eines Spieltyps, Stuttgart/Weimar, Verlag J. B. Metzler, 1993,p. 272).

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são. Se ainda dispuseres de algum tempo, valeria de facto a pena semprepassares ainda pela Dinamarca. (GBA, 28, 524)

A caminho de Nova Iorque, onde ia desempenhar funçõesdocentes na New School for Social Research, Eisler acaba por nãoter tempo para passar pela Dinamarca, mas dispõe-se a fazer suges-tões, pedindo que lhe seja mandada uma cópia da peça. Brecht nãoacede a este pedido. Quando envia Os horácios e os curiácios parapublicação com a Indicação para os intérpretes, desiste da colabo-ração de Eisler nesta peça, mas não da sua amizade e da sua parti-cipação noutros projectos: em Outubro desse ano, encontram-seem Nova Iorque para acompanhar a encenação de A mãe e poste-riormente, tanto no exílio nos Estados Unidos como no regresso àAlemanha depois da guerra, irão voltar a colaborar em diversos tra-balhos.

Mesmo sem música, a peça é publicada em 1936 com a designa-ção de “peça didáctica”, mas em 1938, quando surge, com ligeirasalterações, no âmbito da primeira edição das obras completas, apre-senta a designação de “peça escolar”. No entanto, Brecht não desistedo papel fundamental que atribui à música desde o início da suaconcepção e em 1941, no tempo do exílio na Finlândia, propõe aocompositor Simon Parmet, que se encontrava a trabalhar na par-titura de Mãe Coragem e os seus Filhos, a composição de Os horá-cios e os curiácios. Este novo alento resulta de um novo olhar sobrea peça, motivado pela avaliação do decurso da guerra. Nesse ano,em que a União Soviética ainda não tinha sido invadida pela Ale-manha, mas o confronto se revelava próximo, Brecht prevê a der-rota da Alemanha e a subsequente necessidade de reflectir sobreo modo de lidar com os vencidos, nomeadamente com os alemãesvítimas de Hitler, com essa outra Alemanha em cuja existêncianunca deixara de acreditar. Essas considerações levam-no a reto-mar a peça e a pensar acrescentar-lhe um capítulo final, comoanota em 16 de Abril de 1941 no diário:

tenho falado com o músico parmet sobre a peça didáctica OS HORÁ-CIOS E OS CURIÁCIOS (há 8 anos que está sem trabalho apesar de sero melhor maestro do país, e não consegue obter um emprego público,porque é judeu para os suecos e sueco para os finlandeses.) na realidade,falta um capítulo final. os horácios triunfam no terreno militar, mas os curiá-

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cios passam por uma revolução e combatem com meios novos que possi-bilitam uma paz autêntica, justa para ambos os povos. (GBA, 26, 458)

A derrota da Alemanha não estava, no entanto, ainda assimtão próxima. Brecht abandona a Finlândia em Maio de 1941 rumoà União Soviética para daí partir para os Estados Unidos e tanto areformulação como a composição da peça ficam por fazer. Só em1954, no regresso a Berlim depois da guerra, é que volta a surgiroutra oportunidade de se criar a música para Os horácios e oscuriácios e levar finalmente a peça à cena. Quando Hella Brock,uma musicóloga de Halle, pretende desenvolver um projecto deuma “ópera escolar” semelhante ao de O que diz sim, mas comuma temática mais actual, Brecht sugere-lhe o texto pouco conhe-cido e ainda não musicado da sua última peça didáctica: no ambientetenso da guerra fria, com a remilitarização em curso, o tema daguerra parecia-lhe actual e o exercício de reflexão dialéctica pro-posto pela peça um instrumento útil para questionar o dogmatismooficial cada vez mais acentuado no estado socialista em construçãona Alemanha Oriental em que vivia. O compositor escolhido paraescrever a música de Os horácios e os curiácios é Kurt Schwaenque, no ano anterior, trabalhara para um espectáculo no BerlinerEnsemble. Segundo Isot Kilian, uma das assistentes de encenaçãonessa altura, Brecht tinha ideias muito definidas tanto para a músicacomo para toda a realização do projecto: os intérpretes deveriamser alunos entre o segundo e o sexto ano de escolaridade, criançasentre os 7 e os 12 anos de idade, e, por conseguinte, a músicadeveria ser simples, fácil de cantar e de executar pelos pequenosintérpretes; os coros deveriam tornar o texto sempre perceptível;os adereços e os figurinos deveriam ser bonitos de modo a dar pra-zer às crianças usá-los; todo o espectáculo deveria ter uma concep-ção coral e resultar “como um grande bailado”. Embora a peçadidáctica fosse, na teoria e na prática, principalmente um exercí-cio para os intérpretes, neste caso para ser realizado no espaço esco-lar, pensava-se apresentar o projecto também ao grande público noTheater am Schiffbauerdamm, o espaço do Berliner Ensemble (cf.Klaus-Dieter Krabiel, Brechts Lehrstücke. Entstehung und Entwick-lung eines Spieltyps, Stuttgart/Weimar, Verlag J. B. Metzler, 1993,p. 272).

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Tendo em conta as crianças como grupo-alvo, e tambémo contexto social e político da República Democrática Alemã emque a peça iria ser representada pela primeira vez, Brecht publica--a em 1955, incluída “na 24ª experiência (peças para escolas)”, coma nova designação de “uma peça didáctica sobre dialéctica paracrianças”. Kurt Schwaen compõe a partitura entre Outubro eDezembro de 1955. Estruturada em trinta números, com umaspartes só cantadas, outras só instrumentais e outras só faladas,mesmo algumas das intervenções do coro, a composição destaca ocontraste da agressão e da defesa. Em Junho de 1956, Brecht temoportunidade de ouvir a música em gravação. Embora satisfeitocom o resultado, desafia o compositor a compor ainda mais músicae a musicar praticamente toda a peça. Kurt Schwaen começa acompor uma abertura, mas depois da morte de Brecht, em 14 deAgosto de 1956, suspende o trabalho. Irá retomá-lo em 1962 paraa primeira encenação escolar da peça, realizada numa escola emPirna por alunos dos 11º e 12º anos.

A estreia absoluta de Os horácios e os curiácios, com músicade Kurt Schwaen, ocorre em 26 de Abril de 1958 no Theater derJungen Garde em Halle, sob a direcção artística da musicólogaHella Brock. A concepção cénica e o estilo de representaçãoseguem em grande medida a simplicidade “asiática” sugerida em1936 no texto Indicação para os intérpretes, mas diferentementedo que Brecht tinha imaginado em 1954 e 1955, os seus primei-ros intérpretes não são crianças de escola, mas jovens estudantesdo Conservatório e dos Institutos de Ciências Musicais e de Elocu-ção da Universidade de Halle. Como se trata de um espectáculoproduzido como um exercício num contexto formativo, não sus-cita a atenção da crítica e passa praticamente despercebido. A músi-ca de Os horácios e os curiácios, que Brecht considerara desde oinício essencial, precisamente por a peça didáctica ser sobretudoum género musical, só chega a um público mais alargado quandoa peça é transmitida pela Rádio de Berlim em 1970 e divulgadapela editora kreuzberg records em cd em 1999. No entanto, talcomo as outras peças didácticas, também Os horácios e os curiá-cios continua a ser utilizada principalmente como uma peça deteatro, seja nas escolas seja nos teatros, e não como uma peça demúsica que poderia integrar a programação de uma sala deconcertos.

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UM APELO

No conjunto das peças de Brecht, As espingardas da SenhoraCarrar destaca-se pela relação estreita e imediata com a actualidadedo tempo para o qual foi escrita, mas também por um outro aspectoaparentemente contraditório: apesar de se debruçar sobre a GuerraCivil de Espanha então em curso e ter sido escrita para apelar a umatomada de posição e intervenção activa nesse conflito, não foi votadaao esquecimento como uma peça datada, circunscrita a esse pro-pósito concreto, continuando a ser até hoje uma das suas peças maisrepresentadas. O desafio para a escrita da peça parte do realizadorSlatan Dudow que, no exílio em Paris, pretende desenvolver comactores alemães também aí exilados um projecto de teatro antifascistae propõe a Brecht, numa carta de 4 de Setembro de 1936, o assuntoda Guerra Civil de Espanha, que dominava então a actualidade polí-tica e era o foco das mais acesas discussões e emoções. Desenca-deada em Julho de 1936 por um golpe militar movido por generaiscontra o governo republicano eleito cinco meses antes, a GuerraCivil de Espanha adquirira rapidamente uma dimensão internacio-nal: enquanto França, Inglaterra e os Estados Unidos, declarandooptar pela neutralidade e pela não intervenção, bloqueavam o for-necimento de armas às forças republicanas, Alemanha e Itália pres-tavam abertamente o seu apoio militar aos generais. A polarizaçãoideológica que se tinha extremado na Europa com o fortalecimentototalitário tanto do regime nazi como do regime estalinista confron-tava-se pela primeira vez de forma sangrenta no terreno desta guerra.Para socialistas e comunistas de vários países e muito especialmentepara os exilados políticos da Alemanha de Hitler, a necessidade deapoiar por todos os meios a causa republicana abria um campo deacção concreto em que podiam lutar contra o avanço do fascismo.

Embora o desafio lançado por Slatan Dudow e o carácter urgenteda resposta fossem de imediato motivadores para Brecht, a escritade As espingardas da Senhora Carrar só será iniciada em Abril de1937 e concluída pouco antes da estreia que se realiza em 16 deOutubro desse ano na Salle Adyar em Paris. Uma das primeiras difi-culdades com que depara na concepção da peça, que para apelarà tomada de posição sobre a guerra em curso tem de apresentardados actualizados e objectivamente convincentes, é a rápida evo-lução da guerra no terreno. Em Agosto de 1937, o título inicial Gene-