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1 T E A T R O R E U N I D O (1967 - 1969)

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T E A T R O R E U N I D O (1967 - 1969)

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Editora XXXXXXXXXXXXXX Coordenação editorial: XXXXXX Preparação dos originais: Edson Costa Duarte Revisão: XXXXXXXXXXXXXXXXXX Capa e projeto gráfico: XXXXXXXXXXXX Foto da capa: XXXXXXXXXXXXXXXXX

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Hilda Hilst T E A T R O R E U N I D O (1967 - 1969) organização do volume: Edson Costa Duarte Editora XXXXXX

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Dados Internacionais de Catalogação e Publicação (CPI) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Índices para catálogo sistemático: 1. Escritor Brasileiro - Teatro reunido B 869.000 2. Teatro Brasileiro B869.000 Copyright 1999 Hilda Hilst EDITORA XXXXXXXXXXX Endereço XXXXXXXXXX XXXXXXXXXXXXXXX Telefone/ Fax 0000000000 2000

Hilst, Hilda Teatro reunido (1967 - 1969) / Hilda Hilst -- Cidade, Estado: Ed. XXXX; 2000. 1. Hilst, Hilda. Literatura Brasileira séc. XX 2. Teatro Brasileiro. I. Título. 00.XXX - B869.000 B 869.00 ISBN 00-000-000-0 (Editora XXXXXXXX)

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Hilda Hilst

AS AVES DA NOITE 1968

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Cenário Cilindro de altura variável, dependendo da altura do teatro. Altura do interior da cela, dentro do cilindro: 1,90 mts. Na cela, porta de ferro baixa, com pequeno visor. Janela à volta do cilindro recoberta de material transparente (arame, acrílico etc.) Cadeiras individuais à volta do cilindro, isoladas uma das outras por divisões. Nota Idealizei o cenário de As Aves da noite de forma a conseguir do espectador uma participação completa com o que se passa no interior da cela. Quis também que o espectador sentisse total isolamento, daí as cadeiras estarem separadas por divisões. Hilda Hilst

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Com As aves da noite, pretendi ouvir o que foi dito na cela da fome,

em AUSCHWITZ. Foi muito difícil. Se os meus personagens parecerem demasiadamente poéticos é porque acredito que só em situações extremas é que a poesia pode eclodir VIVA, EM VERDADE. Só em situações extremas é que interrogamos esse GRANDE OBSCURO que é Deus, com voracidade, desespero e poesia.

Hilda Hilst A tortura da fome faz descer o homem ao nível do animalesco,

pois a resistência humana tem os seus limites - além dos quais só restam o desespero ou a santidade.

M. Vinowska, Pater Maximilian Kolbe Friburgo, 1952

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AUSCHWITZ, 1941

Do campo de concentração fugiu um prisioneiro. Em represália os SS, por sorteio, condenaram alguns homens a morrer no Porão da Fome . Figurava entre os sorteados o prisioneiro no 5659, que começou a chorar. O padre católico franciscano, Maximilian Kolbe, prisioneiro de no 16670, se ofereceu para ocupar o lugar do no 5659 . Foi aceito. Os prisioneiros foram jogados numa cela de concreto onde ficaram até a morte. O que se passou no chamado Porão da Fome ninguém jamais soube. A cela é hoje um monumento. Em 24 de maio de 1948, teve início, em Roma, o processo de beatificação do Padre Maximilian Kolbe.

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PERSONAGENS Padre Maximilian 47 anos Poeta 17 anos, aspecto extremamente frágil Carcereiro (Também um dos prisioneiros judeus) 40 anos, aspecto vigoroso Estudante 20 anos Joalheiro 50 anos, aspecto frágil Mulher 30 anos, forte SS Hans Ajudante do SS Nota Quando a peça se inicia, os personagens já estão há algum tempo na cela da fome. Portanto, os estados de debilidade, comoção intensa, desespero e delírio, fundem-se freqüentemente. O Padre Maximilian usa uma batina de aspecto grotesco, sem mangas.

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Escuro total, ruído de muitos passos. Voz de um SS Número 5659. (Pausa) (Voz muito alta) 5659. Voz do prisioneiro 5659 Não! Por favor! Eu não! Eu tenho filhos! Tenho mulher! Eu não!

(Soluça e chora. Algum tempo) Voz do padre Maximilian (Tom objetivo e provocado por impulso violento) Eu posso ir no lugar dele. Eu posso ir. Voz do SS (Com ironia) Ah... Padre Maximilian? Quer ir no lugar dele? (Pausa)

Vejamos... Por quê? Voz de Maximilian (Tom objetivo. Voz alta) Eu já não posso trabalhar. Não sirvo mais. Voz do SS (Com ironia) Mas é tão moço ainda... Qual é a sua idade? Voz de Maximilian Quarenta e sete. Voz do SS Jovem... Muito jovem... Muito jovem... Voz de Maximilian (Muito objetivo) Mas eu não agüento mais o trabalho. (Pausa) Não

agüento. Voz do SS (Irritado) Muito bem. Qual é o seu número padre? Voz de Maximilian 16.670. Pausa. Voz do SS Como quiser. Aqui nós fazemos a vontade de todos. O que fugiu

também não fez a sua? Mas que fique bem claro: para cada um que fugir deste campo, alguns irão apodrecer na cela da fome. O método será sempre o mesmo: sorteio. (Pausa) 5659, volte para o seu lugar. (Passos do 5659) Então, padre Maximilian, está contente? (Pausa) Vamos, vamos, os cinco em fila, em fila, andando, vamos. (Passos dos cinco prisioneiros afastando-se) E vocês todos, voltem

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para os seus trabalhos. (Ruído de muitos passos) Comovente. (Ri) Muito comovente. (Ri discretamente)

Continua escuro total. Silêncio completo durante algum tempo. Entra luz em resistência. Estudante (Para o Poeta, pausado, débil) Continua... Continua... É bonito. Poeta Já faz muito tempo que eu escrevi. Estudante Mas é bonito. Joalheiro (Para o Poeta) Continua... isso pode nos aliviar. Pausa. Poeta (Fala o poema tocando-se, olhando-se. Tenso. Comovido) E deste morto me aproximo. Carcereiro (Objetivo) Você ainda não está morto. Poeta (Lento) Curvo-me sobre o que foi rosto. Oval em branco. Pálpebra remota Boca disciplinada para o canto. O braço longo Asa de ombro... Amou. Corroeu-se de sonhos. E cúmplice de aflitos, foi construído e refeito Em sal e trigo. (Muda levemente o tom. Sorri.) O ventre escuro não gerou, (Grave) Talvez por isso Teve mãos desmedidas E grito exacerbado foi o verso. Amou. Amou. (Fala mais rapidamente, olhando-se.) Tem os pés de criança: altos e curvados. O corpo distendido como lança. É inteiriço e claro.

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(Sem pausa. Voz grave. Exaltada de início até a palavra “hora”. Depois mais branda.) Ah, tempo extenso, grande tempo sem fim onde me estendo Não para contemplar este todo de fora Olhar enovelado respirando a hora... Antes o olhar suspenso como um arco, Olho dentro da fibra que o circunda, cesta mortuária. Carcereiro (Objetivo) Você ainda não está morto. Poeta (Mantém o mesmo tom) Depois a noite, corpo imenso... E a palha do meu nome... (Voz alta como um chamamento) Que verso te recompõe? Que fibra te comove ainda? (Voz baixa) O mundo, o mundo... O corpo que se move Na pretensa carcaça de um molusco. Toca-o. Ele se encolhe mudo. (Encolhendo-se) Estudante É bonito. É muito bonito. (Pausa) Já é noite? Carcereiro Isso te importa? Estudante Eu gosto de pensar como é... lá fora. Joalheiro Lá fora? (Ri) Você já não sabe? Estudante Quando eu digo lá fora... é outro tempo, muito longe... tudo muito

longe daqui. Pausa. Carcereiro (Para Maximilian que está ajoelhado fora do centro) Mas até quando

você vai ficar assim? Joalheiro (Para o Carcereiro) Deixa ele sossegado.

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Estudante Uma certa ansiedade... vem sempre quando começa a noite (Sem pausa) você sabe que tem gente que pega um gato...

Joalheiro (Interrompendo) Que gente? Estudante ... e cria gato num quarto escuro desde pequeno. Depois... um dia...

solta o animal numa manhã... Carcereiro (Interrompendo) De sol? Pausa. Estudante (Lentamente) De sol, de sol, de muito, muito sol. Joalheiro (Para o Estudante) Que gente? Maximilian (Ainda ajoelhado) Há certas coisas absurdas... Mas que talvez seja o

medo... que faz com que as pessoas façam certas coisas absurdas. Carcereiro (Com ironia e alguma agressividade) Muito bem, Maximilian. Muito

bem. O medo então. O medo então. O medo naqueles que enlouquecem o gato, no próprio gato, em todos. O medo sempre. Muito compreensível. Dá bem para entender. O medo para tudo em todos. Muito bom.

Poeta (Para Maximilian. Exaltado) Por quê? Por quê? Por que você

escolheu esta nossa morte quando podia ter a vida? Ainda que fosse aquela... era a vida. Que força te conduziu a isso? Por quê?

Pausa. Maximilian (Levantando-se. Voz lenta) Me foi dada... uma força... me foi dada. Pausa. Estudante Te foi dada? Poeta Por quem? Estudante Por Deus?

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Pausa. Maximilian Deus... Amor... Poeta (Debilmente) Nosso Deus dorme há tanto tempo. Maximilian Vigia Poeta (Tom crescente) Dorme! Dorme! Dorme um sono tão fundo que as

pálpebras enrijeceram. E nunca mais se abrirão. Estudante De vergonha. Poeta De vergonha diante de nós. Pausa. Joalheiro (Como se tomasse consciência de todo o horror só neste instante)

Mas tudo isso é mesmo verdade? Aconteceu para mim? Para mim? Maximilian Para nós. Poeta (Sombrio) Nós fomos os escolhidos. Joalheiro (Rancoroso) Os malditos. Carcereiro (Referindo-se a Maximilian. Agressivo) Ele a si mesmo se escolheu.

Ele quis. Poeta (Para Maximilian. Voz alta) Como é que você pôde? Fala! Passos violentos do SS. Olha pela pequena abertura da cela, de modo que se possa vê-lo. SS (Com sarcasmo) Então, porcos, já se habituaram? Já começaram a

rezar? (Pausa) É bonita a sua batina, padre Maximilian. Tivemos o cuidado de fazê-la especialmente. (Ri. Pausa) O tempo não passa, não é? (Desaparece dando risadas longas mas não acentuadas)

Maximilian (Lento) Luz infinitamente poderosa.

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Poeta (Interrompendo) Noite infinitamente escura. Carcereiro (Interrompendo) Noite podre! Maximilian (Interrompendo com voz firme) Luz infinitamente poderosa, dai-nos a

Tua força, a Tua misericórdia, o Teu amor. Poeta (Interrompendo apaixonado) Amor eu tive. Toda vez que os nossos

olhos se encontravam, me vinha no peito aquela canção. E ela cantava comigo.

(Canta) Que dia tão claro Sobre o meu coração Que dia tão claro Quantas flores Quanto amor sobre o meu coração (Voz crescente) Que dia tão claro. Passos violentos do SS. Aparece novamente na pequena abertura. SS (Voz suave) Então os porcos cantam? O chiqueiro se exalta? (Pausa.

Grita) Silêncio! (Desaparece) Pausa longa. Joalheiro (Dócil) Maximilian, você é feito de carne? Carcereiro (Seco) De ossos. Você não vê? Estudante De células carnívoras, como todos nós. Poeta (Apreensivo) São carnívoras? Estudante (Sorrindo) A natureza da célula orgânica é carnívora. Joalheiro (Entre irônico e afetuoso) Vamos, vamos. Uma aula. O nosso jovem

biologista???.

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Estudante Um estudante, só isso. Mas acabou-se. Parece que foi há tanto

tempo... Carcereiro (Sombrio) Aqui você vai poder estudar a carne até o fim. E o

estômago... o que ele faz quando não tritura nada... sem nada... absolutamente nada. (Ri)

Estudante O falcão... Carcereiro O que é que tem o falcão? Estudante Vocês sabem... fizeram um dia uma experiência como falcão. Pausa. Joalheiro E daí? Estudante Puseram carne dentro de uns tubos de metal e fizeram o falcão

engolir. Poeta (Com ironia) Que delicadeza! Estudante Para investigar o processo digestivo. Carcereiro Do falcão? Estudante É. Carcereiro Então? Estudante (Olhando à volta da cela) Os tubos eram fechados nos dois lados por

umas telinhas de arame. Joalheiro Por quê? Estudante Para deixar passar qualquer suco do estômago. Carcereiro E depois?

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Estudante O falcão era obrigado a engolir esses tubos mas depois punha prá fora.

Carcereiro Vomitava? Estudante É. Joalheiro Esses tubos... com carne? Estudante Não. Somente os tubos. Carcereiro (Apreensivo) E a carne? Pausa. Estudante (Sorrindo) A carne se dissolvera. (Pausa) A carne... se dissolvera. Carcereiro Você está bem certo? Estudante Sim. Dentro dos tubos só ficava um fluido. Maximilian (Com firmeza) Mas “nós” temos alma. Ouvem-se risos fora da cela. Joalheiro (Referindo-se aos SS. Ferino) Eles também? Maximilian Todos nós! Todos nós. Carcereiro (Colérico, voz baixa) Maximilian, você quer me dizer que esses filhos

da puta têm alma? O que é a alma então? Eu não posso ter nada que eles têm.

Poeta (Apertando o estômago e o ventre) Minha mãe, eu não agüento. Eu

não vou agüentar, eu não vou agüentar. Joalheiro Nenhum de nós vai agüentar. Vamos morrer. Maximilian (Indo de encontro ao Poeta) Filho, fala um pouco mais conosco, fala.

Nós precisamos falar.

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Poeta (Falando com dificuldade) A minha amiga... A minha amiga era boa...

O meu amigo também era bom, mas... Eu não compreendo como... Maximilian (Interrompe, tentando desviar a atenção do amigo e da morte) Então

você escrevia versos... hein? Poeta Sim... sim... Joalheiro (Com algum desprezo) Todo mundo diz que todo mundo já escreveu

versos. Eu não. Maximilian Mas ele escrevia sempre. Sempre escreveu. (Para o Poeta) Desde

menino, não é? Carcereiro (Seco) Ele ainda é um menino. Poeta (Para Maximilian. Está desesperado) Mas por que ele foi fazer isso?

Ele sabia que se alguém fugisse os outros pagariam... Ele era meu amigo... Por quê? Por quê?

Maximilian (Brando) Mas ele não sabia que você seria um dos sorteados. Joalheiro Foi por acaso. Carcereiro Acaso para nós (Aponta para Maximilian) Escolha para ele. Joalheiro (Referindo-se a Maximilian) Esse quer ser mártir. Carcereiro Quer cuspir em nós. Estudante (Violento) Calem-se idiotas. Ele é diferente, vocês não vêem? (Para o

Joalheiro com algum desprezo) Quem é você? Um joalheiro. Mas não muito bom decerto, porque eles não te aproveitaram. (Para o Carcereiro) E você? Um carcereiro. Foi o que você foi na sua terra, não é? (Com certo desprezo) Um carcereiro!

Carcereiro (Ameaçador) É, fui um carcereiro. Por quê? Estudante E agora as tuas chaves não serviriam para nada, não é?

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Maximilian (Para o Estudante, suavemente) Deixa... Deixa... Olhem... (Para todos) Escutem... Se nós falarmos... um com o outro... assim... (Com vergonha de dizer a palavra) Tranqüilamente, tudo será mais fácil.

Poeta (Como se falasse consigo mesmo, dizendo o poema) Tranqüilamente? (Pausa) Existiu um dia um mundo tranqüilo Onde havia seres, animais e verde? Tu exististe, amada, diante dos meus olhos, Com teus claros cabelos: tu exististe amigo? Maximilian (Febril) Sim. Nós conhecemos esse mundo antigo. Joalheiro (Rapidamente) As pedras podiam ser lapidadas de muitas maneiras. Estudante (Interrompe, seco) As pedras podem viver milhares e milhares de

anos. Carcereiro Nós somos iguais àquela carne (Com ironia) dos tubos. Maximilian (Veemente) Nós somos feitos à imagem e semelhança d’Aquele. Poeta Maximilian... Por favor... Me mate. Maximilian Filho, não será tão difícil, você vai ver, escute, quando eu entrei para

o seminário (Tentando ser natural) Eu pensava que nas minhas orações,... Deus se mostraria. Pensava que o ato de rezar seria acompanhado de infinito consolo, que eu teria sensações, sabe? Me sentiria leve, o coração ficaria inundado de luz, de calor, quem sabe... Se até visões eu teria. Uma vez diante do Santíssimo exposto eu vi uma claridade... Uma claridade... E depois sabe o que era? (Ri) Tinham acendido a lua da sacristia (Ri) A luz, sabe, a luz lá dentro também clareou o altar, lógico (Ri) Lógico, lógico, a luz da sacristia.

Poeta (Interrompendo) Lógico... E então você nunca teve nenhum consolo? Joalheiro Nenhuma luz dentro do coração quando você reza? Maximilian Não, mas...

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Carcereiro (Interrompe) Mas então Maximilian, que estória filha da puta é essa

que você quer nos contar? Estudante Cale-se Ele é diferente. Carcereiro Diferente? Diferente no quê? Você mesmo disse que ele é feito de

células carnívoras como todos nós... e como o falcão.. Estudante Você não entende, não pode entender. Um que foi carcereiro não

pode entender. Carcereiro Merda. E se não havia outra coisa para eu fazer? Joalheiro (Ingênuo) A profissão que eu escolhi, eu escolhi por amor. Eu amo as

pedras. Carcereiro Você teve sorte. Tocava em coisas limpas... pedra, ouro. Eu tocava

sempre no ferro. As chaves eram pesadas, ficavam amarradas na cintura por uma corrente que também parecia de ferro... o barulho que elas faziam... eu ficava brincando com elas. Minha mulher chegou a dizer que eu cheirava ferro, grades, tudo de ferro.

Joalheiro (Interrompe) O cheiro que nós teremos daqui a pouco. Poeta (Interrompe) Conta, Maximilian, conta. Maximilian E então eu pensava que teria algum conforto mas... Carcereiro (Interrompe gritando) A tua estória é horrível, Maximilian. Estudante Mas você não deixa ele contar, idiota. Maximilian (Voz em tensão) Então eu não tive aquele especial conforto de ter o

coração inundado de luz, mas... Joalheiro (Interrompe) Já sabemos, já sabemos. Maximilian (Interrompe em grande comoção) Mas depois . senti, que era preciso

que eu não tivesse nenhum conforto, que Deus queria que a minha

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oração fosse lúcida, clara, que era preciso rezar com os olhos bem aberto, que dentro de mim tudo ficasse nítido, limpo.

Poeta (Interrompe encolhendo-se) Ai que dor, eu não agüento, não agüento.

(Comprime o ventre) Eu tenho tanto vergonha. O SS olha pela abertura. Joalheiro (Para o Poeta) Solta tudo, homem, solta. Poeta Ai meu Deus, meu Deus. SS (Olhando pela pequena abertura) Então já começou a fedentina?

(Para o ajudante) Hans, já estão cagando no chiqueiro. Porcalhada, ainda bem que quem vai limpar tudo isso são porcos iguais a eles. (Pausa. Delicado) Então, não querem uma mulherzinha para rastejar em cima de vocês? (Discreta risada de Hans) Nós ainda vamos arranjar, uma bela judia, uma cadela... E o padre de batina? Como vai? De batina, Hans, na merda (Ri) de batina. (Ri)

Maximilian olha fixamente para o SS. SS Abaixa os olhos, abaixa. (Some) Pausa longa. Poeta (Tocando-se) O que é o corpo? O que é o corpo? Carcereiro (Torturado) Lá fora... Haverá árvores, ainda? Estudante Todas as manhãs... nós nos encontrávamos. Ela me dizia que o

corpo... Poeta (Interrompe débil e apreensivo) Ela te falava do corpo? Maximilian está próximo do Poeta. Estudante Ela me dizia que o corpo muitas vezes parece uma coisa independente

da tua vontade.

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Joalheiro Independente? Estudante A tua vontade é deixar o corpo quieto, e de repente ele se move..,

caminha, vai de encontro aos outros corpos, ela dizia isso. Poeta Nós precisamos... Nós queremos o outro corpo. Estudante (Apaixonado, tom crescente) E que também se você repetir a palavra

corpo muitas vezes, ela dizia, corpo corpo corpo, experimentem. Todos repetem menos Maximilian e o Carcereiro. Estudante O corpo deixa de significar o teu corpo e toma a forma de alguma

coisa volumosa e cinzenta, ali, à tua frente. Corpo... ali. Pausa. Poeta (Lentamente) O corpo é uma esplêndida organização. Maximilian (Brando, mas com firmeza) O corpo é o envoltório daquilo que está

mais fundo, por isso... Carcereiro (Interrompe irritado) O que é o mais fundo, Maximilian? Maximilian A al... (Pretendia dizer: a alma, mas corrige-se) A tua vontade. Poeta (Para o Estudante, febril) Então a tua amiga estava certa? Ela não

disse que o corpo parece uma coisa independente da nossa vontade? E se o corpo é só um envoltório da vontade... o corpo não é nada, hein? (Voz alta) Maximilian, eu não quero esse meu corpo, eu não quero mais! faz alguma coisa para que ele se acabe depressa, faz alguma coisa prá que eu não saiba dele mais, maldito corpo. (Soluça)

Maximilian (Muito comovido) Ele se acabará meu amigo, logo, logo... se fosse

possível não pensar tanto nele agora... não pensar tanto. Poeta (Interrompe exaltado) Mas eu não posso. Eu sou meu corpo. Eu sou

esta imundície que parece não ter fim. Joalheiro (Suave) Eu nunca mais verei a luz... e o brilho

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Maximilian (Interrompe) Mas existe uma luz muito mais intensa e essa... Carcereiro (Interrompendo) Maximilian, você podia ficar lá fora e ser muito mais

útil pr'aqueles coitados. Aqui você é inútil, aqui a morte é feita de carne, aqui você já é a morte, tudo que você fala é a morte que fala.

Joalheiro (Brando) o outro quando foi sorteado começou a chorar... Poeta (Interrompe) eu não só tive vontade de chorar, eu... (Soluça) Ruídos de passos distante. Carcereiro Eles vêm voltando... vocês estão ouvindo? Poeta (Desesperado) não. Carcereiro Vêm voltando sim. Passos mais audíveis. Poeta (Atormentado) Eu não ouço nada... você está mentindo. Carcereiro Agora mais perto. Poeta Não, não. Joalheiro Já estão aqui. Poeta (Tampando os ouvidos) Não, eu não ouço! Vozes, risos, ruído de chaves. Carcereiro As chaves. A porta é aberta com suavidade. Demoram um pouco para entrar. Ouve-se o SS dizendo: "Você já vai ver, entra, você vai gostar". Uma voz de mulher: "Mas para quê?". Voz dos SS empurrando a Mulher para dentro da cela: "Entra!". Entram, também, o ajudante e o SS.

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SS (Delicado) Boa noite, senhores. (Para a Mulher) Vamos, dê boa noite aos porcos. Vamos (safanões) diga: boa noite porcos.

Mulher (Timidamente) Boa noite. SS (Gritando) Porcos! diga (acentua) porcos. Mulher Boa noite (safanão pesado) porcos. SS (Delicado, para os prisioneiros) Já é noite, sabiam? E a noite é feita

prá que mesmo? (Risadas discretas de Hans) para o quê? (Muda o tom de voz para a Mulher) Vai. Primeiro o que está cagado. (Empurra a Mulher mas simultaneamente puxa) Não, não, primeiro o nosso amigo de batina. (Ri) De batina, Hans! O que escolheu a merda, a morte e agora (delicadamente) o amor. (Aproxima-se de Maximilian que o olha fixamente. Ameaçando, lentamente) Abaixa os olhos, abaixa os olhos... (Delicado) Então uma cadela judia para passar a noite não é nada mau, hein? será que Deus não vai gostar? (Risadas discretas de Hans) Vai, sim...nós acreditamos em Deus também... O nosso Deus é o Deus dos justos... (Para a Mulher) Vamos, pelo menos dá um beijinho nele prá gente ver. (A Mulher hesita. O SS empurra violentamente a mulher na direção de Maximilian) Beija esse de batina, vamos! (A Mulher beija Maximilian, que lhe sorri) Ele está gostando, Hans! (Morre de rir) Ele está gostando! Quer ver que os porcos são até capazes de foder! (Ainda rindo dirige-se à Mulher antes de sair) Você fica. (A Mulher olha o SS como que interrogando) Você fica.

Longa pausa. Tensão. Maximilian Filha... você vem... Mulher (Timidamente) Perto daqui. Pausa. Carcereiro (Desconfiado) Você faz que serviço? Pausa.

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Joalheiro (Preocupado) O que é que você faz? Pausa. Carcereiro Conta. Maximilian Deixem a pobre, deixem. Joalheiro (Com alguma ironia) conta, quem sabe nos alivia. Maximilian (Tentando ser natural) Você está aqui há muito tempo? Tem família? Carcereiro (Interrompe gritando) Maximilian, nós queremos nos aliviar, está

certo? Estudante Mas nada do que ela disser pode nos aliviar, é tudo tão... Mulher (Timidamente) Eu posso cantar. Maximilian Isso, cante, cante. Pausa. Mulher (Canta) Que dia tão claro Sobre o meu coração Que dia tão claro Estudante (Desesperado) Não, isso não, não cante isso...isso não. Pausa. Carcereiro (Seco) Conta, o que é que você faz? Poeta (Resignado) Mas não é preciso, não vai adiantar nada. Carcereiro (Exaltado) Eu também vou morrer, não é? Eu também tenho o mesmo

direito de vocês, não é? Vocês falam, o outro canta, eu quero ouvir o que ela faz... (Rude) Conta. (Delicado) Conta.

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Mulher (Branda) Eu vou morrer também, eu sei que vou morrer. Estudante Como é que você sabe? Maximilian Talvez não, por quê? Talvez não. Mulher (Como se falasse consigo mesma) Eles me deixarão viva... vendo o

que eu vejo? Joalheiro (Preocupado) O que é que você vê? Pausa. Carcereiro Conta. Maximilian Meu Deus, dai-nos a tua força. Carcereiro (Interrompe, para Maximilian) Eu quero ouvir o que ela vai contar. Mulher Mas por que eu tenho de contar? Por quê? Carcereiro (Com ironia) Para que a gente se lembre mesmo depois da morte,

sempre, sempre, porque se morrerem todos, a tua palavra vai ficar viva no espaço, viva, você não entende?

Estudante A palavra tem vida? Poeta (Tentando acreditar no que diz) Um dia quem sabe a palavra se

transforma em matéria... e tudo o que ela falar vai ficar assim... imagem... viva, isso mesmo, imagem viva diante dos olhos de todos...e então os que vierem serão obrigados a se lembrar de nós... (Para o Carcereiro) Não é isso?

Carcereiro (Objetivo) É isso. (Rude, ansioso, para a mulher) Conta. Estudante (Olhando à volta da cela) Esta cela terá vida. Palavras vivas. Carcereiro (Para a Mulher) Vamos, vamos, conta. Joalheiro (Comovido) As pedras têm vida. Às vezes...

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Carcereiro (Interrompe exaltado) As pedras não têm vida alguma. Joalheiro (Apaixonado) Têm vida sim senhor. Eu tocava em algumas pedras e

sentia que elas tinham vida. Algumas eram mais fáceis de manipular, mais dóceis... é assim, se você pega por exemplo o berilo...

Estudante (Interrompendo) A pedra não faz esforço, a pedra não tem vida. Joalheiro (Exaltado) As minhas pedras tinham vida, tinham vida. Maximilian (Tentando acalmar) Todas as coisas que deus criou têm uma forma

de vida. Nós às vezes não vemos, mas a vida está lá dentro pulsando e...

Carcereiro (Interrompe com delicada ironia) Meu coração também está

pulsando, Maximilian. (Para a Mulher) Conta. Maximilian (Interrompe) O espírito... A alma das coisas... Carcereiro (Gritando para a Mulher) Con... ta...! Pausa. Tensão. Mulher (Lentamente. A principio em tensão, depois adquirindo firmeza

durante o relato) Nós usamos botas de borracha... e máscaras contra gás... mangueiras...

Carcereiro (Tentando entender) Botas... máscaras? Joalheiro Mangueiras? Pausa. Poeta (Tenso, com desconfiança) Mas onde é isso? Mulher Bem perto daqui. Estudante Eu sei que não vai adiantar nada ela contar. Joalheiro (Tenso) Eu me lembro que...

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Carcereiro Você lembra o quê? Joalheiro (Com medo) Alguém me disse que tinha ouvido uma ordem um dia. Carcereiro Que ordem? Joalheiro (Gritando a ordem que alguém ouviu) "Está bem! Dê-lhes algo para

devorar." Pausa. Carcereiro E o que é isso? Pausa. Mulher É o sinal. Pausa. Carcereiro Que sinal? Pausa. Mulher O sinal para que lancem os cristais pelos respiradouros. Pausa. Poeta (Sem entender) Pelos respiradouros... Mulher Pelas aberturas. Depois as aberturas são seladas. Estudante (Rindo. Sorrindo. Nervosamente) Não, não. Joalheiro Cristais... Mulher A cor é azul... A cor dos cristais é azul-ametista. Joalheiro (Apreensivo, sem acreditar) As ametistas são pedras muito bonitas

mas... Mulher (Interrompe) Eles ficam depois olhando através do vidro das vigias.

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Estudante (Timidamente, sem acreditar) Olhando? Ficam olhando? Poeta (Repugnado) Eles ficam olhando o que está acontecendo? Maximilian (Comovido) Meus filhos... Carcereiro (Interrompe) Cala a boca. Maximilian (Tenso) Em tudo isso, Deus... Carcereiro (Interrompendo gritando) Deus não é inocente, Maximilian. (Pausa.

Sôfrego, para a Mulher) E depois? E depois? Mulher Depois... passa algum tempo. Carcereiro (Tenso) Minutos? Pausa. Mulher Eu... e outros... entramos depois de uns trinta minutos... Pausa. Estudante Com as botas. Joalheiro As máscaras... a mangueira. Carcereiro (Com desprezo, compreendendo afinal) Aí... você... Poeta (Interrompe. Canta em tensão) Que dia tão claro Sobre o meu coração Que dia tão claro Maximilian (Junto com o Poeta) Quantas flores Quanto amor sobre o meu coração. Estudante (Junto com o poeta e Maximilian, voz crescente, mais rápido) Que dia tão claro

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Vou andando Carcereiro (Interrompe violento, tom crescente) Não! Não! Ela vai contar até o

fim, eu tenho direito de saber, eu o direito, de qualquer jeito eu vou morrer, conta, vamos, vamos, aí vocês entram...

Mulher (Medrosa) Primeiro a gente... limpa o sangue...e as fezes. Maximilian (Interrompe com delicadeza) Não diz mais nada, filha, não diz mais

nada. Carcereiro (Sôfrego) E depois? E depois? Pausa. Mulher (Agoniada) Depois separamos os corpos. Pausa. Joalheiro (Com horror) Eles ficam agarrados? Mulher Difícil de separar... mas com cordas... com ganchos... Joalheiro (Abobalhado) Você é forte, tem força. Pausa. Estudante (Tentando cortar definitivamente o relato da Mulher, rápido) Eu tive

um amigo muito inteligente, muito inteligente mesmo, ele se chamava Isaac, ele queria ser biologista??? como eu, ele dizia: um dia eu vou escrever isso, veja se não é verdade, ele dizia para mim, olha se um consumidor servir de alimento a um outro organismo, um segundo consumidor, o consumidor...

Poeta (Interrompe desesperado) Não adiante, não adianta. Estudante (Rapidamente) Olhem, ele dava um exemplo bem simples, ele dizia: é

bem simples, veja: se um leão, vive de zebras e as duas espécies são mantidas estáveis na população, então deve existir cerca de dez quilos de zebra para cada quilo de leão. Como as zebras comem capim, deve existir dez quilos de capim para cada quilo de zebra, e portanto

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cem quilos de capim para cada quilo de leão. Simples, ele dizia, simples, este é um exemplo de uma cadeia de alimento e invariavelmente cresce como uma pirâmide. (Está exausto)

Pausa. Mulher (Agoniada) Como uma pirâmide, é assim que eles estão junto à porta

de metal, como uma pirâmide toda feita de sangue, de sangue muito escuro.

Poeta Meu Deus, meu Deus, meu Deus, meu Deus... Maximilian (Febril) Quanto me glorificas! Pausa longa. Estudante Ainda é noite? Joalheiro Você não ouviu? Ele já não disse? Estudante Então tudo continua igual... o dia, a noite? Carcereiro (Para a Mulher, enojado) E você vive e come... depois disso. Mulher (Sôfrega) Eu quero viver, eu quero viver... é mais forte do que tudo.

(O Carcereiro cospe na mulher) Mas eu sou como vocês, eu sou como vocês. (Para o Carcereiro) Eu sou igual a você!

Carcereiro (Enojado) Que coisa tenho eu com você. A Mulher começa a chorar. Maximilian Você é igual a nós, minha filha, é verdade, nós sabemos muito bem,

tudo é terrível, a vontade de viver é mesmo uma coisa muito forte, vem de dentro, todos nós sabemos que é uma coisa muito forte, talvez... de repente... no teu lugar nós faríamos a mesma coisa, não fique assim (A Mulher está desesperada) um dia estaremos juntos, todos nós, e nos abraçaremos, muito, muito.

Poeta (Dizendo o poema em comoção) Amada, ah, que desejo de te beijar a fronte atormentada

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(levanta a voz) Ah, meus olhos esquecidos de tudo que já viram Sonharem que são olhos inocentes. Meus olhos... Na noite com espanto eles se abriram Na noite se fecharam de repente. Pausa. Carcereiro (Fingindo docilidade) Maximilian, Deus é inocente? Maximilian movimenta lentamente a cabeça num gesto afirmativo. Carcereiro Por quê? Maximilian Eu sei que todo o bem vem de Deus... Poeta (Interrompe sorrindo) Mas o mal não vem, mas o mal não vem, mas o

mal não vem. Carcereiro (Provocativo) Por que, Maximilian? Maximilian As coisas divinas... as coisas divinas são uma noite infinita para a

nossa razão. Joalheiro (Debilmente) As coisas de deus são tão complicadas... Estudante (Interrompe com sofreguidão, rapidamente) Eu também, tive aulas

muito complicadas, anélida platelminta nematelminta artrópoda molusca moluscoidéia...

Poeta (Interrompe sorrindo) As coisas de Deus são rendilhadas, muitos

caminhos. Maximilian (Objetivo) Um só caminho. Joalheiro (Tom ingênuo e comovido) Eu fiz uma linda peça rendilhada uma

vez...vários pontos azuis (Lembra-se do azul dos cristais e continua num tom de voz angustiado) e um ouro filigranado, muito difícil.

Carcereiro (Tom crescente) Por que, Maximilian? As coisas de Deus são tão

confusas não é mesmo? Tudo pode ser e não ser, não é? O direito e

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o avesso que nunca ninguém compreende e muito menos eu que fui carcereiro, vamos, não é, hein?

Joalheiro (Como se falasse consigo mesmo) "O pecador tem um intelecto leve

como a palha mas o justo é pesado como o ouro." Maximilian (Apaixonado) O amor pode nos fazer compreender. Mulher Amor sim... Amor até onde? Poeta (Desespero surdo) Eu não agüento mais... (Dobrando-se) Se eu

arrancasse tudo aqui por dentro e comesse. Ouvem-se risadas fora da cela. Estudante (Impotente) Se fosse possível rir, se fosse possível... Maximilian (Interrompe brando, comovido) Ele disse uma vez... "Não foi para te

dar o riso que eu te amei." Carcereiro (Para Maximilian) O teu Deus imolou o próprio filho. Maximilian (Apaixonado) Por amor. Ouvem-se novos risos. Carcereiro (Para Maximilian, com ironia) Amor por quem? Por nós? (Os risos

recomeçam. Pausa) Você tem amor por eles? Poeta (Lentamente, quase inconsciente) Eles são como certas aves que se

feriram nas duas asas... e se você quiser socorrê-las... não saberá como... nem por onde segurá-las. Eles são como certas aves da noite.

Carcereiro (Para Maximilian, provocativo, referindo-se aos SS) Você tem amor

por eles? Maximilian (Com firmeza) Ainda não!... mas lentamente eu abrirei meu peito para

que eles tomem os seus lugares dentro de mim. Poeta (Intensa comoção) Eu te amo, Maximilian. Tanto como amei a mim

mesmo.

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Maximilian É preciso que você se ame agora também. Poeta (Assombrado) Com este corpo? Maximilian Com este nosso corpo. Mulher (Lentamente, com fervor) Eu amo todos aqueles corpos. Carcereiro (Para a mulher com intensa ironia) Que caridade, que fineza. Você vai

nos limpar depois de mortos? Vai separar o sangue e a merda? Hein? Vai?

Joalheiro (Assombrado) Mas a gente sangra morrendo por fome e por sede? A

gente também sangra? Maximilian (Lentamente) A gente sangra sempre quando morre em amor. Poeta Sangra? (Desesperado) Então eu não quero, Maximilian, eu não

quero morrer em amor, eu quero que o meu ódio cresça a cada dia, que o ódio venha depressa, depressa, eu estou cheio de ódio. (Grita escondendo a boca nas mãos. Mostra as mãos) Olhem, é sangue, vocês me enganaram, vocês me enganaram, me ajuda Maximilian. (Deita-se)

Maximilian (Ajoelhando-se ao lado do poeta) Tudo se acabará depressa, é

apenas um instante, tudo isso é apenas um instante. (Limpa as mãos do poeta na batina) Pronto, pronto, não tem mais nada.., olha, está tudo limpo, está limpo, olha.

Joalheiro É frágil, é tão frágil. Mulher É limpo. Carcereiro É um menino. Estudante (Comovido) É tão mais velho do que todos nós. Pausa. Todos estão ao redor do Poeta. Poeta (Está morrendo) Eu gostaria muito...Eu gostaria...

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Maximilian (Apressando-se) Que é que você gostaria, meu menino? Poeta Eu gostaria muito... que todos vocês... cantassem aquela canção outra

vez. Estudante (Tenso) Agora? Poeta Agora, agora, cantem, cantem. Maximilian começa lentamente a cantar, e lentamente todos o acompanham. Tom cada vez mais apaixonado. Todos Que dia tão claro Sobre o meu coração Que dia tão claro Quantas flores Quanto amor sobre o meu coração Que dia tão claro Vou andando, vou cantando Abraçado Com a minha namorada. (Mais rapidamente) Vou andando Vou cantando Abraçado, abraçado Com a minha namorada. Abrem a porta com violência. Entram o SS e o ajudante. SS É uma festa? (Pausa) Respondam é uma festa? Carcereiro Ele está morto. Estudante (Sem acreditar) Não, não, ele ainda não está morto. Joalheiro Ele está de olhos abertos. Mulher Ele vai falar agora... ele já vai falar.

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SS (Empurrando com o pé o padre Maximilian ajoelhado junto ao Poeta.

Como o padre não se move, agarra-o pela batina e afasta-o) Sai corvo, sai. Vamos ver, vamos ver. (Com a ponta da bota sacode o corpo do Poeta várias vezes) vamos, levante-se porco.

Maximilian (Com voz firme) Ele é um poeta. SS Um poeta? Muito bonito... Hans, leva prá fora, leva prá fora o porco

poeta. (Todos se aproximam muito do Poeta) Para trás, para trás. (O ajudante afasta todos com violência) Vamos, todos cantando, cantando, la, la, ra, la... Não querem mais cantar? Pena, pena. (Hans começa a arrastar o corpo do Poeta para fora) Então um poeta... muito bonito... nós também temos grandes poetas... espera um pouco Hans. (Começa a dizer lentamente)

Sobre todos os cimos O repouso. Sobre todos os cumes Apenas leve sopro. Continua comigo Hans. (Os dois juntos) Calam os pássaros na mata Espera, pois, e em breve Também descansarás. (Vão saindo, o SS dá risadas discretas e Hans só sorri) Muito bonito... muito bonito... Pausa longa. Carcereiro (Para Maximilian. Tom ferido) Olha, toca em mim, toca em você...

Você acha que deus tem alguma coisa a ver com a gente? com tudo isso que vai apodrecer? E se Ele tem alguma coisa a ver com a gente, Ele não é inocente, Ele sabe. (Exaltado) De qualquer jeito ele não é inocente. Perto de nós, muito longe de nós.

Mulher (Com embaraço) Eu ponho as minhas mãos em todos aqueles corpos

mas eu sou inocente. Carcereiro (Com nojo) Você!

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Maximilian (Para o Carcereiro, voz em tensão, muito apaixonado) Deus é teu amigo, eu também sou teu amigo. Ele te ama assim como eu te amo mas infinitas vezes mais... Ele te desnudou pra que você pudesse alcançá-lo... te fez hóspede desta santa noite para que depois você ficasse para sempre, para sempre... no seu grande olhar.

Joalheiro (Rapidamente. Tom ingênuo-delirante) Muitas vezes era preciso

colocar certas pedras muito, muito raras no meio das outras... menos raras, era preciso, eu tinha medo mas era preciso, e depois quando as pessoas olhavam o meu trabalho terminado, achavam que todas as pedras eram muito raras, diziam: onde você conseguiu tantas e tão bonitas? Sabem, o brilho das melhores se espalhava por todas elas... se fundiam, se misturavam de um jeito como se eu tivesse tirado das trevas aquelas pequeninas pedras, quase humildes... eles olhavam, olhavam... e era para sempre, era para sempre aquele olhar...

Carcereiro (Interrompe, seco) Mas podia também acontecer o contrário. Joalheiro (Aflito) O quê? O que é que podia acontecer? Carcereiro Tuas pedras raras podiam desaparecer no meio das outras. Joalheiro (Objetivo, tenso) Ah, isso nunca aconteceu, isso nunca aconteceu no

meu trabalho... Estudante (Como se falasse consigo mesmo) Hóspede desta santa noite... Mulher (Branda) Hóspede d'Ele... por amor? Maximilian Predileção. Infinito amor. Carcereiro (Para Maximilian, sarcástico) Mas você não teve a predileção divina,

você se impôs a Deus, você não foi sorteado. Maximilian Ele me aceitou. Carcereiro (Provocativo) Talvez não... Você pode até não morrer... (Com ironia)

Pode acontecer um milagre... ou você pode demorar muito, muito para morrer. E isso vai significar... sabe o quê?

Joalheiro O quê?

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Carcereiro (Voz alta, para todos) Que ele não é um escolhido de Deus. Mulher (Olhando fixamente para o carcereiro) Deus nem o demônio nos

aceitam. Estudante (Febril) A sede, a minha sede não é humana... Eu não tenho mais

nada de humano. (Olha-se a si mesmo) Maximilian, eu não sou mais humano.

Maximilian (Angustiado) Eu também tenho sede... Eu também tenho muita

sede...mas à medida que a noite caminha, nós deixaremos de ser os velhos homens e deixaremos desta sede.

Carcereiro (Em grande aflição) Se tudo isso foi permitido, deve haver um motivo.

Um motivo, vocês não acham? Qual é esse motivo, Maximilian? fala, qual é o motivo?

Joalheiro (De olhos fechados, parece adormecido) Nós seremos lembrados. Carcereiro (Com sarcasmo) Ah, sim é verdade, nós teremos o amor... pela

primeira vez. Pela primeira vez o mundo inteiro terá compaixão, o mundo inteiro ficará possuído de amor por nós. é isso Maximilian? Foi isso o que teu Deus planejou? Amor para esse povo eleito. Amor a qualquer preço! Amor!

Estudante (Debilmente) Isso tem sentido? Carcereiro (Com ironia) O padre Maximilian acha que tem, não é? Ele vai nos

dizer agora o motivo divino dessa carnificina. (Aproxima-se agressivo de Maximilian) Você vai me dizer nem que eu tenha que te obrigar. (Sacode Maximilian) Vamos Maximilian, qual é a resposta do teu Deus?

A Mulher intervém. Mulher (Para o Carcereiro) Você parece o demônio. Afaste-se dele. Carcereiro Qual é essa resposta? Fala! (Sacode Maximilian várias vezes)

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Estudante (Fazendo um grande esforço para afastar o carcereiro de Maximilian. Para o carcereiro) E você acha por acaso que é fácil descobrir um sentido? Você sabe ao menos porque ela está aqui? (Com sarcasmo) Para saber se o amor pode ser feito mesmo diante da morte? (Começa a rir mas ao mesmo tempo tem contorções de dor) Isso teria sentido. Mas não é por isso. Ela está aqui para que a gente se pergunte exatamente isso: Por quê?

Carcereiro (Atônito) Então é como um jogo. Joalheiro (Impotente) Como uma brincadeira. Carcereiro (Exaltado) As aves brincam com a gente como o teu Deus,

Maximilian. Além da nossa carne e do nosso sangue, também a nossa pergunta. Para nos intrigar, hein?

Maximilian (Exaltado) Mas o meu Deus ofereceu a sua própria carne e o seu

próprio sangue. Ofereceu. Carcereiro E depois? Joalheiro O que depois? Carcereiro Depois... Ele nos colocou aqui. (Para Maximilian muito exaltado) Ou

você pensa que o teu Deus se ofereceu por nada? Para o seu próprio gozo... para o seu próprio gozo. Um Deus que escolhe para ele mesmo o martírio, nada é suficiente, você não vê? E para que ele consiga um grande prazer, a nossa fome e a nossa sede não bastam. (Começa a bater as próprias costas na parede)

(Alto-falantes na cela, música) Não bastam, não bastam, por quê? por quê?

Maximilian tenta segurar o Carcereiro. Os outros tentam ajudar. Maximilian (Desesperado) Mas que é que você está fazendo? Não faz isso, não

se machuca assim, por favor, se eu tivesse uma resposta eu diria a você mas eu não sei, é alguma coisa que vem de dentro, pare, pare! (Entra praticamente em luta com o Carcereiro. Machuca-se. O Carcereiro pára subitamente exausto)

Alto-falantes continuam por pouco tempo. Depois silenciam.

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Carcereiro (Ofegante, para Maximilian) Por que você está aqui? Este tempo é o

nosso tempo... Você não compreende? O nosso tempo, nosso! Que é que você veio fazer aqui? (Ajoelha-se e começa a raspar o chão)

Maximilian (Ofegante) Meu deus, não adianta você fazer isso. Joalheiro É cimento. Não mata a fome. Maximilian tenta levantar o Carcereiro. Mulher (Em aflição) Se eu pudesse fazer alguma coisa, se eu pudesse ao

menos... Carcereiro (Enojado) Você já faz muito. Joalheiro (Para o Carcereiro) Põe a cabeça aqui. Maximilian ajuda-o a deitar a cabeça nas pernas do Joalheiro, os dois fecham os olhos. Estão como que anestesiados. A Mulher o Estudante e Maximilian ficam próximos um do outro. Pausa. Estudante (Fixando Maximilian) Um homem manso dá sempre a impressão de

que não perdeu a alma. (Para Maximilian) Você tenta salvar a sua?...Você diz palavras?

Maximilian Eu tento salvá-la. Mas eu não me digo palavras. Estudante Por quê? Maximilian (Firme, mas brando) Porque prestaremos conta de toda palavra vã. Estudante Mas aqui neste lugar, nesta hora, alguma palavra é palavra vã? Maximilian (Agoniado) Eu não sei... eu não sei, você compreende? Eu poderia

me dizer e dizer a todos nós tanta coisa... mas justamente aqui, neste lugar, nesta hora, cada palavra...

Estudante (Interrompe) Eu sei. (Pausa) Eu posso pegar em você? O teu corpo é

igual ao meu?

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Maximilian (Sorrindo) É igual. Mulher (Tocando Maximilian) A minha carne é como a sua, olha. (Sorri) Estudante (Para Maximilian) Você sabia antes de tudo isso acontecer, quem era

o teu Deus? Maximilian Eu o pensava... cheio de ternura e piedade... e pensava também que

o maior mal era a treva... a treva do espírito. Estudante E agora? Maximilian Agora a treva e a luz são uma coisa só. Pausa. Estudante Você desejou muito esta morte, não foi? Maximilian Eu não pude me conter. Na verdade eu não pude me conter. Alto-falante. Voz do Füher. Trecho de discurso. O Joalheiro e o Carcereiro comprimem as cabeças entre os joelhos, encolhem-se, algum tempo. Reações várias. Cessa o alto-falante. Estudante Você não pôde se conter? Quando você disse "Eu posso ir no lugar

dele, eu posso ir?”, você não pôde se conter? Maximilian Eu não sei... foi muito mais do que um impulso, foi muito mais. Estudante (Referindo-se a Hitler. Olha para o alto-falante, tom muito sombrio)

Ele também sente assim... muito mais do que um impulso. Ele é o reverso, você sabe? O reverso. O outro rosto de cada um de nós.

Maximilian Sim, meu Deus, eu sei... eu sei agora. O Carcereiro tenta ficar em pé. Mulher (Como uma confissão) Padre, eu quero dizer que... quando eu limpo

aqueles corpos, eu sinto no fundo... (Com espanto de si mesma)...eu

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sinto tanta alegria de não estar ali daquele jeito, o senhor entende? Eu consigo sentir tanta alegria... é quase igual... quando eu era criança, a visita para os mortos era um passeio lindo para mim, lindo. Eu nunca ficava triste quando visitava os mortos, eu me dizia: eles não sentem mais nada, e eu estou aqui respirando e dentro de mim havia um frescor, eu respirava várias vezes, sempre repetindo: eu estou viva, eu estou viva... e tudo em volta de mim era vida...apesar dos mortos. Eu olhava para o céu e de vez em quando passava um bando de passarinhos e eu me lembro que um dia... quando eu era ainda tão pequena... eu fiquei tão contente de estar ali, perto dos mortos, mas viva, fiquei tão contente de estar viva... eu era tão pequena...sabe o que eu fiz? Eu levantei o meu vestidinho e comecei a rodar a rodar a rodar, até que minha mãe pensou que algum espírito tinha me possuído, imagine... ela chegou a pensar isso... um espírito.

Carcereiro (Interrompendo com desprezo) O espírito de quem? Mulher ... E eu continuava a rodar de alegria. E via o céu azul e os olhos da

minha mãe, escuros enormes...o céu azul e os olhos escuros... (A Mulher parece ter se esquecido que está ali. Está contente) Que alegria de estar viva! (O Carcereiro olha fixamente para a Mulher) Não me olhe assim. Você parece o demônio.

Carcereiro (Simulando suavidade) Eu, o demônio? Mas é você que vem das

fornalhas... você é que ajuda, (Ri) olha, sua mãe devia estar certa... um espírito te possuiu... você é que ajuda as aves da noite, você ajuda, fazendo aquela limpeza você ajuda. (Aproxima-se da Mulher) Deixa ver as tuas mãos. (A Mulher recua) Mostra as tuas mãos.

Mulher (Amedrontada) Não, não! Carcereiro (Aproximando-se) Mas eu só quero ver as tuas mãos. Mulher (Recuando e pedindo auxílio a Maximilian) Olha Maximilian, olha,

não! Maximilian tenta afastar o Carcereiro da Mulher. Maximilian (Para o carcereiro) São iguais às nossas, não há nada para ver, deixa!

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Interferência e luta contínua de Maximilian com o Carcereiro. Maximilian machuca-se, bate de encontro a parede.

Carcereiro (Segurando rapidamente as mãos da Mulher pelos pulsos. Primeiro

examina-as, depois obriga a Mulher a acariciar-se, no rosto, nos cabelos. A Mulher tem as mãos rígidas nesse momento e continua dizendo: "Não, não faz assim! não, não, não!") Assim, assim, assim, olha como nem você agüenta o teu próprio corpo, como você tem nojo delas, das porcas, da porca da tua mão. (Mostra as mãos da Mulher para ela mesma) Olha, vê se elas são iguais a todas as mãos. (A mulher desvia o rosto, mas o carcereiro num gesto rapidíssimo segura os dois pulsos da Mulher com uma única mão, obrigando-a a olhar. Cospe nas mãos da mulher) São iguais? São iguais?

Mulher Pare! Pare! Maximilian intervém novamente e o Carcereiro solta finalmente a Mulher. Mulher (A Mulher cruza os pulsos junto à fronte, as palmas das mãos rígidas

para fora, temendo tocar-se) Elas não eram assim, sabe, elas não eram assim, eu te juro.

Carcereiro (Num misto de alegria e sarcasmo) Elas foram (Acentua) escolhidas

para fazer aquele serviço, não é Maximilian? Deus escolheu as mãos dela para aquele serviço.

Maximilian (Voz firme) E por isso mesmo é que elas são limpas. Mulher (Para Maximilian, docilmente) São limpas sim, não é mesmo? São

limpas... (Encurva as mãos em direção ao peito mas ainda não ousa tocar-se)

Carcereiro (Quase de um salto em direção à Mulher) Vamos, vamos, se são tão

limpas. (Esfrega as mãos da mulher na roupa da Mulher) Tão limpas tão limpas tão limpas. (Várias vezes)

Maximilian (Afastando violentamente o Carcereiro) Chega! Chega! Tudo isso já

não é suficiente? Carcereiro Não, merda, não é suficiente! Alguém tem que sofrer mais do que eu,

eu sozinho não agüento, não agüento.

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Maximilian (Mostrando o Joalheiro e o Estudante. Febril) Mas olha para eles,

olha para eles, você não os vê? Carcereiro (Álgido) Eu olho para você, Maximilian, e sei que estou sozinho. Pausa. Maximilian (Agoniado) Mas por quê? Por quê? Você não pense nem por um

segundo que é fácil... é que... vocês é que me ajudam... sem vocês eu não agüentaria.

Carcereiro (Com ironia) Você não agüentaria sem mim? Eu te faço tudo mais

fácil, não é? Vocês ouviram? Ele não agüentaria sem nós. (Violento e muito próximo a Maximilian) Você mente! Você agüentaria sua mãe apodrecendo na tua frente, e você agüentaria sozinho. (Ri) Não agüentaria... (Voz muito alta, angustiada) Sofre um pouco, homem! (Mais brando) Olha pra mim, Maximilian, vamos olha. (Muito emocionado) Me abraça, abraça este corpo que apodrece, porque o meu corpo... o meu corpo apodrece. (Maximilian tenta abraçá-lo)

Mas a Mulher se coloca entre os dois. Mulher (Muito comovida) Eu te abraço, eu posso te abraçar. Carcereiro (Recuando) Você não pega em mim. Não pega em mim. Maximilian Mas por quê? Por quê? Ela é obrigada a fazer aquele serviç o. (Voz

crescente) Não é fácil, não é fácil, ela é obrigada! Carcereiro (Interrompendo repugnado) Além daquele serviço ela dá de comer às

aves... ela deve passar as noites com as aves. Mulher Eu? Você quer dizer que eu... (Desesperada) isso eu nunca vou

fazer... você me acredita Maximilian? Eu não faço nada com as aves, as aves são eles, não é? Com as aves não... eu nunca fiz nada com as aves.

Carcereiro (Com sarcasmo) Você vai fazer, você fará, pra viver, pra viver. Mulher (Desesperada) Nunca. Nunca!

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Maximilian (Lentamente como se falasse consigo mesmo, como se orasse) "Até o

presente momento sofremos fome e sede e estamos nus e recebemos bofetadas e somos injuriados e bendizemos e somos perseguidos e rogamos... até o presente momento somos o lixo deste mundo, a escória de todos."

Carcereiro (Categórico) Você não, você não é um dos nossos. Estudante Ele é igual a mim. Tanto quanto tudo em mim. Joalheiro (Para o estudante) Você ainda não olhou direito para ele, olha para

ele e olha pra você agora, e pra mim... ratos... nós... ratos num canto. Maximilian (Continua no tom anterior) "E todos comeram uma mesma comida... e

todos beberam uma mesma bebida." Estudante Minha sede... Maximilian (Interrompe, voz alta) Minha, tua, nossa sede. Joalheiro Nossa sede... nossa? Estudante (Em estado de torpor) Amor, amor. Mulher (Para o carcereiro, sôfrega) Pega na minha mão. Seja bom, pega. Se

você pegar na minha mão... Carcereiro (Impotente) Eu te salvo do que, mulher? Mulher De mim, de mim mesma, do meu nojo. Carcereiro (Com alguma ironia) Eu posso te olhar. Isso não te salva? Maximilian (Brando, no tom anterior) "O olho não pode dizer à mão: não tenho

necessidade de ti. Nem a cabeça pode dizer aos pés: não tenho necessidade de vós."

Carcereiro (Com dores violentas) Agora começou. Mulher (Com sofreguidão) A dor? O que é que começou? A dor?

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Carcereiro O medo... a dor... é a mesma coisa. (Encolhe -se, geme, a Mulher

aproxima-se muito) Mulher Respira junto comigo... assim, assim devagar. Carcereiro (Ofegante) Maximilian... (O padre aproxima-se muito)... eu estou

sofrendo... sofre comigo, eu quero ver você sofrendo comigo, você vai gritar quando e (Grita) quando eu gritar... (Desesperado)... eu vou gritar Maximilian, eu vou gritar agora. (Grita) Eu estou gritando Maximilian. (Grita. O padre e a Mulher gritam junto com ele)

Pausa. Fora ouvem-se vozes de vários SS. Deve ficar claro para o público que estão estuprando uma mulher que está morrendo. frases assim, por exemplo: - assim - segura mais firme - abre mais - a cadela não abre - merda - isso, mete agora - mas vai homem - vai de uma vez - merda, ela está morrendo - depressa, depressa (Risadas, vozes, ruídos) - tira ela daí agora (Ruídos) Pausa longa. Joalheiro (Lento para o estudante) Você conhece alguma coisa mais forte do

que a pedra? Algum...algumas pedras não são muito resistentes, vocês sabiam?

Estudante Quais? Joalheiro A... a esmeralda, a esmeralda não é muito resistente.

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Estudante (Torpor) A esmeralda... o ferro é muito resistente, não é? Joalheiro (Tom delirante) Eu digo as pedras... as pedras, você está me

ouvindo? As pedras, o ferro não é nada.. eu quero dizer... eu não conheço nenhum trabalho no ferro.

Estudante (Sôfrego) Eu fiz um dia um trabalho, lá na escola, a necessidade de

todos compreenderem a importância das relações (Ri) sexuais. Era importante ter saúde, filhos fortes, sabe? Filhos de boa índole, intelectualmente, moralmente, eu fiz esse trabalho, acharam muito bom... filhos resistentes (Ri) Filhos resistentes (Tom histérico) Filhos... filhos da puta, assassinos...

Maximilian (Interrompe, segura os pulsos do estudante. Voz firme) Agora nós

poderíamos todos juntos pedir uma coisa a Deus... pedir que Ele nos dê agora o seu grande amor. Agora. (Pausa. Aproximando-se do Carcereiro) Você está um pouco melhor? Você está me ouvindo?

Mulher Ele está melhor, sim. (Para o Carcereiro) Agora está passando, não

é? Carcereiro (Com ironia) Eu estou ouvindo. Então nós vamos pedir a Deus o que

Maximilian? Só amor, só isso? Maximilian E misericórdia. Carcereiro (Agressivo) E coragem Maximilian, coragem, ou você não precisa? Maximilian E coragem. Carcereiro (Aliviado porque conseguiu fazer com que Maximilian pedisse

coragem pela primeira vez) Enfim...enfim!... (Muito calmo) Eu estou melhor... eu estou melhor.

Maximilian, a Mulher e o Carcereiro estão todos juntos e entende-se apenas uma fala monocórdica de Maximilian, como uma longa oração. Paralelamente, há um dialogo entre o estudante e o joalheiro. Estudante (Voz baixa, delicada) Os insetos têm uma reprodução imaculada,

você sabia? Os animais inferiores, como os insetos, têm uma reprodução imaculada...

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Joalheiro (Debilmente) Limpa? Limpa, você quer dizer? Estudante Imaculada. Joalheiro E as serpentes? Estudante (Sorrindo debilmente) O mal e o bem se entrelaçam como os ramos

das árvores. Joalheiro (Torpor) Imaculada, imaculada. Pausa. Estudante Você tem mulher? Joalheiro Tinha. Agora não sei mais. Estudante E os filhos? Joalheiro Ela dizia que uma alma masculina tinha entrado no seu corpo. Estudante Sua mulher dizia isso? Joalheiro E quando uma alma masculina entra no corpo de uma mulher... ela

nunca tem filhos, você sabia? Estudante Não. Joalheiro Eu nunca mais poderia tocar em nenhum corpo. Estudante E nas pedras? Você tocaria nas pedras? Joalheiro Olha este chão, olha. É neste chão que nós estamos morrendo, não

é? Estudante É, neste chão. Joalheiro Nós ficamos dóceis diante da morte, não é? Estudante Sim.

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Joalheiro Você não quer mais que eu fale? Estudante Sim meu amigo, fala, fala. Joalheiro (Tensão crescente) Eles vão se lembrar. Daqui a vinte anos eles vão

se lembrar de nós. Cada um, a cada dia, a cada noite, vai se lembrar de nós. (Estudante começa a sorrir) Você está sorrindo?

Estudante Estou sorrindo sim. Joalheiro (Desesperado) Você não acredita? (Pausa) Você não acredita? Estudante No começo... eles se lembrarão. Depois... sabe, há uma coisa no

homem que faz com que ele se esqueça de tudo... (Pausa. Lentamente) O homem é... (voz baixa) voraz... voraz.

Joalheiro (Grita) Adonai! Claríssima morada! Estudante (Desesperado) Maximilian! Diz pra ele que todos vão se lembrar da

gente, diz, eu não posso... não posso. Eles vão dizer que nós, que nós somos uma porca invenção.

Maximilian ao lado do Joalheiro. Toca-o. Joalheiro (Sôfrego) Será possível? É verdade, Maximilian? Me diz se é

verdade? Maximilian (Com firmeza) Não, não é. Joalheiro (Enfraquecido, mas desesperado) Eu estou aqui, não é? Não é

verdade? Você me vê, não é? Maximilian (Comovido, começando a sorrir) Eu não só te vejo... sabe, eu... eu

sou você. Você me entende? Eu sou você. Estudante Eu sou você. Joalheiro Eu sou você.

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Mulher Eu sou você. Pausa. Estudante Sabem, havia um rei que tinha três filhos. Joalheiro (Debilmente) Os reis existem? Mulher E deu a cada filho uma coroa, não é isso? (Referindo-se ao

Carcereiro) Ele está dormindo. (A Mulher aproxima-se do Estudante)

Estudante Como é que você sabe? Mulher Do rei? É uma estória antiga... e depois o rei... deu um nome a essas

três coroas, não é isso? Estudante É, é assim, alef, iod, já não me lembro. Mulher (Lentamente, sorrindo no final da frase) Mas o mais importante é o

fim... quando Deus se mostrou a Israel. Estudante Perto do mar, não foi? Maximilian (Como em sonho) E quando Deus se mostrou a Israel perto do mar,

o rei fez uma só coroa e deu-lhe um nome. Estudante (Veemente) Você também sabe! E eu me lembro. Eu me lembro

desse nome. Mulher Penitência. Penitência. Entreolham-se e sorriem. Estudante (Para a Mulher começando a delirar) Eu nunca teria pensado. Mulher (Interrompe) No quê? Estudante Como você se parece com ela.

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Mulher Ela? Ah, já sei. Uma que você amou. Ela era assim? (Passa as mãos sobre o rosto) Como eu?

Estudante (Muito lentamente) Assim. Exatamente assim. Nós saíamos juntos...

depois das ratazanas. Mulher (Sem compreender) As ratazanas? Estudante (Delirando) As ratazanas... o laboratório... era impossível deixar de

ter piedade... ela tinha piedade.. (Voz alta) mas a piedade é um grande sono! Os que têm piedade adormecem.

O Carcereiro diz palavras incompreensíveis. Mulher (Referindo-se ao Carcereiro) Ele está dormindo, ele tem pena de si

mesmo. (Para o Estudante) Ela era assim, como eu? Estudante (Tocando na Mulher) Fique perto de mim...mais perto. Alguns

disseram que o homem se humaniza pelo trabalho em comum. (Ri) O teu cabelo, a tua cabeça... a zona (Destaca as sílabas) pré-frontal, você sabia? (Destaca as sílabas) A zona pré-frontal é o cérebro do coração, do ideal, da relação com Deus... você sabia?

Carcereiro (Grita) Maximilian! Vem cuidar da minha alma. Os porcos têm alma. Estudante Ela usava uma fivela presa na nuca. Mulher (Interrompe) Quando eu era pequena eu também usava. Têm umas

que são grandes, douradas... e outras que são escuras. Estudante (Interrompendo sorrindo) Clara. Uma fivela clara. Ela dizia que as

ratazanas... Mulher (Interrompe dócil) Ela puxava o cabelo para trás, assim? Estudante (Voz muita alta)... que as ratazanas tinham alma. Você acredita? (Ri)

Você acredita? Joalheiro (Sofrido) Eles vão se lembrar até... (Geme) Estudante Amor, amor, você tem piedade?

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Mulher Muita, muita... Estudante (É evidente que ele confunde a Mulher com a namorada. Apreensivo,

tom crescente) mas você não devia ter.., olha, elas não sentem nada, as ratazanas não sentem nada, você não vai poder estudar, se pensar assim.

Mulher (Chorando) Elas não sentem, eu compreendo, nada. Carcereiro (Em grande tensão) Maximilian! Você ainda não me disse... você só

me falou de uma noite infinita, não é isso? (Voz muito alta) Mas isso não basta para quem vai morrer, isso não basta.

Joalheiro (Delirando) Que brilho! É a mais bonita que eu já vi! É toda feita de

sangue. Maximilian (Para o Carcereiro) Eu prometo que meu Deus se dará a você se

você se der a ele. Estudante (Para a Mulher, muito emocionado, em estado de semiconsciência,

lembrando-se de frases que alguém dissera a ele) É como uma oração... No laboratório teu trabalho deve ser como uma oração, você compreende? Não espere respostas imediatas, entendeu? Olha, você já não é mais criança... Eu preciso te falar bem claro, não espera resposta... entrega-te... como uma oração.

Maximilian (Para o Carcereiro) É difícil de dizer, escuta... Carcereiro (Interrompe. Transtornado) O teu Deus... é um lobo, todo feito de

sangue... um lobo. Maximilian (Tom muito apaixonado. Crescente) O meu Deus é amante, é como

um fogo! É como um grande fogo. Eu sou o alimento do meu Deus. Carcereiro (Colérico) Então é como eu disse, um lobo. Maximilian (Muito veemente) Mas não assim tão fácil, olha, foi preciso que

primeiro eu o devorasse para que depois pouco a pouco ele se alimentasse de mim. Eu também, eu também sou o lobo desse Deus.

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Carcereiro (Atormentado) Lobos... lobos... Maximilian (Delicado) Ele ficará dentro do teu peito com o nome que você

quiser. Qualquer nome. Estudante (Para a Mulher) A tua mão, a tua mão. (Recobrando a consciência)

Meu Deus, mas é você? (Segura as mãos da Mulher, examina-as) Mas são iguais, são iguais.

Mulher Assim? Estudante Exatamente assim. Joalheiro (Num grito) Sustenta-me Adonai, para que o teu sangue e o meu

sejam apenas um. Maximilian aproxima-se do joalheiro. Diz algumas palavras: "Meu amigo, meu bom amigo!"

Maximilian tenta rezar. Carcereiro (Para Maximilian, lentamente) Então esse amor não é nada suave

como eu ouvia dizer... o teu Deus não é nada suave. Maximilian (Desesperado) Mas para nós, eu não te disse? Para nós foi

predileção, você compreendeu? Predileção! Amor sem limite. (Para o joalheiro) Eles vão se lembrar, fique certo de que eles vão se lembrar.

Ruídos na porta. Abrem-na. Entram o SS e o ajudante. SS (Com as mãos para trás, escondendo alguma coisa) Que paz! Que

tranqüilidade. Que silêncio, não acha Hans? (Para a Mulher) Prestou algum serviço?

Mulher (Amedrontada) Não sei, não sei. SS (Aproximando-se de Maximilian, que o encara) Ainda consegue

levantar os olhos, padre Maximilian? Escute... ainda podemos trocar o 5659 por você. Quer? (Pausa) Não quer? (Pausa) Eu já sabia. Bem. (Mostra um pacote a Maximilian) Sabe o que é isso,

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Maximilian? É um presente para você. Vamos, abra, não tenha medo. (Pausa)

Lentamente Maximilian começa a desembrulhar o pacote. Maximilian (Ainda desembrulhando o pacote) Para mim? SS É, para você, você vai gostar. Maximilian (Acabando de desembrulhar. Vê-se que é uma coroa de arame

farpado) Mas...eu não sou digno. Não, eu não sou digno. SS (Suavemente. Tenta colocar a coroa em cada um) Ah, que pena,

Hans, ele não quer o nosso presente. Pena... Pena, pena... Vamos ver... (Para o joalheiro) Então talvez para você. Imagine que é uma coroa de ouro e de pedras preciosas. (Ri para o carcereiro) Ou você que parece estar mais vivo. Pega, não quer? (Para o estudante) E você, criança? As coroas ficam bem nas crianças. Ninguém quer? Ela vai ficar aqui, bem no centro, e vocês... Vamos ver uma coisa, façam um círculo, vamos Hans, ajuda, vamos fazer um círculo, assim, assim. (Hans, orientado pelo SS, movimenta os prisioneiros, menos a Mulher, colocando-os em círculo com a coroa no centro. Hans tem dificuldade para formar o círculo, porque todos estão terrivelmente debilitados. É difícil mantê-los em pé.) Um pouco mais pra cá, mais pra lá agora, muito bem, muito bem, pena que não é possível arranjar umas belas cadeiras com pequenas placas... de prata... onde estariam gravados o nome de vocês. Seria um belo ritual, hein Hans? Ah, agora está bem, um círculo perfeito... muito bonito... (Afasta-se para ver o efeito. Para a Mulher com violência) E você sai, sai, vai andando.

Estudante (Para a mulher, urrando) Voltaaaaa!!! Continua gritando "volta" enquanto o SS agride-o várias vezes, tentando fazê-lo calar. Durante a agressão do SS Maximilian tenta interferir mas recebe golpes violentos. A Mulher segura com rapidez e desespero as mãos de todos, o estudante tenta segurar a Mulher mas Hans afasta-a violentamente, derrubando-a. A Mulher abraça as pernas de Maximilian mas é arrastada para fora da cela.

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SS Elas se acostumam com tudo essas porcas. Com tudo. (Pausa. Detém-se junto à porta. Fala suavemente) Daqui por diante, senhores, (Lentamente) uma santa madrugada, um santo dia, uma santa madrugada, um santo dia, como uma roda, senhores, uma roda perfeita. (Faz com uma só mão um movimento circular cada vez mais rápido) Perfeita, infinita, infinita. (Riso discreto. Sai abruptamente.)

FIM

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Hilda Hilst

O V E R D U G O (Peça em dois atos) 1969

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PERSONAGENS O verdugo Homem de 50 anos A mulher do verdugo 45 anos, forte. Tom quase sempre amaro, ríspido. Filho Jovem. Filha 28 anos. Noivo da filha Aspecto pusilânime, tem sempre um sorriso idiota. Carcereiro ??? Juiz velho 50 anos. Juiz jovem 30 anos. Cidadãos Podem ser muitos, mas os que falam são é número

de seis. O homem Deve ser alto. Os dois homens coiotes Devem ser altos.

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1o ATO CENÁRIO: Casa modesta, mas decente. Sala pequena. Mesa rústica. Dois bancos compridos junto à mesa. Um velho sofá. Uma velha poltrona. Uma porta de entrada. Outra porta dando para o quarto. Paredes brancas. Dois pequenos lampiões. Aspecto geral muito limpo. Nessa sala não deve haver mais nada, nada que identifique essa família particularmente. Morem numa vila do interior, em algum lugar triste do mundo. Mesa posta. O verdugo, a mulher, a filha e o filho estão sentados à mesma. A mulher deve estar servindo sopa ao marido. É noite. Mulher (Ríspida. Para o verdugo) Come, come, durante a comida pelo

menos você deve se esquecer dessas coisas. Que te importa se o homem tem boa cara ou não? É apenas mais um para o repasto da terra. (Pausa)

Verdugo (Manso) Você não compreende. Mulher Não compreende, compreendo muito bem, mas que me importa?

Não sou eu que faço as leis. Estou limpa. E você também está limpo. (Pausa. Começam a tomar sopa)

Filho O pai sabe que é imundície tocar naquela corda que vai matar o

homem. Filha Cala a boca você. Filho (Exaltado) Por quê? Por que é que eu tenho de calar? Você pensa

apenas em você. E se o pai vai ganhar dinheiro por fora desta vez é porque é mais difícil matar aquele homem do que qualquer outro.

Verdugo Ninguém falou em dinheiro ainda. Filho (Dócil) Mas vão falar, vão falar. Espera, pai. (Pausa) O pai sabe que

o homem dizia coisas certas. O homem é bom.

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Filha Bom, bom (Com desprezo) Ha, ha, ele pôs fogo em todo o mundo. Fogo, só isso.

Filho Ele é bom. Mulher Bondade é dar dinheiro para encher a barriga. Ele te deu dinheiro,

por acaso? Filho Ele me deu outra coisa. Filha (Com ironia) E que coisa foi essa? Filho Você não compreende. Nem adianta falar. Mulher (Para o filho) A sua irmã é uma estúpida para não compreender o que

você fala? Deixa de ser bobo, menino. Começou a estudar outro dia mesmo.

Filho Mãe, o pai sabe que é imundície tocar naquele homem. Mulher Imundície ou não, não me importa nada. Come. (Pausa) A mim me

importa encher a barriga de vocês. Filho O homem falou que encher a barriga é importante, mas que não é

tudo. Mulher Não? Não? Quem sabe se ele quer encher (Põe a barriga para frente

e contorna-a com as duas mãos) a barriga das mulheres, hein? É isso que o homem também quer?

Filho (Manso) Pára, mãe. Ninguém aqui na vila quer que o homem morra, a

senhora sabe. Mulher Ninguém aqui na vila... E quem são esses coitados? Cuida da tua

vida, menino. Verdugo Deixa o rapaz. Mulher Você está sempre do lado dele. Verdugo (Manso) Não é isso, não é isso.

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Filha É sim, meu pai. O senhor o defende sempre. Por quê? Ele é melhor

do que nós? Eu também não sou sua filha? Verdugo Me deixa comer. Mulher É, nessas horas ele só quer comer. Verdugo O??? merda, mulher! A minha cabeça agüenta algum tempo, depois

eu me esqueço, ouviu? Me esqueço que sou um homem e viro... chega! (Pausa. Brando) O homem tem uma cara impressionante. (Pausa)

Filho Como ele é bem de perto, pai? (Pausa) Fala. Verdugo O homem tem um olhar... um olhar... honesto. Mulher Honesto, ha! Verdugo Limpo, limpo. Limpo por dentro. Mulher (Com desprezo) Ah, isso! Filha Por dentro ninguém sabe como ele é. Ninguém sabe como ninguém é

por dentro. Filho Eu sei como você é por dentro. Filha Ah, sabe? Fala, então. Filho Por dentro você não tem nada. É oca. Verdugo (Manso) Chega. Filha (Para o irmão) Mas vou deixar de ser. Vou casar, vou ter filhos... Filho (Interrompe e refere-se ao noivo da irmã) Com aquele? (Faz caras de

deprezo) Filha (Exaltada) Com aquele, sim. E vou deixar de ver a tua cara. Isso já

será um grande consolo.

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Filho Você só pode se casar se o pai ganhar esse dinheiro. Filha A morte do homem é daqui a dois dias. Filho O pai não vai fazer o serviço. Mulher Cala, menino. Cala. (Pausa) Come. (Pausa) Filho Hein, pai? Verdugo (Manso) Não sei, meu filho, não sei. Mulher (Para o filho) O seu pai precisa descansar. E vai aceitar o serviço,

sim. (Para o verdugo, branda) Não é? Verdugo (Seco) Não sei. Mulher Trate de ficar sabendo logo. Não é o primeiro nas tuas mãos. Verdugo (Seco) Ele é diferente. Mulher Diferente, limpo, uf! É igual aos outros. Filho Ninguém tem o mesmo rosto. Mulher Eu quero dizer que ele é igual a todos os outros filhos da puta que

morreram porque a lei mandou. (Para o verdugo, sorrindo com ironia) Você se lembra daquele que parecia um anjinho? Hein? Lembra? Todos diziam...

Verdugo (Interrompe) Eu não. Mulher ...mas os outros diziam: ele tem cara de anjo. E vocês se lembram do

que ele fez? (Para o verdugo e para o filho) Se lembram? Conta, filha, porque aquele outro anjinho foi condenado.

Filha (Sorrindo) Ele matou aqueles dois menininhos. Mulher (Irônica) Só isso?

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Filha (Sorrindo) Não. Primeiro ele queimou as plantas dos pés e as mãozinhas dos menininhos.

Mulher E depois? Verdugo (Seco) Já sabemos, chega. Mulher (Para o verdugo) Não, espera. (Para a filha) E por que ele queimou

as plantas dos pés e as mãozinhas dos meninos? Hein, filha? Filha (Sorrindo) Porque assim os menininhos não podiam ficar em pé e nem

podiam se defender com as mãozinhas. Mulher Para fazer aquela porcaria, não é? Então, e muita gente dizia que ele

parecia um anjinho. Verdugo Eu não. Filho Mas esse é diferente, não é nada disso, mãe. Esse só falou. Mulher Deve ter falado besteira. Filho Ele falava de Deus, também. Mulher Deus, Deus, onde é que está esse Deus? (Para o filho) Não foi você

mesmo que andou lendo que naquele lugar, lá longe... Filho (Interrompe) Na Índia. Mulher Sei lá, na Índia, onde for, as criancinhas de seis anos vão para o

puteiro? Deus, Deus... e depois não foi você mesmo quem disse que se elas não fossem para os puteiros aos seis anos, elas morreriam de qualquer jeito, de fome? Hein?

Filho Foi, sim, mãe. Fui eu mesmo. Mulher Então deixa o teu pai fazer o serviço. Se Deus não consegue ajudar

aquelas criancinhas, você acha que esse homem é que vai nos ajudar? (Pausa)

Filho (Para o pai) O pai não quer fazer, não é?

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Mulher Essa é a profissão de teu pai. Filho (Olhando para o pai) Verdugo. Mulher Verdugo, sim. Uma profissão como qualquer outra. (Pausa) Verdugo Mas esse homem eu não quero matar, mulher. Mulher (Impaciente) Mas não é você quem vai matar. É a lei que mata. Você

é o único aqui na vila que pode fazer o serviço. Ninguém mais. Ora, que besteira.

Verdugo Mas a gente da vila não quer que o homem morra. O povo... Mulher (Interrompe) Deixa disso, o povo é filho da puta, eles fazem assim só

pra não dar o gosto pra aqueles juízes. Filho Os juízes estavam cansados. Você viu, mãe? Eles quase se deitavam

sobre a mesa. O rosto dos dois estava branco. E as mãos também. Eles suavam.

Mulher Pudera. Com aquela roupa negra. Filho Eles suavam de medo. Filha Medo! Juiz ???algum tem medo? Filho Um deles tinha os olhos vermelhos. Filha Estava resfriado. Filho Resfriado nada. Parecia até que tinha chorado. Filha Um juiz chorando! Que imaginação! Filho (Querendo terminar a discussão) Tá bem. Devia ser o calor. Filha Estava frio. Filho Frio! Você está louca.

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Filha Eu sentia frio. Filho Você sentia era medo. Filha Medo de quê? Filho Medo do homem. Filha Mas você é besta mesmo, não? Por que eu havia de sentir medo

daquele homem? O homem não é nada meu, é só um homem que falava, falava... (Pausa) Idiota.

Filho O homem é bom de perto, pai? Verdugo (Manso) Não sei, meu filho, não sei. (Pausa) É muito difícil para mim.

É assim como se eu tivesse que cortar uma árvore, você entende? Eu nunca derrubei uma árvore, eu não saberia, é difícil, não é o meu ofício.

Mulher Uma árvore... Você cortou cabeças, enforca gente e fala de uma

árvore. Parece que está louco. Verdugo É diferente, mulher. É diferente. Esse homem é como se fosse uma

árvore para mim. (Pausa) Filho Que cara ele tem bem de perto, pai? Mulher A mesma cara de longe. (Pausa) Filho (Para o pai) E as mãos? Eram bonitas de longe. Filha (Com desprezo) Bonitas! Eram mãos. Filho (Maravilhado) Grandes. (Pausa) Verdugo De perto, meu filho... ele parece o mar. Você olha, olha e não sabe

direito pra onde olhar. Ele parece que tem vários rostos. Mulher Todo mundo só tem um rosto.

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Verdugo (Para o filho) ...de repente, ele olha firme, você sabe? Assim como se eu te atravessasse. É muito difícil olhar para ele quando ele olha assim. E depois... ele também pode olhar de m jeito... Você se lembra daquele cavalo que um dia te seguiu?

Filha (Rindo) Quem é que não se lembra? O cavalo não agüentava subir

aquela ladeira. O dono do cavalo dava umas pauladas no focinho do coitado. (Ri. Para o irmão) Aí você gritou: se você é tão macho para bater em mim como bate nesse cavalo, eu corto o meu... (Ri) e pulou em cima do homem como um leão. O coitado fugiu feito doido. E o cavalo só podia te seguir, lógico. (Ri) Até o cavalo compreendeu. Foi engraçado aquele dia. (Todos riem. Pausa)

Verdugo (Para o filho) Mas você se lembra dos olhos do cavalo? Filho Eu me lembro, sim, pai, eu me lembro. (Pausa) Verdugo Pois o homem tem às vezes aquele olho. Filho Então ele é bom, pai. Mulher Mas o que adianta vocês ficarem falando que ele é bom, se ele tem os

olhos do cavalo ou não? (Para o filho) O homem tem de morrer e é seu pai quem vai fazer o serviço. E vai ganhar bem desta vez. Vamos começar outra vida, tenho certeza. (Batem na porta)

Mulher (Para a filha) É o teu noivo. Abre. (A filha vai até a porta. Abre e

fecha rapidamente. Entra o noivo) Filha (Para o noivo, meiga) Você chegou tarde hoje. Noivo (Para todos, sorriso idiota) Boa noite. Verdugo (Seco) Boa noite. Mulher (Amável) Boa noite, meu filho. Senta. Já jantou hoje? (O noivo faz

uma cara apreensiva) Mas que cara! Noivo (Para o verdugo) Tem gente aí querendo falar com o senhor. Verdugo Que gente?

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Noivo (Sorriso idiota) O homem... de preto. Mulher (Apreensiva) Os juízes? Noivo É. Filha (Para o noivo) E você fechou a porta? Noivo Você é que fechou. Mulher E a casa desse jeito. Nem tirei a mesma. (Tenta tirar as coisas de

cima da mesa) Verdugo Manda entrar, mulher, vai. Eles sabem que a casa é assim mesmo. (A

mulher vai abrir a porta) Mulher Entrem, por favor, Excelências. (Os juízes entram) Não esperávamos,

está tudo ainda... (Mostra a mesa em desordem) Juízes (Interrompendo, para todos) Boa noite. Filho e noivo Boa noite. Verdugo (Seco) Boa noite. (O filho do verdugo cumprimenta apenas com a

cabeça) Juiz velho Fiquem tranqüilos. Nós só viemos para combinar. Mulher (Servil) Por favor, sentem, Excelências, por favor. Juízes (Sentando-se) Obrigado. (Pausa longa) Juiz jovem (Para a mulher) A moça vai casar, não é? Mulher Esperamos, mas (Apontando para o noivo) ele está sem serviço.

(Pausa longa) Juiz jovem Tudo se arruma, não é? Mulher Seria um presente do céu, Excelência.

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Juiz jovem Pois é. (Pausa longa) Juiz velho Vão melhorar de vida. Mulher Se Deus quiser, Excelência. Juiz velho Parece que Deus quer. (Pausa) Juiz jovem (Para a mulher) Mas... Mulher (Interrompe) Posso oferecer alguma coisa? Juiz jovem Não, não, temos um pouco de pressa. Ainda não fomos para nossas

casas. Nem pudemos tirar essa roupa. (Olha para a toga) Filha (Fazendo a mulherzinha para o juiz jovem) É bonita essa roupa. Juiz jovem É pesada. Filha Mas é bonita. Juiz velho (Para a filha) Então vai-se casar. Filha Acho que sim (Olha para o noivo), não é? (Olha para o juiz jovem.

Sorri. Os juízes sorriem. Pausa) Juiz jovem (Para o verdugo) Bem, o senhor sabe como é... o homem... tem de

morrer. Mulher Sabemos, lógico. Tem de morrer. Juiz jovem Não há outro jeito. Juiz velho (Para o verdugo) Ele falou demais. O senhor compreende? E boca

deve ter uma medida. Juiz jovem Certas palavras não devem ser ditas. Mulher Ele falava muito, é verdade.

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Noivo (Sorriso idiota) Ele falava coisas sem sentido. Juiz jovem Confundiu todo mundo. Filha (Sorrindo para o juiz jovem) Eu não entendia bem o que ele falava. Juiz velho Nem era para entender, minha filha. Ninguém entendia. Filha (Olhando para o juiz jovem. Sorrindo) E depois sempre havia tanta

gente... Eu não conseguia chegar muito perto. Mulher (Para os juízes) A gente é curiosa. Só ia pra ver, ver como era, os

senhores sabem. Juiz jovem Compreendo. É a novidade. (Pausa) Noivo (Sorriso idiota) Aqui a gente não tem nada pra ver. Juiz velho Claro. (Pausa) Juiz jovem (Para o verdugo) O senhor já está preparando???, então. Mulher Ah, está sim, ele não precisa se preparar muito. (Sorri) É o ofício

dele, de sempre (Para o marido), não é? Filho O pai não respondeu. Mulher Vai saindo, menino. Você não tem a escola? Filho Hoje eu não vou à escola. Mulher Imagine, vai de qualquer jeito, vamos. Juiz jovem Espera um pouco, senhora. (Olha para o rapaz) O moço quer dizer

alguma coisa? Mulher Ele não quer dizer nada, Excelência. Ele é um menino, só isso. (Para

o filho) Vai. Juiz jovem Não. Ele quer dizer alguma coisa.

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Juiz velho Pode falar, moço. O que é? (Pausa) Hein? (Pausa) Filho O homem é bom. Mulher Cala a boca. Juiz jovem Deixa, senhora. Juiz velho (Para o filho) É bom? Por quê? (Pausa) Filho Ele nunca fez nada de mal. Juiz jovem O homem é esperto, moço. Parece bom, mas não é. Juiz velho (Para o filho) Você acha que a lei se enganou, meu filho? Mulher Por favor, excelências, o meu menino não sabe nada. Começou a

estudar há pouco tempo. Juiz velho (Insistindo) Hein, moço? A lei se enganou? (Pausa) Filho Eu disse que o homem é bom. Juiz jovem Você acha então que é bondade falar o que ele fala? Noivo (O mesmo sorriso) O meu colega do meu emprego antigo morreu

naquele dia, quando o homem falou. Juiz velho (Para o filho) Então, meu filho. Filho (Para o noivo) Morreu porque mataram. Não foi o homem quem

matou. Juiz velho (Para o filho) Morreu, meu filho, porque o homem enlouqueceu as

gentes. Agitou. Filho Ele falou de Deus também. Juiz jovem Deus não é alguém que vive na boca desse homem. Deus está dentro

do nosso coração. Não é preciso falar Dele a toda hora. (Pausa)

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Juiz velho (Para o verdugo) Então... o senhor está preparando? Mulher Claro que está, Excelência. Juiz velho Mas ele não responde. Mulher (Para o verdugo) Fala, homem, eles não podem perder tempo. (Para

os juízes) Ele é um bom profissional. Nunca precisou de ajudante. A mão dele é firma, grande (Procura mostrar a mão do verdugo para os juízes. O verdugo encolhe as mãos)

Verdugo (Para a mulher, seco) Deixa pra lá. Mulher Mas o que é que tem mostrar a tua mão para as Excelências? (Insiste,

pega nas mãos do verdugo) Estica, estica assim. Verdugo (Impaciente) Me larga, mulher. Mulher (Irritada) Mas o que é? O que é? Juiz jovem (Para a mulher) Nós sabemos que ele é um bom profissional. Juiz velho (Para o verdugo) Não se incomode. (Pausa longa. Silêncio

constrangedor. Todos olham fixamente para o verdugo, e de repente o juiz parece que vai falar, mas o verdugo o interrompe)

Verdugo (Objetivo) Eu não estou preparado. (Os juízes entreolham-se.

Examinam atentamente o verdugo) Juiz jovem Mas não é essa a sua profissão? Juiz velho Não é o seu dever? Cumprir a lei? Filha (Em tensão) O pai está cansado, é isso. Passou o dia inteiro lá, vendo

o peso do homem, preparando tudo, os senhores sabem. Juiz jovem (Para a filha) Mas é preciso saber se o seu pai está preparado para a

execução. Mulher (Para o verdugo) Fala!

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Filho O pai não quer. Verdugo (Cabisbaixo) Não é bem assim... não é... é que... eu não me sinto

capaz. Juiz velho Mas isso é para nós um terrível contratempo. O senhor sabe que é o

único na vila credenciado para esse serviço. Verdugo Eu sei. (Pausa) Mulher (Para o verdugo) Fala de uma vez o que é, homem. (Pausa) Verdugo (Para os juízes) Eu acho que o homem não merece, os senhores

entendem? Juiz jovem Não merece o quê? (Pausa) Verdugo A morte. O homem não merece a morte. Juiz velho Mas isso já foi decidido. Ele foi condenado. Juiz jovem (Para todos) Os senhores viram que fizemos todo o possível. Noivo E o impossível, Excelências. Vamos muito bem. Juiz jovem (Para todos) Ele teve todos os direitos. Fizemos tudo. Juiz velho (Para todos) Nada lhe foi negado. Então... (Pausa) Verdugo Mas ninguém ficou satisfeito. A gente toda da vila... Juiz jovem (Interrompe) Mas não é a vila que julga o homem. Pra isso nós

existimos. Já dissemos, foi tudo dentro da lei. Juiz velho (Para o verdugo) Procure entender... escute: o senhor terá... regalias. Verdugo Que regalias? Juiz velho Terá auxílio. Verdugo Dinheiro?

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Juiz velho Um auxílio. Verdugo Mas nunca foi preciso qualquer coisa além daquilo que eu ganho,

para fazer o meu serviço. Juiz jovem Mas... como é um caso difícil, nós entendemos que será justo ajudar

o senhor. Verdugo Difícil? Noivo (Sempre com o mesmo sorriso alvar) A vida é difícil para todos, não?

Eu, por exemplo... Juiz jovem (Para o verdugo) Difícil, sim, porque as pessoas não querem

entender. Verdugo Mas eu também não posso entender. Filha (Em tensão) Não faz assim, pai. (Pausa) Mulher (Levanta-se, objetiva) Quanto é o auxílio, Excelências? (Pausa) Juiz jovem É... de alguns milhões. Mulher (Surpresa) Alguns milhões? Juiz velho Doze... treze. Filha Meu Deus! (Sorrindo) Meu Deus! (Pausa) Juiz velho (Para o casal de noivos) Vocês pensam fazer uma casa aqui na vila? Filha (Sorrindo) Nem sei. (Olhando para o noivo e para o juiz jovem) Nem

sei. Juiz jovem (Sorrindo para a filha) Eu tenho alguns terrenos muito bons. Junto à

praça. (Olha para o noivo também) Se quiserem, podem falar comigo depois de amanhã. (Olha para a filha. Sorri mais aberto) Podemos combinar.

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Noivo (Para a noiva) Combina sim. (Para o juiz) Ela vai, ela vai. Filha (Para o juiz. Sorri) Depois de amanhã. (Para a mãe. Contente) Mãe,

a gente vai ter tudo. Filho (Seco) Depende do pai. Ele ainda não respondeu. Todos olham para

o verdugo. (Pausa tensa) Mulher (Para o verdugo) Você não vai fazer? (Pausa) Hein? (Pausa) Pois eu

faço. Verdugo (Encarando-a) Faz o que, mulher? Mulher (Para o verdugo, encarando-o) Se você não fizer o que eles mandam,

eu faço. Filho (Enojado) A mão faz o serviço do pai? Vai matar o homem? Mulher Matar o homem... Que jeito de falar. Eu quero que as Excelências

saibam que eu posso cumprir a lei. Filho (Enojado) Mãe, você está louca. Mulher (Irada) Eu posso fazer o serviço que o seu pai faz, mas que agora por

estupidez não quer fazer. Ninguém vai desconfiar de nada. Eu sou do tamanho dele (Encosta-se ao verdugo), olhem. Eu tem o capuz. (Todos estão surpresos)

Noivo A senhora não vai saber... vai? Verdugo (Ainda sem acreditar) Eu é que sou o verdugo, mulher. Mulher Qualquer um pode ser verdugo. Verdugo (Lentamente) Fique quieta. Mulher (Para os juízes) Os senhores não me deixam fazer o serviço? (Os

juízes abaixam as cabeças. Pausa longa) Mulher (Para o verdugo) Claro, homem eles deixam. (Os juízes continuam

calados)

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Verdugo (Para os juízes) Os senhores vão dar consentimento? A lei não

permite. Os senhores sabem que a lei não permite. (Silêncio um pouco esticado)

Filho (Em tensão) Isso está certo. O pai tem razão. Não é permitido. Filha (Desesperada, para o irmão) Você quer estragar a nossa vida? Sai

daqui. Juiz jovem Deixa, ele pode ficar. (Aproxima-se do jovem) Olha, moço, você vai

entender. (Para o verdugo) O senhor também. Não temos muito tempo para explicar... mas...de uma certa forma também cumprimos ordens. Há gente mais importante do que nós. Devemos dar atenção a certa gente.

Filho (Para os juízes) Canalhas! Canalhas! Mulher (Para o filho) Cala a boca, seu desgraçado. Juiz velho (Aproximando-se do filho) Meu filho, escute. (Põe a mão no ombro

do rapaz) Filho (Para o juiz velho) Sim, não me pega. Mulher (Gritando) Você responde assim pras Excelências? Juiz jovem Escutem, não façam tanto barulho, afinal, não queremos

complicações. Mulher É claro, Excelência, mas estou perdendo a cabeça com esse menino. Juiz velho O moço não tem culpa. Pensa que o pai está certo. Filho (Emocionado) Eu sei que o pai está certo de não querer matar o

homem, porque o homem não fez nada. Nada! Juiz jovem Moço, não vamos discutir isso com você. Verdugo O meu filho sabe que...

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Juiz velho (Interrompendo) Nem com o senhor. (Pausa. Os juízes entreolham-se, refletem, caminham etc.)

Juiz jovem (Para a mulher, objetivo) A senhora acha que pode fazer o serviço? Mulher (Olha para o marido, para o filho, hesita um pouco, mas olha em

seguida para a filha e resolve) Posso, muito bem até. Verdugo (Muito emocionado) Mulher, não fala assim. Você não vai fazer nada. Mulher (Exaltada) Não vou fazer? Eu não tenho medo de você. Eu é que

sei... Entra ano, sai ano, é sempre esse desassossego de não saber o que vai ser de nós. (Olha para os juízes) Deviam pagar melhor os verdugos, sem eles a vida não fica fácil nem para Vossas Excelências. Sem os verdugos não há segurança. (Para o marido, suplicante) Homem, pensa no teu filho também...

Filho Não me mete nisso, mãe, eu penso como o pai. Mulher Ah, pensa? Não é você, seu desgraçado, que diz todo dia que não

quer mandado por ninguém? Que quer correr o mundo e falar com as gentes? E você pensa que vai poder fazer o que quer se não estudar? E para estudar precisa dinheiro, desgraçado, dinheiro.

Filho Eu não quero mais nada, mãe, eu não quero nada à custa da morte

desse homem. Filha Mas esse homem já está morto, imbecil. Juiz velho Isso é verdade, moço. Pela lei, ele já está morto. Noivo (Para o filho) Olha, meu chapa, a vida é assim mesmo. Todo mundo

morre. Filho (Para o noivo) Seu molenga fedido. Filha (Para o irmão) Eu te mato se você falar assim com ele. Juiz jovem Fiquem quietos, por favor. Se continuarmos assim, temos de ir

embora e tentar descobrir outro verdugo noutro lugar.

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Mulher Arranjar outro? Dar o dinheiro pra outro? Não tem ninguém pela redondeza, Excelência. Os senhores teriam de viajar muito. E ninguém vai querer. E não há mais tempo.

Juiz velho Pois é por isso é que estamos aqui. Mas o seu marido não quer o

auxílio. (Batidas leves na porta) Mulher Bateram. Filha Não. Mulher Bateram sim. Eu ouvi. (Batidas fortes) Noivo A essa hora? (A filha encaminha-se até a porta) Juiz jovem Espere, não abra. (Vai até a porta) Quem é? Fala quem é. Voz do carcereiro (Aflito) Sou eu, sou eu, o carcereiro. Eu preciso falar com as

Excelências. Mulher (Receosa) O carcereiro. Juiz velho (Intrigado) A essa hora. Mulher É melhor abrir. Noivo Esperem, pode não ser ele. Pode ser truque. Juiz velho (Indo até a porta) Tem alguém junto com você? Voz do carcereiro (Aflito) Não tem ninguém, abre por favor. Abre. (O juiz velho abre a

porta. Entra o carcereiro) Carcereiro (Afobado) Boa noite pra todos, Excelências, o pessoal está

preparando alguma coisa. Tem alguma coisa no ar. Juiz velho Que coisa, homem? Você está assustado. Carcereiro Eu não me assusto com pouca coisa, Excelência. Noivo Ele é um homem muito valente.

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Filho O que é que você sabe da valentia dele, seu bobo? Filha (Para o irmão) Cala essa boca. Noivo Ele deu na cara daquele que matou os menininhos. Filho O homem estava com as mãos amarradas. Bela valentia essa. Juiz velho Silêncio, por favor. Juiz jovem (Para o carcereiro) Diz direito o que é que há, homem. Carcereiro (Um pouco grotescamente) Eu estou lá em minha mesa. O homem

está quieto. Ele fica num canto da cela, de costas para mim. É o jeito dele, já me acostumei. De repente, ouço um grito lá fora: (Grita) A vida! A vida!

Juiz velho Não grite assim. Carcereiro Desculpe, Excelência. Juiz jovem E depois? Carcereiro Saio depressa. E só aquela escuridão. Nada. (Pausa) Juiz velho Continuo achando que você está assustado. Carcereiro Eu sei o que digo, Excelência. É preciso apressar a morte do homem.

Se demorar muito, acontece desgraça. Juiz velho Volta pra lá. Nós vamos dar um jeito. Carcereiro Eu tranquei tudo muito bem. Nem o demônio abre. Juiz jovem Mas volta pra lá. Tudo se arranja. Carcereiro Boa noite, para todos, então. (Para o filho) E você deixa de ser

atrevido, hein... Juiz velho Vai, vai. (O carcereiro sai. Pausa longa)

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Juiz velho (Para o verdugo) O senhor já verificou tudo? A altura, o peso do

homem? )O verdugo olha para o filho e depois para o juiz. Confirma com a cabeça)

Juiz velho (Para o verdugo) Quer dizer que lá está tudo preparado? Lá na

praça? Verdugo Sim... mas...o que os senhores vão fazer? Mulher Vão fazer o que é preciso. Verdugo Não. Os senhores não vão matar o homem agora. Isso não pode ser

feito assim. Assim não. Filha (Voz de choro) Meu Deus, pai, pensa na nossa vida. Quem é esse

homem para você? Um homem que dizia coisas que ninguém sabia direito o que era...

Verdugo (Interrompe) Assim não. Juiz velho Nós não vamos executar o homem agora. Juiz jovem Mas tem de ser amanhã. Noivo Amanhã. (Olha o relógio) Amanhã já é hoje. É tarde. Juiz jovem Então hoje bem cedo. Verdugo (Para os juízes) Mas está marcado para depois de amanhã. Com a

presença do povo. Juiz velho (Para o verdugo) O povo estará presente hoje. Nós vamos tocar o

sino da igreja. Mas é preciso que seja hoje. (Pausa. Brando) Eu peço ao senhor...vamos...faça o que lhe cabe.

Filha (Aproximando-se do verdugo) Faz, pai. Senão eles dão o dinheiro

para um outro. Verdugo (Empurrando a filha. Para os juízes) O homem não fez nada. Ainda

tem esperança.

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Mulher Mas que esperança? Não tem nenhuma esperança. Filho O pai acha que tem. Juiz jovem Eu posso obrigar o senhor a fazer. Mas não quero obrigar. Juiz velho Nós somos a lei. Não somos a polícia. Verdugo (Tentando convencer os juízes) Excelências...é muito difícil para

mim...eu não sei explicar...alguma coisa está me impedindo de fazer isso. O homem entrou no meu peito, os senhores entendem? Ele falava que era preciso...amor...ele falava...

Mulher (Com desprezo) Amor! Amor! E o que tem isso? Juiz velho Em nome do amor acontecem baixezas. Filho Que baixezas? Juiz jovem As palavras do homem eram palavras de fogo. Filha Foi o que eu disse. Ele pôs fogo nas gentes. (Pausa) Juiz jovem Amor... é comedimento. Juiz velho Mansidão. Noivo Amor não é falar daquele jeito. Filha Ele ficava rosado quando falava. Mulher Ele estava mais??? era cheio de ódio sempre. Filho (Voz alta) Ele precisava falar daquele jeito para os outros

entenderem. Filha Pois eu não entendia o que ele falava. Filho Não mente. Você sabe muito bem o que ele falava.

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Juiz velho Amor... é respeitar o povo. Ele não respeitou vocês. Ele insultava vocês.

Verdugo Insultava? Não sei disso. Juiz jovem Ele chamava vocês de coiotes. (Verdugo e filho entreolham-se) Noivo O que é isso? Filha O que é um coiote? Juiz jovem Um animal. Um lobo. Mulher (Para o filho) E você defende um homem assim? Filho (Para a mulher, exaltado) Não é isso, mãe. Ele dizia que os coiotes

não costumam viver eternamente amoitados. Que é preciso sair da moita.

Mulher E o que é que nós temos com os coiotes? Juiz velho (Para o filho) Sair da moita para caçar? Filho (Exaltado) Para que vejam ao menos as nossas caras de coiotes e

respeitem a gente. E se nos respeitarem, nós poderemos um dia... (Lentamente) achar o nosso corpo de pássaro e levantar vôo. (Objetivo) Mas primeiro mostrar a cara de coiote.

Mulher (Com desprezo) Pássaro... coiote... o homem é louco. Juiz jovem (Aproximando-se do filho) E como é a cara de um coiote? Filho (Encarando fixamente o juiz jovem com uma expressão de dureza e

ameaça) Uma cara... assim. (Batidas fortes na porta) Voz do carcereiro (Aflitíssimo) Excelências, abram. Juiz jovem O carcereiro outra vez. Juiz velho (Para o juiz??? jovem) Abre. (O juiz abre rapidamente a porta)

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Carcereiro (Entra afoito) Não é possível esperar mais. Agora atiraram uma pedra

na janela. Saio para pegar o desgraçado e nada. A escuridão outra vez. (Todos entreolham-se) Mandem fazer o serviço depressa, Excelências, acreditem em mim, eu já estou ficando doente. (Pequeno silêncio)

Mulher (Para a filha) Traz o capuz. (A filha fica imóvel olhando para o pai) Verdugo (Para a mulher, com enorme espanto) O quê? Mulher (Para a filha, voz de comando com violência) Traz o capuz. (A filha

entra correndo no quarto) Verdugo (Para a mulher. Como se visse a mulher??? pela primeira vez) Você

tem coragem! Você tem coragem de enganar o povo! O verdugo sou eu.

Mulher (Para o verdugo) Cala a boca. Eu sei o que faço. Verdugo (Irado, mas com a voz baixa) A mulher me manda calar a boca! (A

filha volta nesse instante com o capuz preto nas mãos, mas pára, vendo a fisionomia terrível do pai) Calar a boca! (Investe contra a mulher) Sua porca! (Começa a esbofeteá-la) Miserável! (O filho tenta intervir, dizendo ao mesmo tempo “Pai, não, não” mas como o verdugo não pára, os juízes, o carcereiro e o noivo avançam e lutam para imobilizar pai e filho. Conseguem)

Filho Larguem o pai, larguem o pai. (O filho tenta desvencilhar-se mas o

carcereiro tira rapidamente uma corda fina do bolso e com um gesto simultâneo contorna o pescoço do rapaz e amarra-lhe as mãos. Depois puxa-o até a mesa, corta com uma faca uma porção de corda e começa a amarra-lhe os pés, enquanto os juízes e o noivo seguram violentamente o verdugo)

Verdugo Miseráveis, miseráveis! (O carcereiro termina rapidamente de amarrar

o rapaz e com o resto da corda amarra as mãos e os pés do verdugo) Filho Canalhas, bando de porcos! (O carcereiro empurra o verdugo e o

filho, obrigando-os a sentar no chão. A filha não sabe o que fazer, olha para todos, tenta aproximar-se do pai)

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Verdugo Filha. (A filha pára. Os outros estão surpresos por terem conseguido

tanto) Filho O que vocês vão fazer conosco? Juiz velho Apenas deixá-los aqui para não atrapalharem o serviço. Juiz jovem (Para a mulher) Foi preciso. Depois trancamos tudo. Filha (Um pouco atemorizada) Então troca de roupa, mãe. Põe uma calça

do pai, troca os sapatos. (A mulher entra no quarto) Verdugo (Para a filha) Esse dinheiro vai queimar a tua carne. Filha (Tom suplicante) Pai, o homem já morreu. Não somos nós que vamos

matá-lo. Ele já está morto. Só falta a terra em cima do cara. Verdugo Está vivo. Vivo igual a mim. Filha (Suplicante, amorosa) O senhor não vai agüentar muito tempo

fazendo o serviço. (Aproxima-se do pai) Não vai agüentar. O senhor é... bom demais... e os outros pisam em nós quando não se tem dinheiro. (Tom entre choroso e contente) Nós vamos ter coisas, vamos ter coisas.

Verdugo (Enojado) Que coisas? Filha Uma casa melhor, roupas. Verdugo (Enojado, voz crescente) Uma casa? Esta não é uma casa? O que eu

tenho no corpo não é roupa? O que você veste não é roupa? O que você come não é comida?

Filha (Com ódio) Não. É lixo. É lixo. Noivo A gente quer melhorar. A gente é jovem. Verdugo (Para o noivo) Maricão.

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Filha (Para o pai) O senhor não precisa falar assim com ele. Ele é um homem igual a todos.

Verdugo Um rato. Filha (Com ódio) Um rato que me serve. (O noivo continua sorrindo) Juiz jovem Parem. Já temos muitos problemas. Juiz velho E não temos mais tempo. (A mulher do verdugo volta do quarto.

Veste calças compridas, sapatos masculinos e capuz preto) Juiz jovem (Para a mulher) Deixa ver. (Examina-a) Juiz velho Parece que está bem. Carcereiro (Para a mulher) Esconda um pouco as mãos, dona. São menores que

as dele. Noivo A senhora ficou bem mesmo. Filho (Para o noivo) Fedido. Noivo (Para o filho) Olha (Aproximando-se), se você continuar com essa

fala... Filho Cão lazarento. (O noivo aproxima-se mais) Porco. (O noivo

esbofeteia o rapaz) Mulher (Para o noivo) Pare com isso. Filho (Para o noivo) Só assim mesmo, canalha. Só eu amarrado. Juiz jovem (Para o carcereiro) Olhe, preste atenção. Tire o homem de lá. Nós

todos ficamos do lado de fora, vendo se há alguma novidade. (Põe a mão no bolso da toga e mostra um capuz branco) Depois cobrimos a cabeça do homem com esse capuz. Em seguida vamos até a praça. Sem muito ruído, hein?

Mulher (Para o juiz jovem) O senhor é prático. (Olha para a filha)Pensou em

tudo, não?

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Verdugo (Emocionado) Você vai matar o homem durante a noite? Filho Mãe, não vai. Eu nunca mais te olho na cara. Mulher Não é preciso que me olhem na cara. Quando muito o que vocês

descobrem é se alguém tem olho de cavalo ou não. Eu tenho olho de gente. (Aproxima-se do filho) De gente. (Pausa) Vocês vão-me agradecer depois. Me agradecer.

Juiz jovem Vamos andando. Carcereiro Eles estão bem amarrados. Juiz velho (Para o carcereiro) Tira a chave. (O carcereiro tira a chave da porta) Juiz jovem (Para no noivo) Apaga as luzes. (Noivo apaga os lampiões e sorri

para o verdugo e o filho. Batem a porta. Trancam. Semi-obscuridade. Pausa. Soluços discretos do verdugo. Passos afastando-se)

Filho Pai, o senhor... não chora, pai. Verdugo É bom, é bom, deixa. (Pausa) Filho O senhor não tem culpa. O senhor fez o que pôde. Quem sabe se

está certo o que disseram: o homem já está morto. Verdugo (Recompondo-se) Nada disso, filho, nada disso. O homem está bem

vivo. Essa lei dos homens não conta. Filho Essa é a única lei que conta. O senhor não viu? (Pausa) Verdugo Ele apertou a minha mão. Ele apertou a minha mão de um jeito... Filho (Interrompendo) Ele pegou na mão do senhor? Quando? Verdugo (Emocionado e como se falasse consigo mesmo) Ele apertou a minha

mão... Filho (Interrompe) Falou?

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Verdugo Sim. Filho (Curiosidade angustiada) O que, pai? Verdugo Eu não entendi o que ele quis dizer. Filho Mas o que, pai? (Pausa) Verdugo (Repetindo as palavras do homem) Nós somos um só. Eu e você

somos um só. Filho Somos um só? (Pausa) Ele quis dizer que o senhor é igual a ele? Verdugo Mas eu sou um verdugo. Ele não. Não tem sentido. Filho (Repensando as palavras do homem) Não sei... olha... ele vai

morrer... e alguns morrerão por causa dele, um dia. Verdugo Eu não compreendo, filho. Filho É assim: ele morre nas mãos do verdugo... que seria o senhor.

Outros, mais tarde, morrerão pelas coisas que ele falou? (Repensando) E se for assim, ele também será como um verdugo, o senhor compreende? Será que é isso que ele quis dizer?

Verdugo Acho que não é isso. E depois os verdugos existem há tanto tempo e

esse homem parece o primeiro sobre a terra. EU nunca vi um homem assim.

Filho A gente talvez não saiba, mas devem ter existido. Se existiram muitos

verdugos... também existiram muitas vítimas. (Repensando) E eles podem ser iguais?

Verdugo Quem, meu filho? Filho Os verdugos e as vítimas? Verdugo Não sei, meu Deus, eu sei que sinto como se estivessem preparando

a minha morte. (Voa alta) Nós precisamos sair daqui, a sua mãe...

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Filho (Interrompe) A minha mãe... não fala, eu morro de vergonha. Eu nem posso me mexer de vergonha. (Pausa)

Verdugo (Interrompe) Ele era paciente. Tudo mudou... na noite em que fui

verdugo pela primeira vez. Quando voltei para casa e me deitei sem comer e sem dizer uma palavra, ela perguntou: Você não vai agüentar? E eu disse o que você acabou de dizer: não fala, não fala, eu nem posso me mexer de vergonha. (Voz alta) Eu não devia ter dito isso, ela não entendeu, não era fraqueza... era...

Filho Eu sei. Verdugo (Voz comovida e alta) ...mas ninguém tem de ser verdugo, se não

fosse eu seria um outro, eu achei que ser verdugo era ser humilde como eu sou, você compreende?

Filho Não fica assim, pai. Eu sei. Verdugo Você não sabe. No fundo, você não entende o seu pai, não é? Filho Não é isso... é que... Verdugo Fala. Filho (Lentamente) É que o senhor, o senhor é forte mas parece também

tão delicado, delicado para ser o que o senhor é. Verdugo (Tom suave) Delicado... (Tom angustiado) Delicado, sim. (Pausa)

Tudo me entra no peito. Tudo, você entende? Eu olho as gentes, as pessoas, e eu sinto piedade. Eu tenho piedade das pessoas.

Filho Desse homem também? Verdugo Esse homem é diferente. Não é piedade. (Pausa) E quando eu era

como você, filho, eu me levantava muito cedo e ficava um tempo olhando a rua.

Filho Olhando o que na rua? Verdugo Olhando. Algumas pessoas passavam, iam para o trabalho, e eu

pensava, meu Deus...

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Filho O que, pai? Verdugo Eu sentia uma pena das gentes... e de repente passava um cachorro...

e de repente eu olhava, sabe, naquela casa, havia uma planta, uma primavera que tentava subir o muro... e seu sentia piedade...

Filho Da planta? Verdugo (Muito comovido) No começo eu pensei que fosse só a emoção de

estar vivo, você compreende? Eu pensava: (Tranqüiliza-se um pouco) É, eu me comovo com a vida, com tudo o que está vivo, é isso. (Emociona-se novamente) Mas depois essa coisa foi crescendo e até uma casa, uma parede meio gasta me comovia... e até...

Filho Até o que, pai? (Pausa) Verdugo Um osso, meu filho. Um osso me comovia. (Lentamente. Em voz

baixa) Não só a vida. A morte, a cinza das coisas, o vazio me comovia.

Filho Meu Deus, pai. (Rumores lá fora) Verdugo É como eu sou, você compreende? Eu tentei... (Rumores mais altos lá

fora. Desesperado) Nós precisamos sair daqui. Filho Olha, encosta a mão na minha boca. Talvez eu consiga desamarrar o

senhor. (O verdugo aproxima-se do filho, arrastando-se. O filho tenta, com os dentes, desfazer o nó da corda. Rumores lá fora, passos)

Verdugo Você está ouvindo? Alguém já sabe. Dá um jeito nisso, meu filho. Eu

vou lá, eu vou falar com o povo. (Rapidamente, entusiasmado) Eu salvo o homem, e enquanto eu estiver lá você vai até o vale, prepara o barco perto do rio mas não fala com aqueles... eles agora são capazes de não entender mais. Me espera no barco, compreendeu? Eu vou até lá com o homem. Você está conseguindo? Vamos, meu filho. (O filho tenta desesperadamente) Todo mundo vai me ajudar, eles nunca viram um homem assim, eles gostam do homem, eles gritavam a vida! a vida! (Pausa) Você não está conseguindo? Filho, por favor. (Passos apressados lá fora, uma frase: “Mas é agora?” )

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Eles não vão tocar o sino. Não vão. Mas todo mundo vai acordar, tenho certeza. Quando eu voltava, hoje, eu vi a porta da igreja fechada... será que... que o padre não está lá? Será que... não, não é isso, deve ser uma outra coisa.

Filho Pronto, pronto, eu consegui. (O verdugo desamarra rapidamente os

próprios pés e desamarra o filho. Correm até a porta) Verdugo Eles trancaram, mas a gente arrebenta. (Arrebentam a porta com o

próprio corpo) vai, faz como eu te disse. Filho Toma cuidado, pai. Verdugo Corre, corre. (Black-out completo. Rumores que vão crescendo.

Frases na rua: “O que foi?” - “Vem depressa” - “Não tem tempo”)

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2o ATO Cenário: Pequena praça. Patíbulo. Forca. Semi-obscuridade. Sombras. Frases inaudíveis em tom crescente. Os juízes entram apressadamente. Sobem no patíbulo. Atrás dos juízes vêm a mulher-verdugo, a filha e o noivo. Atrás da filha e do noivo, segurando o homem, o carcereiro. Seis cidadãos agitados, atrás do homem e do carcereiro. O carcereiro ajuda o homem a subir no patíbulo. A mulher sobe também. A filha e o noivo ficam separados dos cidadãos, num canto próximo ao patíbulo. O homem está com os rosto coberto pelo capuz branco. Cidadãos (Superpondo frases) Mas o que é isso? Ainda é noite. Nem tocaram os sinos. Isso é proibido. É safadeza. É só depois de amanhã. Ainda tinha tempo. Cht! Cht! Mas é noite. Juiz velho Tenham calma. (Rumores continuam) Juiz jovem Calma, meus amigos. Nós vamos explicar. Voz de um cidadão Mas é noite ainda. Cidadão 1 para o 4 Manda tocar o sino. Cidadão 2 para o 4 E chama o padre. Ele dá um jeito nisso. Cidadão 3 para o 4 Avisa a minha gente.

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Cidadão 4 (Impaciente) Ah, eu não saio daqui. Eu quero ver. (Frases se sobrepondo) Mas assim ninguém fica sabendo. Quem não tá aqui é porque não quer ver. Com todo esse barulho todo mundo já sabe, mas ninguém quer vir. Deu cagaço na turma. Frase bem audível E o padre Frase bem audível Acho que hoje ele foi até o vale. No asilo. Juiz jovem Escutem, só um instante, só um instante. Cidadão 5 Deixem a Excelência falar. Juiz velho Silêncio, por favor. (Vão silenciando aos poucos) Juiz jovem Senhores... a lei precisa ser cumprida. (Frases dos cidadãos: “Mas o

homem não fez nada” - “Ele só falava” - “Você entendia?” - “Era só depois de amanhã”)

Juiz velho Esperem um pouco. Nós vamos explicar. (Rumores. Silenciam) O

verdugo não pode mais esperar até amanhã. Tem outros serviços longe daqui. E tão importantes quanto este. (Frase dos cidadãos: “O outro que espere” - “A morte vem quando tem que vir”)

Juiz jovem Mas a lei precisa ser cumprida. Cidadão 1 Mas o que o homem fez? Cidadão 5 Falem o que ele fez. Cidadão 6 É, ninguém explica. Juiz velho Ele já foi julgado. Cidadão 5 Mas ninguém entendeu o que as Excelências disseram. Foi uma fala

enrolada. (Frases: “Nós queremos saber direito” - “Claro” - Rumores)

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Juiz jovem O homem enganou vocês. Colocou vocês contra a lei. Agitou. Cidadão 5 É bom a gente se agitar um pouco. Desempena. (Risos) Juiz velho Silêncio, por favor. Juiz jovem Vocês não viviam em paz? (Frases: “Paz é no enterro” - “Mas não

durante, só com a terra por cima”) Cidadão 5 (Para o juiz) Que paz? (Uma frase: “Na minha barriga é que tem

muita paz” - Risos) Cidadão 1 O homem é bom. Cidadão 2 Queria ajudar. Juiz velho E ele ajudou? Juiz jovem Deu comida? Deu roupa pra vocês? Cidadão 3 Ele é pobre como a gente. Cidadão 6 Ele disse que é preciso mostrar a cara de bicho. Juiz velho E vocês são bichos, por acaso? Cidadão 5 Era figuração. Cidadão 1 para o 5 (Empurra-o para o patíbulo) Vai, fa la você, sabe explicar. (O número

5 sobe no patíbulo. Entre o verdugo, correndo) Verdugo (Gritando) Parem! Parem! (A família e os juízes entreolham-se) Cidadão 5 O verdugo. (Olham todos para o verdugo e para a mulher-verdugo) Cidadão 1 (Apontando a mulher-verdugo) Mas o verdugo está aí. Cidadão 3 (Apontando o verdugo) Mas esse é que é o verdugo.

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Verdugo (Para os cidadãos, apontando os juízes) Eles enganaram vocês. É a minha mulher que está aí. (Silêncio)

Cidadão 6 (Para a mulher) Tira o capuz! Tira o capuz! (A mulher tira o capuz. Cidadãos A mulher! É mesmo a mulher! Sai daí de cima! Sai! (Os juízes fazem

com que a mulher fique. Rumores) Juiz jovem Esperem, nós podemos explicar. (O verdugo fica no meio dos

cidadãos, tentando convencer uns e outros) Cidadão 5 Mulher não pode ser verdugo. (Frase solta: “A minha bem que podia”

- Algum riso - Rumores) Juiz velho Esperem , nós queremos ser honestos com vocês. (Risos mais

audíveis) Escutem, se nós não cumprirmos a lei agora, amanhã vocês é que serão mortos. (Frases: “Nós?” - “Mortos?” - “Por quê?”)

Verdugo (Exaltado) É mentira, é mentira. Cidadão 5 (Para os juízes) Por que a mulher está aí? (Frases dos cidadãos: “É

isso mesmo” - “Isso não pode” - “Por que, hein?”) Juiz jovem (Apontando o verdugo) Esse homem não pode mais ser verdugo.

Não tem mais coragem. Verdugo (Exaltado) Mentira. Juiz velho É verdade. Ele não tem mais coragem Cidadão 5 Ninguém vai matar ninguém aqui. (Frases dos cidadãos: “Soltem o

homem” - Aproximam-se mais do patíbulo. Para os juízes) Soltem o homem!

Juiz jovem (Dando alguns passos à frente) Vocês serão todos mortos. Mortos.

(Os cidadãos estaqueiam. Para o outro juiz) Mostra o papel. (Alguns cidadãos recuam)

Cidadão 5 Que papel? Juiz jovem (Para o velho) Mostra.

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Juiz velho (Tirando um papel do bolso da toga) Nós vamos ler o que só teria de

ser lido em caso de extrema necessidade. (Desdobra o papel) Senhores, este é um documento dirigido a nós, os juízes. (Começa a ler) As autoridades esperam que o lúcido critério de Vossas Excelências torne possível a execução do homem, dentro de um prazo mínimo. Como é nosso dever proteger o povo, zelar por suas vidas...

Cidadão 5 Olha aí, eles não querem a nossa morte. Juiz jovem Esperem, vamos continuar. Juiz velho Como é nosso dever proteger o povo, zelar por suas vidas, estender-

lhe a mão... Cidadão 1 (Interrompe, apontando o próprio traseiro) Nessa direção? (Risos

prolongados) Juiz velho Silêncio... (Continua a ler) ...lutar contra toda espécie de ameaças,

sejam elas sutis ou definidas... Cidadão 1 (Interrompe) Já começou a fala enrolada, o que quer dizer... como é?

como é? Cidadão 5 Sutil. Cidadão 3 O que é isso? Juiz velho Ameaça é perigoso. Cidadão 4 E sutil? Juiz jovem Um perigo que é difícil explicar de onde vem. Juiz velho (Aponta o homem) Esse homem é um perigo sutil. Cidadão 4 Por que ninguém sabe de onde ele vem? Cidadão 5 Ele vem de algum lugar e isso basta. De longe.

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Cidadão 2 Longe é lugar nenhum. Juiz velho (Impaciente) Mas não é isso! Não é isso! Cidadão 5 Deixa pra lá, Excelência, continua. Juiz velho (Continua a ler) ...aguardamos o cumprimento da nossa vontade o

mais breve possível. Não queremos ódios, nem inquietações, queremos apenas, ajudados pela mão de Deus, transformar a confusão dos homens em amor, em justiça. Se não derem cumprimento à nossa vontade, a vila terá merecido castigo. (Levanta a cabeça) E o merecido castigo é a morte.

Cidadão 5 Isso não está escrito aí. Juiz velho Mas eu sei o que digo. Cidadão 1 Aí fala em amor. Cidadão 2 O homem também falava em amor. Cidadão 4 Todo mundo fala em amor, mas ninguém resolve o problema da

gente. Cidadão 5 Não chora de barriga cheia. E a Lucinha? (Risos) Verdugo Por favor, me escutem, não deixem matar??? o homem. Filha (Grita) Chega, pai, chega. Cidadão 1 É a filha. (Rumores) Filha (Subindo no patíbulo) Olhem, o meu pai está doente. Cidadão 5 Mentira. Ele tá muito bem. Filha Quem disse mentiras foi o homem. Cidadão 5 Por quê? Cidadão 1 Ele falou em amor como nesse papel.

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Cidadão 2 Então as autoridades também mentem? Filha (Aflita) Mas amor é... (Não sabe o que dizer mas lembra-se da fala

do juiz. Olha para o juiz jovem) ...comedimento. Cidadão 6 E o que é isso? Juiz jovem (Adiantando-se) É não fazer coisas violentas. Cidadão 5 E matar o homem não é uma coisa violenta? Filha Mas o amor... tem dois jeitos de ser. Cidadão 3 Qual é o teu jeito, hein? (Risos) Filha (Com raiva) A gente deve matar aqueles que nos confundem. Cidadão 2 Todo mundo é confuso. Filha Vocês entendiam o que ele falava? Cidadão 5 Entendia, sim. Ele falava da alma. Filha Mas o corpo é o que interessa. Verdugo O que ele falava... era verdade. Ainda que fosse para daqui a muito

tempo. Filha (Para os cidadãos) E a barriga de vocês agüenta muito tempo?

(Rumores. Olha para os juízes e, de repente, enquanto os rumores continuam, ela parece descobrir a fórmula para vencer os cidadãos) Olhem (Refere-se ao homem), ele queria é que a gente não prestasse atenção no problema de agora. Falando pra daqui a muito tempo, a gente pensa nesse tempo que importa. (Silêncio. Um certo rumor)

Cidadão 1 Como é? Como é que você disse? (Frases: “Você entendeu?” -

“Deve ser assim” - Cochicham. Os juízes se entreolham. A mulher do verdugo está rígida, de olhar altivo durante todo o tempo)

Cidadão 2 O homem era contra nós, então?

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Cidadão 4 Falava do jeito que falava pra gente não pensar na barriga de hoje? Filha Assim mesmo. Cidadão 5 (Para a filha) Explica isso direito. Filha É muito fácil de entender. Verdugo Não é nada como ela disse... é... Cidadão 5 (Interrompe) Espera um pouco, você. (Para a filha) Anda. Fala. Filha (Aponta para os cidadãos) Se a gente está morrendo, cheio de dor

mesmo, e vem o padre... isso (para o 5) te alivia? Cidadão 5 (Sem entender) O quê? Filha O padre te alivia a dor? (Rumores) Cidadão 5 Não... o padre não alivia a dor. (Rumores) Filha E você não deixa de morrer porque o padre veio, deixa? Cidadão 1 Se chegou a hora da gente, não. (Rumores) Filha Mas enquanto o padre está por perto você pensa que está aliviado,

não é? Cidadão 5 E daí? Filha (Apontando para o homem. Voz muito alta) Esse homem é como um

padre na hora da morte. Só isso. Mais nada. (Silêncio completo) Cidadão 5 (Irritado) Mas que mulher enrolada, pôxa. Parece até uma bobina. Eu

já nem sei o começo da conversa. (Os outros cidadãos concordam) Escutem, vamos fazer uma coisa.

Todos os cidadãos Fala, fala.

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Cidadão 5 O que é que vocês acham do homem? (Rumores. Aponta o número 1) Você aí. O que é que você acha.

Cidadão 1 Bem... eu acho que mais ou menos o homem falava a coisa certa. Cidadão 5 O que, por exemplo? Cidadão 1 Ele falava que é preciso conhecer o que mais nos oprime. Cidadão 2 (Aponta os juízes) E a gente não conhece? Cidadão 6 Mas será que é isso? Cidadão 3 Se era isso, não adianta. Eles não estão sozinhos. A coisa vem de

cima. Cidadão 4 E a gente não pode chegar até lá. Cidadão 3 Então o que ele falou não adianta. Cidadão 2 Mas para mim ele me deu alegria. Cidadão 3 Também não precisa muita coisa pra te alegrar. (Risos) Cidadão 5 Deixa ele falar. Cidadão 2 Me deu esperança. Esperança é alegria. Cidadão 5 Esperança de quê? Explica. Cidadão 2 De que um dia os homens vão ser bons. (Rumores de descrédito:

“Um dia, um dia!”) Filha Não adianta vocês fazerem isso, ele já foi julgado. (Os juízes dão

sinais evidentes de impaciência) Cidadão 5 Mas está sendo julgado de novo, dona. Fica quieta. Cidadão 4 Pra mim ele me deu vontade de matar. (Rumores mais audíveis) Filha E quem dá vontade de matar é bom?

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Cidadão 1 Eu só tive vontade de matar quando olhei na cara daquele que matou

os menininhos. Cidadão 2 Isso é outra coisa. Cidadão 3 A vontade de matar é a mesma. Matar é uma coisa só. Cidadão 5 (Para o 4) Mas por que ele te deu vontade de matar? Cidadão 4 Porque eu entendi muito bem o que ele falava. Mostrar a cara de

bicho não é tudo, porque o bicho também tem garra. Verdugo Mas o homem não falou da garra... Cidadão 5 (Para o verdugo) Ninguém te perguntou nada ainda. Cidadão 3 (Para o verdugo) E se você é bicho e tem cara e tudo de bicho, você

só mostra a cara? Juiz velho Me escutem um pouco, por favor, me escutem. Tudo isso não vale

nada. Julgar um homem não é simples assim. Vocês querem saber? Com pouca palavra? É isto: tudo é como uma roda girando há muito tempo. Às vezes estamos no alto, outras vezes não.

Cidadão 5 Isso é bem simples. Mas vocês é que estão no alto há muito tempo. Juiz jovem E outros estão mais altos do que nós. Juiz velho Se vocês não matam o homem agora, os outros de cima vão matá-lo

de qualquer jeito. Cidadão 5 Nós podemos deixar o homem fugir. Verdugo Isso não tem sentido. Cidadão 3 Não adianta... Ele foge... e nós ficamos? Juiz jovem Vocês no lugar dele. (Silêncio prolongado) Verdugo (Com determinação) Eu fico no lugar dele. Eu não me importo.

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Cidadão 5 O teu negócio é matar, não é morrer. Verdugo Escutem, meu filho está no vale perto do rio. Eu levo o homem até lá.

O homem foge, eu volto. E fica tudo em cima de mim. Filha O senhor não pode fazer isso, pai, pensa em nós. Cidadão 6 Ele não volta, ele vai se safar. Verdugo Eu volto. Por Deus. Eu volto. Mulher (Seca) Pensa em mim, homem. Verdugo (Para a mulher) Você está pensando no dinheiro. Não em mim.

(Pausa) Cidadão 5 Dinheiro. (Frases se superpondo: “Qual dinheiro?” - “Ah, tem

dinheiro no negócio” - “Eu sabia, tava tudo muito complicado” - “Assim não”)

Filha O meu pai está doente, não sabe o que diz. Cidadão 5 Ele sabe muito bem o que diz. (Para o verdugo) Qual dinheiro?

(Pausa) Que dinheiro é esse? Verdugo (Olhando para a filha) As Excelências me ofereceram dinheiro se eu

matasse o homem. (Todos olham para os juízes) Mulher (Seca, voz alta) Não foi assim. Cidadão 3 (Referindo-se à mulher) Por isso ela resolveu fazer o serviço.

(Rumores) Juiz jovem Silêncio, por favor. (Pausa) Oferecemos sim. Oferecemos dinheiro

para salvar vocês. Cidadão 3 E dar dinheiro para o verdugo nos salva? Cidadão 5 Salva ele.

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Cidadão 3 Mas quanto dinheiro? Filha (Desesperada) Pai, olha o que você fez. Cidadão 3 Deve ser muito para ela ficar assim. Cidadão 5 (Para o verdugo) Quanto é que é, vamos. Filha Vocês vão querer o dinheiro? Isso não. Cidadão 6 E se o teu pai não quer, o que é que tem? Cidadão??? (Para a filha) É muito dinheiro? Desembucha logo. Mulher (Olhando o verdugo que está desesperado) Doze... treze milhões. (O

verdugo tem as mãos no rosto e olha para todos, sofridamente. Rumores de espanto, silêncio, uma frase solta: “Mas isso não é direito, nem o verdugo quis esse dinheiro”)

Cidadão 5 E vocês sabem se eles (Aponta os juízes) vão dar o dinheiro para

nós? (Silêncio. Expectativa tensa) Juiz jovem Damos o que for preciso. Juiz velho Talvez um pouco mais... se é para tantos. (Cidadãos entreolham-se.

Silenciam) Cidadão 3 A gente faz um negócio onde entram todos. (Rumores. Cochicham

com o número 5) Cidadão 5 (Para os juízes) A gente recebe o dinheiro logo? Juiz jovem Assim que o homem morrer. Verdugo (Desesperado, subindo no patíbulo) O homem é bom, gente. Olhem

pra ele. Cidadão 1 A gente não vê mais a cara. (Risos)

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Cidadão 3 Eu não me lembro mais da cara dele. (O verdugo aproxima-se do homem e tenta tirar-lhe o capuz. É imediatamente contido pelo carcereiro)

Carcereiro Não é permitido tirar esse capuz. O senhor não pode fazer isso. Verdugo (Para os cidadãos. Voz muito alta) Mas vocês não queriam matar o

homem! Um de vocês gritou! A vida! A vida! O carcereiro ouviu. (Para o carcereiro) Conta. (Para os cidadãos) Foi um de vocês!

Carcereiro Eu não estou bem certo, não. Acho que era voz de mulher. Cidadão 3 Foi coisa de mulher, sim. Verdugo Mas vocês disseram que o homem era bom. Cidadão 1 O homem parecia bom, mas a tua filha disse que ele falava do jeito

que falava pra gente não pensar na fome de hoje. E isso é bondade? Verdugo Mas é tudo mentira. Ela falou assim por causa do dinheiro. Cidadão 3 Mas que raiva você tem de dinheiro, hein, velho. Juiz jovem O homem esteve sempre contra vocês. Qualquer um que põe o povo

contra as autoridades está contra vocês. Verdugo (Para os cidadãos) Mas pensem, pensem... se ofereceram dinheiro... Juiz jovem Ofereceram dinheiro para que vocês se animem e nos ajudar. Juiz velho Com dinheiro é mais fácil um ajudar o outro. Cidadão 3 Sempre se oferece dinheiro pela cabeça de um louco. Verdugo Mas esse homem não é louco. Ele quis ajudar. Juiz jovem Com palavras? Juiz velho A palavra é de pedra. Não ajuda ninguém.

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Verdugo Mas gente! Ofereceram dinheiro foi pra mim, não pra vocês. Eles não queriam ajudar nada.

Cidadão 6 E você não quis por quê? A tua barriga está mais cheia do que a

nossa? Verdugo Porque não era justo. Não era justo (Tom suplicante) Vocês não

queriam. Cidadão 1 É que era difícil entender, homem. Todo mundo fala de um jeito difícil,

a gente se atrapalha. (Aproxima-se um pouco do patíbulo) Verdugo Ninguém toca no homem. Ninguém toca. (Aponta o no 2) Você que

disse que o homem te deu esperança, chama o padre. Cidadão 5 O padre deve ter ido até o vale. Foi no asilo daqueles. E quando ele

vai pra lá ele fica a noite inteira. (O verdugo olha desesperadamente ao redor, como se procurasse alguém)

Mulher (Para o verdugo) Homem, agora é demais. Deixa eles fazerem o que

é preciso. Você tem a mim e a seus filhos. Deixa o homem morrer a morte dele.

Cidadão 2 (Para o verdugo) Ah, vá lá, faz logo o teu dever. Mulher (Para o verdugo) Faz o teu dever. (O verdugo protege o corpo do

homem com o seu próprio corpo. O carcereiro tenta empurrá-lo, mas é violentamente empurrado pelo verdugo)

Cidadão 3 Mas afinal esse homem é teu parente ou o que é? Você prefere ele a

nós. (Rumores) Olha, nós vamos fazer uma comunidade onde todo mundo vai entrar e melhorar de vida. Com esse dinheiro que ofereceram, todos vão trabalhar e encher a barriga. Você também não tem filhos? A moça (Aponta a filha) não vai casar com aquele ali? (Aponta o noivo)

Noivo E eu estou sem emprego. Ajudava muito. Verdugo (Voltando para o homem, emocionado) Fala, homem de Deus,

explica pra todos quem você é.

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Juiz velho Ele não tem mais o direito de falar. Juiz jovem Pela lei, ele já está morto. Cidadão 3 E de qualquer jeito, ninguém vai entender o que ele fala. (Para o

verdugo) Anda logo com isso. (Expectativa. Silêncio) Homem (Lentamente) Eu não soube dizer. Eu não soube dizer como devia. Eu

não me fiz entender. Eu não me fiz entender. (Para o verdugo) Faz o teu serviço. (Silêncio completo)

Verdugo (Para o homem) Eu não posso. Eu não posso. Cidadão 5 Então sai daí. (Entra correndo o filho do verdugo) Cidadão 1 Olha o filho dele. (O filho pára, olha em torno, olha para o pais) Cidadão 6 Esse é o filho? Verdugo (Para o filho) Volta! Volta! (O filho tenta aproximar-se do pai) Cidadão 5 Não deixem o moço chegar perto, ele vai atrapalhar. (O carcereiro

segura o filho) Filho (Desesperado) Pai, o que foi? O que foi? Cidadão 3 Fica quieto, moço. O seu pai já tem muita encrenca, fica quieto. (O

filho tenta chegar perto do pai mais uma vez) Cidadão 5 (Para o carcereiro) Segura forte, ele vai dar trabalho. Cidadão 6 (Para o verdugo) Faz logo o serviço, anda. (Cidadãos todos juntos:

vai, vai, vai) Verdugo (Ajoelhando-se) Pelo amor de Deus, não matem o homem. Olhem,

eu posso explicar... ele apertou a minha mão... quando... Cidadão 5 Ah, sai daí, essa não. (Risos) Verdugo (Completamente emocionado e frágil) Ele tem os olhos de um cavalo

que um dia... um cavalo...

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Cidadão 2 Chi... o homem tá ruim da bola. (O filho do verdugo abaixa a cabeça,

parece chorar) Cidadão 3 Ele gamou pelos olhos do outro. (Risos) Filha Vem, pai, sai daí, vem. Cidadão 5 Não. Ele vai fazer o serviço. Mulher Ele vai é pra casa, vem. (Tenta puxar o marido) Cidadão 5 (Empurrando a mulher) Não, agora ele vai ficar e fazer o serviço. Verdugo (Recompondo-se) Eu não faço. Eu morro mas não faço. Cidadão 6 Tira ele de lá. Cidadão 2 O homem ficou louco. Filho (Desesperado, voz baixa) Pai, meu pai. (A mulher tenta novamente

aproximar-se, mas é empurrada. A filha tenta também aproximar-se. O noivo está quieto no mesmo canto)

Cidadão 5 (Para a filha) Vai saindo. Vai saindo, moça. Filha (Voz alta, exaltada) Eu disse, ele está doente, não façam nada com

ele. (Olha para os juízes. Os cidadãos aproximam-se perigosamente do patíbulo. Os juízes descem. Nesse instante entram na praça os dois homens-coiotes. Estão vestidos da seguinte maneira: calça e camisa comuns, cabeça e rosto de lobos, mãos para trás. Ficam de frente para o público, examinam o público fixamente e depois voltam as cabeças em direção ao patíbulo. Tem-se a impressão de que não foram vistos por nenhum dos cidadãos, nem pelos juízes etc. Apenas o filho do verdugo dá a impressão não só de que os conhece, mas de que os esperava)

Verdugo (Protegendo o homem com seu próprio corpo. Com determinação)

Ninguém chega perto.

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Cidadão 5 O homem tem de morrer. Vamos, vai andando. (Entra em luta com o verdugo, os cidadãos atacam em conjunto, o filho tenta escapar das mãos do carcereiro, mas não consegue. Frases: “Mata logo o homem” - “Mata do nosso jeito”)

Voz do verdugo (Com intensa comoção) Não. Não. Eu morro, mas... (Frase: “Então

morre” - Começam a dar pauladas no homem e no verdugo. Cena de intensa violência. Frases soltas: “Dá uma no olho de cavalo” - “Toma você também, seu porco” - Terminam a chacina. Recuam vagarosamente. Silêncio esticado. Descem do patíbulo. Vê-se o homem e o verdugo lado a lado, mortos)

Juiz velho (Quebrando o silêncio) Nós não queríamos que fosse assim. (Mulher,

filha e noivo se unem amedrontados, num canto. O carcereiro solta o filho e este sobe no patíbulo e olha para o verdugo, estarrecido)

Cidadão 5 É... mas foi assim. (Vai saindo) Cidadão 3 Agora já acabou. (Vai saindo) Cidadão 5 (Pára, olha para os juízes que também vão saindo) Daqui a algumas

horas nós passamos por lá. Juiz velho Está bem. Juiz jovem (Para o juiz velho) Eu não agüento mais esta roupa. Juiz velho É sempre muito difícil de agüentar. (Saem) Cidadão 1 (Passando pelos homens-coiotes, para o cidadão 2) Esses quem são? Cidadão 2 Parece que é a gente que mora no vale. Cidadão 1 Eles têm uma cara diferente da nossa... (Param um instante, mas não

chegam perto) ... um olho... Cidadão 2 Um olho que atravessa. E dizem que são esquisitos. Dizem que

quando eles falam, a boca se enche de sal. Cidadão 1 São estórias. (Saem. A mulher, a filha e o noivo começam a arrastar o

corpo do verdugo para fora de cena. Param um instante e olham o

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filho do verdugo. Este último??? fica imóvel, olhando para os homens-coiotes. Em seguida, olha pela última vez o corpo do pai, anda em direção aos homens, encara-os)

Filho (Para os homens-coiotes, objetivo) Vamos Os homens coiotes atravessam a pequena praça junto com o filho do verdugo. Quando estão saindo, um foco de luz violenta incide sobre as mãos dos homens-coiotes. As mãos estão cruzadas na altura dos rins, e deve ser visto claramente que são patas de lobo, com grandes garras. F I M

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Hilda Hilst

A M O R T E D O P A T R I A R C A 1969

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PERSONAGENS O Papa 60 anos O Cardeal 45 anos O Monsenhor 25 anos O Demônio Aspecto muito agradável. Anjo número 1 Anjo número 2 Três jovens

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CENÁRIO Sala com estantes vazias. Piso de mármore branco e preto igual a um

tabuleiro de xadrez. Estátua de Jesus Cristo de dois metros de altura. De costas

para o público. Mesa de xadrez com duas cadeiras negras, altas. No lado direito e

esquerdo ao fundo do palco uma “janela porta” fechada e dando para uma

sacada. Porta à direita. Porta à esquerda. No lado direito do palco, e bem à

frente, um grande pássaro, ou melhor, o esqueleto de um grande pássaro feito de

armações que dêem a impressão de que o pássaro é construído em ferro. Sobre a

cabeça do pássaro uma coroa de aspecto burlesco. O rabo do pássaro é feito de

plumas ou penas de metal dourado. O pássaro deve ter aspecto agressivo (garras

enormes, bico acentuado). Ao lado do pássaro, caídas no piso, duas asas (sem

penas, só armação). O palco deve estar escuro. Apenas uma luz sinistra sobre o

pássaro. Quando começar a peça, a sala ,onde estão o Papa, o Cardeal e o

Monsenhor, está em semi-obscuridade. O Papa e o Cardeal estão sentados nas

cadeiras negras, jogando xadrez. O Monsenhor está tentando, com muito esforço,

colocar as asas no pássaro, coisa aliás que não conseguirá. Nas estantes de altura

superior às demais estão, do lado direito, os dois Anjos, isto é, dois jovens

vestindo calça e camisa azul clarinha e asas diminutas, e, do lado esquerdo, o

Demônio, vestindo calça e pulôver pretos. O Demônio possui um rabo discreto e

elegante. As roupas de todos devem ter aspecto de uso constante. Luz na cena de

cima.

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Nota: As estátuas, ou melhor, os bustos de Mao, Marx, Lenin e Ulisses

devem estar sobre suportes com rodinhas. Todas as estátuas têm uma coloração

esverdeada. Excluindo a de Jesus, que é branca.

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Anjo 1 (Fechando um livro com ruído. Para o Demônio) O Senhor acha que está na hora de intervir?

Demônio Perfeitamente/ Anjo 2 Por quê? Demônio Cansaram-se. Anjo 1 De quê? Demônio De tudo. (Pausa) Anjo 2 (Consultando um livro) Os que podiam falar já falaram? Demônio Há muito tempo. A falaram tudo que sabiam. Anjo 1 Não há mais nada? Demônio Nada. (Pausa) Anjo 2 (Consultando um livro) Acabaram-se as guerras? Demônio Há um enorme silêncio. Ano 1 Comem? Demônio Empanturram-se. Anjo 2 E as criancinhas? Demônio Gordas. Anjo 1 E os políticos? Demônio De mãos abanando. Anjo 2 Fez-se aquele Estado ideal? Demônio Todos unidos. Uma só língua. Aliás, quero dizer, um só pensamento.

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Anjo 1 Não se exprimem mais por palavras? Demônio Não mais. (Na cena de baixo, o Papa faz um gesto de desânimo de

um bom lance do Cardeal. Não é um lance definitivo, mas o Cardeal comeu-lhe uma boa pedra. O Demônio vê o lance. Para os anjos) Olhem, aí há um problema.

Anjo 2 Então não está na hora do senhor intervir. Se há um problema, o

senhor sabe como é... de um pequeno problema nasce outro e depois mais um e a roda continua a girar.

Demônio (Com determinação) É preciso intervir para apressar a solução. (Os

dois Anjos entreolham-se e o Demônio começa a alisar discretamente o rabo)

Anjo 1 (Para o Demônio) O senhor não está com boa cara. Lembre-se de

que nesta hora nós precisamos estar unidos... e o senhor nos prometeu... (O Papa faz novo gesto de desalento com ruído, o que interrompe a fala de cima)

Anjo 1 (Olhando para baixo e referindo-se ao Papa) É o nosso homem, não

é? Anjo 2 Em apuros. E mais dois. Anjo 1 (Voz um pouco baixa. Para o anjo 2) Como foi que eles se

agüentaram tanto tempo? (O Demônio dá risadas discretas. Apreensivo) Ele ouviu?

Demônio Às vezes os senhores fazem cada pergunta... Não acreditam no

milagre? Os dois Anjos (Constrangidos) Sim, sim, evidente. (Pausa) Anjo 1 (Para o Demônio) É por milagre então... que eles ainda estão lá? Não

há outra explicação? Demônio Não. (Neste momento entram na cena de baixo três jovens vestidos

apenas com pequenas sungas e carregando as estátuas de Mao, Marx e Lenin. O público deve ver rapidamente as placas onde estão escritos os nomes dos três. As placas estão fixadas nas estátuas e os

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nomes estão escritos com tinta fosforescente. Colocam as três estátuas do mesmo lado de Jesus, mas de costas para Jesus e para o público. O Papa, o Cardeal e o Monsenhor estão tão absortos nas suas respectivas tarefas, e os jovens entram tão silenciosamente que não são percebidos durante essa manobra)

Anjo 1 (Para o Demônio) E aqueles outros tão interessantes... Não se fala

mais deles? Anjo 2 (Olhando para baixo) Os interessantes estão entrando na sala. Demônio (Olhando para baixo) Carregados. (Sorri) Mudos. E não se fala mais

deles. (Pausa) Anjo 2 (Examinando um livro enorme. Para o Demônio) Tudo começou com

a propriedade, o senhor lembra? Demônio Não, não, não foi assim. Tudo começou com um ataque ao sistema

de concorrência. Anjo 2 Não comece a discursar, por favor, porque o pessoal corta esse

pedaço. E, na verdade, o que a gente se lembra mesmo é só aquela estória da propriedade.

Anjo 1 (Consultando um livro) Um disse: “Proletários de todo o mundo, uni-

vos.” Anjo 2 (Consultando um livro) Outros disseram: “Proprietários de todo o

mundo: uni-vos.” Anjo 1 Aí foi aquele negócio horrível. (Virando as folhas do livro

rapidamente) Demônio Horrível. (Virando as folhas de um livro, rapidamente) Anjo 1 (Virando as folhas, rapidamente) Horrível. (Parando numa folha) E de

repente um outro achou que seria mesmo eficiente transformar todo mundo em proletário.

Anjo 2 Eficiente.

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Demônio Eficiente. Anjo 2 (Folheando o livro) Está aqui. Disseram: “Por que não transformamos

todos em proprietários eficientes?” Anjo 1 Acharam bom. Anjo 2 Acharam. Demônio Muito bom. Anjo 1 É bom ter as coisinhas da gente, não? Anjo 2 (Para o Demônio) Por falar nisso, um dia desses o senhor usou a

minha asa. Demônio Foi sem querer. Anjo 2 É, mas não pode. Não pode. Anjo 1 Os senhores estão saindo do assunto. Já não há lugar para

desavenças pessoais. Ano 2 e Demônio Perdão. (Pausa) Anjo 2 (Consultando o livro) Mas nós estávamos onde? Ah, sim... Ficaram

todos proprietários. Fizeram casinhas para todos. Anjo 1 Todas iguais. Anjo 2 (Consultando o livro) Com uma árvore. Demônio (Consultando um livro) Aí tem esse detalhe é? Aqui não tem. Anjo 2 Sim, sim (lendo), uma árvore no jardim de cada casa. Anjo 1 A mesma árvore? Anjo 2 (Lendo) Na América do Sul... bananeiras, mangueiras... na América

do Nor...

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Anjo 1 (Interrompendo) Mangueira leva anos pra crescer. Anjo 2 Bem, mas cresceram. Demônio Mas isso não importa nada, por favor. Enfim, ficaram à sombra. Anjo 1 O senhor está muito apressado. Demônio Mas é incrível... não compreenderam ainda? É preciso intervir. Anjo 2 Ora, isso já aconteceu tantas vezes. (Apontando uns livros grossos)

Olhe, olhe para esses tratados de escatologia. O mundo terminou milhares de vezes... Olhe para esse aqui, com mais de dez mil páginas. Não parece nada, não parece nada mas é um Lusíadas que está aqui.

Anjo 1 De que período é esse, hein? Anjo 2 E o senhor acha que eu tive ânimo para começar? Nem toquei. A

única coisa certa (para o Demônio) é que todas as vezes que o senhor nos aborrece. Qual é a promessa que o senhor nos faz sempre, hein?

Anjo 1 Não é preciso que ele responda. (Consulta um livro) Aqui está a

última promessa: “Prometo intervir para que não se faça o caos.” (Fechando o livro) E como foi feio dessa vez, cruz credo.

Demônio Mas era necessário. Os senhores não sabem como a coisa é de

perto. Sempre sou eu quem desço. Aliás... posso perguntar por quê? Anjo 2 Porque sempre foi assim. Demônio Desde quando? Anjo 1 Desde sempre. Na hora de intervir é com o senhor. Mas será que

desta vez as coisas não poderiam ser mais tranqüilas? Demônio (Olhando para a cena de baixo) Eu nunca os experimento demasiado.

Mas são tão frágeis. (O Anjo 2 olha para o lado oposto da cena do palco assim como se estivesse espiando o que se passa na praça)

Anjo 2 (Para o Demônio) Escute, e aqueles lá na praça, hein?

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Demônio É o povo. Anjo 1 (Espiando) Os casais estão juntos... agarrados... e fazem (encantado)

nossa... que situação paradisíaca. Anjo 2 O senhor sabe muito bem que aqui nunca houve dessas coisas. Anjo 1 É só uma maneira de falar, perdão. Anjo 2 (Para o Demônio) Estão assim há muito tempo, não é? Demônio Comem e fazem aquilo. É preciso sacudi-los. E porisso eu vou

propor como líder aquele que um dia me visitou. Uma ótima pessoa, o mais bravo entre os bravos.

Anjo 1 Só existe um para propor-lhes: o Mestre. (Olhando para o palco de

baixo) E o Mestre está lá. Demônio (Grave) Mas repousa. E não quer mais voltar. Na verdade, está

ausente. (O Papa e o Cardeal levantam-se e vão até a janela. Ficam espiando a praça através da vidraça)

Anjo 1 Não é verdade (cintando as palavras de Jesus), “Levanta a pedra e aí

me encontrarás. Fende a madeira: estou lá dentro.” Anjo 2 E aquele, que você quer como líder, mentia. Demônio (Sorrindo) Mentia sim, mas à maneira de um poeta. (Um jovem entra

na sala carregando a estátua de Ulisses. O público não sabe que é Ulisses. A estátua é colocada num canto, sozinha e de costas para o público. O Papa, o Cardeal e o Monsenhor continuam alheios a essa manobra)

Anjo 1 (Para o 2) Olhe, não é ele que está sendo colocado naquele canto? Anjo 2 É ele sim. (Para o Demônio) Isso foi coisa sua. O senhor vai

confundi-los. Demônio Os senhores não entendem. Desta vez quero fazer as coisas com

logicidade. (Referindo-se a Ulisses) Aquele vai entusiasmá-los.

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Começarão a pensar com tanta vitalidade que serão obrigados a falar. E o mundo continuará existindo. Afinal não é isso que os senhores querem?

Anjo 1 (Com melancolia) Não temos certeza... francamente. (Pausa) Anjo 2 (Com melancolia) Não sabemos o que fazer. (Pausa) Vamos meditar.

(Saem. O Demônio fica sozinho, coloca os óculos e consulta livros. A luz diminui. Luz maior sobre a cena do palco)

Papa (Espiando através da vidraça. Para o Cardeal, com espanto) Estão

despidos, Eminência? Despidos? Cardeal Sem memória, Santo Padre. Papa Sem memória? Olhou bem, Eminência? Cardeal Sim, Santo Padre, mas isso é a única coisa de que se lembram. (O

Papa faz um gesto de desalento. Vira-se. O Cardeal também. Deparam com as estátuas. Entreolham-se sem compreender)

Papa (Muito intrigado) Mas por quê? (Examinando Mao, Marx, Lenin e

Ulisses) Por quê? Cardeal Não sei, Beatíssimo Padre, francamente... não sei. (O Papa faz novo

gesto de desalento e encaminha-se novamente para a mesa de xadrez. Senta-se. O Cardeal também)

Cardeal (Olhando o jogo) O Santo Padre está cansado? (Pausa) Papa Sim. Cardeal Estamos aqui há muito tempo. Monsenhor (Voz baixa, tentando colocar as asas) Parece que não há solução. Cardeal (Virando-se para o Monsenhor) E aí como vai? Monsenhor Como vê, não vai. A asa não foi feita para este corpo. (Pausa)

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Cardeal (Voltando-se para o xadrez e exibindo o rei do xadrez) Essas peças são complicadas. Difícil de movê-las. Vêde, Santo Padre, os nossos dedos esbarram nestas arestas e isso dificulta o movimento. E até o raciocínio. Talvez por isso é que Vossa Santidade...

Monsenhor (Interrompendo) Esse é o rei? Cardeal Sim. Monsenhor Complicado realmente. Cardeal Sim, mas um rei é um rei. Monsenhor (Constrangido) Parece uma boa explicação. Cardeal (Tentando ser mais claro) Um rei é... um homem que reina. Monsenhor (Constrangido) Ahn... isso elucida bem. Cardeal Bem... um rei é... um homem que tem uma coroa. Monsenhor (Com certo constrangimento e ironia) Preciosa? Cardeal (Tentando achar uma boa definição) Ora, vejamos... um rei tem dois

braços, duas pernas e quando necessário tem a mão pesada. Papa (Ameno) Basta de tolices. Cardeal Perdão. (Examinando o tabuleiro e colocando o rei no lugar.

Tentando agora ajudar o jogo do Papa) Vossa Santidade poderia mover... (indica uma peça mas arrepende-se) não, não (aponta outra), esta aqui. E deixar assim a área livre para as que vêm a seguir.

Papa (Cansado e distraído) E quem vem a seguir? (Pausa) Cardeal (Comovido, examinando o Papa) O Beatíssimo Padre está cansado. Papa (Levantando-se) Sim. Cardeal Poderíamos passear pelo jardim. (O Monsenhor olha com espanto

para o Cardeal)

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Papa (Contente e esperançoso) Poderíamos? Cardeal Ah, é verdade, eles também estão no jardim, não é? Então não é mais

possível. (Vai até as estátuas. Examina-as) Não poderíamos, assim para fazer alguma coisa, limpar estas estátuas? (Refere-se a Mao, Marx, Lenin e Ulisses)

Papa Isso teria alguma utilidade? Cardeal (Aproximando-se da estátua de Marx) O Santo Padre não acha

que... limpando esta cara aqui... Monsenhor (Interrompendo) Não fale assim. Não é uma cara. (Olhar de

desaprovação do Papa, e olhar festivo do Cardeal. Com respeito) Quero dizer... não é uma cara qualquer.

Papa (Aborrecido) Oh, por favor. (Pausa) Monsenhor (Caminhando até Marx. Com certa ingenuidade) A mulher dele falou

certa vez que seria agradável usar novamente os guardanapos de damasco. (Olhar de interrogação do Cardeal e do Papa. Tentando explicar) Ela possuía uns guardanapos de damasco muito bonitos mas eles iam sempre do armário para o penhor, do penhor para o armário, e ela não podia usá-los. (Comovido) Nesse período a vida deles era muito modesta. Passavam...

Cardeal (Interrompe) Fome? Monsenhor Nem tanto. Mas os guardanapos de damasco não combinavam com

toda a atmosfera do ambiente... o senhor compreende? Cardeal (Examinando Marx. Intrigado) A mulher dele é? Nunca pensei. Papa (Com acentuada impaciência) Basta de tolices. (Pausa maior) Cardeal (Repentinamente apavorado) Santo Padre, poderão matar-nos?

(Pausa) Mas em nome do quê? (Aponta a janela) Para aqueles (aponta as estátuas), todos esses estão mortos.

Papa (Apontando para Jesus) Aquele não.

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Cardeal (Exaltado) Eles não querem a palavra de nenhum. Papa (Lentamente. Angustiado) Se eu pudesse sacudi-los e dizer: O Cristo

não está morto. (Caminha até a janela. Apreensivo) Mas o que é que eles querem?

Cardeal Tudo já foi dito. Papa Será preciso dizer novamente. Monsenhor (Junto ao pássaro. Olhando-o) Estão cansados de ouvir essas coisas

que já foram ditas. (Pausa) Papa (Aproximando-se do Monsenhor muito angustiado) O que é que eles

querem? Monsenhor (Olhando o pássaro) Certamente a nossa mor... Papa (Interrompe a palavra “morte”. Exaltado) Mas por quê? Por quê? Monsenhor (Tentando desviar o assunto. Olhando as asas caídas no chão) Se eu

pudesse colocar as asas novamente. (Parêntese????) Se é que alguma vez ele teve asas. (Sorrindo. Voz baixa) Diante de um perigo o meu avô diria assim... para dar um exemplo...

Papa (Interrompendo) Por favor, não é o momento. Monsenhor Mas, Beatíssimo Padre, o que falar? Estamos tão fatigados. Papa (Desanimado) Sim, sim. Cardeal (Voz alta. Para o Monsenhor) Mas não precisamos falar do seu avô.

(O Demônio, quando ouve a palavra “avô”, assusta-se como se o tivessem chamado, fecha o livro, tira os óculos, consulta o relógio de pulso e prepara-se para descer. Eu gostaria que o Demônio descesse deslizando de uma via cilíndrica)

???Demônio (Para os anjos) Disseram avô? Então é a minha vez.

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Monsenhor Pois ele sempre foi um exemplo para a comunidade. Basta lhe citar um fato...

Cardeal (Interrompe) Não, por favor. Papa (Examinando as asas do pássaro e referindo-se a elas) Se nós não

conseguirmos colocar... tudo estará perdido (para o prelado), não é? Monsenhor O Santo Padre não quer tentar? Papa (Acariciando o pássaro, comovido) O meu pobre rebanho... O meu

escuro rebanho. Demônio (Pondo os pés na sala, arrumando-se, discreto como se estivesse

apresentando as suas credenciais) Lúcifer, príncipe das trevas, governador dos tristes impérios do profundo Aqueronte, rei do inferno e reitor da geena, saúda o Papa e a seus servidores. (Olha demoradamente para os três. A reação do Papa à entrada do Demônio é a de quem já o conhece muito bem e está inclusive um pouco fatigado da sua presença. O Cardeal e o Monsenhor ficam discretamente deslumbrados mas, a um olhar do Papa, fingem indiferença. O Demônio aproxima-se do pássaro, pega uma das asas caídas no chão) Então... não conseguem? (Pausa. Olhando o pássaro, enternecido) É belo.

Cardeal (Um pouco afoito e com certo entusiasmo) Sim, de fato poderíamos

até dizer que é mais belo sem asas. Alguém me disse que as asas já são símbolos gastos e...

Papa (Interrompe, contrariado. Para o Demônio) O Monsenhor tem

trabalhado muito mas é impossível colocá-las. Demônio (Examinando o rabo do pássaro) Olhando-se assim, de repente,

parece um brinquedo fácil de conduzir, não? Papa (Para o Demônio. Aproximando-se. Voz baixa. Referindo-se às

estátuas de Mao, Marx e Lenin) Escute, por que a presença incômoda de alguns?

Demônio (Sorrindo) Porque pode-se meditar bastante diante destas caras.

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Monsenhor Não fale assim, não são caras. (Olhar de desaprovação do Papa) Quero dizer... não são caras comuns.

Papa (Para o Demônio) Diga... o meu rebanho como está? Demônio A Santo Padre já não viu? Então. É preciso reviver alguma verdade. Papa (Com paixão) E não é por amor a uma verdade que ainda luto? Demônio A vossa verdade parece não ser a verdade deles. Não compreendem

mais. Papa Mas compreenderam uma vez. Havia milhares de fiéis... tinham o

rosto iluminado, o coração em chamas. Amavam! Onde estão? Demônio Isso já faz muito tempo. Cansaram-se. (O Papa dá agora a impressão

de total desalento. Está exausto) Mas a meu ver tudo que aconteceu me parece tão extravagante. (Tentando reanimar o Papa) Vamos, Beatíssimo, vamos. Agora estou aqui. (Muito delicado) E nós temos a mesma verdade.

Papa (Lentamente. Grave) Nós temos a mesma verdade? Demônio (Aproximando-se da estátua de Jesus. Grave) Bem... eu falo com Ele. Papa (Exaltado) Certamente não falamos as mesmas coisas. Demônio Acalmai-vos. (pausa) Santo Padre, eu sou o mediador. Papa (Interrompendo) Cristo é o único mediador entre Deus e os homens. Demônio O Beatíssimo Padre não me deixou terminar. (Lentamente) Eu sou o

mediador agora (aponta a janela) entre aqueles e Vossa Santidade. (Pausa. Contorna a estátua de Jesus, examina-a com atenção) Ele não era assim.

Cardeal Assim como? Demônio (Mostrando a estátua de Jesus) Assim. Monsenhor Ele era forte.

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Demônio A força era de dentro. (Examina a coloração das outras estátuas)

Estão todas bastante descuidadas. Cor de limo. Monsenhor Ficaram expostas à ação do tempo. Cardeal Acho que resolveram preservá -las, colocando-as aqui. Na verdade

não sei bem por que. Demônio Compreende-se. Cardeal Afinal, por quê? Demônio Talvez porque... são bem feitinhas, não é? Obras de arte? Será isso?

(Todos fazem caras de dúvida. Demônio, referindo-se a Jesus. Delicado) Ele é o único que não tem a mesma cor. Mas assim mesmo parece descuidado. (Para o prelado) Estava no jardim?

Papa (Grave) esteve sempre aqui. (Pausa grande) Demônio (Atmosfera digna. Tom grave. Lentamente) Alguns disseram que Ele

amava Madalena e que certa vez estava decidido a casar-se com ela... mas quando resolveu declarar-se sentiu que umas garras lhe feriam a cabeça...

Papa (Interrompendo) Umas garras? (Pausa) Demônio (Com ironia) Deus também pode ter garras, Beatíssimo Padre. Monsenhor (Com enorme curiosidade, enfrentando o olhar de desaprovação do

Papa) E depois? Demônio (Aproximando-se do Monsenhor. Grave) A dor foi intensa... absurda.

E Ele não pôde dizer do seu amor. Papa (Extremamente aborrecido) Não é verdade. (Pausa) Demônio (Contornando a estátua de Jesus) Outros também disseram que Ele

passava as noites em vigília. Papa Isso é verdade. Orava ao Pai.

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Demônio (Grave) Não, Santo Padre, não foi o que disseram. Não orava.

Andava de um lado a outro, debatia -se, jogava-se no chão e falava em voz alta.

Papa (Subitamente impressionado) Falava o quê? (faz um gesto

demonstrando que não quer mais saber) Monsenhor (Perturbadíssimo. Para o Demônio) Eu gostaria de saber. (Pausa) Demônio Falava... o rosto abrasado... as mãos fechadas... (Estende os braços

para o alto, com violência. Voz possante) “Eu não quero! Eu sou igual a qualquer outro homem, eu amo a vida! Não quero!”

Papa (Muito contrariado) Cale -se. (Silêncio constrangedor. O Demônio

acaricia lentamente a estátua de Jesus. Comovido) Demônio Era carpinteiro. Papa Todo mundo sabe disso. (Pausa) Demônio Fazia cruzes com perfeição. Cardeal (Perplexo) Fazia cruzes? Para quê? Monsenhor Ele não fazia cruz alguma. Fazia objetos. Papa Delicados. Delicados. (Pausa) Demônio (Sorrindo) É verdade. Ele esculpia na madeira uns pequenos

cordeiros tão perfeitos que à noite os lobos carregavam. E José O repreendia assim... sorrindo: “Meu filho, pare de enganar os lobos.”

Papa (Exaltado) Basta. Basta (Atmosfera desagradável. O Monsenhor

volta a trabalhar no pássaro. O Cardeal senta-se à mesa de xadrez, absorto. O Papa está inquieto e súbito se detém, aproxima-se do Demônio, falando em voz baixa com grande angústia)

Papa Fazia cruzes? Demônio É melhor não falar.

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Papa (Irritado) Você deveria andar sempre de joelhos. Demônio (Delicado) Isso retardaria a minha ação, Beatíssimo Padre. (O Papa

faz um gesto de impaciência) Mas à vezes eu me sinto como um cordeiro caminhando em direção ao matadouro. Tenho feito perguntas desde que me conheço e não ouço a resposta.

Papa (Mais tranqüilo) Certas respostas demoram algum tempo. Demônio Uma eternidade. (O Demônio caminha em direção à mesa de xadrez.

O Cardeal afasta-se. O Papa acompanha o Demônio, olha tristemente para o próprio jogo, o Demônio examina o esquema, move uma das pedras do jogo do Papa) Não se exponha tanto, Santo Padre.

Papa (Lentamente. Bem próximo ao Demônio) Talvez Ele fizesse cruzes...

por amor? Demônio Não. (Pausa) Papa (Angustiado) Talvez... enfim... (O Demônio sacode negativamente a

cabeça) Talvez... (O Demônio continua negando uma possível proposição do Papa, mas resolve falar porque vê o Santo Padre muito angustiado)

Demônio (Delicado. Lentamente) Ele colocava as cruzes que fazia... em alguns

lugares: às vezes perto das flores, às vezes... só sobre o verde... outras... ao lado de uma fonte e perto de um pé de girassol.

Papa (Perturbado) Por quê? Por quê? (Pausa) Demônio (Grave. Lentamente) Para convencer-se a cada dia... da beleza

daquela forma. Para convencer-se. Não é fácil ver beleza numa cruz. Papa (Angustiado) Você viu ele fazer isso? Demônio Certas coisas eu apenas intuí. Mas uma tarde Ele colocou a sua crua

mais perfeita na direção do sol. Disso lembro-me bem. E assim, com o braço estendido, repetiu várias vezes: (Comovido) “És bela, sim, és bela.” (Pausa. O Demônio muda o tom, fica mais descontraído) E daí

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fizemos uma espécie de transação... digamos uma transação comercial. (O Papa não entende) Ele me daria a Sua vida em troca daqueles que eu possuía, isto é, a humanidade inteira. Mas... não terá sido inútil? (Ruídos roucos, ininteligíveis mas de tom agressivo, vindos da praça. Ruídos aumentando. Atmosfera desagradável de tensão. O cardeal resolve espiar pela vidraça)

Cardeal (Apreensivo. Na vidraça) Estão impacientes agora. E há outros que

vêm chegando. Monsenhor (Apreensivo) São muitos? Cardeal Parece o mundo inteiro. Papa (Com determinação) Então vamos abrir a janela. Demônio Não, por favor. Cardeal Santo Padre, vamos ter calma. Papa (Com determinação) Vamos abrir a janela. (Para o Demônio) E

pergunte-lhes... Demônio (Interrompendo) Sou mediador mas não posso mostrar-me. E acho

que não deveríamos perguntar nada porque... Papa (Interrompe, com determinação. Para o Cardeal) Pergunte-lhes o que

querem. Demônio Santo Padre, eles não falam mais. Entende-se o que querem apenas

pelos inflexos. (Ruídos muito agressivos) Escutai. Estão descontentes agora.

Papa (Perturbado) Mas é preciso tentar alguma coisa. (Ruído de fora mais

intenso) Demônio Talvez se o Santo Padre se desfizesse dessa roupa... um pouco

assim... (estendendo o peito para frente dando a entender que são roupas de muita pompa) e ficasse com outra mais simplizinha, quem sabe... se sentiriam mais próximos de Vossa Santidade.

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Cardeal Um rei é um rei. Papa (Com energia. Para o Demônio) Isso é simples. Posso tirá-la

imediatamente. (Tira a grande túnica e fica apenas com outra singelíssima. Conserva a coroa. Entrega a túnica ao Demônio)

Demônio Muito bem, muito bem. Vamos mostrá-la. E a coroa agora. Tirai-a,

Santo Padre. Cardeal (Triste) É tão bela, tão brilhante. Papa (Impaciente, tirando a coroa. Para o Cardeal) Oh, por favor, que

importa? (Entrega a coroa ao Demônio) Demônio (Entregando a coroa e a túnica para o Cardeal) Mostre. Talvez dê

algum resultado. Cardeal (Muito assustado) Eu? Papa (Para o Cardeal. Apressado) vai, vai. Cardeal (Hesitante, vai caminhando até a janela, interrompe a caminhada) Não

poderíamos mostrá-las através da vidraças? (O Papa faz um gesto de desespero. O Cardeal resolve obedecer, abre lentamente a janela. Ruídos intensificam-se. O cardeal hesita ainda mas vai até a sacada, mostra ao povo a túnica e a coroa mas os ruídos ficam cada vez mais agressivos. O cardeal não sabe bem o que fazer, vira-se discretamente para o interior da sala e, como os ruídos parecem absurdos de tanta intensidade, o Demônio resolve intervir)

Demônio (Agitado, para o Cardeal) Volta, volta. (O Cardeal volta

apressadamente e fecha com rapidez as janelas. Os ruídos continuam mais abafados. Um tempo. Depois mais brandos. Cessam. Na sala a atmosfera é tensa. Um certo tempo. Para o Papa) O Beatíssimo Padre teria objeção... se eu sugerisse... de mostrarmos na sacada... (aproxima-se da estátua de Marx) esta cara aqui?

Monsenhor Não é simplesmente uma cara. (O Papa faz um gesto para que o

Monsenhor não insista)

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Demônio ...e diríamos... aliás (sorrindo) o Monsenhor é quem diria (parêntese????) é mais jovem (grave), as coisas que se deve falar.

Cardeal (Desconfiado) O Monsenhor vai dizer coisas? Demônio Algumas coisas (referindo-se a Marx) que este homem falou. Papa (Aborrecido. Para o Demônio) Mas o senhor não percebe? Eles não

querem mais esse aí... nem outro qualquer. Demônio Sei, Beatíssimo Padre, mas de qualquer modo é preciso tentar. Na

verdade, ele tem certos trechos muito convincentes. E se o colocaram aqui, nesta sala, talvez tenham, digamos, insólitas mas... fecundas intenções.

Papa (Com desconfiança) O senhor citaria trechos da juventude ou da

maturidade? Demônio Talvez os trechos da maturidade sejam mais prudentes. (Olhando o

pássaro. Sorrindo) São trechos... sem asas. Sem nenhuma asa. Cardeal E não fica assim meio desorganizado... começando pelo fim? Papa (Aborrecidíssimo. Para o Cardeal) Oh, por favor. (Pausa. Para o

Demônio) Acho inútil. Demônio Nada é inútil nesta hora. Começamos com este (refere-se a Marx) e

continuamos com os outros. Papa (Apontando Jesus) Por que não começar com Ele? (Pausa. O

Demônio não responde, mas lha fixamente o Papa) Cardeal Falou palavras duras. Monsenhor Mostre-lhes a cruz. Demônio Poderão pensar que desejamos cruxificá-los. (Para o Papa) Deixai-

me agir. Estou tão interessado quanto vós. Se um de nós morrer, o outro não terá escolha... porque não haverá mais com quem lutar. (Alisa o rabo) Preservando-vos, preservo a mim mesmo. (Para o

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Monsenhor) Vamos, vamos até a janela. E repete as coisas eu que te digo.

Monsenhor Está bem. Mas não fale muito depressa. Papa É inútil. É inútil. Demônio Santo Padre, talvez exista em algum trecho uma palavra chave.

Alguma coisa que os emocione novamente. Papa Amor? Demônio (Rindo como se o Papa tivesse falado uma tolice. Recompondo-se)

Perdão. Vamos experimentar outras palavras. Se não der certo, podemos repetir essas que estão gastas ou inventar uma, se necessário.

Monsenhor O meu avô... Cardeal (Interrompendo com impaciência) Mas não é possível Monsenhor. Monsenhor Mas ele dizia uma palavra que nunca ouvi ninguém dizer. Papa (Abatido) Oh, Senhor... Cardeal (Com desconfiança) O seu avô? Monsenhor Perfeitamente. Demônio Vamos, vamos, diga logo então. (Pausa) Monsenhor (Para o Demônio. Dizendo a palavra) Potoqueiro. Cardeal (Decepcionado) Ora... contador de potócas. Demônio (Decepcionado) Mentiroso. Monsenhor (Desapontado) Ah, é? Papa (Ameno) Basta de tolices.

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Demônio (Para o Monsenhor) Vamos até a janela. Monsenhor (Interrompendo a caminhada) Lembro-me de outra. (O Papa está

impaciente) Tende paciência comigo, Beatíssimo Padre, mas esta pode ser de melhor efeito. É mais sonora. (O Papa faz um gesto de assentimento, com desânimo. Monsenhor soletra a palavra) Monadelfo. (Pausa)

Papa (Sem entender) Monadelfo? Demônio Faz parte da botânica. (Dando a definição) Que tem os estames

reunidos num só feixe. Isso é monadelfo. Cardeal (Encantado. Para o Demônio) O senhor estudou botânica? Demônio O paraíso, durante algum tempo, era de solidão, Eminência. Papa (Lentamente) Quem tem os estames reunidos num só feixe. Cardeal Parece uma boa proposição. Demônio Gasta. Monsenhor (Entusiasmado) Uma comunidade monadelfa. Um todo monadelfo. Cardeal (Entusiasmado) Sejamos monadelfos. Demônio Pode intrigá-los perigosamente. E não me cheira bem. Cardeal (Mais desanimado) Monadelfos... bem... (para o Monsenhor) mas em

suma, quem era o seu avô? (O Monsenhor prepara-se para contar com muita satisfação, mas o Demônio puxa-o em direção à janela)

Demônio (Com determinação. Para o Monsenhor, colocando-o em frente da

vidraça) Fica aí. Agora eu pego o homem. (Pega a estátua de Marx e a coloca na frente do Monsenhor, antes de abrir a janela) Leva o homem até a sacada. Fica um pouco mais atrás. E repete o que eu te digo com voz possante. Clara. (Abre a janela e no mesmo instante ouve-se os ruídos agressivos. O Monsenhor coloca a estátua de Marx na sacada. Os ruídos param)

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Papa Silenciaram. Parece um bom começo. Demônio (Para o Monsenhor. Aflito) Repete, repete. (O Demônio fica perto da

janela movendo os lábios) Monsenhor (Para o povo, um pouco atrás de Marx. Voz possante mas com

alguma hesitação) “Para que servem vossas mentiras e vossas frases oficiais? Nós não pedimos...” (Para o Demônio. Virando-se com discrição) O quê? Mas isso eu não posso dizer, é perigoso.

Demônio (Com impaciência) Repete, repete. Monsenhor (Com hesitação) ...nós não pedimos piedade. Quando chegar a nossa

vez nós não empregaremos o terrorismo. (Para o Demônio) Mas o homem disse isso?

Cardeal Potoqueiro. Demônio Repete, vamos, repete. Monsenhor “Os terroristas reais, os terroristas em nome de Deus e do Direito sois

vós mesmos. Na prática desse terrorismo sois brutais, provocantes, e na teoria sois covardes, dissimulados, sem palavra. Nos dois casos não tendes honra.” (Ruído agressivo ensurdecedor. O Monsenhor fica hesitante, não sabe se entra ou se é para continuar na sacada. O Demônio faz sinais para que ele entre. Ele entra, esquecendo-se da estátua de Marx e do Demônio, pede que ele volte para buscá-la. A atmosfera na sala é tensa porque os ruídos não param. O Monsenhor pega apressadamente a estátua de Marx, e o Demônio fecha a janela com rapidez. Ruídos abafados)

Papa (Para o Demônio) Mas que imprudência. O senhor os agrediu. Demônio Pensei que seria um bom trecho de efeito moral. Cardeal Bem bem, agora pelo menor tiramos um peso da cabeça. Monsenhor Mas esse homem falou outras coisas também.

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Demônio (Desanimado) Falou sim. Falou: “Graças a Deus eu não sou marxista.” (O ruído na praça começa a crescer em intensidade. Todos estão à escuta) Isso não pode continuar assim. (Pega rapidamente a estátua de Mao e leva até a janela)

Cardeal (Horrorizado) Mas, por favor, o que é que o senhor vai fazer? Demônio (Abrindo a janela) Repetir. Repetir. (Coloca-se atrás da estátua de

Mao, leva Mao até a sacada, sempre escondido, e movimenta somente os braços. Voz de discurso, citando trechos de Mao) “Nos dizem: vocês instalaram uma ditadura. Sim, queridos senhores, instalamos efetivamente uma ditadura.” (Ruído intenso)

Papa (Aborrecido) Mas por que ele insiste, por quê? Demônio (Continuando Mao) “Nos dizem: vocês não são benevolentes. É

certo. É certo.” Cardeal Ele está procurando descobrir a palavra chave. Demônio (Citando Mao) “Nossa nação entra na grande família das nações que

no mundo amam a paz e a liberdade.” (Ruído intenso. Uma pedra entra pela sacada. O Demônio tira da sacada rapidamente a estátua de Mao e pega a de Lenin. Quase sem fôlego, para o povo. Repetindo Lenin) “Não, mil vezes não, camaradas.” (Ruídos agressivos e novas pedras entrando pela sacada. O Demônio, durante os ruídos, continua atrás de Lenin, parado como se estivesse pensando)

Cardeal (Para o Monsenhor, inquieto) Por que ele não experimenta dizer sim? Monsenhor Como assim? Cardeal Sim, mil vezes sim, camaradas. Monsenhor Ele já disse não. Fica contraditório. Cardeal Efetivamente. Não havia pensado. Monsenhor Evidente.

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Cardeal Certo. Claro. (Ruídos ensurdecedores) Demônio (Resolvendo entrar, puxando Lenin para dentro. Com

desapontamento) E pensar que tudo isso que disseram saiu de um outro que disse: “A liberdade consiste em desejar nada, além de si mesmo.”

Cardeal E esse onde está? Demônio Está lá na minha casa. (Pausa) Papa (Aborrecidíssimo) Estou cansado. Estou muito cansado. (A todos)

Vou ficar a sós durante algum tempo. (Para o Cardeal e o Monsenhor) Vigiai. (Sai pela porta da direita. Ruídos cessam. O Cardeal e o Monsenhor vão até a mesa de xadrez. Examinam o jogo com desânimo. O Demônio aproxima-se do pássaro e o acaricia)

Cardeal (Referindo-se ao jogo do Papa) Ele ainda está sem proteção. Monsenhor (Examinando o jogo do Papa) Estava bem distraído. Cardeal O senhor ousa dizer isso do Beatíssimo Padre? Demônio É preciso reconhecer que ainda está distraído. Cardeal (Com alguma rispidez. Para o Demônio) É melhor que o senhor não

interfira. (Pausa) Monsenhor (Como se falasse consigo mesmo) O Beatíssimo Padre tem sido

generoso. Demônio Será tempo de generosidade? Monsenhor O Beatíssimo Padre tem sido verdadeiro. Demônio É tempo de alguma verdade? Monsenhor O Beatíssimo Padre tem sido fiel. Demônio O tempo não é de fidelidade.

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Cardeal (Para o Demônio) É tempo de quê? (Pausa) Demônio De vigor. Vigor. Monsenhor O senhor confunde o sentido das palavras. Cardeal Vigor... é fé. (Pausa) Demônio (Aproximando-se dos dois) Vai ser difícil ajudá-los. Não temem?

(Mais próximo) Não temem? (O Cardeal e o Monsenhor perturbam-se mas em seguida se recompõem)

Cardeal e Monsenhor Não. (O Demônio volta ao pássaro. Rodeia o pássaro e resolve

montar no dorso da ave como se estivesse montando um cavalo. Dá discretas risadas mas de repente inflama-se como se estivesse cavalgando, dominando inteiramente o pássaro)

Monsenhor (Com alguma determinação) Não faça isso, por favor. (O Demônio

obedece e resmunga com discrição. Pausa) Demônio (Distraidamente) Dizem que ela sofreu muito antes de morrer. Dizem

que não foi possível (faz um gesto como se estivesse se estrangulando) ...como costumavam fazer por misericórdia... não foi possível porque armaram??? o conjunto todo muito lá em cima... para que o povo visse seu rosto, naturalmente, e o carrasco não tinha como fingir que arrumava a lenha... e porisso foi horrível... o fogo foi comendo aquela carne viva, o cheiro era insuportável, ela (levanta a voz) urrou... urrou. (Com desânimo) Parece que o coração ficou intacto. Já é alguma coisa, já serve.

Cardeal (Fingindo-se entretido no jogo mas perturbado. Para o Monsenhor)

Mas de que é que ele está falando? Monsenhor Da Joana. Cardeal Da Joana? (Para o Demônio) Não seja ridículo. (O Demônio faz

caras como quem diz: “Está bem, vamos ver depois.” O Monsenhor fica muito impressionado com essas caras)

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Cardeal (Para o Monsenhor que não desvia os olhos do Demônio) Não lhe dê atenção. (O Monsenhor finge jogar xadrez)

Demônio Há certos rituais que o povo não esquece. Alguma palavra-chave... e

o povo se lembrará da cadência... do ritmo de certas situações. Não sei bem por que, acredito ainda que o povo, sem saber, tem certa nostalgia... digamos... de uma visão sumamente estética? (Aproximando-se muito dos dois) Aliás...

Monsenhor (Interrompendo) E é estético morrer queimado? Demônio ...aliás... em pompa... e aparato... somente um se igual aos senhores.

(O Cardeal e o Monsenhor olham para o Demônio sem compreender. O Demônio elucida fazendo a saudação nazista)

Monsenhor (Com violência) Afaste-se. (Atmosfera desagradável. O Demônio

volta ao pássaro e começa a brincar com o rabo dourado da ave. Sorri)

Demônio (Citando Shakespeare) “O que temos aqui? Ouro, ouro amarelo,

brilhante, precioso! Muitos conseguem transformar com isto, o branco em negritude; o feio, em maravilha; o falso, em verdade; o vil em nobreza; o velho, em juventude; o covarde, em valentia.”

Monsenhor (Intrigado, para o Cardeal) Quem disse isso? Demônio Timão, de Atenas. (Apontando Marx) Mas ele também gostava muito

desse trecho. (Aproximando-se do Cardeal e do prelado) Eminência, Monsenhor, eu também endosso as palavras de Timão.

Cardeal Mas quem é que pode acreditar em ti? Demônio Como me compreendem mal. Certos dias, tenho as mesmas dores

(referindo-se a Jesus) d’Aquele. Monsenhor Por favor, cala-te. Demônio Então eu mesmo não sei, mais do que todos, o que o ouro pode fazer

aos homens? Cardeal (Com ironia) Você abomina o ouro.

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Demônio Não acreditais em mim. Será preciso refazer vossos tratados de demonologia, ou as vossas leituras não foram atentas? Escutai-me: a cada ato de ambição, de poder e de cobiça... eu sofro.

Cardeal (Para o Monsenhor, que lhe comeu uma pedra) O senhor está

avançando demais. Demônio Posso explicar por que. Cardeal Eu estava falando com o Monsenhor. Demônio Mas deixai-me explicar, Eminência. Cardeal (Para o Demônio) Continue, continue. Já estamos nos acostumando

com a sua música de fundo. Demônio Gostaria de dizer... que a finalidade da minha existência... (Faz uma

pausa. Diz com determinação) é de me integrar (Referindo-se a Jesus) n’Aquele. (O Cardeal e o Monsenhor param o jogo. Ficam muito surpreendidos) Esta é uma confissão que eu nunca fiz a ninguém. Poucos estão preparados para ouvi-la.

Cardeal (Repensando as palavras do Demônio) Cada ato de ambição... de

poder... e de cobiça... te afasta d’Aquele. Demônio É isso, Eminência. Monsenhor (Desconfiado) E o senhor não deseja o afastamento d’Aquele. Demônio Oh, não, Monsenhor, nunca. Cardeal Deseja integrar-se. Demônio Sim. E sofro maior afastamento d’Aquele quando os homens entram

em ócio. Monsenhor Mas eles estão ativos agora. (Pausa) Quero dizer... apedrejam. Demônio Aparentemente ativos. Mas saberão o que desejam? Cardeal Parece que sim. Pelo que vimos...

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Demônio (Interrompe) É preciso humanizá-los, humanizá-los, Eminência. (O Cardeal e o Monsenhor estão espantados agradavelmente. Resolvem confabular)

Cardeal (Para o Monsenhor) O que o senhor acha? Ele diz a verdade? Monsenhor Lembro-me... de um texto antigo: existe um grande demônio cujo

papel é o de traduzir e transmitir aos deuses o que vem dos homens, e aos homens o que vem dos deuses. E também diz que... como esse demônio está a uma certa distância dos deuses e dos homens, ele tem a missão de preencher o vazio. Ele seria assim o laço que une o todo a si mesmo.

Cardeal E como se chamava esse demônio? Monsenhor Ah, disso eu não me lembro. Mas era um nome qualquer. (Olha para

o Demônio com atenção) Cardeal (Examinando o Demônio) Se você não sabe o nome desse grande

demônio não poderemos fazer um teste e saber se ele é esse. Monsenhor Nem seria de bom senso, Eminência, que ele de repente percebesse

que nós nem lhe sabemos o nome. Cardeal É. Isso é. (Pausa) O senhor acredita nele? Monsenhor Não é melhor que Sua Eminência pergunte a ele próprio? Cardeal Perguntar o quê? Monsenhor Se ele acredita nele. No Demônio. Cardeal O senhor acha que é de bom senso? Monsenhor Evidente. Ninguém melhor do que ele para responder. Cardeal Não sei... não sei... Monsenhor Ora vamos, Eminência... pergunte-lhe. Cardeal E como devo formular essa pergunta?

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Monsenhor Pergunte-lhe: o senhor acredita que o senhor existe? Cardeal Ele pode pensar que é brincadeira. Monsenhor Mas, afinal Eminência, o senhor tem medo? Cardeal (Ofendido) O quê? Monsenhor Então pergunte a ele???. (O cardeal fica indeciso, caminha um pouco,

volta, mas em seguida resolve) Cardeal (Aproximando-se do Demônio. Sorrindo) Gostaríamos de lhe fazer

uma pergunta. Demônio Às suas ordens Eminência. Cardeal Bem. Como a situação geral anda muito, digamos, caótica... ou

melhor, como estamos atravessando uma fase de surpreendente renovação... (Nesse momento o Monsenhor faz sinais para que o Cardeal volte)

Cardeal (Para o Demônio) Com licença um instantinho. (O Cardeal aproxima-

se do Monsenhor) Monsenhor (Confabulando) Renovação. É isso. Renovação. Cardeal O quê? Monsenhor (Citando um texto) “No dia da Renovação aquele grande demônio

será encerrado no monte Demavend mas conseguirá escapar e disfarçado na forma de um homem monstruoso perturbará toda a criação.” É um texto importante.

Cardeal Mas aqui é o monte Demavend? Monsenhor Não. Que eu saiba, não. Cardeal (Olhando para o Demônio) E ele te parece um homem monstruoso?

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Monsenhor (Examinando de longe o Demônio) Não... Não... (Referindo-se ao rabo do Demônio) Tem só aquilo. Mas... monstruoso, não.

Cardeal Então, meu filho, então. Monsenhor Pensei que esse texto nos ajudaria um pouco. Enganei-me. Demônio (Cansado de esperar) Estou às suas ordens, Eminência. Cardeal (Delicado) Gostaríamos que não se ressentisse conosco. Demônio Ora essa, Eminência, não, não. Cardeal Às vezes nos confundimos. Demônio (Delicadíssimo) Eu também me confundo quando pergunto coisas

(referindo-se a Jesus) Àquele. Cardeal Bem... então... é o seguinte: (Pausa) O senhor acredita na sua

existência? (Pausa) Demônio É uma pergunta delicada... convenhamos. Cardeal (Meio sem jeito) Porisso é que ficamos um pouco temerosos. (O

Demônio fecha a cara durante algum tempo) Cardeal Mas não está aborrecido conosco não? (Pausa. O Cardeal e o

Monsenhor já estão um pouco inquietos. Delicado) Não? Demônio Por favor, Eminência, por favor... estou somente pensando na

verdadeira resposta. Cardeal Esteja à vontade. Demônio Quero ser claro. Cardeal Evidente. Monsenhor Claro. (Pausa) Demônio (Pensando mais um pouco) Bem... (Pausa) Não.

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Cardeal (Sorrindo) Não? Demônio Posso responder agora com absoluta certeza: Não. Cardeal Mas então... Demônio (Interrompendo) Um momento. Preciso explicar-me. Cardeal Ficaríamos agradecidos. Demônio (Tomando atitudes professorais) Eminência, Monsenhor. Vou

unicamente repetir o que si desde sempre: todo mestre que deseja comunicar uma verdade aos espíritos humanos deve, de alguma maneira, adaptar essa verdade às idéias geralmente aceitas, às vezes são verdades, outras vezes meias-verdades ou preconceitos populares. Certo?

Cardeal e Monsenhor Certo. Demônio Bem. Nenhum educador razoável começa seus ensinamentos

tentando esvaziar o espírito de seus discípulos daquilo que ele considera verdades imperfeitas, antes de lhes comunicar a verdade superior. De acordo?

Cardeal e Monsenhor Perfeitamente. (O Cardeal e o Monsenhor tiram dos bolsos pequenos

blocos para tomar notas e não vêem quando um Anjo entra na sala e entrega ao demônio uma lousa e um giz. O Demônio agradece com a cabeça)

Demônio Continuemos. O mestre procurará estabelecer (o Demônio procura

ilustrar o que está contando) um ponto de contato entre os antigos conhecimentos e o novo e assim poderá modificar gradualmente as idéias inexatas ou falsas para encaminhar, em seguida, o seu aluno ao perfeito conhecimento. (O Cardeal e o Monsenhor continuam tomando notas. O Demônio está encantado. O Monsenhor, depois de anotar, quer fazer uma pergunta e levanta a mão)

Demônio Por favor, fale, Monsenhor.

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Monsenhor Para não fugir muito da nossa linha, gostaríamos que o senhor desse um certo embasamento às suas afirmativas, que o senhor...

Demônio (Interrompendo. Um pouco aborrecido) Primeiramente devo lhe dizer

que não estou inventando tudo isso, apenas endossando trechos dos melhores tratados de demonologia. (O Monsenhor toma notas) E, segundo esses tratados, o que eu afirmei é a verdade (referindo-se a Jesus) d’Aquele. (O Monsenhor fica muito satisfeito) Sim, porque Ele se adaptava às crenças populares. Quando encontrava espíritos obcecados pela idéia de que nós existíamos, Ele Se adaptava àquela crença popular e agia como se aquela crença fosse verdade, ainda que a sua consciência profunda conhecesse o verdadeiro estado das coisas, ainda que Ele soubesse que nós não éramos nada mais do que estados patológicos da alma ou do corpo. (Pausa)

Cardeal (Levantando a mão) Um momento. Demônio Pois não, Eminência. Cardeal Há uma certa dificuldade. Demônio Pois não. Cardeal O senhor se recorda que os contemporâneos do Mestre acreditavam

que os animais também podiam ser possuídos pelos demônios. Demônio Sim. Cardeal Então... temos aquela passagem: Jesus ordenou que os demônios

deixassem o corpo daquele homem infeliz e entrassem no corpo dos porcos. O senhor se lembra?

Demônio Sim. (Voz baixa) Acho que até eu estava lá. Cardeal Como? Demônio Não, não, perfeitamente, lembro-me bem. Cardeal Bem... E que os demônios, aliás, os porcos (fica embaraçado)

perdão, os demônios... enfim, os porcos, em conseqüência disso, desceram correndo a colina e afogaram-se no lago.

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Demônio Sim. (Pausa) Cardeal Mas então... então os senhores existem. Os porcos não poderiam...

não teriam entendimento para descerem sozinhos a colina e afogarem-se no lago.

Demônio Um momento, um momento. (Lentamente) Alguns sugeriram que esse

detalhe deve ser compreendido como um incidente concomitante e não como efeito do exorcismo.

Monsenhor e Cardeal Por quê? Demônio Vejamos. A crença popular interpretou a debandada dos... (fica

embaraçado) porcos... como uma obediência às ordens do Mestre. Mas... enfim... os porcos talvez tenham se assustado com as gesticulações frenéticas do endemoninhado... ou... então (parêntese) com todo respeito devido em tal matéria (fecha parêntese): a corrida e o afogamento dos demônios, enfim... dos porcos, não foi mais do que um acontecimento providencial para convencer o paciente e todos ali do sucesso do exorcismo. (O Monsenhor e o Cardeal não ficam muito satisfeitos com a explicação)

Cardeal Hum... Monsenhor Hum... Demônio (Delicadíssimo) Senhores: as páginas das santas escrituras dizem bem

da maneira como Deus se acomoda à pequenez de fé e do saber humano. (Essa frase reabilita totalmente o Demônio aos olhos do Monsenhor e do Cardeal)

Cardeal (Muito satisfeito, tomando nota da frase) Verdade, verdade. Monsenhor (Satisfeito, tomando nota) ...à pequenez da fé e do saber humano. É

verdade. É verdade. (Levanta-se e aperta a mão do Demônio) O senhor elucidou muito bem. Muito bem. (O Demônio fica um pouco acanhado)

Cardeal (Apertando a mão do Demônio) Ficamos satisfeitos. (O Demônio

está acanhadíssimo) Não, não, sinceramente, muito satisfeitos. (Todos

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ficam emocionados sem saber o que fazer. Algum tempo) Muito bem, muito bem.

Monsenhor Agora... poderíamos até nos distrair um pouco. Cardeal Jogamos? Demônio Jogamos. (O Cardeal e o Monsenhor pensam que o Demônio vai

jogar xadrez mas o jogo do Demônio é outro. Pega rapidamente na túnica do Papa e finge-se de toureiro)

Cardeal (Para o Demônio) Não, não, não toque nisso Monsenhor Não deve ser por mal, Eminência. Ele está brincando. Cardeal (Vendo a cara compungida do Demônio) Bem, vá lá, está bem. O

senhor elucidou muito bem, verdade, muito bem. O Demônio fica muito satisfeito, continua a brincadeira, dá algumas voltas na cena com estranha comicidade sob os olhares condescendentes do Monsenhor e do Cardeal. Pára diante das estátuas de Mao, Marx e Lenin e sacode a túnica como se estivesse diante do touro, provocando risos do Cardeal e do Monsenhor. Em seguida o Demônio aponta a túnica para o Monsenhor que a princípio fica acanhado de fingir-se de touro, mas diante do olhar agradável do Cardeal resolve aderir à brincadeira. O Cardeal fica em atitude discreta como se estivesse tomando conta de um recreio de crianças, o Demônio aproxima-se também do Cardeal com muita graça e (o???)instiga o Cardeal a brincar, sacudindo a túnica. O Cardeal demora a convencer-se de que deve tomar parte no jogo, mas vendo a alegria ingênua do Monsenhor, e para não desapontá-lo, entra na brincadeira e ataca com certa sem-graceza o Demônio. O toureiro finge que foi atingido, em seguida levanta-se sorrindo e diante do extremo bom humor do Cardeal e do Monsenhor coloca como prêmio a túnica do Papa nas costas do Cardeal. Cessam as risadas. O Cardeal fica profundamente chocado algum tempo. Em seguida alisa a túnica e vai erguendo lentamente a cabeça, possuído de vaidade. O Demônio toma com brandura a coroa e a coloca com extrema delicadeza sobre a cabeça do Cardeal. Cena silenciosa, grave. Demônio (Rapidamente. Com enorme determinação para o Cardeal) É preciso

descobrir novas fórmulas. Cardeal (Angustiado) Não, não. Demônio (Referindo-se ao Papa. Com determinação) Ele está distraído.

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Cardeal (Voz forte) Não, não. Demônio Para o bem dos povos. Cardeal (Voz forte) Não. Demônio Para revitalizá-los. Cardeal (Voz forte) Não. Demônio Dar-lhes uma direção. Cardeal (Desesperado) Não, não. (Com grande angústia) Já sabemos que

tudo está perdido. Demônio Não fale assim, Beatíssimo Pa... Cardeal (Interrompe. Com gestos papais) Por favor, por favor. Demônio Só um instante. Escutai-me. (Pede para que o Cardeal o acompanhe

até a mesa de xadrez e coloca respeitosamente o Cardeal no lugar do Papa. O Monsenhor aproxima-se. O Demônio mostra o jogo do Papa. Desalentado) Ele não se resguardou. (Para os dois) Examinai, por favor. Deixou brechas... absurdas (Movimenta o jogo do adversário, rapidamente) Mais estes lances... e agora... xeque mate. (Pausa. Referindo-se ao Papa) Ele não percebeu que os peões são peças... digamos... um pouco estúpidas, não podem recuar... na verdade eles têm um destino de morte. E que o cavalo... (Faz mímica, como se ele próprio fosse um cavalo) salta pra lá, pra cá, como convém à sua agilidade e à sua fantasia. E que as torres (Olha para as estátuas de Mao, Marx, Lenin e Ulisses) avançam em linha reta até as portas do inimigo, enfim, enfim, o rei se movimenta o menos possível porque... bem... é o destino dele. E a rainha... (Olha para o pássaro coroado, brinca com os guizos da coroa) é sempre impulsiva, caprichosa... (Vai até a janela) não tem conduta definida... é irresponsável (Espia através da vidraça) e em certos momentos pode ficar totalmente louca. (Pausa. Encara o Cardeal e o Monsenhor) O rei não propôs soluções.

Monsenhor (Olhando para o pássaro) Porque não existe mais solução.

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Demônio (Com determinação) Existe. (Vai rapidamente até as estátuas de

Mao, Marx, Lenin e as conduz para a frente da cena, uma por uma e coloca-as bem próximas uma da outra. O Cardeal tenta falar, o Demônio interrompe com um gesto e coloca, com euforia, na frente da três estátuas, a estátua de Ulisses)

Cardeal (Surpreso) Ulisses? Monsenhor (Encantado) Ulisses? Demônio (Encantado) Uma dimensão de heroicidade. Uma visão estética

(Apontando o pássaro) para a rainha. Cardeal (Com desprezo) Uma odisséia doméstica, isso sim. (Pausa. Resolve

examinar Ulisses) Monsenhor É bonito. Cardeal É bonito o quê? Monsenhor (Examinando o conjunto das estátuas) Assim... assim como

composição, como módulo. Cardeal (Sem entender) Módulo? Demônio (Dando as definições múltiplas da palavra) Medida reguladora das

proporções arquitetônicas de um edifício. DIVISÃO (P. 27 DO ORIGINAL ????) de medalha. Quantidade que se toma como unidade de qualquer medida. Designação do valor absoluto de um número real associado a um vetor ou a uma grandeza vetorial. Módulo: do verbo modular.

Cardeal (Tentando lembrar-se do verbo) Modular... modular... Demônio (Dando a definição) Cantar ou tocar, mudando de tom, segundo as

regras da harmonia. Dizer, tocar ou cantar melodiosamente. Monsenhor (Vaidoso de ter dito a palavra) Módulo, módulo, é isso, é isso.

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Cardeal Módulo... parece moderninho. Mas (olhando as quatro estátuas) não seria uma velha cantiga apenas com um novo refrão?

Demônio (Entusiasmado, pegando a lousa e pendurando-a na estátua de

Ulisses) Inventamos uma sigla. (Vai escrevendo enquanto fala) Lenin, Ulisses, Marx, Mao, igual a êxito. Ficaria assim: Ele de Lenin, U de Ulisses, Eme de Marx, Eme de Mao, E de êxito. (Escreve com letras grandes) LUMME. LUMME. Quer dizer luz. (Pausa. Espera o efeito)

Cardeal Lume com dois emes? Demônio Mas o senhor é um catador de pulga hein Eminência? Cardeal (Examinando Ulisses novamente) E depois Ulisses... hum... (Para o

Demônio) O senhor sabe que ele semeava sal sobre a areia da praia fingindo-se de louco para não ir à guerra?

Demônio Então, Eminência, então, nós não queremos a paz? Monsenhor Mas depois ele até inventou o cavalo de Tróia. Demônio Então, Monsenhor, então... se for preciso, a guerra. Cardeal Não. Isso nunca. Demônio (Tentando convencer o Cardeal e referindo-se a Ulisses) Ele disse:

“Pai, eu sou aquele que tu esperavas.” Cardeal (Com melancolia) Também disse: “Suporta, meu coração, tu

suportaste coisas mais duras.” Monsenhor Eu ainda não entendei muito bem... (Olhando o conjunto das estátuas,

afastando-se e aproximando-se algumas vezes) mas à primeira vista... Demônio (Interrompe) O mais importante é a ação. Sem definir os fins. Monsenhor (Continuando a examinar) ...à primeira vista... (com determinação)

essa idéia empolga. Cardeal Mas não haverá paradoxos? Pequenas contradições entre os quatro?

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Demônio Naturalmente. Mas sempre haverá alguém que conseguirá realimentá-

los num só feixe. Monsenhor (Encantado) Um feixe... monadelfo? Demônio Sim, sim. Mas não usaremos essa palavra. Monsenhor De qualquer forma era um homem de idéias o meu avô. Demônio (Voz baixa) Obrigado. Obrigado. (Pega a lousa e em seguida a

entrega ao Cardeal) Ide, Santo Padre, ide. Ide para revitalizá-los. (O Cardeal encaminha-se à janela) Não, não, Santo Padre! É preciso que Vossa Santidade se aproxime mais.

Cardeal (Tragicamente mas com vaidade) Ir à praça? Demônio Sim. Eu mandarei boas vibrações. E o Monsenhor, tão jovem, será

considerado um amigo e saberá vos proteger. (O Cardeal fica paralisado. O Demônio procura entusiasmá-lo) Lume, Santo Padre, lume. Do latim: lumen, luminis.

Monsenhor (Encantado) A senhor estudou latim? Demônio Um tempo sim. Num estágio que fiz. Monsenhor Onde? Demônio No seminário. (Para o cardeal. Empurrando-o para a porta da

esquerda) Lume... lume... lume... (O Cardeal sai solenemente como se estivesse hipnotizado. O Monsenhor sai atrás)

Monsenhor (Voltando encantado) É isso mesmo. Lumen, luminis, está certo, é

isso mesmo. (Sai. O Demônio fica a sós e aproxima-se de Jesus) Demônio (Para Jesus) Meu Senhor, sempre me colocas em boas enrascadas.

(Caminha até a janela, olha através das vidraças para o povo) O tédio... o tédio... e o tédio consome mais do que a fome e as batalhas. (Aproxima-se novamente de Jesus) Cuspiram em Ti, não Te conhecem mais. E não querem mais palavras. (Aproxima-se de Mao, Marx e Lenin) E esses três cheios de soberba, som suas fórmulas

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mecanicistas... também foram esquecidos. (Alisando o rabo) É preciso revivê-los. (Volta-se para Jesus, como se o ouvisse falar) Por quê? Por quê? Pra, meu Senhor, para que tudo se inicie novamente. Para que a luta continue. Convenhamos, dei-lhes uma esplêndida proposição. (Encantado) Lume... lume. (Ainda como se estivesse ouvindo uma fala de Jesus) O nosso contrato? (Comovido, aproximando-se de Jesus) Foi inútil... foi tudo em vão, em vão. Vê, senhor, a carne dos humanos está flácida, o ventre arredondado e volumoso. Pediram para comer. Está certo, está certo, mas bem que eu lhes dizia há tantos anos atrás: está bem, a comida está bem, mas depois da comida o quê? (Sorrindo) Diziam que depois da comida, depois do ventre saciado, começaria um novo tempo. (Aproxima-se da janela, espia) Aqueles dois senhores ainda não chegaram. É difícil chegar até lá. Bem... começaria um novo tempo, diziam. (Olhando através da vidraças fixamente) Um tempo de nada, um tempo de nada. (Voz forte, repetindo palavras de outros) É preciso encher as barrigas! (Ameno) E como ficaram furiosos comigo... quando... (Resolve não continuar o pensamento) Chamavam-me de... (como se dissesse um palavrão) prematuro. Prematuro! (Imitando um humano) Tudo o que você fala é prematuro, sai, sai, primeiro a barriga e depois o resto. (Como se estivesse ouvindo Mao) Não, não, não, não, eu não acho que a necessidade (sorri) é necessária. Não, não me interprete burramente. Apenas ouso dizer... ouso? (Olha em redor. Sorrindo) Bem, em nome da necessidade se batiam... e às vezes nessa luta eu tinha a esperança de que chegariam a se conhecer. Mas não foi mesmo uma ingênua esperança? (O Papa entra lentamente, olha ao redor. Algum tempo)

Papa (Apreensivo) Onde estão os meus? Demônio Foram descansar neste minuto, Santo Padre. Papa Descansar? (Tristíssimo) E só você é quem vigia? (Olha para as

estátuas de Mao, Marx, Lenin e Ulisses. Apreensivo) Mudaram de lugar?

Demônio Tentamos fazer uma composição, Santo Padre. (Vai até a janela,

espia. Voz baixa) Já chegaram. Papa (Profunda tristeza) Esqueceram-se d’Ele? (Ruídos crescentes

intensíssimos vindos da praça. Um tempo. O Papa está

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perturbadíssimo. Algum tempo. Ruído de uma rajada de metralhadora. O Papa olha com horror para o Demônio, vai rapidamente até a janela, abrindo-a. Ruído intenso de hostilidade. Vai até a sacada. Recua lentamente horrorizado. Com grande sofrimento, para o Demônio) Por quê? Por quê?

Demônio Era muito necessário, Santo Padre. (Nova rajada de metralhadora,

depois mais uma e muitas. O Papa encaminha-se até a sacada, com desespero)

Papa (Abrindo os braços em cruz. Para o povo) Em nome do Cristo!

Parem! Em nome do Cris... (Rajada violenta de metralhadora, matando o Papa. Súbito silêncio. Algum tempo. Em seguida, uma metralhadora é lançada para dentro da sala, pela sacada. O Demônio examina a metralhadora, começa a sorrir, sorri)

Demônio Este é novamente o meu tempo. (Ouve-se na praça uma voz jovem,

vigorosa) Voz vigorosa Vamos começar por onde? Demônio (Muito contente, apontando a metralhadora para todos os lados,

dando voltas no palco e atirando. Metralhadora na praça atirando logo depois do Demônio) Pelo começo! Pelo começo! Pelo começo! (Escurecimento gradativo, luz sinistra sobre as garras do pássaro)

F I M

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Hilda Hilst

O NOVO SISTEMA

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1968 CENÁRIO Uma praça. Chão com aparência de pedra. Banco de pedra, sem encosto. No fundo, ao centro do palco há um enorme triângulo equilátero que pode ser feito de material leve, imitando pedra. Em cada um dos seus lados há a seguinte frase impressa em letras pretas: ESTUDE FÍSICA. Em frente ao triângulo, lateralmente, dois postes. Em cada poste há um homem amarrado (dois bonecos), de costas para o público. O triângulo tem um movimento lento, giratório. Deve manter esse movimento durante toda a peça. O aspecto geral da praça é de extrema gravidade. Os dois bonecos, amarrados nos postes no início da peça, estão vestidos apenas com calças e camisa branca. Os segundos bonecos estarão vestidos como um padre e um bispo, conservando a mitra do bispo, os terceiros bonecos estarão vestidos como o pai e a mãe do menino. PERSONAGENS (oito) Menino 13 anos Mãe Jovem

Pai Jovem

Menina 15 anos

Escudeiro no 1

Escudeiro no 2

Escudeiro no 3

Escudeiro positivo

Dois físicos (que podem ser os dois escudeiros)

O Escudeiro mór (que pode ser um dos escudeiros)

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O Pipoqueiro (que pode se um dos escudeiros)

(CORTINAS FECHADAS. LUZES APAGADAS) Em 1939, Edwin Bovan escrevia a Arnold Tonybee: “Não penso que o perigo que enfrentamos seja o da anarquia, mas sim o despotismo, a perda da liberdade espiritual, o estado totalitário universal, talvez. Então o mundo poderia entrar em um período de petrificação espiritual, uma ordem terrível, que para as altas atividades do espírito humano seria a morte. Em tal estado totalitário, parece-me possível, enquanto murchasse, a filosofia e a poesia, que a pesquisa científica poderia continuar com descobertas sempre novas.” Vozes das crianças He! Ha! (Algumas vezes. As exclamações deve ser ditas aspiradas,

objetivas mas com grande entusiasmo. Algum tempo. Cessam as vozes das crianças).

Voz do escudeiro mór A coletividade deve abrir a página 208 do livro: A evolução da física, de Albert

Einstein e Leopold Infeld. Vejamos: Consideremos uma muralha construída ao longe da orla marítima. As

ondas do mar castigam continuamente a muralha, desgastam um pouco de sua superfície, recuam e deixam o caminho livre para as que vêm a seguir. A massa da muralha diminui e podemos perguntar o quanto é carreado, digamos em um ano. Mas imaginemos agora um processo diferente. (Voz violenta) Atiramos contra a muralha, rachando-a nos pontos em que as balas a atingem. (Voz normal) A massa da muralha será diminuída e bem poderíamos imaginar que a mesma redução de massa seja conseguida nos dois casos. Mas poderíamos, e isso é importante, pela aparência da muralha (Voz violenta) determinar se esteve agindo a onda contínua do mar, ou chuva descontínua de balas. Será útil à compreensão dos fenômenos que estamos prestes a descrever, temos em mente a diferença entre as ondas do mar e a chuva descontínua de balas. A coletividade compreendeu?

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Vozes das crianças He! Ha! Voz do escudeiro mór Página 53: Temos um vaso fechado por um êmbolo que pode deslocar-se

livremente. O vaso contém uma certa quantidade de gás que deverá ser mantida a uma temperatura constante. Se o êmbolo estiver, inicialmente, em repouso em alguma posição, poderá ser movido para cima, retirando-se o peso, ou para baixo, acrescentando-se o peso. (Voz violenta) Para empurrar o êmbolo para baixo deve ser empregada força (Destacando) agindo contra a pressão interna do gás. (Voz normal) Primeira pergunta: Qual é o mecanismo dessa pressão interna, de acordo com a teoria cinética? Segunda pergunta: Qual é o mecanismo dessa pressão interna de acordo com o Novo Sistema? A coletividade compreendeu?

Vozes das crianças He! Ha! (Três vezes) Voz do escudeiro mór Página 17: Todo corpo permanece em seu estado de repouso ou de movimento

uniforme em linha reta, (Voz violenta) se não for obrigado a mudar de estado por forças nele aplicadas. Se não for obrigado a mudar de estado por forças neles aplicadas. A coletividade entendeu?

Vozes das crianças He! Ha! (Três vezes) Voz do escudeiro mór Uma força imprimida é uma ação exercida sobre um corpo a fim de modificar o

seu estado. (Lentamente) A força consiste somente na ação. (Destaca) Ação. (Pausa) E tudo isso quer dizer no Novo Sistema... tudo isso quer dizer...

INÍCIO DA PEÇA. Mãe do menino chegando na praça. A mãe está com capa de chuva. O menino está com o uniforme do Novo Sistema: blusa branca com botões, calça preta. Tem aspecto militarizado mas não deve lembrar ostensivamente nenhum uniforme atual. A mãe traz o casaco do filho num dos braços. É um casaco branco também militarizado. O menino segura um boné numa das mãos. No boné há um emblema: uma caixa preta com a tampa levantada. Mãe Ainda bem que passou a chuva. Vamos esperar o seu pai nessa praça. (Pausa) Menino (Olhando com demasia insistência para os homens amarrados no poste) Mãe, eles estão amarrados, não é? Mãe (Puxando o menino com firmeza) Põe o teu casaquinho. Vai começar a fazer frio.

(Ajuda o menino a vestir o casaco) Menino (Olhando para os homens amarrados. Está angustiado) Eles podem ficar assim, o

tempo todo, sem comer?

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Mãe Quando papai chegar você vai contar que ganhou a nota mais alta de Física do seu

bloco, não é? Menino (Lentamente olhando os homens amarrados) E sem beber? Mãe (Tentando sempre mudar de assunto) É terrível... Eu sempre pensei que você se

sairia melhor na Literatura... No conto, na poesia... (Suspira) Nunca me esqueço da sua primeira estorinha. Foi a única coisa que eu consegui decorar na minha vida.

Menino (Olhando para os homens amarrados. Angustiado) O tempo todo, até mesmo sem pensar? Sem comer? Sem beber? Mãe Era uma estória muito boa. Eu sei inteira de cor. Eram dois homens, não é? Um

mais velho e outro mais moço. Veja se está certo. Olhe para mim. (O menino olha para a mãe e abaixa a cabeça) Começava assim: (A mãe ilustra a estória grotescamente. Fala com duas vozes masculinas, uma voz mais grave e a outra com a voz de um adolescente.) (Voz grave) Você me lembra alguém...Agora me lembrei: Lázaro, Lázaro. Lógico. (Voz de adolescente) Mas você alguma vez já viu o rosto de Lázaro? (Voz grave) Não importa. Sei que você se parece a Lázaro. (Voz normal) A tarde era de águas. E o homem e o adolescente caminhavam depressa. Agora tudo era mais espesso. O ar muito grosso, o chão coberto de folhas gigantescas, lixo pássaros, muitos pássaros mortos, tudo lixo. (Voz grave) Toma. (Voz normal) Tirou do bolso um pedaço de carne. (Voz grave) Come. (Voz de adolescente) Carne! Nunca! Ainda que eu tivesse de comer as folhas espremidas deste chão. (Voz grave) Bem, se não comemos, é melhor jogá-lo fora... (Voz adolescente) O importante é chegar... você não vê... noutro lugar. Corre, corre. (Voz normal) Eles fugiam, fugiam, tentavam correr, e viram de repente aquelas mulheres velhas perto dali. As velhas colocavam as plumas nas pequenas armações. (Voz adolescente) Serão asas o que elas constróem? Hein? (Voz grave) Claro! Claro! Você nunca viu? São asas para a procissão. (Voz adolescente) A procissão? Meu Deus! (Voz grave) Pois é. Precisamos sair a tempo. Amanhã vários homens serão mortos e essa é a única regalia que o chefe concedeu. Enquanto eles caminham para a morte as mulheres velhas podem colocar as asas nos coitados. Dizem que assim, esses que vão morrer terão mais chances. (Voz adolescente) Chance? Chance? Não entendi. (Voz grave) O chefe disse que com as asas há chance de subir ao céu. (A mãe está muito emocionada. Ri. Suspira) Ah, que bela estória, que humor! (Beija o menino) E você ainda era tão pequeno! Como é que você pôde se lembrar dessas coisas? Tão pequeno!

Menino (Triste. Lentamente) Eu não me lembro de nada. (Olha para os homens

amarrados) Não me parece justo que façam isso com os homens. Menino Eu falo desses homens, esses aí que estão amarrados.

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Mãe Ora, mas que insistência, menino. (Puxa o menino para perto de si) Ainda bem que a praça está deserta. Olha, senta aqui. (Senta-se no banco) Vamos ver se você está mesmo firme na Física.

Menino (Aborrecido) A minha nota não foi a mais alta? Então. Mãe Ah... mas é sempre uma satisfação para a mãezinha comprovar as qualidades de

seu filhinho. Quero ver... (Fica em dúvida sobre o que vai perguntar para o menino) Bem... eu na Física ainda não sei bem por onde começar... (Pensa mais um pouco) A matéria?

Menino Ora mamãe. Mãe Mas a matéria não é o começo da Física? Não se estuda a matéria? Pelo menos

que eu me lembre... Menino (Interrompendo aborrecido) Já sei, mamãe, do que você se lembra: “Matéria atrai

matéria na razão direta das massas e inversa do quadrado das distâncias.” Mãe É isso! É isso mesmo! E eles continuam a falar dessa forma tão complicada? Menino (Aborrecido) Como complicada, mamãe? Mãe Razão direta das massas... inversa dos quadrados... Menino Cada um fala a sua própria linguagem, não é? Mãe Bem, eles podiam ser um pouco mais claros. Menino (Olhando fixamente os homens) Foi o que eles foram? Mais claros? Falaram

abertamente? Foi isso? Foram mais claros? Mãe Quem? Menino Os homens amarrados. Mãe (Puxando o menino) Oh senhor! Põe também o seu chapeuzinho. (Tira o

chapeuzinho das mãos do menino e o coloca na cabeça do menino. No chapeuzinho há um emblema que é a figura de uma caixa preta com a tampa levantada) O que é isso?

Menino (Indiferente) Esse é o emblema daqueles que tiveram a nota mais alta de Física. Mãe (Examinando o emblema com alguma indiferença) Uma caixa preta com uma

tampa levantada? Ótimo (Põe o boné no menino) Outra coisa, vamos... seja bonzinho. Eu também tenho vontade de saber. O que é isso que caiu na prova?

Menino (Olhando os homens) Os postulados de Niels Bohr .

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Mãe (Encantada) Ele se chamava Niels? Se chamava Niels? Menino Ora mamãe. Mãe Ora mamãe, o quê? Vamos. São quantos? Menino (Contrariado) São três. Mãe (Com firmeza) Então diga os três. Menino Mas por quê? Você já não sabe que eu tirei a nota mais alta? Mãe (Mais branda) Diga pelo menos dois. Menino (Olhando os homens) Será que eles estão mortos? Mãe Diga dois. (Com firmeza) Diga dois. Menino Está bem. Mas papai ainda vai demorar? Mãe Depois veremos. (Agrada o menino) Dois postulados só... Menino (Lentamente) Primeiro: “De todas as órbitas circulares e elípticas mecanicamente

possíveis para os elétrons que se movem em torno do núcleo atômico (Levanta a voz) apenas umas poucas órbitas altamente restritas são ‘permitidas’ e a seleção dessas órbitas permitidas faz-se com observância de certas regras especiais.” (Diminui a voz) Segundo: “Ao girar ao longo dessas órbitas em torno do núcleo, (Levanta a voz) os elétrons são ‘proibidos’ de emitir quaisquer ondas eletromagnéticas, embora a eletrodinâmica convencional afirme o contrário.”

Mãe (Encantada) Oh que beleza, que beleza... “afirme o contrário” Que beleza! (Beija

várias vezes o filho) Beleza, beleza, beleza. Menino Eu estou com os pés molhados. E não agüento mais ver estes homens. Mãe Mas você tem que se acostumar. Sempre que voltar da escola e passar pelas

praças vai ver esses homens. Menino (Angustiado) Sempre? Mãe Pelo menos durante muito tempo ainda. Hoje são esses, amanhã serão outros. Menino Mas você acha que está certo? Mãe Menino, pensa na Física, pensa na Física. Nas órbitas permitidas, ouviu? (Pausa)

(Resolve agradar o menino) Olhe, escute... Eu achei um cachorrinho (Fala baixo)

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na rua, lindo, lindo... tem duas orelhinhas, quatro patinhas, um focinho tão friozinho... você vai brincar com ele, vai gostar, vai adorar!

Menino (Sorrindo com tristeza) Um cachorrinho? Mãe Fale baixo, fale baixo. Menino Faz tanto tempo que eu não vejo cachorrinhos... por que mamãe? Mãe Olha, você vai entender... O Novo Sistema... (O menino esconde o rosto nas

mãos) Mas você está chorando? Menino (Lentamente) Não, eu não estou chorando mamãe. (Olha para os homens) Eu

estou praticamente morrendo. Mãe Ora, que bobagem, menino! Você diz sempre coisas para me assustar. (O menino

continua a olhar para os homens com piedade) Está bem. Sabe do que vamos falar agora? Sabe? Pois eu vou falar desses dois homenzinhos.

Menino Você vai me explicar? Oh, minha mãe, eu agradeço tanto! Pensei que você

sempre se recusaria. Mãe Eu? Recusar alguma coisa a você? Filhinho... Menino (Abraçando a mãe) Mamãe! Mamãe! Mãe Olha, esses homenzinhos não foram bons, ouviu? (Aparece o pipoqueiro) Olha o

pipoqueiro! Moço! Moço! Vem cá. (O pipoqueiro atende depressa depois de olhar muito rapidamente para os postes)

Pipoqueiro Pronto dona. Mãe Dois saquinhos de pipocas, por favor. Menino (Triste) Eu não quero. Mãe Imagine! (Para o pipoqueiro) Ele é louco por pipocas. Fala assim porque é muito

delicado. (Começa a comer as pipocas enquanto o pipoqueiro olha atentamente para o emblema do menino)

Pipoqueiro É um bom menino, dona. Meus parabéns. Mãe Também já escreveu contos. Pipoqueiro Meus parabéns. Mãe É muito asseado.

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Pipoqueiro Meus parabéns. Mãe Teve uma medalha de ouro no início do semestre. E tenho certeza de que vai se

graduar suma cum laudae. Pipoqueiro Meus parabéns. É mesmo um bom menino. Menino (Olhando para os homens) Posso comprar qualquer coisa para os homens

comerem? Mãe (Aflitíssima, para o pipoqueiro) Obrigada, obrigada, pode ir. Pode ir. (O

pipoqueiro afasta-se depressa, olhando rapidamente para os postes) Mãe (Contrariada) Você precisava falar dos homens diante do pipoqueiro. Menino Mas ele também olhou para os homens, mamãe... Mãe Mas você viu o jeito que ele olhou? Rapidamente, muito rapidamente, apenas um

instante. Menino Mas o que é que tem olhar bastante para os homens, mamãe? Eu não posso nem

olhar como quiser? Mãe Oh, menino! Você já se esqueceu dos postulados? Como é? Como é mesmo?

“apenas”... “apenas”... Menino “Apenas umas poucas órbitas altamente restritas são permitidas...” Mãe E depois? E depois? Menino “E a seleção dessas órbitas permitidas faz-se com observância de certas regras

especiais” Mãe Então, mocinho, então? Menino Mas isso é Física, mamãe! Mãe (Desesperada) Fale baixo. Oh senhor! Eu já estou cansada de dizer ao seu pai

que tudo isso não vai adiantar. Eles não estão sendo claros! Não estão sendo nada claros! (Afasta-se u pouco do menino e fala consigo mesma) Ele não compreende a relação da Física com tudo o que é preciso aprender agora. Todos dizem que este é o novo método indireto, e esse método ia resolver tudo, que as autoridades sabem o que fazem, que ia adiantar, que ia adiantar... adiantou nada, as perguntas são as mesmas de sempre... (Olha para o menino, de longe) O meu menino não entendeu, oh, estou exausta e inquieta, lógico... (Para o menino) Pára de olhar os homens, sim? (Aproxima-se do menino)

Menino Mas não tem sentido, mamãe! Como é que eu posso...

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Mãe (Interrompendo) Sentido! Sentido! Que sentido! (Aparece o pai no começo da

praça) Olha, o seu pai vem chegando. Agora nem posso ir para casa nesse estado de nervos.

Pai (Aproxima-se, olha para os homens no poste rapidamente. Levanta o menino nos

braços) Então, meu filho, tudo vai bem? (Beija a mulher) Tudo bem? Mãe (Com ironia) Tudo bem... Você já vai ver. Pai (Apreensivo) O que foi? Não teve boa nota? Mãe (Com ironia) Pelo contrário. Teve a nota mais alta... de Física. Olha o emblema. Pai (Contentíssimo) A nota mais alta de Física? Eu sabia! Meu querido filho! Então é

esse o emblema? (Examina) Que beleza! Uma caixa preta... com a tampa levantada... muito bem, muito bem.

Menino Daqui por diante eu só poderei conversar com os colegas que têm o mesmo

emblema. Pai Muito bem, papai está muito contente. Mãe (À parte, com o pai) Eu também estava... mas só até a porta da escola. Depois ele

chegou aqui nesta praça. E esse será o nosso caminho diário. Oh, senhor! Eu também estava muito contente, (O menino fica longe) olha de vez em quando o triângulo, olha os pais, olha, com receio da mãe, os homens amarrados)

Pai (Para a mãe) Mas o que foi? Mãe Os homens amarrados. Pai Ele olhou muito? Perguntou? Mãe O tempo inteiro. Pai Mas não é possível... com a nota mais alta! Mãe (Desesperada) Mas ele não entende! Não vai entender! Nós não vamos conseguir

nada. A Física para ele é somente a Física. Pai (Olhando ao redor) Fale baixo. Mãe (Desesperada) Eles não estão sendo claros! Eles não se fazem entender! Pai Não é verdade. Não pode ser. (Olha para o menino) Ele é pouco sensível, mas

vai depender de nós, você vai ver. eu vou tentar explicar tudo sem chocá-lo.

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Mãe (Balançando a cabeça) Como você é teimoso! Pai (Perdendo a paciência) Teimoso? Você tem coragem de me dizer que sou

teimoso? Você não entende que nós estamos correndo um risco? Se todos estão aprendendo assim, ele tem que aprender, ouviu?

Mãe Não adianta gritar comigo. Grite com ele. Pai Gritar com ele? Você parece que não conhece seu filho. Aí sim é que podemos

perder as esperanças. Não é um menino com quem se possa gritar. (Começa a se desesperar) Oh... que situação... todos estão aprendendo... tem dado resultado, é preciso que dê resultado para o nosso menino!

Mãe Está bem. Faça como você quiser. Pai Mas a nossa vida está em perigo e o menino acaba indo para o instituto e você diz

simplesmente - faça o que quiser? (Levanta a voz) E você acha que eu posso fazer como quero? (O menino olha para o pai meio intrigado)

Mãe Bem, ele não deixará de olhar os homens (Acentua) “demoradamente” e não

deixará de perguntar. Pai (Desesperado) Mas isso é para nós dois como uma sentença... de (O menino

começa a se aproximar do pai) Meu Deus! Mãe Não fique assim. Ele já está percebendo. Não fique assim na frente dele. Vamos

ter calma. Pai É verdade. Vamos nos sentar um pouco. (Sorri) (O menino chega perto do pai)

Filho, senta aqui com papai. Menino (Olha muito para o pai, depois olha para os homens) Você está vendo, papai? Pai O que, meu filho? Menino Os homens. Pai (Grave) Escute, meu filho, esses homens (Aparece novamente o pipoqueiro) Mãe (Interrompendo) Olha o pipoqueiro outra vez. (Para o menino) Você quer

pipocas? Pai Sim, sim. (Para o menino) Nós dois queremos, não é, meu filho? Mãe Ele não quer, mas nem por isso você vai deixar de comer. (Para o pipoqueiro)

Moço! Moço! Pode voltar. Pipoqueiro (Aproximando-se rapidamente, mas agora sem olhar os homens) Pronto dona.

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Mãe Outro saco de pipocas, por favor. Pipoqueiro Pois não. (Para o pai) Meus parabéns, meus parabéns. Pai (Surpreso) Meus parabéns? Mãe Eu já contei que o menino teve a nota mais alta de Física. E depois o emblema.

(Come as pipocas) Pai (Interrompendo) Oh, sim! (Para o pipoqueiro) Muito obrigado, moço. É mesmo

pra gente ficar contente, não? Pipoqueiro Evidente, senhor, evidente. Mãe (Para o pipoqueiro) Obrigada, obrigada. (O pipoqueiro afasta-se repetindo: meus

parabéns) Menino Então, os homens, papai... Pai Ah, sim. Escute, meu filho, esses homens não aceitaram o Novo Sistema. Você

compreende? Não foram bons homens. Mãe (Interrompendo) Eu já disse isso a ele. Pai (À parte, para a mulher) Mas eu tinha te avisado que qualquer explicação cabia a

mim. Mãe Mas foi impossível evitar. Pai Bem, bem. Outra vez, deixe por mim minha conta, ouviu? Menino Então, os homens, papai... Pai Oh, menino! Você quer ver o seu pai doente? Menino Não, papai! Imagine. Eu não quero. Pai Você gosta do seu pai? Menino Lógico, papai. Pai E da sua mãe? Menino Lógico que eu gosto de mamãe. Pai Então esqueça esses homens. Ou melhor, não esqueça, não esqueça, mas imagine

que você os viu apenas por um instante, está bem?

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Menino Mas não é lícito o que você está me pedindo. São seres humanos no poste, não é? Pai Não são nada agora. Menino (Desesperado. Demonstra grande angústia) Você quer dizer que eles estão

mortos? Pai (Tentando acalmar o menino) Não fique assim... o quê? Mas quem te falou que

estão mortos? (Para a mulher) Você falou isso para ele? Mãe Eu? Imagine? Menino (Para o pai) Você mesmo é que disse que eles não são nada... e eles não se

mexem... é verdade! Eles não se mexem... Pai E tudo que não se mexe está morto, por acaso? (Tentando brincar e acalmar o

menino) A nota mais alta de Física, hein? Não posso acreditar... Menino (Mais calmo) Você quer dizer, papai, que eles parecem mortos mas não como

certas estruturas inapreensíveis... Pai (Interrompendo) Não é bem isso. Menino Então eu não compreendo. Pai Mas você já quer entender tudo de uma hora para outra? Por enquanto pense

somente isso: Esses homens estão aí porque não foram bons. Menino Mas estão mortos? Pai Essa será uma explicação posterior. Menino Mas eu não agüento esperar, meu pai. Pai Mas você já não sabe que eles estão aí? Menino Sim, isso eu sei. Pai E que eles não foram bons homens? Menino Isso eu não sei, meu pai, porque você não me disse porque que eles não foram

bons homens. Pai Mas eu te afirmo que eles não são bons homens, você me acredita? Menino Papai, primeiro você falou que eles não “foram” bons homens, e mamãe também

falou assim. Agora você fala que eles não “são” bons homens. (Começam a surgir

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na praça dois escudeiros carregando uma escada) Mas, afinal, eles “foram”, não “são”... eles estão vivos ou mortos?

Pai (Interrompendo) Cht, cht! Fique quieto. (Para a mulher) Olha, olha. Mãe (Tensa) São os escudeiros. Pai (Para o menino) Agora fique quieto. Pai (Para a mulher) Vão tirar os homens. Menino (Para o pai) Vão salvá-los, afinal? Pai (Em tensão) Vão tirar os homens do poste, foi isso o que eu disse. (Os escudeiros

chegam perto do poste. Um deles começa a subir na escada para desamarrar um dos homens. O outro escudeiro olha muito para a família a faz menção de se aproximar mais do pai, que se adianta com certa rapidez. Diz para o menino: “Fique aí”. Para os escudeiros: “Boa tarde, boa tarde.”)

Escudeiro 1 (Que é o que está no chão. Para o escudeiro 2, que é o que está na escada)

Primeiro desamarra o trono. (Para o pai do menino) Nós vamos recolher. Pai Ah, muito bem. Escudeiro 1 (Olhando fixamente para o menino, que está com a mãe) Seu menino? Pai Sim, sim. A nota mais alta de Física. Escudeiro 1 Acho que estou vendo o emblema. Meus parabéns. O senhor está satisfeito? Pai Claro, muito satisfeito, claro. (O escudeiro 1 começa a desamarrar os pés de um

dos homens) Vão recolher, então? Escudeiro 1 Para colocar os outros. Pai Ah, sim. São muitos? Escudeiro 2 Incrível, senhor, incrível. O escudeiro mór não esperava tanto. Ele nos disse que

são tantos como formigas. (Ri) Aquelas grandes com asas... o senhor sabe. Pai É... as asas Escudeiro 1 Tempos inquietantes, hein, senhor? Pai Bem, se é para melhor, tudo vai bem. É preciso colaborar. Escudeiro 2 Assim é que é bom ouvir falar. Trabalhamos muito mas temos esperanças. Existe

muita gente como o senhor, com fé, com esperança.

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Escudeiro 1 Mas então o menino é a nota mais alta de física, hein? Pai Não foi uma surpresa. Nós já estávamos esperando (O menino consegue se

desvencilhar da mãe e começa a se aproximar dos escudeiros apesar dos sinais aflitos da mãe).

Escudeiro 1 Então mocinho, o que é que caiu na prova? (O pai só percebeu nesse instante que

o menino está perto. Fica muito aflito. Dá a entender discretamente ao menino que se afaste. O menino demora um pouco a entender) (Para o escudeiro 2) A nota mais alta de física.

Escudeiro 2 No outro bloco é uma menina. Um pouco maior que ele (O menino resolveu

atender o pai e vai se afastando). Escudeiro 1 Mocinho, mocinho! (O menino volta-se) Então não me disse o que caiu na prova? Menino Eu já disse para a minha mãe. Pai Mas o senhor escudeiro está perguntando. Diga novamente. Menino (Indiferente) Caiu os postulados de Niels Bohr (Os escudeiros fazem

imediatamente continência). Escudeiro 1 Os postulados, muito bem. Escudeiro 2 Pontos básicos (O pai manda discretamente que o menino se afaste. O menino

afasta-se para junto da mãe. A mãe tenta vários recursos para distrair o menino. Tenta fazer um joguinho idiota com o menino. Mostra três dedos da mão direita e dois da esquerda, entende-se que ela está pedindo para que o menino faça a soma. O menino dá um sorriso, tenta segurar os dedos da mãe. A mãe tenta dificultar aritmética. Mostra dez dedos, esconde dois etc., manda dividir, multiplicar etc.).

Escudeiro 1 O método tem sido muito eficiente. E bem coadunado como novo espírito, não?

(À parte, para o pai) Eles não estão gostando muito, o senhor sabe? (Os escudeiros fazem o trabalho com moleza, preferem conversar)

Pai Eles? Quem? Escudeiro 1 Os grandes... os tais da física. Pai Não diga... está havendo então (O escudeiro desce da escada colocando o

homem no chão). Escudeiro 1 Não, não está havendo nada, o escudeiro mór não permite (Para o escudeiro 2)

Agora eu subo. (Põe a escada no outro poste. Vai subindo. Fica no alto) (Para o pai) Mas nota-se o olhar, sabe? Na maneira de responder... (Inclina-se para falar melhor ao pai) Se a gente pergunta, por exemplo, se todos os elementos estão

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aproveitando com o máximo de rendimento, é porque é nosso dever perguntar, o senhor sabe.

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Pai Lógico, lógico. Escudeiro 1 ... fazem umas caras meio enfezadas... fecham os olhos assim...

demoram para responder... querem saber o que é exatamente que nós entendemos como o máximo de rendimento. Tão simples, não acha o senhor? O máximo de rendimento é o máximo de rendimento.

Pai Lógico, lógico. Escudeiro 1 ... mas para eles é um cavalo de batalha... são minuciosos... na

verdade não estão entusiasmados com o Novo Sistema. Pai Mas não será por excesso de trabalho? Escudeiro 2 Que nada! Trabalho? Trabalho temos nós. Escudeiro 1 Estafante, de dia, de noite. Pai Agora também de noite? Escudeiro 2 O senhor sabe, lá não é muito espaçoso para conservar os corpos. Escudeiro 1 Não podem ficar lá muito tempo. Devem vir para cá. Escudeiro 2 Mas assim, com tanta gente, o serviço foi triplicado (O menino

aborreceu-se horrivelmente com o jogo da mãe e escapa correndo para junto do pai).

Pai Filhinho, volte lá com a mamãe, os senhores escudeiros estão

ocupados (O menino vai-se afastando mas olha com insistência para o corpo que está no chão. Os escudeiros entreolham-se)

Escudeiro 1 (Severo) Ele parecia olhar de um jeito fora da lei. Demorou olhando.

O seu menino demorou olhando. Pai Não, não. Absolutamente. Ele é curioso em relação aos senhores. Os

senhores são pessoas importantes, ele fica curioso... (A mãe dá ordens para que o menino não se afaste do banco e aproxima-se do pai temendo que ele esteja em perigo).

Escudeiro 2 Ah... então está bem... meus parabéns (Para a mãe) Meus parabéns.

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Mãe (Para os escudeiros) Ele é muito asseado também. Escudeiro 1 Ah... isso é primordia l. A física e a higiene. Escudeiro 2 Os higienistas percorrem todos o país. Escudeiro 1 E têm dificuldades. Mãe Lógico... compreende-se... é difícil a higiene, não? Bem, com licença

senhores (Vai se afastando, tenta puxar o marido sem conseguir convencê-lo a afastar-se).

Escudeiro 2 Parabéns ao menino, hein? Se todos tivessem começado assim, nós

não teríamos tanto trabalho. Mas daqui por diante tudo começará o berço, não é mesmo?

Mãe É... no berço sempre se começa... sem dúvida senhor. Bem, com

licença. Pai (Para a mãe) Vai dar uma volta com o menino. Mãe Está bem. (Aflita) Mas onde? Todas as praças estão... Pai (Interrompendo) Vai, vai. Por aí (A mãe e o menino saem). Escudeiro 1 (Para o pai) Mas como eu ia dizendo ao senhor... os tais da física

complicam tudo (desce da escada com segundo corpo , coloca o segundo corpo no chão). Olhe, para o senhor nós podemos contar... (Voz mais baixa) O menino é mesmo a nota mais alta, não é?

Pai Sim, o senhor pode se informar, o número dele é... Escudeiro 1 (Interrompendo) Pelo escudeiro mór! Então já não vi? Ele tem o

emblema! Quero dizer apenas que para ser a nota mais alta de física deve ter tido também boa orientação dentro de casa, porque tem uns que são a nota mais alta e os pais são uns bobalhões, põem tudo a perder... mas com o senhor já vi que posso falar tranqüilamente. O senhor é um homem instruído no Novo Sistema, já vi... fez o preparatório para os pais, não é?

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Pai É... fiz o possível. Escudeiro 1 Muito bem. É o seguinte sabe, o núcleo atômico. Escudeiro 2 (Interrompendo) Não, não comece assim... Deixa que eu explico. Escudeiro 1 Está bem, explique, explique para esse excelente senhor. Escudeiro 2 (Para o pai) De acordo com eles, os grandes, os tais da física, o

núcleo atômico (Voz baixa) o senhor sabe o núcleo atômico, não é?

Pai Perfeitamente... o... o núcleo. Escudeiro 2 Pois é. Então, de acordo com eles, o núcleo atômico... não é uma

estrutura rígida, compreendeu? Pai Perfeitamente. Está claro. Escudeiro 2 Então queira repetir. Pai O núcleo atômico não é uma estrutura rígida. Escudeiro 2 (Continuando com ênfase)... antes... veja bem, antes um sistema

dinâmico. Compreendeu? Pai Perfeitamente. Escudeiro 2 Simplíssimo, não acha? Pai Cristalino. Escudeiro 2 Então queira repetir. Pai O núcleo atômico não é uma estrutura rígida. Antes um sistema

dinâmico. Escudeiro 1 Muito bem senhor. Bravo, bravo! Escudeiro 2 Pois o escudeiro mór pediu com muita delicadeza, como sempre aliás,

para os tais da física, que eles aplicassem esse princípio ao Novo

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Sistema. Assim, quase como um lembrete. Antes de começar cada aula, eles diriam: Não somos uma estrutura rígida. Antes um sistema dinâmico. E isso já está sendo ???? em grandes faixas por toda a cidade. E gravações também repetindo o mesmo princípio, e em seguida ouviremos a voz do escudeiro mór.

Pai Depois de enunciar o princípio? Escudeiro 1 Claro. Pai E o que o escudeiro mór dirá? Escudeiro 2 Espere... já chego lá. então o princípio será... (Numa voz muito clara,

muito bonita .Tenta conseguir uma bela voz) “Não somos uma estrutura rígida, antes um sistema dinâmico”. Agora a voz do escudeiro mór (Faz uma voz possante) Como o quê? (Bem espaçado) Como o quê? E todas as nossas crianças responderão (Imita a voz das crianças) Como o núcleo atômico, como o núcleo atômico, como o núcleo atômico. Belíssimo, não acha?

Pai Muito criativo realmente... e depois o núcleo atômico... Escudeiro 1 (Interrompendo) É uma das coisas mais importantes... é a mais

importante. Pai Talvez será sempre. Escudeiro 2 Talvez, não. Sempre, sempre será importante. Pai Lógico. Escudeiro 2 Pois bem. Os tais da física fizeram umas caras... uma coisa tão

simples, um slogan perfeito, altamente elucidativo. Dinâmico, dinâmico... e o senhor precisava ver a paciência do escudeiro mór explicando para os tais que é muito importante que se faça assim, porque eles não queriam saber, não queriam saber!

Escudeiro 1 (Interrompendo) Por enquanto é preciso ter paciência com eles, o

senhor sabe. Pai Por enquanto?

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Teatro reunido Hilda Hilst 171

Escudeiro 1 Olhe, para o senhor nós podemos contar (Para o escudeiro 2)

Podemos, não é? (O escudeiro 2 assente) O menino é mesmo a nota...

Pai (Interrompendo) Sim, sim. Escudeiro 2 Lógico, já vimos, lógico. Escudeiro 1 (Para o pai) Não é por nada meu senhor... é só por disciplina que nós

perguntamos, entende? (A voz baixa) É que são certos planos ainda em embrião...

Escudeiro 2 (Sorrindo) Um embrião quase formado... lá pelo sétimo mês (os

escudeiros sorriem). Escudeiro 1 É o seguinte (Diminui a voz): o escudeiro mór não vai ter paciência

durante toda a vida. Assim que as crianças notas altas de física estiverem aptas... com toda a informação...

Pai (Interrompendo) Mas isso leva muitos anos! Escudeiro 2 Que nada! Estudam praticamente o dia inteiro... Pai Talvez, pode ser. Escudeiro 1 Pode estar certo meu senhor. Estão aprendendo muito depressa. Pai Mas o senhor disse que... Escudeiro 2 O senhor ainda não deduziu? (Ri) Pai O escudeiro mór dará uma solução... aos tais da Física. Escudeiro 1 Se eles não colaboram... a solução mais prática (Sorri e alisa o poste). Escudeiro 2 É uma coisa lógica, muito lógica, compreendeu? Mas por enquanto é

preciso ter muita paciência. E nisso o senhor escudeiro mór é um mestre, aliás em tudo... Conversou longamente com eles e de vez em quando ouvíamos umas frases que os tais diziam, exaltados, ouviu? Exaltados... (Imita a voz do físico e o jeito de fala fechando os olhos)

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“Impossível, praticamente impossível, presta-se a distorções irremediáveis, impossível... a Física é a Física.

Escudeiro 1 E o senhor escudeiro mór falou, falou, falou. Até que foram obrigados

a ceder. Que figura! Que paciência! Escudeiro 2 (Para o pai) O senhor é um bom homem, ouviu? Bem, precisamos ir

andando. O trabalho é muito. Escudeiro 1 É verdade. Vamos indo (Começam a levantar os corpos do chão)

(Para o pai) O senhor ainda fica por aqui? (Aparecem a mãe e o menino)

Pai Vou esperar minha mulher... (Olha ao redor) Ah, já chegaram. Acho

que é o momento de ir para casa (Afasta-se um pouco) Bem, muito obrigado (Aparecem mais dois escudeiros com mais dois corpos. O corpo de um padre e de um bispo).

Escudeiro 2 (Para o escudeiro 1) Olhe, eles se adiantaram a nós. Já vêm trazendo

os outros corpos. Menino (Triste) Mamãe, eu já estou com os pés molhados. Mãe Já vamos, filhinho, já vamos (Os quatro escudeiros fazem continência.

Um deles, o positivo, um dos que acabaram de chegar, olha muito para o menino).

Menino (Aflito, referindo-se aos novos corpos) Mamãe, esses também não se

mexem? Mãe Quem, filhinho? Menino Esses outros que chegaram agora (Refere-se aos corpos do padre e

do bispo). Mãe Cht, cht. Pai Vamos indo, vamos indo (O pai tenta atravessar a praça fazendo o

possível para que o menino não olhe para os corpos, mas o menino não se contém, está muito agitado. O mesmo escudeiro, o positivo,

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que olha fixamente para o menino, continua olhando, enquanto mantém um diálogo com os outros escudeiros que já estavam ali).

Escudeiro Positivo (Para o 1 e o 2) Aqui nesta praça é a primeira troca. Mas nas outras

já fizeram três. Vocês estão atrasados. Escudeiro 2 É que amarraram demais. Também não é necessário amarrar tanto.

Afinal de contas já estão (A família passa lentamente por eles e o pai e a mãe tentam ser naturais).

Escudeiro Positivo Esses, quem são? Escudeiro 1 Boa família. O menino é a nota mais alta de Física. Pai (Para os escudeiros novos) Boa tarde (Para o 1 e o 2) Obrigado (O

menino fica muito agitado quando vê os quatro corpos no chão. Escudeiros novos Boa tarde. Escudeiro positivo (Para a família) Um momento, meu senhor. Um momento (A família

pára). Escudeiro 2 (Para o positivo) O que foi? Escudeiro positivo (Para o 1 e o 2) A nota mais alta de física, hein? Mas sem muito

rendimento, sem muito rendimento. Ele está agitado. Escudeiro 1 (Para o positivo) Você acha? Acho que não. O pai diz que o menino

tem admiração por nós, é por isso que ele fica olhando. Escudeiro positivo (Para o escudeiro 1) Não seja imbecil. Ele não está olhando para nós. Escudeiro 3 Está claro, está claro. Está olhando para os corpos. (Companheiro do escudeiro positivo) Escudeiro positivo Vamos resolver já. Escudeiro 2 (Para o positivo) Mas espere um pouco. O que é que você vai fazer?

A nota mais alta de física é a nota mais alta de Física.

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Escudeiro 3 Não, com o menino não acontece nada. Só o Instituto. Mas quanto aos pais... houve outra reunião apertando o cerco.

Escudeiro positivo (Para o 1 e o 2) Vocês já sabem... olhar demorado para o poste...

sintomas de agitação... interrogar os pais imediatamente. Sem o máximo de rendimento a criança vai para o Instituto Pedagógico. Lá é diferente.

Escudeiro 1 E os pais? Escudeiro 2 É velho... Escudeiro positivo Bem, vamos tratar disso logo. (Para o 3) Vai colocando. (O número 3

começa a colocar os novos corpos no poste. Os números 1 e 2 ficam por um instante olhando a operação).

Escudeiro 1 Esses eu teria até medo de tocar (Está se referindo aos corpos do

padre e do bispo). Escudeiro 3 (Para o 1) Vai se acostumando. Desses é que tem bastante. Escudeiro positivo (Para o 1) Medo do quê? Escudeiro 1 Sei lá. Eles me metem medo. Escudeiro positivo (Para o 3) Você pode terminar sozinho? Escudeiro 3 (Rindo) Pode deixar. (COM)???Esses, o demônio me ajuda (Ri). O escudeiro positivo encaminha-se para a família. Escudeiro 2 (Para o positivo) Escute (O positivo volta-se). Ainda tem muitos na

morgue? Escudeiro positivo Dezenas, homem, dezenas. Parece que vamos ter que reduzir as horas

de exposição. Meia hora cada dois corpos. Escudeiro 1 É melhor, é melhor. Escudeiro 1 e 2 (Para o positivo e o 3) Até já (Saem com os corpos).

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Escudeiro positivo (Para os pais) Queiram me acompanhar um instante. Mãe Vem, meu filho, vem. Escudeiro positivo Não, o menino fica aqui na praça. Pai O menino vai ficar sozinho? Escudeiro positivo Como sozinho? O meu companheiro está aí (A mãe fica agitada). Só

por um instante. Não se preocupem. Venham. São ordens do escudeiro mór.

Mãe (Para o positivo. Aflitíssima) Mas não podemos ir, meu senhor. Pai (Interrompendo. À parte, para a mulher) Temos que ir. Não fale

assim. (Para o positivo) Pois não, senhor escudeiro. (Para o filho) Fique aqui. Sua mãe e eu já voltamos.

Mãe (Alfitíssima) Filho! Filho! Menino (Olhando para os corpos) Eu fico aqui sim mamãe. Mãe (Desesperada. Voz baixa, para o filho) Não olhe mais para os corpos

(Tenta abraçar o menino) meu filho... Escudeiro positivo Não podemos demorar mais, senhora. Queira me acompanhar. Pai (Para a mãe, que está desesperada) Não faça assim, não é nada,

talvez uma simples advertência. Mãe (Afastando-se com o pai e o escudeiro) Meu filho... eu não soube, eu

não soube, eu não soube... (O menino está totalmente fascinado com os corpos e não presta atenção na mãe).

O menino fica sozinho na praça com o escudeiro número 3. O escudeiro continua atarefado amarrando os corpos do padre e do bispo. Menino (Aproxima-se dos postes. Para o escudeiro) São gente religiosa?

(Pausa) Estão mesmo mortos? Escudeiro 3 O que é que caiu na prova?

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Menino Os postulados de Niels Bohr. Escudeiro 3 (Fazendo continência) então, menino, vai para lá. Olha as órbitas

permitidas... Menino Mas estão mortos, não é? Escudeiro 3 (Rindo) Mas eles tiveram chances. Menino Chances? Escudeiro 3 (Rindo) Já colocaram as asas. E agora já tiraram. É só durante a

procissão. Menino As asas? A procissão? Escudeiro 3 Ora, você não sabe? É assim: as velhas colocam as asas durante o

percurso-procissão que eles são obrigados a fazer até chegarem ao lugar da morte. Quando as velhas fizeram esse pedido, o escudeiro mór deu boas risadas, deu excelentes risadas, mas depois entendeu que como as velhas vão morrer logo (à parte) porque elas não podem ser substituídas, depois delas acaba esse negócio de asas, inventa-se outra coisa, sabe???, elas são cinco mães de antigas autoridades imundas do Velho Sistema. Mas, então, o escudeiro mór achou o pedido das asas tão engraçado (ri) que não só concedeu essa licença, mas até resolveu transformá-la numa lei. Enquanto as velhas existirem, lógico (ri muito). Sempre as velhas devem colocar as asas, sempre, em todos. Elas têm um trabalho! Você já pensou? Fazer asas para tanta gente? É, mas elas é que fizeram... quero dizer, para ser bem exato, foi assim: enquanto os filhos, autoridades imundas do Velho Sistema caminhavam para a morte, uma delas disse (imita a voz de uma velha chorosa): “São anjos caminhando para a morte”. O escudeiro mór ouviu e respondeu: “Sem asas”. E uma outra continuou (imita a voz) “Se não vedes as asas, senhor, nós as colocaremos”. O escudeiro mór achou a resposta muito engraçada e morrendo de rir respondeu: “Em verdade, só isso é que fareis daqui por diante, até a vossa morte”. (Morre de rir) É muito engraçado tudo isso, hein? O que você acha?

Menino (Tristíssimo) Eu acho tudo isso muito doloroso.

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Escudeiro 3 Doloroso? Doloroso? Para aqueles que tentam fugir (rindo), mas não

machuca nada colocar as asas. São pequenas armações de plumas muito engraçadas. Os seres do Nosso Sistema que querem assistir o percurso-procissão devem reservar lugares com antecedência. é um grande ritual de alegria para a Nação. Você nunca viu?

Menino (Desesperado) Não. Escudeiro 3 Eu acho um espetáculo próprio para crianças. (Rindo) As plumas

descolam durante o percurso e é só pluma que voa. Às vezes quando eles chegam ao lugar da morte, só tem a carcaça da asa (morre de rir) espetada, assim.

Menino (Tristíssimo) As plumas? As asas são feitas de plumas? Escudeiro 3 Ora, menino, os pássaros estão por aí. Aliás, esse problema foi

também muito engraçado. As velhas, obrigadas a fazer as asas, pediram plumas de material sintético, mas o escudeiro mór (morre de rir) disse que absolutamente, que as plumas deveriam ser genuínas, de pássaros mesmo. Ele dizia: “Não é uma chance de subir ao céu? Não é uma chance de subir ao céu?”???? E dava excelentes risadas. Aí as velhas se danaram, não queriam mais colocar nada. (Imita as velhas chorosas) “Matar os pássaros? Nunca. Nunca”. O escudeiro mór não quis saber de nada. Designou três velhas para fazerem as asas, outras duas para caçar os pássaros. É, mas não estão dando conta. Quase não há mais pássaros e as velhas estão meio cegas. (Pausa) Você está chorando? Mas, menino, muitos ainda terão a chance de subir ao céu! (Morre de rir) Você é mesmo a nota mais alta de física do seu bloco? A nota mais alta chorando? (Ri) Não saia daí, hein... Não saia daí (sai).

O menino fica um instante sozinho apenas. Olha para os corpos amarrados no poste, depois senta-se no banco. Entra a menina. Lentamente. Olha para os corpos só com um movimento rápido de cabeça. Vê o menino. Aproxima-se. A menina veste blusa verde e saia branca. Um cinto preto de couro, boné igual ao do menino com o emblema da nota mais alta de Física. Menina (Unindo as mãos um pouco acima da cabeça, num gesto duro. É a

saudação dos jovens do Novo Sistema) He! Ha!

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Menino (Levantando-se, faz o mesmo gesto) He! Ha! Há uma análise mútua. Na menina, nenhuma expressão de simpatia, apenas análise cautelosa. Depois, ela olha para a praça mas não para o poste. O menino senta-se novamente. Está muito angustiado. Menina É limpa esta praça (Pausa. Todas as falas da menina são ditas sem

brandura) Menino É limpa? Menina Este chão é de pedra (Pausa). Menino As pedras são limpas? Menina Claro. Você conhece alguma coisa mais limpa do que a pedra?

Conhece? Menino Não (Pausa. A menina olha para os pés do menino). Menina Você está com os pés molhados? Menino Sim. Eu estou aqui há algum tempo e chovia quando eu saí da escola

(Pausa). Menina Daqui a alguns meses todos nós vamos passar um tempo no mar. É

bom ver o mar. O mar é limpo. Menino É limpo? Menina Você conhece alguma coisa mais limpa do que a pedra e mar? Menino Não (Pausa). Menina Meu pai hoje me mostrou a última poesia do Novo Sistema. É linda.

Eu vou te dizer (diz lentamente com muita gravidade): Nós devemos ser iguais à pedra

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Que no grande mar do Novo Sistema Mergulha. Nós devemos ser iguais à pedra E não como a cortiça que flutua. (Pausa) Você não se lembra de nada que tenha analogia com esse poema? Menino Não. Menina Mas pense um pouco. Menino É uma analogia com a Física? Menina Mas é lógico. Lógico. Menino Não. Eu não me lembro. Menina (Diz mecanicamente, mas muito grave. Está repetindo um trecho de

um grande físico): “Se jogarmos uma pedra n’água ela afundará, se jogarmos uma cortiça ela mergulhará.” ??? Citação acaba aqui? Estas duas afirmativas aplicam-se não somente a pedras e cortiças que foram vistas mergulhar e flutuar na água, mas sim a todas as pedras e cortiças... Se nos derem uma pedra que nunca foi lançada à água, nem por isso deixamos de crer que se a lançarmos ela afundará. Que justificativas temos para supor que essa nova e não experimentada pedra mergulhará na água? Sabemos que milhões de pedras têm sido até hoje lançadas n’água e nem uma sequer deixou de mergulhar. (Faz um parêntesis) A não ser as que pareciam pedra e eram cortiça (Continua no tom anterior) Concluímos que a Natureza tratar todas as pedras de igual maneira quando jogadas n’água (levanta a voz) e assim sentimo-nos confiantes de que as novas e não experimentadas pedras mergulharão sempre que lançadas n’água. (Tom muito grave) Isso quer dizer que todas as pedras mergulharão no mar do Novo Sistema. (Repete o poema com encantamento e seriedade)

A menina olha para o triângulo e em seguida para o menino que está de olhos fixos nos homens amarrados. Menino Você não vê os homens?

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Menina Não como você os vê. Menino Mas você pode entender que eu vejo os homens à minha maneira. Menina Ainda posso. Mas daqui a pouco não entenderei mais. (Pausa) Menino Eu estou só. Eu estou só. Menina Você pensa que está só porque agora você não pode mais falar

apenas de si mesmo. Você não compreende? Neste nosso tempo você só existirá se individualmente você representar o ser da coletividade. O ser da coletividade. Entendeu?

Menino E a coletividade não vê os homens? Menina Não dessa maneira que você vê. Escute: os olhos devem registrar essa

cena (aponta os homens sem olhar) apenas um instante. Amarrar os homens no poste é uma simples demonstração de poder. É para produzir em nós todos uma reação interior automática, você compreende? Automática. (Pausa) Nunca se falou tão claro.

Menino Você é a nota mais alta de Física do seu bloco, não é? Menina Você não está vendo o meu emblema? É igual ao seu. Menino Mas então... porque é que nós não podemos nos entender? Me ajude. Menina Mas eu estou te ajudando. Qualquer um com a nota mais alta de

Física já teria te denunciado, ou melhor, você mesmo se denunciaria se todo o seu ser não fosse de fato a coletividade. É um dever.

Menino E por que você não me denuncia? Você me ama? Menina Porque eu posso ainda te dar algum tempo. Tenho poder para isso.

(Pausa) Não, eu não te amo. Eu não sei o que é o amor. Eu sei o que é atração e repulsão. Você me atrai.

Menino Por quê? Menina Porque você é a nota mais alta de física do seu bloco. (Pausa)

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Menino Os meus pais... Menina (Interrompendo) Certos pais deviam ser amarrados nos postes. Menino Mas eles colaboram! Menina Ainda é uma ilusão perniciosa do Sistema. Eu sei que os pais nunca

saberão colaborar. Você não vê que é impossível? Ou você pensa que eles realmente se alegram com a tua nota mais alta, pela tua nota mais alta? A alegria desses pais não tem nada da minha alegria por exemplo. Eu me alegro porque sou o Novo Sistema. eu sou a coletividade. Os pais se alegram porque, através de crianças lúcidas do Novo Sistema, estão escapando da morte. Você sabe que a morte não será situação do Novo Sistema. Não para nós. Mas os pais carregam a morte porque já são muito velhos para se esquecerem dela. E você, se continuar assim, você vai para o Instituto. Lá, as notas mais altas adquirem em pouco tempo a consciência total do ser... o ser da coletividade. É como uma ressurreição. Como Lázaro (ri). Olha, eu posso ainda te dar algum tempo. Você vai compreender. Aliás, é um dos exemplos mais fáceis para se fazer analogia. Eu vou te fazer uma pergunta e você vai responder. É uma pergunta irrisória para quem é a nota mais alta, mas é só para ficar bem claro para você. Está bem?

Menino Pergunte então. Menina Bem, quando é... Menino (Interrompendo) Espera um pouco. Se eu não souber a resposta... é

grave para mim? Menina Mas é claro que você vai saber a resposta. Menino Sim, está certo, mas se eu não souber, é grave? Menina Mas você vai saber. Você é a nota mais alta de Física do seu bloco.

O que eu vou te perguntar é como se fosse o primário da Física. Menino Então pergunte logo. Menina Quando é que vemos o arco-íris?

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Menino (Lentamente) Quando olhamos em direção oposta a do sol e

quando... Menina (Interrompendo) Não, não continue. Está perfeito. É só essa primeira

parte que interessa. Você sabe fazer disso analogia com o Novo Sistema?

Menino Não. Eu me confundo. Minha mãe tenta me ajudar... Menina (Interrompendo) Olha, presta atenção. Então nós vemos o arco-íris

quando olhamos em direção oposta à do sol, não é? Menino Sim. Menina ... e isso quer dizer que na nossa analogia política que só podemos ver

a verdade quando olhamos em direção oposta a do sol, isto é, quando olhamos para dentro de nós (curva-se). E olhando para dentro de nós, nós vemos o quê?

Menino (Grave) Um arco-íris ensangüentado. Menina Não! O ser da coletividade! O ser da coletividade! O arco-íris é um

símbolo, você não entende? Na verdade, o arco-íris real que interessa é o ser da coletividade que está dentro de nós. (O menino dá sinais de angústia) O que foi?

Menino Você tem um cinto? Menina Tenho. Aqui (mostra o cinto da saia). Por quê? Menino Você é capaz de bater em mim? Menina (Rindo) Bater em você? Com o cinto? Menino Sim. Menina Mas eu não posso bater em você. Ninguém pode bater numa nota

mais alta de Física. E de mais a mais isso tem um ranço cristão. Menino Seja lógica. Faça o que eu peço.

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Menina Mas isso não é nada lógico. Menino É lógico sim, porque quando queremos agradar alguém que é

semelhante a nós, nos esforçamos para que esse alguém também se agrade de nós. E para te agradar eu quero entender o Novo Sistema.

Menina Para me agradar? Então, por amor? Menino Não sei. É uma certa convulsão dentro de mim. Menina O universo é feito de inteligência e de razão. Menino Você vai fazer o que eu pedi? Menina Mas eu não vejo como isso pode te ajudar. Menino Olha, eu repetirei em voz alta enquanto você estiver me batendo: “O

meu ser é o ser da coletividade, o meu ser é o ser da coletividade.” Você não permita que eu deixe de repetir. Compreender?

Menina Eu acho que o Novo Sistema é um método perfeito. E o que você

quer fazer é um reforço desnecessário. Menino Faça. Pense que eu sou como um bicho... e que só entendo essa dor. Menina Está bem. Então tire o casaco. (O menino está de pé. A menina

começa a bater pausadamente nas costas do menino enquanto ele repete: “O meu ser é o ser da coletividade” algumas vezes. Aos poucos, gradativamente, ouvem-se vozes de muitas crianças e exclamações He! Ha! muitas vezes. É uma manifestação popular na praça contígua à praça onde estão o menino e a menina. Ouve-se também a voz do escudeiro mór dizendo: “Como o quê? Como o quê?” E as crianças respondendo: “Como o núcleo atômico” (3 vezes).

Durante esta cena, o menino e a menina devem movimentar-se. Ela vai até o obelisco, ele olha para os homens. Há angústia e uma certa delicadeza entre os dois. Menina (Parando de bater o cinto no chão) Você está ouvindo?

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Ficam em silêncio. O menino olha fixamente para a menina. A menina está intrigada com o menino, mas não dá demonstração nem de piedade nem de afeto. Está curiosa. Olha curiosamente para o menino como se estivesse vendo alguma coisa que escapa ao seu entendimento. Enquanto ficam assim, continuam as exclamações He! Ha! que devem ser ditas com pequeno intervalo e energicamente. Em seguida, ouve-se uma voz masculina. Voz masculina Seres do Novo Sistema! Hoje o escudeiro mór está em pessoa entre

nós. Vozes das crianças He! Voz masculina E resolveu passar uma tarefa para vocês. Essa tarefa deve ser feita em

suas próprias casas. Daqui por diante, uma vez por semana haverá uma nova tarefa. Hoje é a primeira. As tarefas devem ser resolvidas com o máximo de perfeição. A coletividade compreendeu?

Vozes das crianças Sim! He! Ha! He! Ha! (Silêncio) Voz masculina Ouçamos o escudeiro mór. Voz do escudeiro mór Seres do Novo Sistema! Vozes das crianças (Muito entusiasmo) He! (Silêncio total) Voz do escudeiro mór Tenho em minhas mãos um manual de Física. Vozes das crianças He! Ha! Voz do escudeiro mór Vou abri-lo na página 203. Aqui está escrito: Observe o rádio de um

carro ou, melhor ainda, o painel de um avião. Você verá uma caixa preta metálica ou uma coleção delas. Vários fios entram e saem das caixas, ligando-as entre si ou com o exterior, com a antena ou com o solo, com linhas elétricas, ou com um alto-falante, ou com um mostrador. Levante a tampa de uma caixa e dentro você verá um labirinto de fios coloridos. Você não compreende a finalidade de cada fio, mas sabe usar perfeitamente bem a caixa preta. Tal experiência legou-nos uma frase útil e expressiva. Referimo-nos a um sistema físico de qualquer tipo como uma “caixa preta” quando o utilizamos sem

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analisar seu funcionamento, sem levantar a tampa. Esperamos levantar mais cedo ou mais tarde a tampa de todas as caixas pretas.

Vozes das crianças He! Ha! He! Ha! Voz do escudeiro mór A Física é um grande empreendimento dos seres do Novo Sistema.

Ninguém a conhece toda. A curiosidade de abrir as caixas pretas é necessária para o bom entendimento da Física.

Vozes das crianças He! Ha! He! Ha! Voz do escudeiro mór A confiança na caixa preta vem com o uso, a experimentação e

finalmente com a cobertura da tampa, a verificação do método de operação. O que permanece como caixa preta nesse instante será aberto pela vossa geração.

Vozes das crianças He! Ha! He! Ha! Voz do escudeiro mór Sua abertura envolverá, porém, o uso hábil de todos os tipos de

caixas pretas... caixas pretas, crianças, que nunca vimos. Vozes das crianças He! Voz do escudeiro mór Agora a tarefa para fazer em casa. Uma câmara fotográfica é uma

caixa preta para muitas pessoas, para todos até certo ponto, pois não sabemos como funciona a ação de cada parte (pausa) até que ponto uma câmara é uma caixa preta para vocês? Essa é a tarefa que deve ser respondida e relacionada com o Novo Sistema. E agora um pequeno esclarecimento para lhes facilitar a mesma tarefa: a maior parte das decisões que tomamos, a maioria das informações que recebemos sobre o mundo, penetram através dos olhos. No cérebro humano, a área chamada córtex visual, que recebe os sinais do olho, é maior que a de todos os outros sentidos juntos. O olho, seres do Novo Sistema, é uma caixa preta que usamos com audácia e precisão. Mas num quarto escuro, o olho se torna inútil. O olho depende de sinais luminosos. E o sinal luminoso, o grande sinal solar do nosso tempo, é o Novo Sistema.

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Vozes das crianças He! Ha! He! Ha! Voz do escudeiro mór A coletividade compreendeu? Vozes das crianças Sim. He! Ha! He! Ha! Voz masculina Não somos uma estrutura rígida. Antes um sistema dinâmico. (Duas

vezes) Voz do escudeiro mór Como o quê? Como o quê? Vozes das crianças Como o núcleo atômico. (Três vezes) Aos poucos as exclamações de He! Ha! vão se distanciando. Menino Já está anoitecendo. Menina E os teus pais não vieram te buscar. Menino Eles virão, não é? (Pausa) Olha, neste lugar eu ouvi dizer que havia um

lago e pássaros muito bonitos. Menina Eu nunca ouvi dizer isso. Menino Mas é verdade. Menina Como é que você sabe? Menino Eu ouvi minha mãe dizendo ao meu pai: “Como era bom quando havia

o lago e os pássaros tão bonitos.” Menina Pássaros... (Ri) (Pausa) Menino Minha mãe disse que achou um cachorrinho... e que ele está lá em

casa. Menina Sua mãe não colabora com o Novo Sistema. Não é permitido levar

um cachorro para casa. Deve-se chamar o serviço competente. A

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carne dos cães é um ótimo alimento para a nossa grande nação. Você não teve a orientação integral do Novo Sistema. Os teus pais escondem a verdade. Você parece frágil, seus pais devem ser frágeis, anêmicos para o Novo Sistema.

Menino E os seus? Menina Minha mãe também era frágil, desfibrada. Teve o destino de todos os

incompetentes e o seu corpo foi preparado para ficar exposto durante muitos dias, para que todos soubessem que o meu pai cumpre com rigor as leis do Novo Sistema.

Menino Seu pai? Menina Meu pai é o escudeiro mór. (Pausa) Menino Já está anoitecendo. Menina Você deve perder as esperanças. Eles não virão mais te buscar. Menino (Angustiado) Você tem certeza? Por quê? Menina Eu sei tudo. Você se emocionou com os homens amarrados. Eu já te

disse, os olhos devem registrar a cena, rápidos como um relâmpago. É só para provocar uma reação interior automática, eu não te disse. Automática. Pense nas melhores câmaras fotográficas.

Menino E você já sabia de tudo isso quando chegou aqui perto de mim? Menina Sim. Eu fui avisada. Uma das minhas tarefas é essa, não permitir que

as crianças iguais a você perturbem o trajeto de seus pais anêmicos para a morte.

Menino (Com extrema gravidade) E é isso que você fez comigo até agora.

Você simplesmente ganhou tempo? (Pausa) (Desesperado) Enquanto meus pais... Eu compreendi... Eu compreendi.

Menina Mas você não parece contente. E você devia estar contente. Menino Por quê?

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Menina Por ter compreendido. A nossa única alegria é o entendimento. Menino E tudo será sempre assim? O entendimento sem amor? Sem amor? Menina Sempre. (O menino aproxima-se da menina. Num gesto rápido pega o

cinto que estava no chão e o coloca no pescoço da menina) É tolice você fazer isso. Você está me machucando. (Rapidamente) Não adianta, minha morte não te salvará do Instituto e nem salvará teus pais da morte. Eles já estão mortos. Não adianta. Pare. Não adianta...

O menino mata a menina. Começa a arrastar o corpo para fora da cena. O palco vai escurecendo até ficar black out total. O menino também sai da cena. Fica apenas o obelisco iluminado girando lentamente. Entram depois de um instante os quatro escudeiros. Holofotes violentos sobre a cena. O escudeiro número três e o positivo trazem os corpos da mãe e do pai do menino. Todos começam a desamarrar os outros corpos e começam a amarrar os novos corpos no postes. Serviços rapidíssimos. Escudeiro 2 (Referindo-se ao corpo do pai) Ele parecia um bom homem. Escudeiro 1 (Referindo-se ao corpo da mãe) E ela parecia uma excelente mulher.

Meio distraída mas agradável. Escudeiro 3 Eu vi logo que o menino era mal orientado. Escudeiro 2 O escudeiro mór sempre diz: “Se eu não conduzisse à morte esses

pais, eles não saberiam o que fazer das próprias vidas.” Escudeiro positivo É que o negócio agora é meio complicado. É preciso ter olho e tutano. Escudeiro 2 É meio difícil ter olho e tutano. Escudeiro positivo É, mas os homens se acostumam. Escudeiro 1 Você está certo. No Velho Sistema era tudo na base da burrice e da

safadeza. E não se acostumaram? Demorou anos para acontecer tudo isso que está acontecendo agora.

Escudeiro 3 É como o escudeiro mór sempre diz: a coletividade é que importa. Um

homem isolado (faz com a boca um ruído de desprezo) é como um elétron. E daí, ele cita a frase de um que foi grande: “Um elétron isolado é qualquer coisa de inapreensível. Uma brisa, um sopro.”

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Escudeiro 2 E como é mesmo um elétron? Escudeiro 3 Ora, velho, a gente nunca vê um elétron, a gente só vê a trajetória

dele. Bem, vamos acabar com isso, rápido. (Terminam de amarrar os corpos)

Escudeiro 2 Está tudo pronto? Escudeiro positivo Agora vamos procurar o menino. (Começa a pensar. Rápido. Saem.

Os holofotes se apagam, ficando apenas o obelisco iluminando discretamente os corpos. Em seguida, black out total novamente)

Voz na praça contígua (monocórdica) (Alto-falante) “Escudeiros, lembrem-se do exercício número 2.

Lembrem-se do exercício número 2: Um homem sai de sua casa, percorre quatro quadras para leste, três quadras para norte, três quadras para leste, seis quadras para o sul, três quadras para o oeste, duas quadras para o sul, oito quadras para o oeste, seis quadras para o norte, duas quadras para leste. A que distância e em que direção está ele de sua casa?

Exercício número 2. Resolvam o exercício número 2. Voz de um escudeiro Achei. Achei o corpo de uma menina morta. Voz do alto-falante Nenhum castigo corporal para a nota mais alta de Física. (Duas vezes)

Nunca inutilizem uma nota mais alta de Física. (Duas vezes) Entreguem a nota mais alta de Física ao escudeiro na praça número um. (Duas vezes)

Luzes violentas. O menino está no centro do palco. Num plano muito alto, está o escudeiro mór, e num plano mais baixo estão os dois físicos. O escudeiro mór está sentado numa grande cadeira de linhas sóbrias, em cujo braço está uma caixa preta com a tampa levantada. Escudeiro mór (Para o menino) Minha filha disse que o amava? Menino Não. Ela disse que não sabia o que era o amor. Escudeiro mór Eis a minha filha. Menino ...mas que sabia o que era repulsão e atração.

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Escudeiro mór Eis a minha filha. Menino ... e que se sentia atraída por mim porque eu sou a nota mais alta de

Física do meu bloco. (Pausa) Mas era amor. Escudeiro mór O quê? Você está mentido. Minha filha nunca poderia ter sentido

amor. Menino Era amor. Escudeiro mór Nunca. Minha filha sabia que (Manipula a caixa preta e em seguida

ouve-se uma voz monocórdica.) Voz masculina adolescente (Monocórdica) Objetos de igual material que foram eletrizados pelo mesmo processo

sempre se repelem. (Duas vezes) Escudeiro mór E na nossa analogia política isso quer dizer o quê? Respondam. Não

importa, responderão por nós. (Manipula a caixa) Voz masculina adolescente (Monocórdica) Os seres do Novo Sistema que aprendem a Física pelo Novo Sistema

sempre se repelem, sempre se repelem... humanamente. (Pausa) É compulsório que se compreendam (acentua) “apenas” política e cientificamente (Duas vezes) Senhor escudeiro mór: Os seres humanos são impulsionados pelas suas próprias cargas imprevistas. Impulsionados pelas suas próprias cargas humanas imprevistas.

Escudeiro mór O ser do Novo Sistema é uma organização. Físico 2 E como será possível continuar a descendência dessa organização se

não podem atrair-se humanamente? Escudeiro mór Será preciso lembrar-vos? Há muito que os vossos colegas sabem de

que maneira é possível estimular artificialmente sentimentos como o amor. Será preciso lembrar-vos? É necessário apenas (Manipula a caixa).

[JLA1] Comentário:

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Voz masculina adolescente (Monocórdica) Colocar um simples eletrodo do tamanho de uma antiga moeda sobre

a cabeça. Esse eletrodo será religado a um cérebro eletrônico cuja função é resolver vários problemas, inclusive estimular os chamados afetos (Duas vezes).

Escudeiro mór As notas mais altas de Física na idade de vinte anos devem dar filhos à

nossa Nação. E para isso serão estimulados apenas o tempo necessário.

Físico 1 (Exaltado) Nem todos podem ser a nota mais alta. Escudeiro mór Esses jamais procriarão. Físico 2 Senhor escudeiro mór, em nome da verdade... Escudeiro mór (Interrompe) A verdade tem sido uma enorme sonolência. A única

verdade é a verdade do Novo Sistema: uma imensa matriz racional. A Física nos dará, em breve, um cérebro no qual toda a memória científica do mundo estará guardada. Por isso (dirige-se aos físicos), tornem-se daqui por diante necessários, para que vosso destino não seja igual àquele destino (aponta os postes) que foi compulsório.

Físico 1 Ainda que meu destino seja aquele, eu quero vos fazer uma pergunta.

(O escudeiro assente) Por que é que nasceu na vossa mente, a prática do Novo Sistema?

Escudeiro mór Eu vou responder. Mas antes também desejo lhes fazer uma pergunta.

(Os físicos assentem) Por que é que nasceu na mente de alguém a teoria da relatividade?

Físico 1 De acordo com o seu descobridor, a teoria da relatividade nasceu da

necessidade, de contradições sérias e profundas na velha teoria, para as quais parecia não haver saída.

Escudeiro mór Apenas uma segunda pergunta: em que consiste a força dessa nova

teoria?

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Físico 2 De acordo com o seu descobridor, e com todos os nossos colegas, a força da nova teoria está na consistência e simplicidade com que resolve todas as dificuldades, usando apenas umas poucas suposições muito convincentes.

Escudeiro mór Muito bem, senhores. Eis a minha resposta: a prática do Novo

Sistema nasceu da necessidade, de contradições sérias e profundas do Velho Sistema político, para as quais parecia não haver saída. E continuo: a força do Novo Sistema está na consistência e na simplicidade com que resolve todas as dificuldades usando apenas (aponta os postes) umas poucas práticas, executadas de maneira muito convincente.

Cena imóvel, black out total sobre o escudeiro mór e os físicos. Luz sobre o menino, o poste e o triângulo. Black out total sobre os postes que devem ser retirados. Luz cada vez mais intensa sobre o menino e o obelisco e simultaneamente as exclamações He! Ha! começando discretamente e aumentando com a luz. Luz muito clara, exclamações fortíssimas, terminando com um Ha! muito enérgico. Durante as exclamações de He! Ha! o menino lentamente curva-se sobre si mesmo até ficar ajoelhado, curvado e imóvel. As exclamações de He! Ha! terminam com um Ha! valente e em seguida todo o elenco, não mais como personagens mas como atores vai surgindo no palco. Todos (dirigindo-se ao público) Nós temos medo, sim. Nós temos muito medo. Esse nosso tempo de feridas abertas Este Velho Sistema em que vivemos (Apontando para o público) Tu, esse homem Que deseja agora ser o centro de todo o universo, (Apontando para o público) Tu, esse homem que usa de si mesmo Com infinita torpeza, Tu, que estás aí, e que nos viste Pensa: o que fizemos que não foi advertência? Nós temos medo sim.

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Nós temos medo de que o Velho Sistema, este em que vivemos, Pelas chagas abertas, pela treva Nos atire Para um Novo Sistema de igual vileza. Ah! Nosso tempo de fúria! Ah! Nosso tempo de treva! (Abrindo os braços para o público) Dá-me a tua mão. Dá-me a tua mão. (O elenco de mãos dadas) Que os nossos homens se dêem as mãos. Que a poesia, a filosofia e a ciência Através de uma lúcida alquimia Nos prepare uma transmutação: Asa de amor Asa de esperança Asa de espanto (Pequena pausa) Do conhecimento. F I M Hilda Hilst

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A u t o d a b a r c a d e C a m i r i 1968

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Cenário severo. Símbolos enormes de justiça. Duas cadeiras

negras altíssimas. Mesa com livros e papéis muito volumosos. Uma porta sempre aberta, por onde entram as testemunhas. Outra porta fechada, por onde entram os juízes. Esta última porta nunca mais é aberta. Num cabide, penduradas, duas togas negras, com abundantes rendas no decote e nas mangas. Os juízes entram exaustos. Estão vestidos com ternos pretos e nas gravatas um destacado símbolo de justiça. Começam a despir-se lentamente. Com a entrada do trapezista, eles devem estar de ceroulas somente.

Nota: Diferença acentuada entre as duas portas. Uma, singela. Outra

(a dos juízes), rebuscada, grotesca.

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Trapezista (No trapézio) Senhores: No nosso tempo de desamor e lamento É raro ser bom prelado Ser passarinheiro Ou trapezista. Escurecimento. Ruído de metralhadoras. Silêncio. Uma voz (Tom de comando, em tensão) No coração! No coração! Logo em seguida, estampido de um tiro de revólver. Luz. Juiz jovem Que lugar, santo Deus! Que lugar! Isso é uma injustiça! Juiz velho Social? Juiz jovem Não, não! Obrigarem-nos a fazer esta visita. E depois (olha ao redor),

veja bem: só nos dois. Não deveríamos ser três? Juiz velho (Sempre sem muito interesse) Três? Juiz jovem Três! Três! O relator, o revisor e o terceiro. Juiz velho É. Esse não veio. (Olha ao redor) E mesmo que viesse, só há duas

cadeiras. Juiz jovem É verdade. Aqui é certamente o fim do mundo. Ou o inferno, não sei. Juiz velho Você acha que pode existir um lugar melhor? Um outro que seja o

céu? Juiz jovem No céu certamente seríamos três juízes. E aqui somos dois. Ainda

bem. Não há possibilidade de clemência. Juiz velho Ou quem sabe duas possibilidades de clemência. Juiz jovem Isso nunca é possível.

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Juiz velho Nunca. Pausa. Ruído surdo de metralhadoras. Juiz jovem Você viu aquele homem? Juiz velho Não. Que homem? Juiz jovem Um homem que tinha nas mãos um possível maná. Juiz velho Como é mesmo? Juiz jovem Um alimento! Um alimento! Por que nunca vi tantos pássaros ao redor

de uma só pessoa. E os cães então... você não viu? Juiz velho Não, não vi. Juiz jovem Mas é verdade? Nem os pássaros? Nem os cães? Eram muitos,

muitos! Estavam todos ao redor do homem. Estranho... Você jura que não viu?

Juiz velho Mas com esse calor eu não vejo nada. Com esse calor todos fedem.

Os homens fedem. Juiz jovem Tem razão. Tem razão. Os homens são seres escatológicos. Essa tema

é ótimo para discorrer. Veja. (Vira-se para a platéia) Escatologia, certamente os senhores saberão o que é: nossas duas ou três ou mais porções matinais expelidas quase sempre daquilo que convencionalmente chamamos de bacia. Enfim (curva a mão em direção à boca e estende em direção ao traseiro), esse entra e sai. Para vencer o ócio dos senhores que dia a dia é mais freqüente, não bastará falar sobre o poder, a conduta social, a memória abissal, o renascer. É preciso agora um outro prato para o vosso paladar tão delicado. (Vira-se para o velho) E se pensássemos num tratado de escatologia comparada? Nada mais atual e mais premente.

Juiz velho Comparada com o quê? Juiz jovem Com tudo! Com tudo! Juiz velho Ah, talvez bem pensado porque...

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Juiz jovem Porque tudo o que se compara, se entende. E se transforma em conflito sempre eminente.??? (IMINENTE)

Juiz velho Tudo isso é bom para o teatro. Fale merda para o povo e seja sempre

novo. Ah, nossa boca de vento... (Põe a mão na boca num gesto de desprezo) Blá, blá, blá.

Juiz jovem Mas nossa boca de vento, que aparentemente é vazia, seria o primeiro

elemento para uma escatologia... comparada. Boca de vento... Na verdade (põe a mão no traseiro e na boca) duas bocas do nada. Partindo do nada, chegaríamos a infinitas conclusões. Depois do nada, vem tudo de mão beijada. A cultura.

Juiz velho (Muito surpreendido) A cultura? Juiz jovem Espere... espere. Você sabe que o verme come o homem. E a cultura

de material abundante seria no futuro nosso única forma de leitura. Cultivar a matéria! Ler na matéria! O mundo se transformaria num grande laboratório de análises. Acostumar as narinas! Já de início ficaríamos todos livres da parasitose. Depois, quem sabe o que se descobriria na matéria... quem sabe o quê!!

Juiz velho Problemático, problemático. Haveria entre os povos um apetite mais

acentuado, um recrudescimento no comer. Juiz jovem Por quê? Juiz velho Ora, é evidente. Comer muito para muito ler. E a época é de

contenção. E será sempre. Juiz jovem Você acha? Juiz velho E depois esse teu tratado pode gerar confusão. Juiz jovem Por quê? Juiz velho Porque se você abrir um dicionário, verá que a palavra escatologia

tem dois sentidos. Um, é essa tua matéria, está certo. O outro, faz parte da teologia. Escatologia: doutrina das coisas que deverão acontecer no fim do mundo.

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Juiz jovem Mas está perfeito! Uma surpreendente analogia! No fim do mundo sobre nossas cabeças uma nova esfera! A coproesfera! Sobre nossas cabeças enfim o que os homens tanto desejam: a matéria!! Você não se entusiasma? Sobre nossas cabeças como um novo céu, a merda! Escatologia pura.

Juiz velho Já que você tem idéias, você conhece alguma coisa que consiga tirar o

cheiro das testemunhas? Durante toda a minha carreira pensei em várias soluções...

Juiz jovem Uma delas... Juiz velho (Ainda com as calças, tira dos bolsos tampões cilíndricos muito

compridos e finos) Usar enormes tampões! Juiz jovem (Examinando um dos tampões) E não seria abusivo? Juiz velho Ou uma tenda enorme de oxigênio. (Desce do alto rapidamente uma

cúpula de plástico contornando por inteiro o juiz velho) Juiz jovem E não seria o extremo? Juiz velho O quê? O quê? Juiz jovem (Muito alto) E não seria o extremo? (A cúpula sobe rapidamente) Juiz velho (Desanimado) É, não adianta. As testemunhas serão sempre infectas.

(Guarda o tampão) Juiz jovem Infectas. (Guarda o tampão) Juiz velho (Para a platéia) E isso é teatro, senhores. Conflito iminente... nem

sempre. Pois vêem que estamos de acordo. Entra o trapezista. Trapézio desce do alto. Trapezista pela para o trapézio de um salto. Trapezista Se me permitem, Excelências! Que maravilha! O homem ficou suspenso! Nada nas mãos que o prendesse Ao chão! Assim no ar!

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Como libélula! Mas sem o estremecer daquela! Tranqüilo como em repouso! Sem esforço! E que luz abundante sobre a roupa! (Luz violenta sobre o trapézio) Excelências O homem ficou suspenso No ar! No ar! Que visões temos tido! Que vidências! Juiz velho (Tapando o nariz) Mas ainda não começamos a audiência. Retirai-vos. Trapezista Ah, mas aqui Temos tanta sede da verdade Que queremos entrar e sair Segundo a própria vontade. Juiz jovem (Para o juiz velho, tapando o nariz) Eu não lhe disse? Escatologia do

porvir. Juiz velho (Para o trapezista) Sai, sai. Pois estamos quase nus. Trapezista (Desce do trapézio) E o que isso importa? Um juiz é E será sempre um juiz. Da matriz (aponta o sexo) à morte. Juiz velho (Empurrando o trapezista para fora) Com licença, com licença.

(Começa a vestir a toga) Isso é demais. Isso é demais! Risos do povo. Alguém pergunta: Quem são esses homens? São da cidade. E vêm fazer o quê? Eles vêm dizer se o homem existe ou não. E a gente não sabe não?

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Muitos risos. Música. O povo invade a sala dos juízes, homens e mulheres tentam fazê-los dançar. Os juízes estão muito aflitos, tapam as narinas, procuram as roupas etc. O povo canta. Letra da primeira música Ai coisa complicada São os da cidade Os que vêm dizer Se o homem que a gente vê É de verdade ou não É de verdade ou não Se o homem que a gente diz que se move Ai que se move ou não Ai que se move ou não Se tudo é, ou se é tudo ilusão Se tudo é, ou se é tudo ilusão São os da cidade Os de compreensão Os que vêm dizer Se o que a gente vê É sabedoria ou é danação Se o que a gente vê É coisa brilhosa Ou é escuridão. Letra da segunda música Homem que a gente vê Mas ninguém quer Que se veja Ai, chupa o meu mindinho E assim tu me distrai E eu não vejo nada Além do meu mundinho Letra da terceira música (Para ser cantada de início pelo trapezista e em seguida pelo povo)

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Um arco-íris pro homem lá no alto Arco irisado feito um pedaço Do meu corpo alado. Sobe no meu dorso E vê se faz esforço Pra chegar ao alto. Ai, eu quero subir E abrir minha asa E te dar meu canto Que não é cantado Com palavras. É um canto de dentro Que o que tem de alegria Não tem de lamento. Ruído de metralhadoras. Silêncio. Juízes (Para o povo) Saiam, por favor, saiam, saiam. Isso é demais, isso é

demais. Com licença, minha senhora, com licença, meu senhor. Eu nunca vi, ah, isso eu nunca vi.

O povo sai. Juiz velho (Vestindo a toga) Mas amassaram tudo, veja. Lamentável. Inda bem

que saíram. Juiz jovem Mas a testemunha é sempre assim: quando não entra, sai. Juiz velho E isso o que quer dizer? Juiz jovem (Vestindo a toga) Nada, nada. O que eu digo e não digo é a futura

problemática do ser. Isto é: escolher entre o dizer mais fundo e o não dizer. Neste caso agora, eu escolhi o último.

Os juízes com suas respectivas togas mudam inteiramente o tom das falas. Formalíssimos. Juiz velho Excelência. (Senta-se na cadeira) Juiz jovem Excelência. (Senta-se na cadeira)

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Pausa. Examinam papéis muito volumosos. Juiz velho Pedem-nos o impossível. Saber de um homem Que bem poucos vêem. Juiz jovem Tão poucos o sabem Que é o mesmo Que falar do invisível. Juiz velho O que se vê já é tanto E tão difícil. Se olhardes no mais fundo Um rosto se acrescenta. Mas se o olhardes muito Talvez desapareça. Juiz jovem E apareça um outro rosto Até então submerso Esquecido E quase sempre adverso Ao próprio dono. Juiz velho Ou cúmplice inconfesso. Juiz jovem Então é melhor julgarmos O que parece mais real Não é? Juiz velho Se é um ingênuo na aparência Mas construído em vileza... Não nos engana... Contexto de aspereza! Juiz jovem Ou às avessas? É vil de parecença Mas de peito inocente? Por dentro uma criança Imensa Que até com as palavras Se ressente?

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Juiz velho Pensais que nesse caso A pena seria delicada? Ruídos surdos de metralhadora. Juiz jovem Sentença amena... Mas são tão raros esses De uma infância calada. (Pausa) Vossa Excelência Foi uma criança transparente? Juiz velho Quereis dizer aberta E clara Sem torpeza (i??)eminente? Juiz jovem Acreditais que na criança O torpe também se faz? Juiz velho Só na criança Excelência O torpe é mais eloqüente E audaz. Mas... Eu fui uma criança austera. E no fundo sempre À espera. Juiz jovem À espera de quê? Juiz velho Do milagre. Juiz jovem Então alegrai-vos! (Examinando os papéis) Dizem que o homem Esse que nos cabe Só não transforma a terra Em ouro Porque os homens vindouros Mais dia menos dia Assim farão.

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Juiz velho Em ouro a terra? Mas é uma ilusão. Juiz jovem Eu também acho. Mais dia menos dia Acredito ainda Na escatologia. (Pausa) Mas vossa Excelência Não acredita nos imponderáveis? Juiz velho Quereis dizer no sutil No indefinível No que não se pode avaliar? Excelência Se estamos aqui para saber De um homem quase invisível Não há pergunta mais astuciosa Do que essa. A mim me quereis provar? Juiz jovem Mas quando criança Excelência Não era o milagre A vossa verdade? Juiz velho Não disse assim. Disse que ficava À espera do milagre. Mas o milagre para mim Era crescer em razão E em ciência. Juiz jovem Crescer... Juiz velho Tereis alguma coisa Contra o crescimento? Juiz jovem Crescer pode ser bom E de repente não ser. Juiz velho Podemos começar?

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(Olha para a porta aberta) P senhor aí. Pode entrar. Entra o passarinheiro. Muito jovem. De fala contente. Passarinheiro Bom dia, bom dia Excelências. Na verdade não é recomendável Visitar a cidade em rebelião. Mas que fazer? Também vossas Excelências Têm o seu ganha-pão. A cada testemunha que entra, com exceção do agente, os juízes dão demonstração de desagrado em relação ao cheiro. Talvez possam usar grandes lenços de renda. Juiz velho (Formal) Bom dia. Bom dia, o vosso nome. Passarinheiro Sou o passarinheiro. Vivo nesta cidade O ano inteiro. A não ser quando vou caçar Mais para diante... Pra lá, pra lá Entre o riacho e o monte. Mas o que eu caço, eu não mato. Juiz velho (Impaciente) Sim, sim. Mas dizei o vosso nome. Passarinheiro O meu nome eu já vos disse. Sou o passarinheiro. Juiz jovem Passarinheiro somente? Passarinheiro Nesta cidade Excelência A profissão do homem É o seu nome. Os juízes entreolham-se. Fazem gestos de cansaço.

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Juiz jovem Passarinheiro... bem, bem. Juiz velho Tendes a declarar... Passarinheiro Que eu vi o homem. Eu vi o homem! E o agente quer me obrigar... Juiz jovem (Interrompe) O agente? Passarinheiro O agente dos mortos! O agente funerário! Ouve-se a voz do agente: “Eu quero entrar! Eu quero entrar!” Passarinheiro Ele sabe o que diz. Quem trabalha com os mortos Mais prefere entrar do que sair. Juiz jovem (Para o velho) Esse entrar e sair Cresce dia a dia. E isso é ou não é Da alçada da escatologia? Juiz velho (Para o passarinheiro) Como assim? Explicai-vos. Passarinheiro Como assim? Assim Excelência: O agente quer sempre entrar Para estender o morto no caixão. E uma vez o morto distendido Sobre o duro colchão... aí está! Está vendido! Juiz velho Quem? O morto? Passarinheiro Não Excelência! O caixão! Juiz jovem Bem, mas de qualquer forma O morto tem que sair Vendido ou não.

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Passarinheiro Aí é que está Excelência. O agente prefere entrar E ir ficando. Quanta gente não morre Só de ver o agente! E assim em se demorando No velório de um, Os que velam o morto Pouco a pouco Ao morto vão se juntando. Juiz velho Mas isto não está bem claro. Na verdade o agente preferirá sair. Pois só na saída é que se sabe Se essa coisa que vende foi vendida. Passarinheiro Mas para sair é preciso entrar. Juiz jovem (Para si mesmo) Dia a dia Cresce a importância Da escatologia. Ouve-se a voz do agente: “Eu quero entrar! Eu quero entrar!” Juiz velho Mas é impossível continuarmos Com esse homem a gritar! Voz do agente Ele não viu o homem! Ele não viu o homem! Eu vou morrer de fome. Passarinheiro Ele quer me obrigar A dizer que não vi. Juiz jovem Por quê? Passarinheiro Porque se o homem existe Como eu vi, E começa a ressuscitar

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Seja o que for Homens ou bem-te-vis Ele morre de fome. Juiz velho Mas o homem ressuscitou alguém? Passarinheiro Ressuscitou um pássaro. Era uma ave contente, canora Que o trapezista me deu de repente. Tinha três plumas raras entre os olhos E o peito era tão claro... Branco de sol, sol do meio-dia! Ah, que presente! Juiz jovem Bem, bem. E como esse pássaro morreria? Passarinheiro Ah, Excelência Numa tarde de águas A ave estremeceu. Batia as asas e um pio Tão dolorido se ouvia : Como um grito de gente! Que coisa é a morte De um pássaro! Ruído surdo de metralhadoras. Passarinheiro O senhor nunca viu? Que olhar, santo Deus! Se eu não soubesse Que os homens também morrem Nunca perdoaria Essa morte sem nome Esse bater-se Esse esgarçar-se. Juiz velho (Impaciente) Então, então. Passarinheiro Então morreu. Pranteei de tal jeito Que se eu não me soubesse

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Tão leal Diria que passei Todo amor que me tinha Para o pobre animal. Mas aí vi o homem. Excelência! Foi como se a Divina Providência De mim se apiedasse. Pedi: Homem que não sei de onde vem, Sossegai-me E transformai o pássaro No que era: Garganta de luar Peito de primavera. O homem abriu as mãos. E nesse instante Dessa tarde de águas Fez-se o sol... tênue A princípio Mas o bastante Para aclarar-me o rosto. Excelência! O sopro desse homem No pequenino corpo! E um sol tão absurdo Tão crescente Nessa tarde de águas! E súbito o que vejo? Um esticar de asas! Um espreguiçar-se de pássaro! Como se voltasse de um sono Simplesmente! E que canto! Um canto Sobre o ombro do homem... Um canto de alegria... Comprido! E depois mais um Mais dois... Juiz velho Bem, bom, mas e o homem? Passarinheiro O homem? Eu não vi. Com aquela alegria

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Dele me esqueci. Veio gente, tanta gente! Cheguei a dizer que o homem Era Deus. Então alguém me disse: Nós queremos milagres eficazes E não Deus. Juiz jovem Mas o homem sumiu? Juiz velho O homem é o que importa. Passarinheiro Mas não é suficiente Dizer-vos que o homem Ressuscitou um pássaro? Coisa que nunca se viu? Se o pássaro ressuscitou É porque o homem existe. Não é suficiente, Excelência O meu relato Para provar essa existência? Juiz velho O pássaro... Pode ter tido um colapso... E foi tamanho o vosso desejo De se ver contente Que imaginaste o homem E toda essa cena... digamos Um pouco fremente. Ouve-se a voz do agente: “Eu quero entrar! Eu quero entrar! Juiz velho Entrai, pela memória dos meus! O agente está vestido como um militar. Farda negra. Botas altas. Juiz jovem Sois o agente? Agente Sim, por Deus. Juiz velho Tendes a declarar...

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Agente (Ameaçando os juízes) Se acreditardes no homem NA sua tola existência Tenho uma ordem Excelência: Que uma nova lei se faça: É preciso declarar Que os pássaros ressuscitados Têm a mesma consistência Dos mortos e enterrados. Os juízes Por quê? Agente Porque se o pássaro morreu uma vez, está morto não é? Seja qual for

a aparência. Juiz velho Parece razoável. Essa testemunha não fede como as outras. É decente. Juiz jovem As autoridades cuidam bem do seu agente. Passarinheiro (Angustiado) Excelência! Excelência! E por que não declarar Que os pássaros ressuscitados Têm a consistência dos vivos? Estendem as asas e cantam Ao contrário dos mortos... Isso é tão claro, deve estar nos livros! Agente (Bate na mesa onde estão os juízes) A consistência dos mortos! Eu exijo. E outra coisa eu proponho E me permito: Todo aquele que morrer Definitivo ou não Seja uma vez, seja três Seja pássaro ou indivíduo Deve comprar um caixão.

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Passarinheiro Por quê? Se não vai usá-lo? Agente Isso é secundário. Passarinheiro Ó, bem se vê quem sois! Agente Quem sou? Toma lá para aprenderes! O Agente começa a agredir o Passarinheiro que faz o possível para esquivar-se. Os gestos do Passarinheiro devem seguir um posterior relato do prelado, quando depõe. Juiz velho (Indiferente à luta entre o Passarinheiro e o Agente) O Agente parece razoável. Quem morreu uma vez, ainda que

ressuscite, está morto. Juiz jovem (Indiferente à luta) Rei morto... num minuto rei deposto. Juiz velho (Abrindo aso acaso um enorme volume sobre a mesa) E depois aqui está: “Não se deve estabelecer confusão entre matéria Nova e fato novo, is to é, entre o que só agora Se alega, posto que pudesse ter sido alegado.” Está claro... morto e enterrado. Juiz jovem Mas não seria o contrário? (Abre outro volume ao acaso) Aqui está: “O tribunal aprecia e julga, em primeira e única instância, a

matéria superveniente.” No nosso caso, não seria o ressuscitado ainda quente? Juiz velho Isso é secundário. Juiz jovem (Para o passarinheiro e o agente) Senhores, senhores! Não seria possível Amenizar a vossa relação? Torná-la mais branda Para que se possa chegar A uma conclusão?

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Agente (Cansado de atacar o Passarinheiro) Nunca! Não posso permitir Que um morto seja vivo. Passarinheiro (Cansado de se defender) E nem eu quem um vivo seja morto! Deve estar nos livros! Deve estar nos livros! Juiz velho Ó, pela memória dos meus. Agente Ó, por Deus, por Deus! Começa a agredir novamente o Passarinheiro, e saem da sala ainda lutando. Entra o trapezista. Trapezista Senhores, senhores! Juiz velho Não insista, não insista! Trapezista Mas eu sou o Trapezista. Juiz jovem (Tapando o nariz) Ah, tem novas notícias? Trapezista Uns viram-no falar. Outros disseram que é mudo. Juiz velho Mas a palavra é o que importa. Pois o que a boca diz Pode ser tanta coisa, o indizível Ou saga remota Que a língua não ousa. Ou ódio, ou muito amor. Coisas feitas de silêncio. Juiz jovem (Tirando a mão do nariz a contragosto) Então que coisas falou? Trapezista Não ouso dizer senhor.

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Juiz velho Mas é preciso! A verdade! Juiz jovem É ofensivo? Trapezista Talvez cheio de vaidade. Juiz velho Não importa. (Pausa) Vamos. Vamos. Trapezista O homem falou: Eu sou irmão d’Aquele. Os juízes entreolham-se. Juiz jovem D’Aquele... de quem seria? Pausa. Juiz velho De quem? Trapezista Do Cristo! E de quem mais, e de quem mais? Juiz velho Do Cristo?! Aquele... Aquele... Aquele pode ser três: Buda, Lenin, Hermes Trimegisto. Juiz jovem Ulisses! Orfeu! (Pausa) Mas ele tem parecença Qualquer coisa Que vos faça lembrar Alguém de tanta eminência? Trapezista Tem bom dentes. É belo. Juiz velho (Para o Juiz jovem) O Cristo era belo? Juiz jovem Não sei. (Para o trapezista) É simples?

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Trapezista No vestir -se? Juiz jovem Sim, sim. Trapezista Bem... é singelo. Juiz velho E o olhar? Trapezista O olhar... é de quem sabe. De quem viu muita coisa. É claro e sombrio a um só tempo. Como quem viu o sol muito de perto E cegou por dentro. (Pausa) Juiz jovem É paciente? Trapezista Não sei... Eu só o vi calado. Juiz velho Ora, ora... mas tem gestos! Trapezista Lentos... lentos. Juiz jovem (Para o velho) Não é irmão de Lenin... É manso. Juiz velho (Para o jovem) Pode ser manso no gesto E ter sangue no plexo. (Pausa) Deixai-o vir a mim. Trapezista Impossível. Juiz jovem Por quê? Trapezista Ele não sai de onde está. Juiz velho Então é mais simples. Buscai-o. Trapezista Mas quando se o procura Já não está lá.

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Juiz velho Dizeis que se move De um lado a outro Sem ser visto? Juiz jovem (Com ironia) Ah, isso nos comove. Trapezista Senhor, move-se com tanta liberdade Com andar elástico, espaçado Como um cavalo de salto! Mas se o procurardes Não está onde deveria. Pela direção do passo Estaria em frente. E de repente volteia Como um compasso. (Pausa) Não me fiz entender? Juiz velho Homem, tenho ouvido relatos. Mas nenhum me parece Mais desacertado. Exemplificai. Juiz jovem Saltai como ele o faz. Trapezista Eu não saberia. Juiz velho Dizeis que tem um andar Que um ser humano Não imitaria? Trapezista É leve... É pesado É flor e cajado. Juiz jovem Mas alguma coisa o circunscreve! É um homem afinal! É leve assim? Como um círculo Desenhado no espaço? Juiz velho É como um certo pássaro

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Que nem bem pousa E já está no mais alto Onde o olhar não ousa? Juiz jovem É pesado como um barco? Trapezista Nem uma coisa, nem outra. Juiz velho Esse homem não é. Juiz jovem Como dizeis, Excelência? Juiz velho Não é, não é! Não o consigo ver. O olhar de quem sabe... O que quer isso dizer? (Para o trapezista) O meu olhar é o de quê? Vejamos. Trapezista (Olha muito de perto) O de quem quer ver! Juiz velho (Para si mesmo) Isso é verdade... agora. (Para o jovem) Mas antes... como seria o meu olhar? Como seria antes de saber Que esse homem existia? Durante o diálogo do velho e do jovem, o trapezista faz exercícios, levantando os braços, movendo-os como se quisesse voar. Juiz jovem Antes... Não sei Excelência. É tão difícil colocar Esse tempo que pedis Antes, depois, agora... Cone do passado Cone da memória E a hora em que tudo se faz. Vêde, Excelência... O tempo o que é? É o que demora!

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Juiz velho É o que nos escapa. Juiz jovem Isso é poesia. Juiz velho O tempo... depende Se é visto pela física Ou pela metafísica. Juiz jovem Na física tudo é coerente. Juiz velho Mas alguém me disse Que o relógio da poesia Anda mais depressa E com mais maestria Do que aquele da física. Juiz jovem Isso sim certamente é poesia. Entra o prelado. Prelado Excelência! Juiz velho Quem sois? Prelado Sou aquele que vejo. Juiz jovem O visor. Prelado Não, o Prelado. E não vejo um, vejo dois. Juiz velho Dois homens agora? Prelado Não, por Nossa Senhora! O homem e uma sombra! Juiz jovem Uma sombra? Prelado Sim, sim! Vi-o lutando com uma sombra. Era ágil e esquivo a todo golpe.

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Juiz velho Como sabeis? Pois não era apenas uma sombra Uma sombra que com ele lutava? Prelado Mas era tão visível Que a sombra o atacava! Curvava-se, levantava-se Com destreza O gesto era dúplice Pra lá, pra cá E em tudo se mostrava tão forte E tudo acontecia tão depressa Como se tivesse dois braços Unidos por uma corda espessa E ao mesmo tempo Dois braços tão divididos Tão separados Sem possível união Assim... assim... Achei! Como os olhos de um camaleão. Juiz velho E a sombra de quem seria? Trapezista e Prelado juntos A sombra do... Juiz jovem De quem? De quem? Prelado Senhor... a Demonologia Explicaria bem. Juiz velho Ora, ora... E por que não a sombra do Divino? Trapezista Mas luta-se com Deus? Juiz velho Luta-se com a vida Com a morte, com o destino E por que não com Deus?

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Juiz jovem (Com ironia) Quem sabe assim Nós O conheceríamos. Trapezista Oh! Prelado Oh! Juiz velho Estou muito cansado. Afinal, o que quereis de nós? Trapezista e Prelado Que declarem o homem existente! Trapezista Que nos libertem do Agente! Juiz jovem Quereis a vida fácil. O Agente não é parte Essencial de vossa comunidade? Juiz velho Pretendeis muita sorte. OS homens não andam sempre De braços dados com a morte? Trapezista Mas Excelências Tem sido muito difícil A minha vida. Se faço meu exercícios O Agente está lá. Me vigia a cada salto. E a cada dia Quero subir mais alto. Não é o certo? Mas ele diz: Não insista! Ó meu Deus como fazer? Se para isso sou trapezista? Para subir... Para subir! Prelado Senhor Pelo que vejo Com a minha vista bendita Deixai-me a mim

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Ao Passarinheiro E ao Trapezista Acompanhar o homem e seus cães... E seus pássaros... pela minha vista Bendita! Juiz jovem O que dizeis, meu Prelado? O homem do milagre Viaja acompanhado? Prelado Sim Excelência! Durante muito tempo O homem pediu aos homens Que o acompanhassem. Não quiseram Não quiseram. Então... agora Viaja com ele o pássaro O cão. Juiz jovem (Para o velho) Mas esse homem eu vi! Não vos disse? Prelado Senhor, todo aquele que o vê Há de crescer... Juiz velho (Com ironia) Em razão e em ciência? Trapezista Em amor, Excelência. Prelado O homem faz o apelo, E quem o vê Pode segui-lo E libertar-se do Agente Por inteiro! Juiz jovem (Para o velho) Ora, devo estar mal da vista. E ainda mais acreditar num Prelado Num Passarinheiro e num Trapezista...

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Juiz velho Estou muito cansado. Dizer que esse homem existe É o mesmo que afirmar Que não estamos aqui Sentados. Que nunca estivemos. Juiz jovem Estaremos? Juiz velho O quê? Aqui? Juiz jovem Ou algum dia estaremos lá Onde esse homem está? Ruídos surdos de metralhadoras. Juiz velho Onde ele está... Onde ele estava... Quem é que sabe? Volteia como um compasso Ressuscitou um pássaro Tem as mãos cheias De um possível maná... É homem? É grão de areia? (Para o Prelado) Pode-se tocá-lo? Não. Prelado Sim. Juiz velho E então como era? Como era? Prelado Denso... mas Juiz velho Mas eu não digo? Tudo aqui é pretenso. Juiz jovem Vamos, fala! Denso mas o quê? Prelado Diáfano! Diáfano! Ó não sei! Não bastará dizer Que a mão humana Jamais experimentou

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Esse contato? Juiz velho Mas prelado, por favor! Em nós, tudo é exato! Assim como a Pátria Deseja para seus filhos Eqüidade... a lei Ouve-se uma rajada vigorosa de metralhadoras. Juiz velho A lei Ouve-se nova rajada vigorosa de metralhadoras. O Trapezista sai correndo da sala e o Prelado ajoelha-se e reza. Um tiro seco. Juiz velho O que era mesmo que eu estava falando? Juiz jovem (Aflito) Faláveis da (voz baixa) da lei, Excelência. Ouve-se ruídos e muitas falas. Juiz velho Ora bolas! Que tumulto! Que tumulto! O Trapezista entra esbaforido. Trapezista (Ofegante) Senhores, o homem está morto! Tudo o mais é suposto! Juiz jovem Morto? O homem do milagre? Não era tão milagroso? Juiz velho (Para o Trapezista) Acalmai-vos! Acalmai-vos! Há de vos fazer mal esse nervoso! (Para o jovem) Os homens quando ficam nervoso Fedem mais. Trapezista (Em emoção) Morto. Mas não enterrado.

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Crivaram-no de balas Mas agora tem o rosto À semelhança d’Aquele Que dissemos. Juiz velho Dissemos Buda, Lenin, Hermes Trimegisto. Trapezista Não, não. Pausa. Juiz jovem Vamos, fala! Mas o que é que te deu? Ulisses? Orfeu? Trapezista Não, não! Prelado Do Cristo. Trapezista Vós o dissestes. À semelhança do Cristo. Juízes (Juntos) Do Cristo?! Trapezista Pelo meu Deus! Não é o mesmo rosto? (Slides do rosto de um dos Cristos de Ticiano) Vêde! Não é o mesmo corpo? Não é o mesmo corpo? Slides com corpo de Cristo morto. Uma das posições parecidas com a descida da cruz de Ticiano. Slides da descida da cruz. Rápidos. Simultaneamente. Juiz jovem Mas o Cristo alimentou as gentes E não os cães. Trapezista Mas dizem que o homem Chegou a isso por imposições! Que quem o viu falar Jamais o entendia. Que aqueles para quem Ele vivia Tinha rostos de pedra

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Olhavam-no com espanto! Slides do Cristo sendo flagelado, entre as gentes, diante de Pilatos. Juiz jovem Pelos milagres que fazia? Trapezista Não! Pelo seu próprio canto! Juiz velho Ele cantava? Trapezista Não como entendeis o canto. (Os juízes entreolham-se sem entender) O canto era de dentro! Imenso, tão largo Que seria necessário muito tempo Para que os ouvidos entendessem! Muito espaço Para que o coração de todos Se alargasse! Juiz velho O coração? Juiz jovem O coração? Trapezista O canto só se ouviria Se o coração de todos Com ele cantasse. Prelado E não cantaram? Trapezista Não ! Não! Ó eu quero subir! (Tristíssimo) Eu quero subir! Juiz jovem Trapezista, essa asa, na lei, não está prevista! Juiz velho Prelado, nossa sentença Será conivente Com toda decência: Juízes (Juntos)

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Se tal homem existiu A lei nunca o soube Nem nunca o permitiu. Juiz velho E para evitar daqui por diante A possibilidade do milagre E existências sutis Tumultuando a cidade, A lei (Ouve-se uma rajada de metralhadoras) A lei. Ouve-se nova rajada de metralhadoras. O Trapezista sai rapidamente e volta rapidamente. Trapezista Excelências! (Desesperado) Mataram os pássaros! Mataram os cães! Prelado Por quê? Por quê? Trapezista Para que não se transformassem em guardiães! Juiz jovem Guardiães? De quê? Trapezista De um futuro! Assim disseram. Juiz velho Ó, estou muito cansado! Mas eu falava... Juiz jovem (Em aflição) Faláveis da... (Voz angustiada e baixa) Lei, Excelência. Juiz velho Pois é. (Olha ao redor e para a porta aberta. Voz baixa) A lei... (Voz alta) É heróica. Pois afinal arriscamos a vida nesta toga. (O juiz faz sinal para que o juiz velho se apresse) Bem, bem,

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A nossa sentença é antes de tudo um conselho: Que cada um de vós, o Passarinheiro (Olha ao redor) Não está mais? (O juiz jovem faz sinal para que o velho se apresse) Bem, bem, o Prelado está? Ah, sim, e o Trapezista, ah, está aí? Bem,

que todos os três daqui por diante, vendo alguma coisa, por favor, por favor, não insistam, não insistam. E que o nosso caro Agente, nosso digníssimo Agente...

(Olha ao redor) Não está mais? Enfim, quem o nosso Agente continue a dar ao povo o

que o povo merece, isto é, sempre, sempre, e cada vez mais, um envoltório decente, quero dizer, pare ser bem claro, aliás o que me falta sempre, dar ao povo um caixão, um envoltório, em outras palavras, colocá-lo num ardil, numa armadilha, num alçapão, resguardá-lo... Resguardá-lo de toda e qualquer visão. Se tudo isso não se cumprir...

(Voz alta por esquecimento) A lei... Ouve-se de muito perto uma rajada vigorosa de metralhadora, e o Passarinheiro entra com os braços abertos, quase de um salto, e cai morto. O Trapezista e o Prelado tentam auxiliar o Passarinheiro e ajoelham-se ao seu lado, de frente para a porta aberta. Juiz velho Se tudo isso não se cumprir, a lei. Rajada de metralhadora matando o Trapezista e o Prelado. Juiz velho Ó mas que contratempo! Afinal, nós os da lei... Ruído de preparação para abrir fogo. Juiz jovem Por favor, Excelência, não insista, não insista. Venha, vamos embora. (Vai empurrando o velho até a porta) Venha depressa, que cidade, que visita! Um homem fazendo milagre, pura fantasia, Que vaidade! Nem lícito seria que vivesse, Quem assim vivia. Pausa.

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Juiz velho Mas agora o que fazer? Pequena pausa. Juiz jovem Agora, Excelência, agora... Agora vamos comer! F I M Hilda Hilst

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O v i s i t a n t e 1968

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PERSONAGENS Ana Mãe. Maria Filha. Homem Marido de Maria. Corcunda Ana É encantadora, mas existe qualquer coisa de postiço e de

indevassável. 40 anos. Mulher clara. Maria 25 anos. Parece mais velha. Morena. Tem alguma beleza. Homem “Um todo cortês. Um porte ereto e altivo.” (Segundo o relato

de Ana a respeito de uma certa noite) Corcunda Homem alto, com uma leve corcova. Nem feio, nem bonito. 45

anos. Notas: Ana e o marido da filha são figuras imediatamente

atraentes. O Corcunda não deve ser tratado ostensivamente como um

elemento mágico. Não deve ter tiques, apenas um certo sorriso, um certo olhar e alguns gestos perturbadores.

Ana e Maria estão vestidas exatamente iguais.

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Homem e Corcunda estão vestidos exatamente iguais.

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CENÁRIO Imagine o cenário de O visitante quase monacal. Paredes brancas, arcos, um pequeno corredor dando para os quartos, uma grande porta escura de madeira. Não há pobreza ostensiva. Mesa grande, escura, de madeira. Sobre a mesa, uma jarra. Ao lado da jarra, um maço de flores em desordem. Uma pedra de mármore com muitos pães, redondos, compridos. A sala é um lugar onde se executam tarefas domésticas e também onde se come. Um tear, sem muita importância, num canto. Por um dos arcos, vai-se até a cozinha. Sob a jarra, uma bandeja redonda de metal. Jarra também de metal. As mulheres vestem roupas longas, talvez brancas, talvez bordados escuros nas mangas. Vejo tudo entre o medievo e o nazareno - branco, vermelho e marrom. Notas: Pequena peça poética que deve ser tratada com delicadeza e paixão.

Pausas, cumplicidades nada evidentes, silêncios esticados. Sobretudo é preciso não temer as pausas entre certas falas. São absolutamente necessárias.

Ana nunca se movimenta rapidamente. É lenta, grave, composta e

delicada. Não é uma formiguinha laboriosa, apesar de que a filha a vê assim.

Maria tem gestos duros. É disciplinada quando arruma os pães.

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Ana (Tecendo ou próxima do tear, como se tivesse acabado de tecer

alguma coisa) Muitas vezes tenho saudade das tuas pequenas roupas. Eram tão macias! (Sorrindo) Tinhas uma touca, que por engano meu, quase te cobria os olhos.

Maria (Seca) É bem do que eu preciso ainda hoje: antolhos. Ana (Meiga) E uma camisola tão comprida... branca. Nos punhos e no

decote, coloquei umas fitas. E te arrastavas, choravas, se de repente, na noite, não me vias.

Maria Agora vejo-te sempre. Cada noite. Cada dia. (Pausa) Ana Eras mansa. Me amavas. Ainda me amas agora? Maria Ah, que pergunta! As coisas se transformaram. Nós também. Ana A casa ainda é a mesma. E a mesa e... Maria (Interrompendo) A casa, a mesa... todas essas coisas vivem mais do

que nós. Ficam aí paradas. E assim mesmo envelhecem. Tu pensas que são as mesmas e não são.

Ana Imagina! Sei tão bem que é a mesma casa e a mesma mesa e... Maria (Interrompendo) Tu não entendes. Ana Explica-me então. Maria Tudo se modifica, não percebes? (Pausa) Ana (Começa a cantar com os lábios fechados) Bem, deixa-me arrumar

estas flores. (Pega as flores que estão sobre a mesa e começa a colocá-las dentro de uma jarra. De repente faz um gesto como se sentisse alguma coisa no ventre. Aproxima-se da filha. (Apreensiva)

Filha, põe a mão sobre o meu ventre. Vê que volumoso. Às vezes Um lado se estende mais que o outro. Outras, sinto por dentro um ruído...

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Como um soco. Maria (Seca) Deve ser o comer. Ana Mas tu sabes que me alimento pouco. Maria Nenhuma outra coisa pode ser. Teu ventre já fez o que devia: Gerou-me a mim. Ana (Triste) E aquela que morreu. Maria (Seca) Mas ainda assim Deus te deu beleza em demasia. Ana Foi generoso comigo: (Aproxima-se da filha) Deu-me esta filha. Tu, sim, és bela. Mas te falta cumprir Esse dever de dar Um filho ao teu marido. E a mim, uma nova alegria. (Pausa) Hei de fazer um berço Todo de renda e sol. Laços talvez. Mas nada Muito rico. Não podemos. Duas ou três Fitas de cetim, umas quantas Deixa-me ver... umas quantas Pérolas pequeninas Sem muito brilho, essas Baças, mas de contorno Delicado, presas Por um fio de ouro fino E depois algumas... Maria (Interrompe. Seca) Algumas nenhumas mãe. (Pausa) Ana Não te alegro minha filha

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Falando do teu filho Que um dia há de vir? (Pausa) Mas o que tens? Falei muito? Te cansaste? Maria Não. Ana (Amorosa) Vem. senta-te perto de mim. Maria Devo alimentar o cão. (Pega uma vasilha e vai até um dos

aros(???arcos), coloca a vasilha no chão e fala como se o cão estivesse presente) Tu és bom. Tu és bom. És meu. (Volta novamente e continua a arrumar os pães. Olha para a mãe fixamente)

Ana Às vezes tem um olhar... Maria O meu olhar de sempre. Ana Tens um olhar de uma mulher Que vi um dia. Maria (Objetiva e severa) Quem era? Ana Não sei. Era por um caminho E era noite. Maria Disseste um dia. Ana Um dia é maneira de dizer. Era noite. Maria Mas amanhecia? Ana Era noite. Maria (Grave e irônica) As coisas que tu dizes! Nem sabes da mulher... Mas enxergaste os olhos! (Ri) E por um caminho à noite. Ainda que sob a testa Tivesses mais dois olhos!

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Ana Os olhos que eu não vi. Senti o olhar. É diferente. Maria (Irônica) E nessa noite Havia pelo menos um luar? Ana Não. Maria Tu mentes. (Pausa) Ana Um olhar não se vê, minha filha. Um olhar pousa sobre nós. Ou penetra. Pode ser asa somente. Pode ser estilete. Maria (Seca) E então como era o olhar dessa mulher? Pousava ou magoava? Ana (Olha para a filha) Era um olhar... (pausa) doente. (Maria olha

fixamente para Ana) Minha filha... que olhar! Maria (Severa) O meu olhar de sempre. Já disse. Tens mais imaginação do que um profeta. Primeiro falas do ventre e de ruídos. Quem te ouvisse Em ti encostaria o próprio ouvido E esperaria o impossível... (Ri) Um vagido! (Ri) (Severa) Nunca te conformaste com a velhice. (Aproximando-se) Queres parir ainda? Abrir as pernas E dar caminho ao que vai sair Ou a uma nova espera? Ana Como te transformaste! Maria Eu não te disse? Agora compreendes? Nós nos Transformamos. (Pausa) Ana (Surpresa, põe a mão sobre o ventre) Vê! Ele se estende!

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Maria Mas por que falas do ventre A cada instante? Meu Deus! Já não me basta ouvir a tua voz Ainda é preciso ouvir teus ruídos Tuas vísceras. O que queres de mim? Que eu te toque? Que te alise a barriga? Ana Aquela que morreu assim faria. Maria Mas está morta. (Pausa) Falas do meu olhar... E o teu? Já te olhaste?

(Pega na badeja de metal) Eu te mostro. (Segura a bandeja bem próximo de Ana junto ao rosto???) Olha!

Tens o olhar de uma mulher com sede. Ana Sede de que, minha filha? Maria (Voz baixa e irada) Sede de ter entre as pernas o que te conviria. (Ana cobre o rosto com

as mãos) Oh, até a morte será preciso Te olhar. Até a morte Eu estarei aqui, vendo o teu rosto E a tua imunda maneira de agradar. Ah, se for preciso conviver contigo Sempre, sempre... Ana (Interrompe. Muito assustada) Devias te cuidar. Estás doente. Maria Olha-me. Há em mim qualquer coisa que é tua? Tenho por acaso o teu cabelo, a tua pele O teu andar? Olha as minhas mãos! São duras. Olha o meu ventre, olha! É curvado para dentro. E não para frente. Ana (Com seriedade e meiguice) E a minha culpa em tudo isso onde está?

(Ouve-se ruídos, vindos de fora. Ana olha para um dos arcos que dá para o jardim) Cala. Teu marido vem chegando.

Maria Calar-me? Por quê? Ana Porque nunca se espera um homem Gritando. (Entra o Homem, marido de Maria)

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Homem (Sorrindo) Boa-noite Ana. (Pausa. Olha para a mulher com

delicadeza, mas sem sorrir) Então que fizeste? Maria (Seca) Infinitas tarefas. Homem (Amável) Diz uma delas. (Pausa) Ana (Quebrando o silêncio da filha) Olha, fez pães. E depois teceu. Colheu flores. Cantou. Maria Já não basta? Homem (Sorrindo) Cantaste? (Pausa) Ana (Quebrando o silêncio da filha) Uma canção breve Mas tão bela... Quem a ouvisse cantar Rezaria por ela. Homem (Grave) ainda bem, Ana. Rezar é bom. (Aproxima-se da mulher, sorri)

Canta. Como era? (Pausa) Está triste? Ana (Interrompe sorrindo) Imagina! Homem (Para a mulher) Então canta. (Pausa) Ana (Afoita) Sabes, tem vergonha De cantar tão bem Que tu nem sonhas. Homem (Amável) Eu ajudo. Era essa? (Canta sem mover os lábios) Ana (Sorrindo) Não. Era assim: Pelo caminho, no monte Pela planície, no horizonte, Vou caminhando.

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(Os dois juntos) Tenho no peito um amor. Tenho nas mãos uma flor. Vou caminhando E nunca chegando Nunca chegando. Maria (Interrompendo) Parem! Dois anjos! Dois querubins! (Pausa longa.

Ana e o Homem trocam olhares. O Homem tenta ser alegre) Homem Hoje temos visita. Ana Então deixa-me começar A arrumar esta bandeja De uma maneira bonita. (Pega a bandeja e sai. Pausa) Maria Nunca se pode estar a sós contigo. Tenho mãe. Tens amigos. Homem (Grave) Quem te ouve falar Pensa que quando entramos no quarto Somos um. E estás mais loge de mim Do que o céu do mar. Maria (Voz alta) Quem te ouve falar Pensa que é verdade Que desejas esses dois que disseste Aproximar. (Ri) O céu e o mar! (Sai, levando alguns pães para a cozinha, cruza com Ana. Olham-se) Ana (Entrando com muitas flores ao redor da bandeja. Dirige-se ao

homem) Escuta, te parece bem estas flores Ao redor do que se vai comer? (Pausa) Mas o que tens? Homem Ana, meu Deus, que solidão. Que triste é a tua filha! Quando a possuías no ventre

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Que idéias alimentavas, hein? Tu sorrias? Falo E é como se o meu hálito Fosse de encontro a uma pedra. Nem a terra, nem a terra Me causa tanto espanto. Ana É bela. Homem (Exaltado. Voz baixa) Uma fera pode ter o mesmo rosto. Ana! Que distância Passo a posso anda com ela. Ana É bela. Homem Mas que me importa! Que me importa! Se eu te desse uma flor a cada dia E sempre que a tocasses... Ana Uma flor de cimento? Homem Aguda, fria. De medo. Maria (Entrando para a mesa) Palavras, palavras inúteis A cada dia. Ana Falávamos... Maria Do meu olhar? Dos teus ruídos? Ana Do trigo... deste pão. Maria Há de ficar amargo. Ana Por quê? Maria Será mastigado Com palavras vãs. (Pausa) Homem Por que disseste

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que falávamos do teu olhar? E de quem os ruídos? Ana (Rápida, sorrindo) Por que hoje eu dizia Se não tivéssemos olhos A vida como seria? Maria (Severa) E que o meu olhar... Ana (Interrompe sorrindo) E que o teu olhar Às vezes é de sol E outras vezes lunar/ Homem (Grave) De sol e lua. (Para Maria) Deixa-me olhar os teus olhos.

Olha-me. (Aproximando-se) De treva. Ana (Amável) De fadiga, talvez. Maria Mas será possível Que não há mais o que se falar Nesta casa, a não ser de mim E do meu olhar? Pausa. Homem (Para Maria, tentando ser alegre) Sabes, nossa visita de hoje É um homem delicado! Encontrei-o no caminho por acaso. E queres saber? Eu nem lhe sei o nome. Maria (Seca) E convidas alguém que não conheces? Homem (Amável) Como não conheço? Pelo aspecto, pela fala Deve ser homem de apreço. Tem apenas um defeito (As duas mulheres olham-no interrogando)

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Mas quase não se nota... Uma corcova. Ana Vamos tratá-lo bem, se gostas dele. Parece que advinhamos, não é,

minha filha? Temos uma linda ceia. Maria Tu é que sabes. Tratas da cozinha o ano inteiro. Homem E então o que teremos? Ana O mais tenro dos cordeiros. Homem Ainda que nada houvesse... Temos vinho. Basta. (Muito alegre, para Ana, ilustra o que vai contar) Sabes, eu caminhava pelo caminho do outeiro. E de repente o homem surge. Que graça! Já não havia mais luz. E nós dois nos

assustamos e ao mesmo tempo demos um salto para trás. Ah! (Exclamação de susto) E nos olhamos e depois rimos, claro! Afinal éramos dois homens plantados ali e quietos como dois lobisomens.

Ana Por que será que sempre comparamos uma coisa com outra que não

conhecemos? Homem (Rindo) Por quê? Eu comparei coisa com coisa? Ana (Rindo) Disseste que tu e ele eram dois homens que estavam ali,

plantados e quietos como dois lobisomens. Homem (Rindo)Bem, um lobisomem é verdade eu nunca vi. Ana Não disse? Por isso devias dizer... “quietos” como... (tenta encontrar

uma boa comparação) bem... Homem (Sorrindo) Vamos... quietos como quê? Ana Ora, não sei, “quietos” como... dois homens! Maria (Seca) Inquietos, devias dizer. Homem (Sem compreender) Por quê? Maria Inquieto... como todo homem.

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Pausa com atmosfera desagradável. Ana (Terminando de arrumar as flores na bandeja) Bem. Está quase tudo pronto. (Sai) Homem (Para Maria) Põe o vinho na mesa. Dá-me um pouco. (Ouvem-se

passos e depois uma batida na porta) Deve ser ele. Abre. (Maria fica imóvel) Abre, abre. (Ana aparece)

Ana (Para o Homem) Bateram, ouviste? (Outra batida) Homem (Para Maria) Deixa. eu abro. (Maria põe a mão sobre o ombro do

marido não o deixando levantar-se) Maria (Para Ana) Quem tem tanta conversa E é tão laboriosa Pode abrir uma porta. (Sai para o quarto) Ana abre a porta para a visita. Corcunda (Entrando, sorrindo como um galanteio) Prometi a mim mesmo Dar esta flor A quem primeiro surgisse Nesta casa E esta porta me abrisse.(Entrega a flor para Ana) Homem (Levantando-se) Ainda bem que foi Ana e não fui eu. Uma flor para um homem, já pensaste? Até a mulher podia duvidar Se serias ou não, mensageiro amoroso De uma trama. Ana (Sorrindo) Que perfume! E que flor tão estranha. Corcunda Não é do vosso agrado? Ana (Pondo a mão sobre o ventre) Muito... mas... Homem Não te sentes bem?

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Ana (Para o Corcunda) É que é tão belo receber um presente Eu, que nada mais espero. (Sai) Corcunda (Extasiado, sem sair do lugar). Tem lindo rosto. (Enamorado) Homem Senta-te homem. (Pausa) Sonhas? Corcunda (Extasiado. Sentando-se lentamente) E a pele... e o andar. Homem (Sorrindo, mas apreensivo) Falas de quem? De Ana? Corcunda (Sorrindo) Chama-se Ana? A tua Ana? Homem (Sorrindo, mas apreensivo. Voz baixa) Minha? Estás louco. Sou casado com a filha. (Alegre) Homem, ainda não bebeste E já estás a delirar. Imagina-te daqui a pouco. (Levanta o copo cheio de vinho, serve o Corcunda) Olha a cor! Penso às vezes comigo Que se não fosse preciso trabalhar Ficava diante disto Talvez nem bebesse Mas ficasse a olhar. Corcunda (Ausente) Chama-se Ana. Homem (Sorrindo) Sim. Eu já não disse? Corcunda E a tua mulher como se chama? Homem (Sentindo-se à vontade) Maria. Ana casou-se duas vezes E de cada união teve uma filha. A primeira morreu. E também os maridos.

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Corcunda (À vontade) E essa que morreu que nome tinha? Homem (Sorrindo) Maria. Corcunda Mas Maria não é a que tens por mulher? Homem (Ri) Sim, sim. Mas essa é uma estória! Ana prefere a todos os nomes O nome de Maria. Se tivesse dez filhas A todas esse mesmo nome lhes daria. (Olhando para o copo cheio) Mas não bebes? (Ana aparece com a bandeja enfeitada) Ei-la. Tão depressa? Ana (Colocando a bandeja na mesa. Para o Corcunda) Senhor, minha filha e eu Só soubemos há pouco que viríeis. Mas se o alimento não vos agradar Pensamos outro. E tudo será feito De novo e para o vosso gosto. (Senta-se à mesa) Homem E Maria não vem? Ana (Para o Homem) Deitou-se. (Para o corcunda) E vos pede perdão.

Perdoa. Corcunda Cansou-se, por mim? Ana Oh, não, senhor. É frágil. E hoje Andou de um lado a outro. Fez pães e mais isso E aquilo outro. Homem (Olhando para Ana) Teceu, colheu flores, cantou. Ana (Mudando rapidamente de assunto) Senhor, será de vosso agrado? (Serve o Corcunda)

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Corcunda É tão belo assim, tão arrumado. É pena desmanchar. Ana Às vezes a beleza É só na aparência. E por dentro não há nada Que nos agrade. Nem paladar E neste caso talvez (Sorri, mostrando a bandeja tão enfeitada) Nem singeleza. Corcunda Deve ser bom ser belo. (Olha para o Homem e para Ana) Não é bom? Homem (Para o Corcunda) É verdade, senhor. A cor Das coisas tantas vezes nos engana. E a beleza é como a cor: conforme a luz, De ouro. Ou escura (ri) como alcaçuz. Corcunda Já vos enganastes, senhora? Ana Com a beleza? (Pausa) Sim. Corcunda E como foi? Ana Ah, senhor, nem sei se posso... Se soubésseis! Corcunda Contai, contai-nos, senhora. Homem (Tom de voz quase amoroso) Essa dor de não saber, eu não mereço. Corcunda Nem eu. Pois sendo feio como sou (E isso muito me entristece) Quem sabe se o vosso conto Há de alegrar-me. E desejarei ficar Tão feio, como a mim, tudo em mim Me parece.

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Ana (Reclina-se ligeiramente na cadeira. Luz um pouco mais clara sobre

Ana) Então, para vos alegrar... Corcunda (Leveza) Como sois clara! Ana Ah, se soubésseis Nessa noite atormentada Como sofri de umas garras! Corcunda (Extasiado) Como sois clara! Homem Mas deixa-a contar. Ana (Sorrindo. Grave) A noite sim era clara... (Pausa) E eu pensava naqueles a quem perdi Treva amara, Quando a meu lado se fez Uma sombra que a princípio Lembrava um todo cortês Pelo porte ereto, altivo... E por isso, por ser tão belo Eu olhei. Mas ah, senhor, A sombra se fez mais densa! E olhando bem (acentua) “penso que vi” Aquele cujo nome eu nem vos posso dizer... Vós o sabeis. Me dizia: Tão bela, tanto saber Tão só na noite vazia? Perdoai-me assim dizia. Ah, que soluço, que dor Que lutas com ele travei! E a manhã já se mostrava Quando a coisa se desfez. (Pausa) Desde esse dia pensei Que a beleza pode ser clara E sombria. Desde esse dia Nem sei, temo por tudo O que é belo. Temo... (Sorrindo) Mas a verdade, é que também

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Tenho amor. Tenho amor até por flores Por animais, por estrelas. (Grave) O que será que me faz Amá-los com tanto amor? (Preocupada) Esse amor por animais, já me disseram, (Para o Corcunda) imagine! Que é parecença interior. Mas por flores? Por estrelas? Quem sou eu para sabê-las? Corcunda (Intrigado. Pra Ana) Dissestes Que aquela sombra a princípio Pelo porte ereto, altivo Lembrava um todo cortês. (Olha para o Homem) Ana Sim, é verdade. Corcunda (Para Ana) E que depois... a sombra Se fez mais densa. Ana Também isso é verdade. Por quê? Não encontrais coerência? Corcunda E que depois... olhando bem... Homem (Interrompe) Viu “aquele”... Corcunda (Interrompe. Firme) Ana não disse assim. (Pausa) Posso vos chamar

de Ana, simplesmente? Ana Ana é o meu nome. E o teu? Corcunda Meu nome é... Meia-Verdade. Ana Meia-Verdade?

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Corcunda Assim me chamam todos. Homem (Rindo) E eu que não sabia! Meia-Verdade! Tem graça! Se a verdade ninguém sabe Quando se mostra. Inteira ou meia Pode ser bela e feia E não ser verdade. Ana (Refletindo) Meia-Verdade... por quê? Corcunda (Apontando a cintura e as pernas) Porque daqui para baixo sou perfeito (Apontando a cintura e o tronco) E daqui para cima carrego meu defeito. Ana (Meiga) Meia-Verdade! Corcunda (Extasiado) Ana! Homem (Para o Corcunda) Mas tu dizias... lembra-te... Corcunda (Para Ana) Que na tua noite vazia “Pensaste” ter visto “aquele”... Ana Eu disse assim? Homem Disseste. Agora me lembro. Disseste: “Penso que vi” , “aquele”... Corcunda (Interrompendo. Para Ana) E então não há certeza De ser “aquele” o maligno De quem tens tanto medo. Pode ser o divino. (Olha para o Homem sorrindo. Para Ana) Teu amigo. (Pausa. Ana dá sinais evidentes de mal-estar) Homem Ana, o que tens? Estás doente?

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Ana (Angustiada) Não... Apenas sinto o ventre intumescido E dentro dele às vezes um ruído... Como um soco. (Cobre o rosto com as mãos) Corcunda Mas o que foi? Estás conosco! Não te aflijas, te dói? Homem (Aproximando-se) Estás comigo! Fala! Ana (Angustiada, temente) Depois daquela noite De milagre ou castigo Já não sei... tenho quase certeza (Aflitíssima) Ah, que vergonha, não direi! Homem (Sentimentos múltiplos. De amor, de receio) Fala-me! Olha-me no rosto! Deixa-me colocar o ouvido! (Ajoelha-se, escuta o ventre de Ana e

com as duas mãos toca-lhe o ventre. Depois levanta-se, olhando-a com enorme espanto)

Ana (Falando rapidamente, angustiada e temente) Tenho quase certeza De que uma coisa move-se em mim E se acrescenta aos poucos... (Lentamente) Como uma escada se encurvando Descendo... Homem (Interrompendo) Como uma flor... quase nascendo? (Ana põe a mão

sobre a boca do Homem) Corcunda (Para Ana) Por que não dizes... como a tua própria carne

desabrochando/ Ana Cala! (Entra Maria e empurra o marido para longe de Ana) Maria (Para o marido) Afasta-te! Homem Mas que demônio te tomou? Estás louca?

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Maria Não, não estou louca. À minha volta ainda Alguém me guarda. (Para o Corcunda) Retirai-vos, eu vos peço. (O Corcunda tenta sair) Homem (Retendo o Corcunda) Tratas como inimigo Quem vem à nossa casa? E de que me acusas? Não tenho sido eu No gesto e na palavra O ofendido? Ana (Voz baixa) E a mim como me trata! Maria Dois anjos! Dois querubins! (Tom de voz crescente) E um ventre que se estende! (Para o Corcunda) Olha para o meu ventre Tu que sabes da mentira E da verdade. Olha! Inútil, repousado... Acreditas? Intocado! Homem (Tom de voz crescente) Ah, quem te ouve falar... Queres falar? Falemos. Esta é a tua mãe. Este é o meu amigo. Falemos de uma noite, não, de todas, quando te deitas O grande olhar perdido... Eu não te toco? Não tento? Maria (Cólera) Tentas. (Voz baixa) Mas tens no peito Um sonho que a sós sonha contigo. Homem (Grita) Ana! Tua filha está louca! Maria (Grita) Ana! Ana! é o que diz cada noite tua boca. Homem (Voz baixa e alucinada) Mentes. Mentes. (Pausa de grande tensão)

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Corcunda E se falássemos, e se falássemos Como se de repente a própria morte E a vida estivessem presentes? Maria A morte. Ana A vida. Corcunda (Aproxima-se de Maria. Fala muito lentamente) És tão jovem... Olha-me. Olha-me. (Pede) Sabes? Com o tempo, um certo limo Se faz na nossa carne. Tu não o vês. Nem o sentes assim, como uma coisa física. Nem é por dentro, que esse limo se faz Nem sabes Se é com o tempo que ele cresce, decresce Ou modifica. Mas de acordo contigo Ele a si mesmo se transforma E te faz criatura alegre ou triste. Te faz acreditar no que perdura Ou em tudo que te parece real Mas que não existe. (Pausa) Tu compreendes? Maria (Voz levantando aos poucos) Não, eu não compreendo. Um certo limo se faz na nossa carne... O que tu queres dizer? Em mim nada se faz. Acreditar no que perdura! Acredito sim Num certo limo... palpável. Toca-me. Um limo de amargura. Homem Mas por que falas assim? Por quê? Corcunda (Mansamente, para o Homem) Cala-te. Ana (Para o Corcunda) Ah, se tu conseguisses Arrancar de minha filha Esse sal... esse demônio de mágoa. Homem Um satanás, Ana, um satanás em tua filha!

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Maria O satanás do encanto! É o que tu vês (Aponta Ana) Nessa que me deu a vida. E em cada canto onde ela estiver Tu e um outro estará presente. Um outro: O santanás do encanto! Ana Oh, meu Deus, por quê? Por que me fizeste assim? Corcunda (Baixo) Com essa boca, essa tez. Ana Tão dividida? Se minha filha é essa que se mostra É porque tudo isso que eu tenho em mim... O mesmo sal, a mesma treva. Homem (Para Ana) Se é verdade o que tu dizes (aponta Maria) e o que ela diz (aproxima-se de Maria) Tu, terias também O satanás do encanto! E no entanto não o tens! Maria E isso te desgosta. Isso te enoja. Homem (Muito meigo) Mas que tola... Que tola. Abraça-me. Vem. Maria (Afastando-o) Ainda és capaz de me dizer palavras? Mas o que queres de mim? Corcunda Talvez ternura. Maria Ternura?! Homem Isso te espanta? A ternura te espanta? Maria Mas será possível? Tu te deitas (aponta Ana) com aquela E me pedes ternura?

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Homem (Alucinado) Me deito? Me deito? Então pensas? (Esbofeteia a mulher

várias vezes) Então pensas? Corcunda Pára! Eu te peço, pára! Ana Por amor, pára! (O Homem imobiliza-se. Maria está de joelhos) Corcunda (Para Maria) Podes te levantar? Assim, assim, vamos. (Maria ergue-se vagarosamente) Senta-te. Senta-te. Escuta-me. (Pausa) Certa vez... Homem vai até a porta. Ana (Para o Homem) Não, por favor... Maria (Para Ana) Cala-te! (Homem tenta se aproximar, ameaçador, de

Maria) Corcunda Sai. Caminha um pouco. (O Homem abre a porta e olha para Ana

com olhar angustiado. Sai rapidamente. O Corcunda levanta a cabeça de Maria. Fala lentamente. Explicativo)

Certa vez, uma mulher pediu Àquele (Olha para o alto) Àquele Ser antes do Um, esse que é sol e noite, Pássaro e coiote, que lhe fizesse brotar Flores nos pés. Maria E esse é um pedido que se faça Àquele que tu dizes... sol e noite, pássaro e coiote? Ana E por que não? Uma flor pode querer nascer... da nossa carne. Corcunda (Mansamente, para Maria) Mas sabes por quê? Essa mulher Tinha o andar da morte. Passo estacado, Escuro. E onde ela pisava, tudo perecia: Flor pequenina, verdura, açucena, bonina... Maria (Dura) Ah, se me fosse dado esse poder De ter o passo ensangüentado. (Corcunda põe a mão sobre a boca de Maria)

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Ana (Triste) Já tens a fúria de um galope na noite A caminho do nada. Maria (Dura, voz alta) Numa estrada de cardos e espinhos. (Pausa. Claridade súbita sobre Ana, vinda de fora, através da janela) Ana (Para o Corcunda, olha para o ventre inundado de luz) Tu vês? Olha! Vês? Corcunda (Explicando) A claridade de fora. A lua talvez. Ana (Contente) Agora tenho certeza de que será mulher. (Aperta o ventre) Ah, bendita! Maria (Voz entrecortada) Então é verdade, minha mãe! É mesmo verdade. Estás... cheia. Cheia. E como conseguiste? Nesta casa vivemos só nós duas... E um homem. Fala! (Aproximando-se) Fala! Ou tu pensas que o meu olhar Foi desde sempre escuro? Tu pensas Que a minha boca foi desde sempre espuma? (Voz alta, destacando as sílabas, unindo a sílaba final ma com agora) Amaríssima agora! (Muda de tom para o Corcunda) Flores nos pés? É tudo o que pedia essa mulher de quem falavas? Corcunda Para que o andar se fizesse Ensolarado e leve. Maria (Enlouquecida) Para morrer ao menos perfumada. Corcunda Para viver amante e apaixonada. Maria Pelos pés? Apaixonada pelos pés? Ana (Grave, sonhando) Apaixonada por suas flores pisadas. Po suas dores.

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Maria (Enlouquecida) E ela foi atendida? Nasceram-lhe flores? Corcunda Podes não acreditar... Podes não acreditar Mas é a verdade. É também a verdade, Maria É que Ana desejou tanto outra filha. Ana (As mãos e o olhar no ventre) Maria. Corcunda Que talvez... quem é que sabe... Uma existência sofrida Pode até fazer milagres. Maria (Voz de desafio) Espera... espera... Então queres me meter na cabeça Essa estória de milagres? Quem és? Existe alguém que te conheça? Meia-Verdade... Quem são teus amigos? Corcunda Muitos tenho em toda parte. Maria Olha, posso parecer tola aos teus olhos, mas não sou, ouviste? Como

conheceste meu marido? Ana (Levantando-se inquieta) Já sabemos. Foi no caminho do outeiro. Corcunda Não havia mais luz. Ana (Meiga) Assustaram-se, não foi? Corcunda Às vezes uma sombra... Maria (Interrompe) Se não havia mais luz, também não havia sombra. Corcunda Às vezes um ruído, um vulto Num caminho de terra... Bem... leva-se um susto! Maria E não achas estranho

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Que um homem te convide À própria casa Sem te conhecer? Entregas por acaso Teu rebanho A um forasteiro? Ana (Tentando resolver) Depende. Se transpirar confiança E de ser um pastor tiver a graça. Maria (Intrigada) E tu o defendes com calor! (Pausa. Mudando o tom) Tu o

defendes. (Quase sorrindo) É claro! (Sorrindo) É tão claro. Tu o defendes!

Ana Mas o que é minha filha? Defendo uma presença em nossa casa. Maria Sabes, mãe... estou ficando contente. Corcunda Fala-nos, Maria, de uma forma mais clara. Ana (Aproximando-se da filha) Parece mais tranqüila. Maria (Rindo) E eu que nada percebia... como fui tola! Às vezes sim, ouvia

passos... seria sonho? Pensava... É vigília? talvez quem sabe o demônio? Pensava. (Ri) Mas por que não me disseram que já se conheciam? E que ele (aponta o Corcunda) nas noites abria esta porta e contigo se deitava?

Por que esse medo de mim, minha mãe? Afinal, é a tua casa... (vai até a porta) E o outro que saiu... tolo, ah, eu tenho culpa sim, imaginei tanta coisa, nas noites ele falava... e eu à escuta, mas mal ouvia, quase nada, pensava que ele dizia (olha para Ana) o teu nome. (Ri)

Ana, Ana, tu és tão bela e boa... e encontraste, que bom... Meia-Verdade! (Aproxima-se da mãe) Te acanhaste de mim? Ficaram todos medrosos como se eu fosse um carrasco... ou um querubim! (Aproxima-se de Meia-Verdade) E que estórias inventaste! Flores nos pés, limo na carne! Que estórias! Como serás bom pai. (Ajoelha-te, põe as mãos no ventre de Ana. Fala para a criança

dentro da mãe)

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Ah, Maria, eu sim te farei um berço Que nem sei, nem conheço. Lírios... E um travesseiro (olha para a mãe) Sabes do quê? (Faz um gesto brusco com a cabeça, soltando os cabelos) Do meu cabelo! Ficarás tão mimada! Não importa. Já sofreste bastante de pudor (O Corcunda encaminha-se lentamente para a porta e sai. Somente

Ana o vê sair) Com nossa mãe cautelosa te escondendo De mim. Terás tudo: beleza, e talvez glória Quem sabe. E depois terás um filho. Um homem. Um filho homem feito de amor. Esse nunca há de sofrer. Nem dor Nem qualquer martírio. Sabes por quê? Não cabe mais sofrimento. Sofremos tanto por ti. (Levanta-se. Olha ao redor) E Meia-Verdade onde está? Ana (Angustiada) Deixa, filha. Deve ter ido buscar o teu marido. (Ouvem-

se passos) Maria Ei-lo! (Entra o marido de Maria . Maria contente) Ah, que bom, és tu! (Aproxima-se) Homem (Para a mulher) Sossegaste? Maria Agora sei tudo. Homem Sabes o quê? Maria De Ana e Meia-Verdade. Estou contente. Perdoa (O Homem olha

para Ana sem compreender. Maria, muito amorosa) Tolo... (Ri. Boceja) Agora sim me deito sossegada. Vai caminhando para o corredor) Conta-lhe que eu sei de tudo, minha mãe. Tenho tal sono... (Vira-se meiga) E amanhã, corto os cabelos. (Segura os cabelos tentando fazer uma trança. Olha para o marido) E quem sabe... talvez... (Sorri. Puxa todo o cabelo para um lado só) Não achas, minha mãe, que são fartos e suficientes até para dois pequeninos travesseiros? (Sai)

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Ana e o Homem olham-se fixamente. F I M

Hilda Hilst

A empresa (A possessa)

(Estória de austeridade e exceção)

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1967

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Personagens América Mulher jovem. Personalidade muito acentuada. Primeira Postulante Transforma-se na Primeira Cooperadora Chefe. Segunda Postulante Transforma-se na Segunda Cooperadora Chefe. Terceira Postulante O Vigia (Que se transforma em Bispo) 35 anos. Monsenhor (Que se transforma em Inquisidor) 40 anos. Superintendente 40 anos. Aspecto bastante rígido-inflexível.

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Observações 1) Esta peça não pode ser tratada de forma realista. 2) Está escrita para “palco italiano”, onde deveriam existir três planos (A, B, C). No entanto, mando esboço de cenário para “palco de arena”, porque entendo que dessa forma ela pode ser melhor solucionada, e os planos (A, B, C) sofreriam maior fusão, havendo ao mesmo tempo proximidade e distanciamento. Neste caso, a movimentação de América será sempre no centro do palco. Nos dois casos (italiano e de arena) a primeira cena deve ser tratada de modo a dar a impressão de um momento muito recuado no tempo, assim como uma fotografia baça e amarelecida. 3) América é bastante jovem na primeira cena, mas sem as características da adolescência. Sua lucidez acentuada e singular firmeza são características de maturidade. Ainda quando é quase delirante no seu “estado de graça” ela inteira é adulta e quase sábia. Personalidade intensa. 4) Eta e Dzeta são ilustrações de uma forma quase perfeita de repressão. América quando inventa a estória de Eta e Dzeta para o “Monsenhor”, quer simplesmente dizer que sendo essas ilustrações quase perfeitas, nunca seriam suficientemente poderosas a ponto de sufocar o espírito do homem. No entanto, o “Monsenhor” dá uma seqüência extraordinária à estória de América, transformando Eta e Dzeta numa realidade de potencial repressivo ilimitado. 5) A empresa pode ser entendida como um teorema seguido de inúmeros corolários. Um deles seria “Redefinição”. Mas Redefinição que mantivesse no homem sua verdadeira extensão metafísica. 6) Entendo que A empresa também é uma peça didática. E de advertência.

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Cenário (para palco italiano) 1) Três planos A, B, C. 2) Diferentes altura, e distribuídos como os vértices de um triângulo equilátero imaginário, sendo que um desses vértices aponta para o público e marca o lugar do plano A. Teremos à esquerda do público o plano B, e à direita o plano C. 3) Devem dar a impressão de que estão soltos no vazio. 4) No plano B, um vitral suspenso, ou qualquer outra característica que evidencie um colégio religioso. 5) No plano C, indicações acentuadas de um laboratório. Neste plano encontra-se uma caixa de metal brilhante, onde estão Eta e Dzeta. 6) No início da peça as roupas têm características de um internato religioso. 7) América não é uma postulante, mas uma aluna desse internato. Portanto sua roupa deve diferir das postulantes. 8) A modificação do vestuário no decorrer da peça deve ser feita de modo a deixar claro a transformação no caráter dos personagens. 9) A única indicação de tempo é na primeira cena. Passado bastante recuado.

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Pensar Deus, amar Deus, não é mais do que uma certa maneira de pensar o mundo.” (Simone Weil, Cadernos)

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PRIMEIRA CENA Plano B - Luz baça. América (Muito entusiasmada) Vocês gostaram? (Pausa) Gostaram da

estória) Primeira Postulante (Em dúvida) Sabe... é uma estória que... América (Aborrecida) Pode falar. Já vi que você não gostou. Primeira Postulante (Sorrindo, prudente) Não é bem isso. É que você disse... que depois

dele tudo ficou diferente... e... América (Entusiasmo moderado) Mas foi assim mesmo. E não é bom? Depois

dele, da luta, tudo mudou. Todos teriam todas as coisas que desejassem. Tudo. Não é bom? (Pausa. Postulantes entreolham-se)

Primeira Postulante E não vem o tédio? América Tédio de quê? Primeira Postulante De ver todas essas coisas. Tudo. América (Firme) Tédio é não ter. Será que você não entende? Primeira Postulante Mas eu gostei demais da estória, América, só que é um pouco

complicada. América Complicada por quê? Primeira Postulante Porque você disse que ele era bom, muito bom, mas ele mandou

matar os outros. América (Seca) Se um leão te ataca e você tem uma arma, você não mata o

leão?

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Primeira Postulante Ah, mas aí é uma questão de vida ou de morte. América (Contrariada) Mas nessa estória também. Segunda Postulante (Adesão) Lógico. Terceira Postulante (Francamente persuasiva) América está certa. O homem primeiro

falou, falou. Os outros continuaram fazendo a mesma coisa. Depois o homem mostrou por “a mais b” que estava certo. Os outros continuaram fazendo a mesma coisa. Ora, aturar tudo também seria fraqueza de espírito.

América (Como quem fala consigo mesma. Branda) Ele se sentiu leve. Segunda Postulante Agora ele tinha uma diretriz, não é América? América (Consigo mesma. Em comoção) Uma tarefa. Primeira Postulante (Um pouco febril) Ele se sentiu assim como se ele fosse um pássaro

muito grande, muito contente e vivo, vivo? Segunda Postulante Ih... Lá vem você. Ele era um homem e América disse que ele era

forte como uma pedra. E as pedras nem são pássaros nem voam. América (Com muita certeza. Grave)Ela era um que tinha mais alegria do que

os outros porque tinha uma idéia. Primeira Postulante Assim como se a gente se perdesse num deserto e tentasse nalgum

lugar e encontrasse água? (Pausa) América (Firme) Não. Terceira Postulante (Quase infantil) Como se a gente descobrisse de repente que existe um

outro lá dentro da gente? Segunda Postulante Ah, isso é gravidez. (Risos das postulantes. Pausa. Olham para

América em silêncio) América (Como se afinal descobrisse) Sim, é como se fosse isso.

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Segunda Postulante (Desconfiada) E será que uma idéia pode ser tanto como se fosse um outro dentro da gente?

América (Apaixonada) Essa idéia sim. Nenhuma é tão grande como essa. Primeira Postulante Por quê? América (Grave) Porque essa faz do homem, herói. Segunda Postulante E você acha que é bom ser herói? América (Aflita, tentando explicar) Não é que é bom, meu Deus, será que

vocês não entendem, é mais, é... Primeira Postulante (Interrompendo com bastante interesse) E você acha que ele também

amava os outros como um herói? América (Apaixonada) O amor era para ele como uma bola de fogo que ele

podia arrancar de dentro de si mesmo e sustentar nas mãos, e se quisesse também poderia até mesmo desfazer-se dela, tudo isso sem deixar de possuí-la. Vocês me entendem? (Pausa)

Primeira Postulante (Sem ânimo) É o que eu digo pra vocês. É complicado. Terceira Postulante Ah, eu não acho nada complicado. Eu compreendo. Primeira Postulante Mas eu também acho que é bonito ser assim, só que... América (Interrompendo, voz firme e alta) Mas não é que é bonito. O homem

era todo honesto, limpo. Era amor. Segunda Postulante Nossa, eu fico até com febre quando você fala assim. (Põe a mão de

América na sua testa) Olha. América (Com entusiasmo) E um dia essa estória que eu contei pode ser a sua

estória. Você já imaginou? (Para todas) Vocês já imaginaram? As três postulantes (Com entusiasmo) A nossa estória? Nossa? (Sorriem todas umas para

as outras)

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Ouve-se um toque de campainha e imediatamente entra a irmã superintendente, as mãos enfiadas nas mangas. As postulantes silenciam e formam fila, enquanto América fica afastada a um cato. Superintendente Vamos, as orações. (Tenta fazer o sinal da cruz mas interrompe-se ao

ver América. Contrariada) Po que você não está com a sua classe? (Silêncio) Outra vez com as postulantes? (América tenta sair) (Tom severo) Não não, agora fique, fique aí. (Pausa. Volta-se para as postulantes e abranda o tom) Bem. Hoje vamos pedir a Deus uma coisa muito importante. (Com ironia) Que ele nos ajude a suportar certas presenças neste nosso colégio. (Fechando os olhos. Grave) Às vezes essas presenças são enviadas pelo Altíssimo com intenção de acrescentar dificuldades na nossa escalada e com isso tornar mais difícil e mais meritório nosso lugar no céu. (Abre os olhos) Em nome do Pai, do Filho (Risos contidos das postulantes que olham para América.) (Contrariada) O que é agora?

Primeira Postulante (Tentando esconder o riso) Irmã, a senhora dá licença? (A

Superintendente confirma com a cabeça. A postulante continua sufocando o riso) Quais são essas presenças? (Risos mais audíveis)

Superintendente (Muito severa) Silêncio. Façam todas um pequeno exame de

consciência e assim cada uma saberá quanto lhe cabe de culpa. E acima de tudo pensem nos mártires e naqueles que se humilharam diante dos seus semelhantes, aqueles, cumpridores de tarefas incompreensíveis aos olhos de todos. (Dirigindo-se a América com aspereza) Meditem ainda na lição da grande santa de quem sempre lhes falo, e nunca é demais repetir que por amor a Deus (Vai se aproximando de América) beijava a ferida dos leprosos e (América abaixa a cabeça a cobre os ouvidos com as mãos. Superintendente exaltada) Levante a cabeça, América. Já lhe avisei que não fizesse isso.

América Mas é horrível, beijar a ferida dos... dos outros. Mesmo que fosse a

ferida da gente. E por que a senhora conta sempre essa estória? Sempre a mesma. Pras meninas e pras postulantes. Não tem outra menos macabra?

Superintendente (Fechando os olhos, voz baixa) Cale -se, cale-se.

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América (Decidida) Mas por quê? A estória é até nojenta. E se ela é nojenta porque eu não posso falar? O próprio Monsenhor disse que gostaria de ouvir tudo o que eu pensava.

Superintendente (Categórica) Não modifique as palavras do Monsenhor. Eu estava lá,

lembro-me muito bem do que ele disse. E foi isto: “América, um dia vamos conversar sobre o teu aproveitamento no colégio. Eu gostaria de ouvi-la.” Não foi assim? Agora ajoelhe-se (Luz diminuindo. Pausa) Em nome do Pai, do Filho, do Espírito... (Escuro total)

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SEGUNDA CENA As mudanças de cena são muito rápidas. Luz intensa sobre o plano A, onde já está América e o Monsenhor. Cadeira negra, de espaldar muito alto para o Monsenhor e um banco para América. Monsenhor (Tom paternal) Minha filha, certas condutas podem parecer

inofensivas mas não são. Às vezes nem sabemos o mal que provocamos. Você me compreende?

América (Seca) Sim, Monsenhor. Monsenhor (Som firmeza) Bem. (Pausa) A informação que tive da irmão

superintendente é de que você tem muita influência entre as suas colegas de classe e também entre as postulantes. Isso é bom. Uma vocação de liderança. No entanto, é preciso saber aproveitá-la, conduzir sim, se isso lhe foi dado, mas em direção a um caminho claro. Você me compreende?

América Sim, Monsenhor. Monsenhor (Frio) E tem sido assim a sua conduta? América (Objetiva) Monsenhor, eu digo as coisas que penso. Só isso. Se elas

são más, não sei. Muitas vezes eu nem sei quem sou. Mas penso que não há mal nenhum em perguntar o que não se entende. Eu gosto de fazer perguntas mas a irmã superintendente quase nunca me responde e sempre se aborrece comigo. Assim é que começam as coisas. Com as perguntas.

Monsenhor (Interessado) E que espécie de perguntas você faz? América (Seca) Perguntas. Monsenhor Sei, sei. Mas diz uma delas. América (Sorrindo) Uma que ela se aborreceu foi sobre a Nossa Senhora. Monsenhor O que sobre a Nossa Senhora?

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América (Com levíssima ironia) Eu perguntei como é possível existir a frase

Nossa Senhora foi Virgem antes do parto, no parto e depois do parto. Monsenhor (Brando) Não nos cabe o julgamento dessas revelações. É preciso ter

fé. América (Objetiva) Mas eu penso. Monsenhor (Amável, mas firme) Mas a fé não pretende que você deixe de pensar.

A fé não pretende que você abdique de sua inteligência. América (Sorrindo, com tímido desdém) Mas isso não é lógico. Como posso

acreditar numa coisa que é absurda? Todo mundo sabe que é impossível ser virgem e dar à luz.

Monsenhor (Grave) Há verdades imutáveis. Divinas. Aos poucos, pela fé, todas as

dúvidas ???tornar-se-ão verdades também no seu espírito. Entendeu? América (Sorrindo) Monsenhor, mas... Monsenhor (Aborrecido) O mais importante no momento é que... não é bem esse

tipo de pergunta... petulante... que aborrece as irmãs. (Pausa. Brando) América, sei que você é inteligente. É preciso agradecer a Deus essa qualidade. Mas é preciso também submissão diante dos superiores. Fazer perguntas não é tão grave. Sempre haverá respostas. (Sombrio) Mas querer fascinar pela argúcia, abusar de uma qualidade vital pode tornar inquieto o coração dos outros. Inquietude de início... e depois você compreende... as pessoas jovens são propensas a dar crédito a um certo brilhantismo. (Sorrindo) Você é quase brilhante, não é? Mas não tem retaguarda, não tem embasamento (Alternadamente grave e sombrio) e pode confundir-se e confundir os outros. As alunas e as postulantes são muito jovens... podem fantasiar a seu respeito, podem querer partilhar desse seu... brilhantismo. Isso não é o desejo dos superiores. Você compreende? Todas estão perturbadas. Modificaram-se.

América (Seca) Mas isso não é minha culpa. Monsenhor (Levemente agressivo) É sua culpa sim, minha filha. (Pausa) Que tipo

de argumentos você usa?

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América (Sorrindo) Argumentos? Para quê? Monsenhor (Objetivo e levemente hostil) Para perturbá-las. Porque você

consegue perturbá-las. América (Fria) Eu não perturbo ninguém. Elas gostam de mim, é só isso. Monsenhor (Voz baixa, ainda hostil) Mais do que isso, América, muito mais.

(Pausa. Toca no braço de América. Tom confidencial) Elas sonham com você. Você sabia?

América (Sorrindo) Sonhar é bom. O que é que tem sonhar. Monsenhor (Muito sombrio) Se todas começarem a sonhar com você, você corre

um risco. E eu não poderei... Olhe, eu posso algumas vezes te auxiliar, mas não numa questão de vida ou... Acautele-se.

América (Muito surpreendida) De vida ou... Mas eu sou eu, América. É uma

maneira de ser. Monsenhor (Seco) O que você quer dizer com isso? (Pausa) América de início fixa o Monsenhor como se achasse muito difícil explicar o que vai dizer. O Monsenhor vai gradativamente mudando a expressão do seu rosto. Está sombrio, mas aos poucos vai sorrindo, analisando América. A mudança é simultânea em América e no Monsenhor. É como se de repente eles resolvessem descobrir alguma coisa um do outro. América, ainda com certa precaução, vai inventar uma estória porque sabe que é a única maneira de dizer o que pensa é inventar uma estória nos moldes tradicionais, inventando pais mais ou menos normais e um irmão mais velho para que o Monsenhor dê maior importância ao seu relato. Eta e Dzeta são, para América, apenas símbolos de sua estória, mas o Monsenhor vai encarar tais símbolos de maneira diversa, dando-lhes uma nova realidade, realidade essa insuspeitada para América. América (Tom ameno e informal) Sabe, Monsenhor, é assim, por exemplo: Lá

em casa uma vez aconteceu uma coisa. O meu irmão... Monsenhor (Bastante delicado) Ah, você tem um irmão?

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América (Descontraída e empolgando-se) Sim, ele é mais velho do que eu e ele escreve umas coisas ótimas. Uma noite meu pai começou a aborrecê-lo e perguntou o que é que ele escrevia afinal. Meu irmão respondeu que eram estórias e que o pai não ia entender. O pai ficou muito exaltado e disse: Você é um gênio por acaso para que eu não entenda o que você escreve? (América imita o pai) Vamos lá, vamos lá, o que é? O que é que você sabe? Aí meu irmão respondeu e o pai ficou furioso, tirou as folhas de papel de cima da mesa e disse: Pois eu vou ler, rapaz, e vou ler alto para que todos ouçam. E o pai leu. (Pausa. Tom confidencial) E a estória era bem estranha... Era a estória de um homem que tomava conta de umas máquinas pequenas.

Monsenhor (Interrompe interessado) Era assim, Monsenhor: O homem tomava

conta de umas maquininhas. (A luz diminui ligeiramente sobre América e intensifica-se no plano C, onde está o vigia diante de uma caixa de matéria brilhante. Eta e Dzeta estão dentro da caixa, mas nunca são visíveis, e fazem um ruído eletrônico de preferência agudo e desconfortável. América continua contando a estória e as duas cenas (plano B e C) são simultâneas. O vigia está vestido como um homem de laboratório.) Eram duas pequenas coisas que se chamavam Eta e Dzeta. Elas viviam dentro de uma caixa... (América faz apenas os gestos como se estivesse continuando o relato sem que o público e ouça, mas no plano C, Eta e Dzeta aumentam seu ruído compassado, agudo e desconfortável. Sempre que América continuar o relato, o ruído de Eta e Dzeta diminui de intensidade. Dar um tempo para o plano C. América continuando) Essas pequenas coisas comiam luz, quero dizer, elas se alimentavam de luz e andavam. O homem era o vigia das pequenas coisas. Ele trabalhava nesse instituto, e Eta e Dzeta andavam sempre dentro da caixa fazendo sempre o mesmo caminho.

Monsenhor E que caminho era esse? O vigia faz movimentos que acompanham o relato se América, isto é, inclina gradativamente o tronco e cabeça como se seguisse com espantosa atenção o percurso de Eta e Dzeta. América (Ilustra o que conta) Era assim, Monsenhor: saiam daqui. Caminhavam

juntas em linha reta, iam andando, iam andando, chegando no fim da caixa, aí iravam sobre si mesmas e repetiam o mesmo caminho até o ponto de partida. Depois começavam tudo outra vez. (Pausa)

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Monsenhor (Fascinado) Sei, sei. E depois? América (Notando o interesse do Monsenhor, segue o relato tentando

aparentar certa indiferença) Sabe, a verdade é que elas só podiam fazer esse caminho... Mas um dia o vigia viu que Eta e Dzeta... (Escurece no plano B. O vigia faz um gesto de surpresa. O ruído torna-se diferente, descontrolando-se)

Vigia (Alarmado) Não é possível... Não é possível... Elas oscilam. Estão

oscilando. (Os ruídos cessam) Pararam. Estão paradas. (O vigia, muito nervoso, conta os segundos que Eta e Dzeta pararam, num relógio de pulso) Um, dois, três, quatro, cinco, seis... Recomeçaram. (Os ruídos recomeçam normais.) (Aliviado) Felizmente... Mas pararam seis segundos. (Escurece o plano C, e simultaneamente luz no plano B)

América E isso era impossível. Tudo tinha sido planejado para que nada

modificasse o comportamento de Eta e Dzeta. Monsenhor (Interrompe, ainda interessado, tentando compreender) Mas espera

um pouco... por que tudo isso? Por que Eta e Dzeta não podiam modificar o percurso?

América Com delicada ironia) Porque não era bom. Monsenhor Por que não era bom? América Elas disseram que podia ser perigoso, muito perigoso. Monsenhor Elas quem? América As cooperadoras chefes do Instituto. Monsenhor (Sem compreender) As cooperadoras chefes? (Pausa. Recompondo-

se espantado consigo mesmo por ter ouvido até aí) Não não, filha, tudo isso é bobagem, cooperadoras chefes... institutos...

América (Como se já esperasse essa resposta) É... foi o que o pai disse. (Tom

de estudada inocência) Mas minha mãe... (Finge não querer continuar)

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Monsenhor (Novamente interessado) Sua mãe? O que é que ela disse? América (Objetiva e empolgada) Minha mãe disse que achava a estória nova.

Nova, ela repetiu bem alto. E meu irmão respondeu: “Pois é. Ser novo é uma maneira de ser...” E assim as coisas se passam comigo também. Eu quero dizer que eu sou eu mesma, América. Uma maneira de ser. (Pausa)

Monsenhor Sim sim, minha filha, compreendo. (Pausa. Intrigado) Mas me diz...

como eram essas pequenas coisas... na aparência? América (Com entusiasmo) Ah, isso era importante, me lembro. Na aparência

Eta e Dzeta eram vulgares, mas a aparência nada tinha a ver com o... o de dentro delas... o...

Monsenhor (Interrompe, interessado e objetivo) Isso mesmo, Monsenhor, o

núcleo da ação. O senhor disse bem. Elas. as cooperadoras chefes disseram ao vigia que teria sido fácil construir as pequenas coisas com sutilíssimas aparências. Mas foi preciso que a forma exterior não se mostrasse muito atraente porque, elas explicaram, a forma complicada ou bela faria com que o vigia prestasse muita atenção no aspecto de Eta e Dzeta, sabe, no invólucro, no...

Monsenhor (Interesse crescente) No mais periférico? América (Sorrindo) Isso, Monsenhor. E não era esse o desejo das

cooperadoras do Instituto. Elas disseram também para o vigia que aquilo tudo não era milagroso, não, que Eta e Dzeta existiam como resultado de um grande esforço...

Monsenhor (Prudente) Tecnológico? América É, e... Monsenhor (Interrompendo) Um momento um momento. Espere um pouco...

(Tom confidencial) Não seria possível que o vigia estivesse cansado, que os olhos... os olhos lacrimejaram por exemplo e que... talvez por isso ele tenha visto Eta e Dzeta oscilarem e depois pararem?

América (Levemente desconcertada, mas recompondo-se em seguida) Meu

irmão pensou nisso também. Ele escreveu que os olhos do vigia nunca

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lacrimejaram. (Pausa) Não, espera, uma vez só, mas foi de madrugada e nessa hora não teve muita importância porque os deveres já tinham sido cumpridos e todos estavam dormindo.

Monsenhor Daí que todos estavam dormindo? América Daí que quase não havia perigo para Eta e Dzeta (Pausa longa.

Monsenhor caminha. Percebe-se que ele está profundamente interessado. Olha algumas vezes para América, faz gestos lentos, alisa o rosto, o queixo. Está pensando seriamente na estória e numa provável aplicação de Eta e Dzeta. América acompanha o Monsenhor com os olhos e tenta demonstrar indiferença diante de suas reações.)

Monsenhor Ele comia? América Quem, o vigia? Monsenhor É, o vigia. América Ah, ele roía uns tabletes vitaminados, mas não desviava os olhos...

(Pausa) Monsenhor (Apreensivo) Então o que aconteceu naquele dia foi o... o

imponderável? América (Sorrindo) Parece absurdo, não Monsenhor? Mas aconteceu. Eta e

Dzeta eram quase perfeitas e mesmo assim falharam. Ouve-se o toque de uma campainha. América Eu preciso ir, Monsenhor . (Tenta sair da sala) Monsenhor América, América. E depois? América Eu vou chegar atrasada, Monsenhor. Monsenhor Mas pelo menos uma coisa ainda hoje. E o seu irmão? (Pausa) América (Lentamente. Grave) Um dia... ele resolveu ir embora de casa. Era

bem cedo. Ele abriu a porta do meu quarto e quando eu lhe perguntei o que era, ele respondeu: “Eu vou embora. Eu vou embora, e você

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não compreende, não é?” Eu disse que compreendia sim. E antes de fechar a porta ele também disse: “Sabe, América, um homem de muito humor escreveu que se aos vinte anos a gente não é assim como eu, aos quarenta seremos certamente uns canalhas.” E deu risada. Mas... estava triste também. Depois foi embora.

Ouve-se novamente a campainha. América Eu preciso ir, Monsenhor. (Sai) Monsenhor (Concentrado) Sim... sim... (O Monsenhor fica sozinho. Está muito

sério elaborando seu plano.) Movimentos imperceptíveis... movimentos imperceptíveis de... Eta... e... Dzeta. Eta e Dzeta. (Lentamente, empolgado, mas sóbrio) e se elas oscilassem, sim, mas nunca a ponto de morrer...

Entra a irmã Superintendente sem ser notada pelo Monsenhor. As mãos enfiadas na manga. Superintendente (Com arrogância) Ela se salvará? Monsenhor (Como se acordasse) Ah, Superintendente, perdão. (Pausa) Bem, se

eu soubesse. (Pausa) Ela tem idéias. Superintendente (Esforçando-se por reprimir a irritação) Idéias... Todos os jovens as

têm. O difícil é a grande idéia, aquela que nos consome, que arde, e que não nos dá descanso enquanto não se faz verdade... tangível. (Pausa)

Monsenhor (Como se falasse consigo mesmo, sem olhar a Superintendente) A

grande idéia... América nem sabe se é capaz de uma grande idéia. Mas aos poucos uma atitude de espírito diante das coisas vai se formando, assim como um grito, um grito que se abre e subitamente abrange o mar.

Superintendente Será preciso castigá-la. (Pausa) Monsenhor Não, não é uma boa política. Superintendente E então? (Pausa)

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Monsenhor (Lentamente, com astúcia moderada) O importante... é fazer com que América se aproxime dos superiores. DA cúpula, irmã. Um bom começo será a senhora. Mas ela mesma não terá essa iniciativa. É jovem. Tem orgulho.

Superintendente (Severa) Ela vai criar conflitos na alma da nossa comunidade. Monsenhor Mas aos poucos ela poderá ter um comportamento razoável. (Tom

levemente persuasivo) E se a senhora, com seus dotes de paciência, conseguir assimilar América?

Superintendente (Surpresa) Assimilar? Monsenhor (Seco) Sim. (Destacando as sílabas) Assimilar. (Pausa) Superintendente (Fria) E se eu não conseguir? Monsenhor (Firme) Não seria bom. Ela seria afastada. E isso não é agradável para

nós. Ela se destaca das outras. (Pausa) Quem sabe se existe dentro dela certa ambição... louvável?

Superintendente (Seca) Ambição? Que espécie de ambição? Monsenhor O desejo de progredir, por exemplo. Por que não criar o cargo de

vigilante para as classes? Um cargo de confiança. Superintendente (Contrariada) Mas há vigilantes. São as noviças. Monsenhor (Francamente imperativo) Abra uma exceção à América. Se ela

cumprir à risca esse cargo, a cúpula ficará mais tranqüila. Superintendente (Seca) Quando o senhor fala, tenho a impressão de que corremos um

risco... Afinal, não é somente América? Monsenhor (Tom explicativo e aparentemente cordial) Irmão Superintendente,

veja: Cada criatura excepcionalmente dotada traz conseqüências imprevisíveis para uma comunidade. Às vezes conflitos. E a senhora não os deseja, não é? Por isso é preciso fazer com que América não se distancie espiritualmente do seu meio. Quanto maior a distância, maior o conflito. Se é preciso haver uma ética de grupo, é preciso antes de tudo que ela funcione de acordo com as suas diretrizes.

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Todas trabalhando para manter a disciplina e o progresso do colégio. E para que América se interesse por tudo isso, é preciso que ela tenha ambições de um progresso pessoal.

Superintendente (Contrariada) Compreendo, Monsenhor... mas ainda vagamente. Monsenhor (Firme) É necessário compreender tudo agora. Eu também só

compreendi tudo (Com ênfase)... agora. Superintendente (Esboçando recusa) Será difícil, ela é muito soberba. Outro dia

ordenei que ela abaixasse os olhos como castigo para uma resposta grosseira e ela me respondeu que talvez sim??? abaixasse os olhos, mas só diante de Deus. E depois ela poderá pensar que tento agradá-la. Isso seria terrível. Sentir-se-á importante. Pode até anular minha autoridade. (Pausa) Não será melhor castigá -la?

Monsenhor (Com firmeza, tom aborrecido) Superintendente, essas batalhas não

são ganhas assim. É preciso conquistá-la, mas não com armas bélicas. Com a cabeça, irmã, com a cabeça.

Superintendente (Levemente hostil) E por que o senhor mesmo não tenta falar com ela

e assim resolve essas coisas que me propõe? Monsenhor (Categórico) Porque cabe à senhora conquistá-la. Eu não sou de

dentro. Tenho privilégios limitados. O meu nível de aspiração não pode ultrapassar suas funções.

Superintendente Mas o senhor é parte do colégio. É o senhor é aquele que as ouve em

confissão. Monsenhor Mas eu posso ter as minhas próprias idéias, não irmã? E se de repente

elas coincidem em parte com as de América? (Espanto da Superintendente. Monsenhor continua com pretensa amabilidade) Não é tão grave, irmã.

Superintendente Sua linguagem me é estranha muitas vezes. (Pausa) Tenho a função de

Superintendente, mas minha maior aspiração é apenas... Monsenhor (Interrompe) Salvar a sua alma?

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Superintendente (Com alguma soberba) Por que não dizer que eu quero substituir o conteúdo deste odre velho que é meu corpo pela claridade do...

Monsenhor (Interrompe) Mas Deus pode ser treva. Pode ser a grande noite.

(Pausa) Superintendente Tudo seria exemplar sem América. Monsenhor Talvez, minha cara irmã, seja preciso renovar. Superintendente Renovar? E em nome de quê? Monsenhor De América, por exemplo. Superintendente O senhor fala em renovações superficiais, não é? Monsenhor (Acentua a primeira palavra) Aparentes, a senhora quer dizer? Superintendente Monsenhor, seja claro. Monsenhor (Entusiasmado) Veja, irmã, o mais importante é começar. Um caminho

paralelo e fiel ao nosso tempo, a esse tempo em que vivemos. Um caminho novo. Novo. Mas antes vamos provar América, saber se ela é de fato o que parece: uma reformuladora... (Com ênfase) de aço. E depois expandiremos, expandiremos o núcleo de ação. Prove-a. (Escuro total apenas para dar saída ao Monsenhor, e entrada para América??? para o Monsenhor sair, América entrar)

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TERCEIRA CENA Luz intensa sobre a Superintendente, que está sentada na cadeira do Monsenhor, e sobre

América. Superintendente Mas em que coisas você acredita? América Numa vida de... Superintendente (Interrompe) E Deus? (Pausa) América Deus espera que os homens O mantenham vivo. Superintendente Você é insolente, América. América A senhora perdeu a sua docilidade? Superintendente (Incapaz de ocultar a irritação) Docilidade... mas o que é exatamente

que você pretende? América Fidelidade. (Tocando com uma das mãos o próprio peito) A tudo aqui

de dentro. Superintendente Também os torpes pedem fidelidade uns aos outros. Em nome da

fidelidade resistem e vivem. (Pausa) América (Com desconfiança) Em nome do que a sua aparente bondade sobre

mim? Superintendente Aparente? É quase escandalosa a minha proteção sobre você... nestes

últimos dias. América Mas eu não estou convencida. A intenção é de me confundir. E a

senhora não me deixa falar o que eu tenho a dizer. Superintendente Porque suas palavras não têm sentido algum. América Todas juntas formam uma parábola.

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Superintendente (Indignada) Você chama de parábola o que você conta àquelas que um dia vão fazer parte da Ordem?

América (Repetindo pausadamente) Se eu não contar minhas estórias àquelas

que um dia farão parte da ordem, tudo isso morrerá. Superintendente E é isso que você pretende? A morte de todos nós? Monsenhor Pelo contrário. Uma vida nova. Superintendente Isso levaria tantos anos. Você estaria morta. (Pausa) América (Como se falasse consigo mesma) Seria claro e limpo... (Como se

acordasse) Ah, sim. Levaria muitos anos. E que importância tem? Superintendente Você não se contenta com nada. Não será mais vigilante da sua

classe, tarefa aliás que você desempenha muito mal, porque está sempre se intrometendo com aquelas que logo mais pertencerão a Deus.

América (Branda) É verdade, eu nunca fui boa vigilante. (Pausa) Vigilante... o

Monsenhor... (Muito intrigada) Ele estava tão curioso para ouvir... (Muito preocupada)... Penso que...

Superintendente O que é que você pensa? América Que ele pode ter dado uma outra versão à minha estória. Superintendente Que estória? América A estória de Eta e Dzeta. Superintendente Mais uma parábola? O Monsenhor não pode perder tempo ouvindo

suas fantasias. Tem mais o que fazer. Tem deveres. Escurece no plano A, onde estão a Superintendente e América, ao mesmo tempo o plano C é iluminado, mostrando as cooperadoras chefes, o vigia, e a caixa onde estão Eta e Dzeta. Logo que começa a fala das cooperadoras chefes, um círculo de luz ilumina o plano A, mas apenas onde está América, que acompanha o relato com assombro e gradativamente vai entrando em desespero. América percebe o novo rumo dado à sua estória pelo Monsenhor e fica

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visivelmente perturbada. As partes mais importantes dos textos das cooperadoras devem ser repetidas, como quando se retrocede um gravador e se escuta de novo. Por exemplo, e fala: “É de seu dever procurar entre os cooperadores do Instituto aquele que se encontra em íntima dissonância com a própria tarefa.” Escuro total. Luz. Repete-se a cena. Outra: “Pois Eta e Dzeta são como um termômetro, acusam as oscilações da consciência, acusam as asas do espírito” Escuro total. Luz. Repete-se a cena. Os textos devem ser repetidos algumas vezes. América mostra grande aversão pela fala das cooperadoras. Tensão. Intensidade. As duas Cooperadoras Chefes (Tom objetivo, seco, de comando) Agora que você viu Eta e Dzeta

moverem-se, sua função se ampliará. Você não será mais o simples vigia das pequenas coisas, mas irá gradativamente adquirindo novos postos. (Primeira cooperadora) Agora será diferente. (Segunda cooperadora) Agora será diferente. (Juntas) Todas as vezes que Eta e Dzeta apresentarem modificações no comportamento, é de seu dever procurar entre os cooperadores do Instituto aquele que se encontra em íntima dissonância com a própria tarefa, pois Eta e Dzeta são como um termômetro, acusam as oscilações da consciência, acusam as asas do espírito, e essas são as únicas razões do seu percurso anormal. Devemos zelar para que isso não aconteça. Devemos zelar para que isso (Com ênfase) nunca aconteça.

Escuro nos dois planos e imediatamente luz intensa no plano A, onde estão a Superintendente, sem o hábito, com roupa mais simplificada, e América. A partir daqui ocorre toda a modificação nos personagens, mostrando que a comunidade não é de forma alguma a mesma. América (Muito perturbada) Não era isso que eu queria, não era isso, isso não. Superintendente (Com assombro) Mas o que foi? O que foi, América? O que é que

você não queria? América (Muitíssimo perturbada) Era maior do que isso... era muito maior do

que isso. Superintendente Escute, América, preste atenção, acalme-se. Vamos falar com maior

clareza. (Pausa) De início quero lhe dizer que não tenho mais a intenção de lhe tirar o cargo de vigilante. Você pode até ser chamada para um alto posto. Reconsiderei. (Pausa) Está melhor? (Pausa longa)

América (Lenta, olhar vago, voz baixa) E como seria esse novo posto?

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Superintendente Você seria uma... América Uma cooperadora? Superintendente Sim. E nesse novo posto você apenas nos indicaria aquelas que não

estão contentes. Diminui a luz neste plano. Cena imóvel. Luz intensa sobre o plano C. Cooperadoras Chefes Muito bem. É isso mesmo. Vimos que você compreendeu. Vigia Mas não seria delação? Cooperadoras Chefes (Amáveis) Nem pense nisso. Não será um caso de delação, pois

todas as cooperadoras deste Instituto são pessoas altamente capazes. É natural no ser humano um possível deslocamento de interesses, um não conformismo entre os seus altos ideais e o seu trabalho diário. Os cooperadores serão sempre mantidos nos seus postos, porque a rotina, o trabalho, a disciplina, lhes dará a dimensão necessária para prosseguir.

Escuro total no plano C, e intensifica-se luz no plano A. Superintendente Então, América, aceita? América (Lenta, olhar vago) Mas não seria delação? Superintendente (Tom reconciliatório) Delação. Que termos você usa. Não seja tola. É

natural uma certa inquietude no coração das criaturas quando o dia a dia sofre certas modificações. Você pensa por acaso que eu castigaria alguém? Quero guiá-las unicamente.

América Em que direção? Superintendente Em direção a um caminho novo, concreto, eficiente e sem mistérios. América Novo... eficiente... concreto... sem mistérios. (Evocando) Em mim

tudo se fazia tão diferente. (Pausa) De início eu entraria no outro lentamente, assim como um débil fiozinho d’água... de depois eu

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cresceria... eu cresceria. (Com recusa e assombro) E o ser amado nunca mais teria posse de si mesmo? De modo algum ter a posse de si mesmo?

Superintendente América, basta, basta, você parece louca, louca. (Pausa) América (Sombria, grave) Tudo o que fui, não sou mais. Superintendente Você é América, nova. Nova. A partir daqui, América vai falar como alguém que, através de uma compreensão particular e única, separou-se dos demais. Acentue-se a transformação de América. O tom será calmo, algumas vezes apaixonado, mas sempre lúcido e grave. América Rumor vindo de uns lados do lá fora. (Pausa) Agora sei que se fará

em mim um novo tempo. Superintendente Um novo tempo. Isso, América. Vamos, vá retomar seu posto. E

depois... América Eu não direi mais as mesmas coisas. Nunca mais. Superintendente América, você é como o Monsenhor disse: “Um grito que se abre.”

Essa é você: um grande grito. América Essa foi uma imagem de mim. A outra será construída em solidão.

(Pausa) Alimentada e diversa... dividi-me. E se uma agora se extingue, a outra se fará solar e rara.

Superintendente E se uma agora se extingue? (Pausa) Mas você nunca mais poderá

voltar atrás. Agora não moça (Pausa. Tentando reconciliação) América, escute, talvez nos fomos longe demais com você. Mas era preciso saber se a sua palavra, ou como você diz, as suas parábolas, se transformariam em verdade no espírito de todas. E isso aconteceu, América. A alma da nossa empresa é nova.

América Eu não direi mais as mesmas coisas. Superintendente (Fria e imperativa) Dirá sim. Nós investimos em você. É preciso

continuar. Vamos, vá retomar o seu posto.

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Escuro total.

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QUARTA CENA Luz no plano A, onde está América, e luz no plano B, onde estão as três postulantes. Os objetos do plano A devem ser retirados. América ilustra a estória que vai contar, fazendo os dois personagens. No entanto, América vai acentuar recursos de mímica assim como os usados numa peça infantil. Ela quer ser clara e didática. Durante este relato de América, as postulantes que usam agora uma roupa mais simplificada, apenas com uma cruz no peito, mantêm atitude rígida e distanciada. Alguns risos muito discretos evidenciam que as postulantes acham grotesca e ridícula a atuação de América. América O homem perguntou depois de parar de repente: “Mas ela continua

até lá, não é?” A mulher, ouvindo a pergunta, levantou vagarosamente a cabeça, abriu os braços e respondeu: “Ela quem?” “A estrada, mulher de Deus, o caminho.” “Ninguém me fez essa pergunta até agora. Não sei. E também seria inútil.” “Mas, mulher, eu sei que esse caminho continua.” “Justamente. Esse não continua. Esse acaba aí mesmo onde o senhor está. Onde estamos nós. E não basta?” O homem começou a falar novamente: “Impossível, não está vendo? Olha como ele continua pela floresta. E como é bonito.” A mulher respondeu: “Só os cordeiros passam por ali, os mansos.” O homem olhou para os lados... não haveria alguém por perto? Os cordeiros... e que teriam eles com tudo aquilo? Passou as mãos pela cabeça e depois segurou a mulher pelos braços: “Essa resposta que a senhora me deu não tem sentido algum. Este caminho onde estou continua mais adiante.” Ouviu um ruído de folhas. Voltou-se. Seria um animal? Por um instante teve a impressão que o olhavam e, movendo a cabeça para todos os lados, perguntou com voz altíssima: “Vai até a floresta, não é? Ou pelo menos até uma parte?” (Pausa) Sentiu um toque firme no ombro. Voltou-se. Um jovem de camisa aberta no peito, não não, sem camisa, e segurando a enxada pela lâmina, lhe tocou novamente, mas agora na altura do umbigo e disse-lhe: “Ela já não que a estrada acaba aqui mesmo? Quantas vezes daqui por diante será preciso dizer a mesma coisa?” “Escute aqui, rapaz, quer dizer que você também não vê que o caminho continua? Lá, olha como é bonito. Lá.” O jovem não respondeu e sentou-se ao lado da mulher. “Agora sim” , o homem pensou, “mas só eu é que vejo? Não é possível.” O melhor seria continuar andando. (Pausa) E quando entrou na floresta ouviu a mulher

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gritar: “Só os cordeiros, os mansos, é inútil, é inútil.” Mas o homem continuou andando.

As três postulantes (Irônicas, sorrindo) Ela está diferente. Ela está diferente. Não é mais

América contente. Ela está diferente. Primeira Postulante E quem era esse homem tão esquisito, América? (Pausa) América Alguém... que acredita. Segunda Postulante Um sonhador? América (Branda) Vocês podem dar o nome que quiserem. Terceira Postulante E você é igual a ele? América (Com firmeza, mas branda) Sim, sou. Entra a Superintendente no plano B. As três postulantes, graves, tom acusatório. Primeira Postulante Ela está diferente. Segunda Postulante Ela está diferente. Terceira Postulante Ela está diferente. Superintendente Já sei, mas façamos uma tentativa. A Superintendente e as Postulantes descem para o plano A e fazem um semicírculo ao redor de

América. Primeira Postulante Uma tentativa? Qual tentativa? Superintendente América, peça uma coisa e nós lhe daremos. Peça, vamos. As três postulantes Sim, nós também lhe daremos. (Pausa) América Agora, se eu pudesse ter dois livros...

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Superintendente Livros? Isso é fácil. Quais? (Pausa) América O primeiro é aquele que conta a estória de um homem que virou

bicho. Primeira Postulante Um louco? Superintendente Sem nenhum interesse. Segunda Postulante Mas como é essa estória, irmã? Superintendente É a estória de um homem que se transformou num inseto, e que a

família quase enlouqueceu por causa dele. Terceira Postulante (Rindo) Lógico, é pra enlouquecer. Superintendente A família sofre humilhações, desprestígio. É horrível. Esse livro não.

Peça um livro razoável. Primeira Postulante E o outro que você queria? (Pausa) América (Branda) É a estória daquele que ressuscitou. Segunda Postulante (Depreciativa) Um homem que ressuscitou? Superintendente (Fria e muito depreciativa) Vocês sabem de alguém que ressuscitou? Terceira Postulante (Insegura) Lázaro? Primeira Postulante Ora, esse todo mundo sabe que foi um golpe de Marta para fazer a

prévia do homem Jesus. América (Apontando a cruz das Postulantes) Esse. Superintendente O homem Jesus? As três Postulantes Mas ele não ressuscitou. América Esse que é o Filho daquela que é Virgem. As três Postulantes Como você ficou boca. Ninguém pode ser filho de uma virgem.

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Superintendente E não há nada que nos faça ressuscitar de verdade. De verdade

mesmo. Metamorfoses ressurreições... Ela parece uma alquimista. América (Angustiada) Mas é tudo verdade. Eu tenho certeza. Superintendente (Com pretensa piedade) As coisas que ela diz... Agora é preciso

castigá-la. Será que ela contou coisas assim para as outras? Primeira Postulante Para as outras não, irmã. Mas contou para nós. Superintendente (Apreensiva) Para vocês? Conta como foi, minha filha. Primeira Postulante (Com desdém) Ela contou a estória de um homem que dizia que o

caminho continuava na floresta e... Superintendente (Interrompe) E era verdade? Primeira Postulante A mulher para quem ele perguntou disse que o caminho acabava ali

mesmo onde ele estava. Segunda Postulante (Tom acusatório) E América disse que esse homem era um sonhador. Terceira Postulante (Hostil) E que ela, América, era igual a ele. (Pausa) Superintendente (Muito grave) Ai daqueles que a ouvem. Primeira Postulante Que misérias ela conta agora, não irmã? Superintendente Por isso, minha filha, é preciso atenção. Usar sempre a cabeça e não

arrancá-la como faz América. Segunda Postulante (Com muita ironia) Ninguém vê uma cabeça que não existe. Superintendente (Objetiva) Muito bem, minha filha. Na verdade a cabeça de América

não existe. E para que essa verdade fique bem clara, é necessário que daqui por diante ninguém mais veja... (Com ironia) essa cabeça que não existe.

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As postulantes tiram de algum canto um camisolão preto e jogam por cima de América como se fossem vesti-la. Mas fazem-no de forma a Não deixar que a cabeça de América passe pela abertura. As três Postulantes (Entusiasmadas) Vamos cobri-la. Vamos cobri-la. Superintendente (Para América) E pode pensar à vontade agora. (Sorrindo com

desdém) Mas naturalmente sem a cabeça. Todas as Postulantes sarcásticas, caricaturais e saindo de cena. Primeira Postulante Imagina um homem que virou bicho. Segunda Postulante E outro que ressuscitou. Terceira Postulante E uma coitada virgem que teve um filho. Escuro total. Dar um tempo. Luz gradativa. América está sozinha no mesmo plano e já vestida com o camisolão preto. Quase madrugada. Clima muito sombrio. América (Profundamente comovida, lenta, mas não como alguém que se sente

derrotado, muito como alguém que sofre piedade e extrema lucidez) De luto esta manhã e as outras As mais claras que hão de vir, Aquelas onde vereis o vosso cão deitado E aquecido de terra. De luto esta manhã Por vós, por vossos filhos E não pelo meu canto nem por mim Que apesar de vós ainda canto. Terra, deito a minha boca sobre ti. Não tenho mais irmãos A fúria do meu tempo separou-nos E há entre nós uma extensão de pedra. Orfeu apodrece Luminoso de asas, e de vermes E ainda assim meus ouvidos recebem A limpidez de um som, meu ouvidos Bigorna distendida e humana sob o sol.

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Recordo a ingênua alegria de falar-vos. E se falei Foi para trazer de volta aos vossos olhos A castidade do olhar que a infância voz trazia. Mas só tem sido meu, esse olho do dia. Entra a irmã Superintendente. Superintendente (Com autoridade) América, você vai receber uma visita. Vamos,

prepare-se para receber o Inquisidor. América (Sem compreender) O Inquisidor? Superintendente Sim, serão as primeiras perguntas... (Acentuando com ironia)

domésticas. Uma velha tradição, um atualíssimo cuidado, uma prudente formalidade. Desde sempre.

Sai a Superintendente, e ilumina-se imediatamente o plano B, onde está o Monsenhor sentado na sua cadeira negra, alta, fazendo agora o papel de Inquisidor. Não deve ter roupas sacerdotais, mas algumas indicações de que ele foi Monsenhor e agora é Inquisidor. Pode haver movimentação do Monsenhor nos dois planos. Inquisidor (Com papéis na mão) Moça América. América (Debilmente, com profunda estranheza) Senhor Inquisidor. Inquisidor (Objetivo) Como era sua mãe? (Pausa) América (Sem compreender, voz baixa) Minha mãe? Inquisidor Sim, a sua mãe de carne e osso, não a sua Virgem. (Pausa) Vamos,

fale. América (Como se falasse consigo mesma) Tínhamos coisas iguais. (Pausa) Inquisidor Vamos, vamos. É preciso saber dessas heranças. (Pausa)

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América (Tom anterior) Tínhamos coisas iguais. Inquisidor Você já disse isso. América (Ainda falando consigo mesma, como se o Inquisidor não estivesse

presente, comovida, sombria) Os olhos velhos e a vontade de amar sem saber como. Crescemos

tanto as duas tão inutilmente. Crescemos tanto que nem mais nos abraçávamos, nem sorríamos, como acontece àqueles que se amam. Eu dizia: “Dá-me um pouco de ti, eu tenho sede. Tenho os olhos pisados de sonhar.”

Inquisidor Mas o que você contou àquele que era Monsenhor. América (Muito triste) A este Inquisidor. Monsenhor (Destacando as palavras com hostilidade) O que você contou àquele

que era Monsenhor... (Menos hostil) parecia diferente. A sua mãe entendeu que aquela estória do seu irmão era nova. Nova, ela repetiu bem alto, não foi? (Folheia alguns papéis) E uma mulher que diz isso não parece ser essa que você descreveu. (Pausa)

América (Branda) Eu nunca tive essa mãe... nem esse irmão. Inquisidor Ah... estamos indo muito bem... Aquela estória era sua, não? Muito

boa, muito boa. Foi qualificada: Eficiente. (Pausa. Tom severo) Quer dizer que seu pai também não é aquele? Então como era seu pai? (Pausa)

América (Grave) Era louco. Inquisidor (Seco, examinando os papéis) Mas você via seu pai. América Uma vez, sim. Inquisidor E o que é que vocês se disseram? América O senhor não compreenderia. Inquisidor (Sarcástico) O que, eu não compreenderia? Moça, eu entendo o

demônio. (Pausa. Hostil) Vamos, o que é que vocês se disseram?

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Estamos perdendo muito tempo. Diga o que quiser, eu jamais a interromperei. Isso de não interromper é praxe, desde sempre. Antes e agora. (Pausa longa)

América (Como se falasse consigo mesma, lenta) Pai, uns ventos te guardaram, outros guardam-me a mim. E

aparentemente separados, guardamo-nos os dois, enquanto os homens no tempo se devoram. Será lícito guardarmo-nos assim?

Inquisidor (Seco) Não, não seria lícito. América (Sem ouvir o Inquisidor) Pai, tocaram-te nas tardes brandamente, assim como tocaste

adolescente, a superfície parada de umas águas? Tens ainda nas mãos a pequena raiz, e a fibra delicada que a si se construía em solidão?

Inquisidor Não. Ele não tinha mais nada nas mãos. América (Tom anterior) Assim somos tocados sempre. Pai, este é um tempo de silêncio.

Tocam-te apenas. E no gesto, te empobrecem de afeto. No gesto te consomem.

Inquisidor (Hostil) Você mesma é que se consome. América (Voz mais alta, mais comovida) Pai, este é um tempo de cegueira. Os homens não se vêem. Sob as

vestes um suor invisível toma corpo, e na morte nosso corpo de medo é que floresce. Mortos nos vemos. Mortos amamos. E de olhos fechados, uns espaços de luz rompem a treva. (Abaixa a cabeça como se soubesse a inutilidade de todas as confissões)

Inquisidor E foi tudo o que você disse? América Quase tudo. Inquisidor Esse quase tudo foi... o quê? América (Angustiada) Pai, este é um tempo de treva. Inquisidor Só isso mesmo, América?

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América Sim. Inquisidor (Agressivo, folheando os papéis) Não é verdade. Você disse a seu

pai: “O sonho sobre a tua fronte é uma crisálida pronta para ter asa.” O sonho de um louco? O teu sonho sim era válido, quando era aquele objetivo, concreto, eficiente. Este teu outro sonho (Irônico) “pronto para ter asas”, este é o sonho de um louco. (Tom severíssimo) Você conhece a razão de estar aqui?

América (Firme) Não senhor. Inquisidor Sua consciência está limpinha como o lençol da tua Virgem. América (Indignada, voz baixa) O senhor me insulta. Inquisidor (Aliviado e sarcástico) Muito bem. Uma boa confissão. (Muito

agressivo) Mas não basta, não basta, não basta. (Escuro total)

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QUINTA CENA Luz no plano A. É um julgamento. Monsenhor, Bispo e Superintendente estão sentados em cadeiras negras, altas, um pouco grotescas, enquanto América está em pé no centro. As roupas do Inquisidor e do Bispo devem ser informais, por exemplo, calça e pulôver preto, mas com alguma coisa, talvez uma faixa ao redor do braço, evidenciando suas respectivas funções. América continua com camisolão preto. Ao iniciar-se a cena todos estão de pé e as falas são dirigidas ao público. Em algum lugar deve estar um quadro negro, visível para todos. Durante o julgamento o Bispo, Inquisidor e a Superintendente, que toma notas com furor, intercalam cochichos, sorrisos. Folheiam muitos papéis que trazem nas mãos. Bispo (Para o público) O Deus de que vos falo não é um Deus de afagos. Inquisidor É mudo. Bispo Está só. Inquisidor E sabe da grandeza do homem. Bispo E no tempo contempla o ser que assim se fez: O Homem. (Pausa) Inquisidor (Irônico) É difícil ser Deus. Bispo (Amável) As coisas O comovem. Inquisidor (Ameaçador, apontando o público) Mas não da comoção que vos é

familiar: Bispo Essa que vos inunda os olhos (Apontando América com bastante

ironia) quando o canto da infância se refaz. (Pausa) Inquisidor (Suave, íntimo, contínuo) A comoção divina não tem nome. Bispo (Suave, íntimo, contínuo) O Nascimento. Inquisidor (Tom suave, íntimo, contínuo) A Morte. Bispo (Tom suave, íntimo, contínuo) O martírio do herói.

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Inquisidor (Tom suave, íntimo, contínuo) Vossas crianças claras sobre a laje. Bispo (Com pretensa piedade) Vossas mães no vazio das horas... (Pausa) Inquisidor (Imperativo) E devereis amá-Lo se eu vos disser sereno, sem

cuidados, que a comoção divina, contemplando se faz. Os dois juntos (Apontam-se) O Homem. O homem diviniza-se. (Pausa. Sentam-se.

Folheiam os papéis com lentidão enquanto a Superintendente se prepara para tomar notas.)

Bispo (Seco) Estamos aqui para ouvi-la, moça. Por que se modificou? De

início, como foi constatado junto às postulantes e às outras jovens, o seu pensamento era belo, novo, racional. Suas dúvidas foram um dia as nossas, mas o homem resolveu os mistérios aparentes.

Inquisidor (Moderado) Sua conduta, América, foi de início tão coerente com as

nossas atualíssimas proposições que lhe foi concedido o cargo de vigilante de sua classe. E então... por que se modificou? (Pausa)

América (Articula sons inaudíveis) Bispo Assim nada se escuta. Eu não ouvi nada moça. O que foi que você

disse? Fale alto, fale alto. América (Suave, mas com gravidade) Senhor, eu digo que agora eu

compreendo. Bispo Compreende o quê? América Que eu talvez não saiba como dizer. Eu digo que agora eu sei que

existe... o mistério. O imponderável. Inquisidor (Firme) Mas aí é que está o seu erro. Não há mistério nem

imponderável algum. América Eu quero dizer... que algumas verdades... essas que são imutáveis... Inquisidor (Com estranheza) Verdades imutáveis? (Tom pouco cordial e

cansado) Pois tornaram-se mutáveis e racionais. O homem pensa, minha amada filha. É preciso não enganá-lo, não subestimá-lo.

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América (Branda, para o Inquisidor) Mas quando falávamos, Monsenhor... Bispo (Interrompe, objetivo) O que era Monsenhor acreditou em você.

Confiou. Esperava que a sua atitude continuasse coerente. Ainda não entendeu? Seus pequenos castigos eram aparentes, tinham como finalidade provar a força do seu intelecto. (Olha para todos, com brandura) Era brilhante... brilhante. De uma certa forma podemos nos alegrar, porque o colégio agora é novo, não é mesmo irmã?

Superintendente Sim reverendíssimo. Inquisidor (Moderado, para América) Bem. Mas foi preciso saber se você era

na verdade uma reformuladora consciente. América Eu não compreendo. Bispo (Irritado) Moça, não se faça de louca. No seu caso não terá sucesso.

Como não compreende? Você foi o nosso termômetro. Por seu intermédio soubemos que era o momento de agir.

América Mas eu fui tola... querendo desvendar o onisciente... Inquisidor (Depreciativo) Todos esses oni agora estão ultrapassados...

onisciente, onipresente... América (Tom apaixonado, mas calmo) Senhor, eu sei que não é assim. OS

senhores querem me provar novamente, não é? Mas eu juro... meu peito está abrasado de amor e eu acredito no Anjo, na Anunciação e na Grande Senhora que foi Virgem antes do parto, no parto e depois do parto, na ressurreição...

Bispo (Esgotado) Ah, esses delirantes sinais de fé. América (Firme) São objetos de fé, senhor. Inquisidor (Tom quase burlesco) Objeto... é o concreto. Superintendente (Indignada) Que heresias ela diz. Será um caso de prima facies.

Grave.

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Bispo Não fique exaltada, irmã. (Para América, aparente amabilidade) Moça, é tudo tão simples de entender. Primeiro: Jesus foi filho de Maria e de José, assim como você é filha de sua mãe e de seu pai. Tudo tão claro. Transparente.

América (Firme e apaixonada) Eu sei que não foi assim, senhor. Um anjo disse

a Maria: “Eu vos saúdo, cheia de graças, o Senhor é convosco. Bendita sois vós entre todas as mulheres. Dareis à luz um filho. Ele terá o nome de Jesus. Será chamado o filho do Altíssimo.” E ela respondeu: “Como poderá isso acontecer se não conheço homem algum.” E o anjo continuou: “O Espírito Santo descerá sobre vós. O poder do Altíssimo cobrir-vos-á com a sua sombra. Ele será chamado filho de Deus.”

Bispo (Desgostoso) Oh, as trevas que podem descer sobre a cabeça das

gentes. América (Humildade e candura) Eu não compreendo, senhor. Eu não

compreendo. Vamos orar juntos para que Deus me faça entender? Em nome do Pai, do Filho e do Espírito...

Inquisidor (Interrompendo) Isso também não é verdade. América O que, senhor? Inquisidor Essa trindade. Deus é um. Bispo (Com ironia) E você já viu um ser três? América (Grave, sem medo) Mas o Deus é um, senhor. Três vezes santo. Inquisidor (Irritado) É preciso que você se explique. Isso não quer dizer nada. América Eu não posso pôr em palavras o mistério. Posso apenas dizer que

tenho corpo e alma e sou uma só, mas... Inquisidor E você pode dizer que o corpo é a alma e a alma é o corpo? América Não senhor. Eu não posso dizer isso... posso apenas dizer que uma

flor tem muitas pétalas mas é uma, assim como eu tenho braços e

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pernas, e meu corpo é um, mas a unidade tríplice que me perguntam é indivisível.

Bispo (Com desdém) É o nada então. Inquisidor E falar do nada, é nada. América Mas eu não posso falar do mistério com a linguagem que conheço. Bispo (Frio) Mas no nosso tempo tudo é claro, demonstrável. Inquisidor Bem o disseste, reverendíssima. Demonstrável. Superintendente Natural, natural. Inquisidor (Solícito, com ironia bem oculta) Olha, minha filha, você não seria

capaz de fazer uma demonstração lúcida desse seu... mistério? Isso poderá salvá-la. Quem sabe uma equação...

América Não senhor... eu não seria capaz... eu não poderia. Bispo Mas a fé não faz milagres? Não faz milagres? Vamos vamos. O

quadro negro. América (Com estupefação) Mas não há coisa alguma que se pareça a essa

trindade, senhor. Inquisidor (Sorrindo maligno) Peça ao Pai, ao Filho e ao Espírito... Santo. Bispo (Irritado) Vamos vamos, como é lerda. Superintendente levanta-se e empurra América até o quadro negro. América (Lenta, assombrada) Uma idéia de Deus? (Angustiada) Uma idéia de

Deus? Bispo (Firme) Uma idéia do (Acentua) “Teu” Deus. (Pausa) Superintendente, Inquisidor e Bispo cochicham e riem algumas vezes moderadamente. América (Em intensa comoção, lenta, voz aumentando gradativamente)

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Seria clara como coisa... se sobrepondo a tudo que não ouso. Seria clara como coisa... sob um feixe de luz num lúcido anteparo. Seria... ouro e aro na superfície clara de um solário. (Pausa)

Inquisidor (Entusiasmado) Vamos. Ousa. América (Como uma iluminada) ... E o mais fundo de mim, me diz apenas: canta, porque à tua volta é

noite. O Ser descansa... (Pausa) Bispo (Para a Superintendente e o Inquisidor) Ela não traçará nada. Nem

explicará nada. É inútil. Inquisidor (Para América, exaltado) Nós pedimos uma demonstração evidente

dessa sua fantasia. Bispo (Nervoso) Nada de transcendências. América (Levantando a voz) Eu falarei com os mortos? Estão mortos esses que

me vêem? Superintendente (Levantando-se indignada) Estamos todos bem vivos, América. Não é

você que está cega? América (Com humildade mas firme) Senhora, o meu olhar pode ver o mais

fundo das coisas. Bispo Nada de grandes frases. Inquisidor Nem de evasivas, hein. América (Febril) A madeira dessa cruz que ostentais no peito será igual à

madeira deste banco ou desta cadeira onde me acusais? Será igual? Inquisidor Nós somos aqueles que perguntam, moça. E você é aquela que

responde. Vamos, à lousa. Bispo À lousa, depressa, depressa. América Eu não posso, senhor.

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Inquisidor Ora ora, não pode... Vamos. (Joga um giz para América) Aqui está um giz para suas grandes demonstrações. (Pausa)

América (Lenta e como uma iluminada) Se a mão fizer de ouro e aço... Bispo (Sarcástico) Começou com o impossível... América (Tom anterior) Desenharei o círculo (Desenha um círculo grande e mal

feito) Inquisidor (Rindo) E isso é um círculo? América (Tom anterior) E dentro dele... o equilátero (América desenha dentro

do círculo um triângulo equilátero. A figura que América desenhou é a seguinte, porém de forma mal feita:)

DESENHO DE UM TRIÂNGULO EQUILÁTERO DENTRO DE

UM CÍRCULO. Bispo (Rindo) E isso é um equilátero? (Risos) América (Solene, grave, mas sem qualquer pedantismo) E se a mão não puder, hei de pensar o Toso sem o traço. (Aqui a

figura perfeita deve ser projetada no quadro, por meio de um slide) E se o olhar a um tempo se fizer sol e compasso... Esfera (Contorna o círculo) a asa (América aponta os lados laterais do triângulo) Una (América contorna novamente a esfera) Tríplice (América contorna os três lados do triângulo) e infinita. (Pausa)

Superintendente Insolente... e tola como ninguém. Bispo (Sarcástico) e é essa a sua demonstração de um Deus em comitê? Superintendente (Irônica, sorrindo) Feérico e delirante, não Reverendíssima? Bispo (Voz baixa para o Inquisidor, muito grave) Nem as crianças nem os

loucos falam assim. Inquisidor (Para o Bispo, enfastiado) Ela deve sofrer de Autismo.

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Bispo Autismo... autismo... hum. Inquisidor É quando alguém desliga da realidade, do mundo exterior. Bispo Hum... autismo, autismo. (Pausa) Superintendente (Para o Bispo) Será que não seria conveniente alguns cursinhos? Nós

reuniríamos todos e... Bispo Arriscado. Extremamente arriscado... A senhora veja: Há certos

pirilampos que simulam sinais luminosos de comunicação, sinais característicos de outra espécie. E assim conseguem atrair seus quase irmãos e... os devoram.

Superintendente (Enjoada) Um pirilampo... carnívoro? Bispo Sim... quase isso. Inquisidor (Confidencial) Mas será lícito? Bispo O quê? Inquisidor Existir essa espécie pirilâmpica? Bispo (Sorrindo, com algum pedantismo) A natureza é tão artificiosa... Inquisidor (Levanta-se e encaminha-se para o quadro negro) Artificiosa é

América. Eis agora uma demonstração lúcida, isenta de mistérios. Esta (E escreve no quadro negro) :

T = C C = T E isso quer dizer: Trabalhar para comer, comer para trabalhar. E estas

duas essencialidades (Faz um círculo ao redor da fórmula) serão moldadas numa única essencialidade vigorosa. (Faz outro círculo ao redor do primeiro) Esta: A Técnica. (Escreve Técnica no quadro negro e faz uma seta. É isto em conjunto o que o Inquisidor desenha:

DESENHO O Inquisidor volta a seu lugar.

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Bispo (Enfastiado) Bem bem. Tudo isto se arrasta em demasia para o meu

gosto. (Pausa) Senhor Inquisidor... qual seria uma solução justa? Inquisidor (Com indiferença) A morte não poupa os melhores. Bispo Não considero eficiente a sua sugestão. (Sorri) Às vezes uma galinha

pode parir um cisne. Inquisidor Hum... compreendo. Esperar... e talvez aproveitá-la... não é isso? E

que método o senhor sugere? Bispo Nós a recompensaríamos se ela ficasse passeando nos nossos

jardins... passeando e pensando, passeando e pensando. Uma natureza imaginosa pode de repente descobrir coisa nova.

Inquisidor Ela não falaria com ninguém, logicamente. Bispo Claro, claro, isso nunca. Mas haveria relatórios diários. Seriam

anotados a enviados ao senhor. Todas as tardes uma exposição completa das idéias daquele dia.

Inquisidor Um pirilampo carnívoro... pensando. Não tenho muita confiança.

(Pausa) Bispo (A idéia lhe ocorre de súbito) Poderia devorar-se a si mesmo? Inquisidor Se isso acontecesse nós perderíamos tempo... e numerário. Bispo Mas o teoremazinho foi... Inquisidor (Interrompendo) Primário, Reverendíssima. Aquilo tudo é muito velho. Bispo Mas com nova explicação. Inquisidor Uma idéia de Deus, Reverendíssima, tão irreal... (Burlesco)

fosforescências do pensamento inapreensível. Bispo Bem, pouco a pouco chegaremos à precisão. E oferecendo certas

condições agradáveis a essas criaturas extravagantes, de repente... um argumento válido, uma nova descoberta.

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Inquisidor Temerário. Já houve idéias que nos irritaram bastante, o ponto ômega

que vai subindo, subindo até não se sabe onde. Bispo Mas quem sabe uma chamazinha não muito alta... Certas

potencialidades ainda não captadas, quero dizer, ainda não registradas... ela é jovem, pode de súbito adquirir eficiência... pensante.

Inquisidor Um coração ardente... com eficiência? Bispo Bem bem, temos que chegar a uma conclusão, senão será preciso

recorrer ao Supremo. Vamos, pensemos. (Pausa) O jejum? Inquisidor Ora que bobagem, que bobagem. Começará a ter visões. (Pausa) Bispo O exílio? Inquisidor Não não, é melhor que ela fique à vista. Superintendente A flagelação? Bispo Mas por favor, Superintendente... aí sim é que ela pode subir aos

céus. Que tolices. (Pausa. Tom reconciliatório) Moça América: se confessar a sua culpa, se se retratar, a sua situação pode adquirir um novo aspecto. Lembre-se minha filha: aqui não é um tribunal qualquer. Queremos a sua salvação.

Pausa longa. América fica em silêncio. Inquisidor Levante-se. América (Calma) Eu vou morrer, senhor? Inquisidor Ofereça-nos uma grande vantagem para que isso não aconteça. América (Lentamente) Ofereço-vos minha mão aberta. Queimada de uma luz

tão viva como se ardesse viva sob o sol. Olhai se possível a mão que se queimou de coisas limpas. e se souberdes o que em vós é justiça, podereis refazê-la à imagem de vossa mão. E depois igualada, aproveitá-la a cada hora. A cada hora e...

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Inquisidor (Interrompe, com alguma insegurança) Aproveitá-la... será mesmo

uma boa idéia? Bispo Pois eu não sugeri, senhor Inquisidor? Inquisidor (Desanimado) Mas de que forma aproveitá-la, de que forma? Com as

asas que tem. Bispo (Um pouco magoado) Eu fiz uma boa sugestão: os jardins. Mas o

senhor não apreciou devidamente. Pense noutra então. E, por gentileza, rápido, se me faz o favor.

Inquisidor Um aproveitamento eficiente e concreto é bem da competência do

poder temporal. Eles têm sempre ótimas idéias. E para os casos assim são primorosos.

Bispo E o poder temporal não é representado pelo colégio? Inquisidor (Cansado) Pela empresa, pela empresa, Reverendíssima. Bispo A empresa, o colégio, o instituto, e logo mais haverá uma só palavra

para tudo. Será a síntese, meu amigo. Inquisidor Irmão Superintendente, por favor, queira aproximar-se. Todos ficam de pé. Inquisidor (Continuando, solene) Nós entregamos à senhora, neste ato, com

especial cuidado, a Moça América. (Luz diminuindo gradativamnte) E pedimos clemência.

Bispo Benignidade. Luz continua diminuindo gradativamente. A Superintendente aproxima-se de América. Inquisidor e Monsenhor, estáticos. Semi-obscuridade. América (Grave e comovida) Sendo quem sou, em nada me pareço. Sendo

quem sou, não seria melhor ser diferente, e ter olhos a mais, visíveis, úmidos, ser um pouco de anjo e de duende? (Pausa. Escuro total. Voz

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muito alta e apaixonada) Ah, boca de uma fome antiga, rindo um riso de sangue. Se pudésseis abri-la para cantar meu canto.

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SEXTA CENA Luz em resistência no plano C, onde está a caixa de Eta e Dzeta, que fazem ruídos débeis, descompassados, e as cooperadoras chefes, que estão vestidas com roupa de laboratório. 1a Cooperadora Ela vai chegar agora? 2a Cooperadora Daqui a pouco, segundo consta. 1a Cooperadora Você a considera recuperável? 2a Cooperadora É um caso de exceção. Mas há grandes possibilidades. A sentença foi

muito... muito humana. Um voto extremo de confiança. Conosco ela estará bem, e como vigilante de Eta e Dzeta irá pouco a pouco se adaptando. Vai sobreviver.

1a Cooperadora E se ela não desejar? 2a Cooperadora O quê? Sobreviver? Claro que ela desejará sobreviver. De início fará

o seguinte raciocínio: eu preciso continuar existindo assim como sou, para que Eta e Dzeta fracassem. Você sabe como é, a postura do herói, tenacidade... sacrifício. Depois lentamente as duas pequenas coisas a conquistarão. E ela continuará existindo... mas conquistada.

1a Cooperadora A outra equipe fez o bastante para melhorar Eta e Dzeta na aparência.

Apesar de que eu, pessoalmente, não julgava necessário. 2a Cooperadora Ah, muito necessário sim. No caso de América é imprescindível que

logo de início ela goste das pequenas coisas. Sabe, o que chamávamos antigamente de afeto. É a única maneira de segurá-la no posto por enquanto.

1a Cooperadora Olhe bem. (Tom brando) Você acha que elas estão melhor assim? 2a Cooperadora Muito. Como eles foram delicados. Veja, até pintaram aquela segunda

garra de Dzeta. 1a Cooperadora Se América não se recuperar num prazo razoável, talvez Eta e Dzeta...

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2a Cooperadora (Olhando atentamente para dentro da caixa) Pobrezinhas, estão mal. (Pausa) Eu não queria te dizer, mas observei sabe o quê? (Pausa) Contrações.

1a Cooperadora Chegaram a isso? Mas não deveria acontecer. Temos tido tanto

cuidado... e a luz tem sido intensificada todos estes dias. 2a Cooperadora Esse abatimento acentuado de Eta e Dzeta é bem surpreendente. 1a Cooperadora Surpreendente... sim... mas não podemos nos esquecer que América é

fanática, fanática minha amiga. 2a Cooperadora Mas assim chegamos à conclusão de que Eta e Dzeta não só acusam

as oscilações da consciência, mas também a intensidade do conflito. Ora, isto não estava previsto.

1a Cooperadora E poderá ser chamado de alienação. 2a Cooperadora Tanto assim? 1a Cooperadora Ora, uma coisa que foi construída, racionalmente, não pode

ultrapassar a intenção daquele que a construiu e tomar vida própria. 2a Cooperadora Mas veja: se América assim que assumir o posto fizer uma ação

compensatória, é quase certo que Eta e Dzeta resistam a esse terrível abalo.

1a Cooperadora Mas alguma coisa não está certa. Isso que aconteceu não podia

acontecer. Nós poderíamos aperfeiçoar todo o mecanismo e Eta e Dzeta acusariam não somente as asas do espírito, não somente a intensidade do conflito, como verificamos, mas poderiam influir no âmago, na medula de todo aquele...

2a Cooperadora (Interrompe) Como assim? 1a Cooperadora Assim: arrancariam de imediato as asas do espírito, nivelariam a

consciência, e dariam total equilíbrio de conduta. 2a Cooperadora Você quer dizer que poderíamos ampliar... o núcleo da ação? 1a Cooperadora Que tal?

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Teatro reunido Hilda Hilst 311

2a Cooperadora Olha, ela está chegando. Agora é preciso muito cuidado com Eta e

Dzeta. 1a Cooperadora (Preocupada) Uma aproximação demasiado perigosa. Entram América e a irmã Superintendente. América usa a mesma roupa das cooperadoras

chefes. Superintendente (Para América, atitude maternal) Aqui você estará bem, minha amada

filha. E aos vossos cuidados senhoras cooperadoras. 2a Cooperadora Pode ficar tranqüila irmã Superintendente. Tudo será feito para

reintegrar América. Superintendente Sim... mas não é só isso que a cúpula deseja. Desejamos antes de

tudo que ela continue com alguma coisa que ainda tem. 2a Cooperadora Uma troca de substância. 1a Cooperadora Uma transmutação às avessas. Superintendente Bem, isso é com as senhoras. A Superintendente chama à parte a primeira Cooperadora, enquanto a segunda coloca América sobre uma cadeira giratória, de metal, muito alta, em frente da caixa onde estão Eta e Dzeta. Faz preparativos em América, alguns retoques, assim como as modistas fazem nas noivas, enfim, é gentil e amorosa. Talvez se América viesse vestida de noiva seria bastante apropriado. O ruído de Eta e Dzeta torna-se mais débil com a presença de América. Superintendente (Com alguma cautela) Sabe o que ela foi capaz de dizer ao senhor

Inquisidor? 1a Cooperadora Nós temos relatórios completos. Superintendente (Seca) Mais isso não constou dos relatórios. 1a Cooperadora Ela disse alguma coisa que não consta dos nossos relatórios? Isso me

parece grave. Superintendente Cale-se. Nem tudo é para o olho de todos.

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Teatro reunido Hilda Hilst 312

1a Cooperadora Mas se não tivermos todos os dados... a senhora deve compreender...

aqui, cada detalhe é da maior importância. Superintendente Justamente por isso vou lhe dizer o que não constou dos relatórios. (A

Superintendente tira do bolso um papel e lê, enquanto a Cooperadora toma nota) Ela disse (Tom objetivo): “Sendo quem sou, em nada me pareço. Sendo quem sou, não seria melhor ser diferente, e ter olhos a mais, visíveis, úmidos, ser um pouco de anjo e duende?”

1a Cooperadora Anjo e duende? Gravíssimo. Talvez ela seja irrecuperável. Superintendente Mas veja bem, ela disse “não seria melhor”, e não afirmou que é

alguma dessas coisas. 1a Cooperadora De qualquer forma é uma proposição bastante inquietaste. Superintendente Tenho absoluta confiança nas senhoras. (Pausa) Poderá entender o

que eu vou lhe dizer agora? (Referindo-se à América) Será difícil encontrar alguém com tanta vocação para a liderança.

1a Cooperadora Enquanto falamos, talvez alguém, como a senhora deseja, está

nascendo. Superintendente (Seca) Cooperadora... ela disse mais. 1a Cooperadora (Muito preocupada) E... também não consta dos relatórios? Superintendente (Cautelosa) Não. (Pausa) 1a Cooperadora Vejamos, Irmã. Superintendente entrega um papel à Cooperadora. 1a Cooperadora (Lendo com muita estranheza, como se fosse um texto indecifrável)

Ah, boca de uma fome antiga, rindo um riso de sangue. Se pudésseis abri-la para cantar meu canto. (Pausa. Fixa a Superintendente) E que canto será esse?

Superintendente (Muito objetiva) A sua tarefa, Cooperadora, é fazer com que América

deseje ardentemente cantar (Acentua) “o nosso canto”. E cantar com

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tamanha intensidade como se ela o tivesse inventado. (Superintendente sai)

A primeira Cooperadora aproxima-se de onde está América, e retira do bolso um pequeno bloco onde tomará notas. A segunda Cooperadora está neste instante examinando América, tomando a pulsação e examinando o coração com um estetoscópio. 1a Cooperadora (Para a segunda Cooperadora) Então... seu diagnóstico preliminar? 2a Cooperadora (Com alguma ironia) Bem... um coração ardente. 1a Cooperadora A pulsação? 2a Cooperadora Um pouco acelerada, mas é tão normal num caso assim. 1a Cooperadora Ela já pode começar? 2a Cooperadora Imediatamente. Eta e Dzeta estão em péssimo estado. 1a Cooperadora Então comece. Rápido. 2a Cooperadora América, daqui por diante você tomará conta das pequenas coisas.

Chamam-se Eta e Dzeta. Vê como são bonitas... (Com melosidade na voz, e um certo tom burlesco) ...brilhantes, veludosas, não te vêm à cabeça os brinquedos de antes, de pelúcia? E ao mesmo tempo que ritmo, que astúcia nesse caminho... vê só... de ida e volta. E que graças nas garras, que brilhosa aquela segunda garra esmaltada de rosa. América, toda essa sutileza, essa fina apreensão de Eta e Dzeta nós devemos à técnica. E essa delicada aparência, esse existir astuto e moderado, tem infinitas conotações éticas e estéticas. E... bem, o mecanismo é aparentemente simples, mas que complexidade nisso de devorar a luz dos outros (América dá sinais de extrema perturbação, percebe-se que ela está em agonia. Isso não é notado pelas Cooperadoras, porque a segunda está encantada com o próprio discurso, e a primeira encantada em ouvi-lo) ...e existir através de alheias luminosidades. Se há luz (Toca o próprio peito) aqui por dentro, Eta e Dzeta devoram... (Sorri) mas só por um momento. Em seguida transformam o teu pretenso vulcão em sábio entendimento. E há coesão, harmonia, surpreendente limpeza, e mais (Com rigidez): No fundo dessas carapaças quase imateriais há o poder de impulsionar e dirigir seguidas gerações. (América imobiliza-se. Está morrendo. O

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ruído de Eta e Dzeta começa gradativamente seu ritmo normal) Não é magnífico que a cabeça do homem tenha conseguido com tanta liberdade inventar algo que substitua sua própria cabeça?

A segunda Cooperadora, ainda muito maravilhada com as palavras que acabou de pronunciar, maravilha-se ainda mais quando percebe que o ruído de Eta e Dzeta está intenso e perfeito. Então olha para América, e em seguida para a primeira Cooperadora, com evidente encantamento. 2a Cooperadora (Tom neutro) Ela morreu. (pausa. Maravilhada e para a primeira

Cooperadora) Olha... Eta e Dzeta começaram de novo. Salvaram-se. 1a Cooperadora (Aliviada) Como é bom ouvir esse ruído novamente. 2a Cooperadora Muito, muito bom. Tudo deu certo. 1a Cooperadora Sim... apenas a Irmã Superintendente... 2a Cooperadora Ah, a nossa querida Irmã. Mas eu posso compreendê-la. (Olhando

América) Um pirilampo carnívoro tem às vezes um certo fascínio. Bem. Vá avisar a diretoria.

A primeira Cooperadora sai, a segunda empurra a cadeira de América, dando-lhe um violento movimento rotatório. Coloca as mãos sobre a caixa onde estão Eta e Dzeta, com expressão extasiada. 2a Cooperadora Engenhoso... muito engenhoso. Ruídos de Eta e Dzeta continuam cada vez mais intensos. F I M

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Hilda Hilst

O rato no muro 1967

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PERSONAGENS Irmã Superiora Irmã A Tem os olhos arregalados. Irmã B Irmã C Tem manchas de sangue na roupa. Irmã D Irmã E Irmã F Irmã G Muito velha. Come o tempo inteiro. Mastiga. Irmã H Irmã I Irmã de sangue da Irmã H.

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CENÁRIO Interior de uma capela. Paredes brancas com algumas manchas negras, como as de um incêndio. Ao fundo, uma cruz enorme, negra. No chão, a sombra de uma cruz luminosa onde as mulheres se movem. Um vitral, ou uma grande escultura representando a figura de um anjo, talvez semelhante ao “Anjo velho” de Odilon Redon, ou um anjo que dê a impressão do que nos fala Marcel Brion: “Que reste-t-il à un ange qui a perdu jeunesse et beauté, attributs de son angelisme? Ses ailes sont incapables de le soulever et de ramener vers le ciel, l’ange dèchu est dejá evanhi par la banalié, la laideur, la mediocrité.” O cenário deve ter dois planos. É preciso que se veja o interior da capela e ao mesmo tempo em certos momentos uma cerca que estaria a alguns metros de um muro que jamais se vê. Na capela, alguns castiçais, um banco e uma pequena janela. As mulheres freiras estão em círculo, ajoelhadas, e ao lado de cada uma, um pequeno chicote de três cordas. A Superiora está de pé, afastada das outras.

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As nove freiras juntas Nós somos um. Nós somos apenas um. Um só rosto. Um. (Pausa) As nove freiras juntas (Tom salmódico) De todas as nossas culpas, perdoai-nos. De todas as

nossas culpas, salvai-nos. De todas as nossas culpas, esquecei-vos. Superiora (Tom objetivo e severo) Hein? Como disseram? As nove freiras juntas (Tom cantado e agudo, em tensão crescente) Tentai esquecer-vos,

Senhor. De todas as nossas culpas, entristecei-vos. Superiora Hein? Como disseram? As nove freiras juntas (Tom mais agudo, tensão crescente) Alegrai-vos, para que nós nos

esqueçamos de todas as nossas culpas. Superiora São muitas? As nove freiras juntas (Tom cantante, destacando as sílabas) Muitíssimas. Superiora (Tom objetivo e severo) Quantas? As nove freiras juntas (Tom ainda cantante, mas separando as sílabas no ritmo de um

relógio) Tan... tás Tan... tás Tan... tás Superiora De “A” a “I”? As nove freiras juntas (Tom cantante esticado) Ai, sim... ai, sim... A... I... A... I Superiora (Bate palmas três vezes) Irmã A. Diga uma delas. Uma de suas culpas

de hoje. Irmã A (Levantando-se) Hoje eu olhei para o alto. Havia sol. Eu me alegrei. Superiora Irmã B.

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Irmã B (Levantando-se) Hoje eu olhei para baixo. Havia só terra e sombra.

Eu me entristeci. Superiora Irmã C. Irmã C (Levantando-se) Hoje eu olhei para dentro de mim. Havia sangue. Eu

tive medo. Superiora Irmã D. Irmã D (Displicente) Hoje o gato me arranhou. Eu o matei, com aquele

veneno para cupins. Irmã E (Angustiadíssima) Você o matou! Você o matou! Superiora (Tom muito severo) Irmã E! Irmã E (Angustiada) Hoje eu não tive para quem dar o meu pão, nem o leite.

Ah, procurei-o tanto, procurei-o tanto! (Seca) E porisso me esqueci de plantar os girassóis na cerca. (Chora)

Superiora Basta. Irmã F. Irmã F Hoje o dia foi tão longo... Olhei o pássaro que pousou na janela. Tive

vontade de ser. Superiora Irmã G. Irmã G (Muito velha) Ah, não sei, não sei. Vivi pensando em comer, como

sempre, é uma coisa do meu ventre. É doença. Superiora É culpa. É culpa. Irmã H. Irmã H (Grave) Hoje não tenho queixa de mim. As nove freiras juntas (Cansadas) Oh novamente! Oh novamente! Superiora Cht. Pense. Pense.

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Irmã H Já pensei tanto. Não consigo encontrar. (As freiras entreolham-se e cochicham)

Superiora Cht! (Para H. Apontando o banco) Ajoelhe-se lá. E pense. (A Irmã H

encaminha-se para o lugar indicado) Irmã I. Irmã I (Tom angustiado) Eu pensei na minha pobre irmã o tempo todo.

Queria que todas as minhas culpas não fossem minhas e sim... dela. Ela vai se lembrar. Ela vai se lembrar!

Superiora (Muito severa) Irmã I! Diga uma de suas culpas de hoje. Não foi o

que lhe ordenei? Irmã I (Quase refeita) De tanto pensar nela... (Abaixando a voz) e neles...

não lavei o pátio, como devia. E depois, a senhora quer saber? Aquelas manchas onde eles pisaram nunca saem.

Superiora (Severíssima) Basta, basta. (Bate palmas três vezes. As freiras

começam a cantar) As freiras juntas (Menos a Irmã H) Dominus vobiscum... Superiora (Tom objetivo. Rápido) Et cum spiritu tuo . O Dominus Vobiscum é repetido três vezes, sempre mais intenso, tons agudos. O tem da Superiora não é cantante. É sempre rápido e grave. Depois do Dominus a Superiora bate palmas uma vez. As freiras juntas (Menos a Irmã H e a Superiora. Tom crescente) In nomine patris

(Chicoteiam-se uma vez nas costas) Et filii (Chicoteiam-se várias vezes, desencontradas) Et spiritus santi (Chicoteiam-se)

As freiras repetirão o ritual três vezes. Na última vez o tom é agudíssimo. A irmã H recua sempre mais até ficar bem próxima à cruz. A Superiora, depois do canto, bate palmas novamente. I olha em desespero para H. As freiras levantam-se. Saem em fila. A Irmã H fica sozinha, examina febrilmente as manchas, o anjo. Pára diante do anjo. Irmã H Mas tu serás assim tão velho? E tão triste? E eu poderia ainda te

cantar como um dia te cantei? Se algum irmão de sangue, de poesia, mago de duplas cores no meu manto, testemunhou seu anjo em muitos

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cantos, eu, de alma tão sofrida de inocências, o meu não cantaria? E antes deste amor, que passeio entre sombras!

Tantas luas ausentes e veladas fontes! Que asperezas de tato descobri nas coisas de contexto delicado. Andei, em direção oposta aos grandes ventos. Nos pássaros mais altos meu olhar de novo incandescia. Ah, fui sempre a das visões tardias! Desde sempre caminho entre dois mundos, mas a tua face é aquela onde me via... Mas, tu serás assim tão velho e tão triste? (Entra a Irmã I. Abraçam-se)

Irmã I Por favor, por que você não inventa, meu Deus, uma culpa qualquer, um pensamento tolo, qualquer coisa?

Irmã H Mas eu não posso. Você não vê que eu não posso? Eu não sei o que

inventar... e depois... eu não consigo me esquecer... deles, você não entende? Deles.

Irmã I Mas o que adianta você se lembrar, nós nos lembrarmos? Eles se

foram. Foram embora. Não há mais nada que fazer. Ficamos nós, neste lugar.

Irmã H A havia o gato. Irmã I Ele morreu agora. Irmã H Tudo faz tão pouco tempo... Irmã I Faz muito tempo, meu Deus! Já faz muito tempo! Muito tempo. Irmã H E por que você acha que eles não podem voltar? Irmã I Porque é uma coisa evidente. Eles levaram todos. Você acha que não

está bem claro? Que se nós ficamos era para ficarmos? Irmã H Mas para quê? Por quê? Não tem sentido algum. Irmã I Mas você pode afirmar isso? Deve haver um sentido. Irmã H Ah, aquele sol lá fora, só aquele sol. Irmã I Mas aqui tem uma árvore, tem água, tem alimento. Onde é que você

quer ir?

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Irmã H Será que você não compreende? E se foi à toa que nós ficamos? Por

nada, por nada. Por esquecimento talvez. Por nada. Irmã I Então você acha que é possível que eles tenham se esquecido de

alguma coisa? Irmã H E por que não? (Aponta as manchas) Olha, olha! Irmã I O quê? Irmã H As manchas. Irmã I São as manchas de sempre. Você sabe. Foi na noite. Irmã H Não são as mesmas. Elas crescem a cada dia. Você não vê? Irmã I Não, não vejo. Por que é que você insiste? (Pausa) Irmã H Escuta, se o animal morreu, não teve sentido ele ter ficado. Irmã I Mas milhões de animais ficaram. Devem estar por aí. A gente é que

não vê. Irmã H Mas se ele morreu... se ele havia ficado... se ele havia ficado ele não

podia morrer, você não compreende? Não tem sentido. Irmã I Mas que sentido você quer dar à vida de um gato? Irmã H E nós temos algum sentido? Irmã I Nós faremos sacrifícios. Irmã H Mas sacrifícios para quê? Não há mais para que, nem porque fazer

sacrifícios. Então você mesma não disse que não há mais ninguém, ninguém? Só os animais.

Irmã I Mas talvez me engane. Alguém certamente deve ter ficado, não é? E

se fizermos tudo para não pensarmos mais nisso, hein? Por favor... por favor.

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Irmã H Você viu quanto tempo eles levaram... e quantos eram... o céu... coalhado... horas... dias, dias, que noites! Haverá alguém além de nós? Alguém?

Irmã I Talvez. Alguém sim. Irmã H E será por esse ou por essa que eu farei tanto sacrifício? Vem comigo,

por favor. Vamos embora. Quem sabe se eles estão colhendo gente ainda e nós não vemos.

Irmã I Ainda que haja uma só criatura devemos ficar e rezar por ela. Não

fizemos o nosso voto? E se eles estão na colheita, ainda, virão até nós um dia. Uma noite.

Irmã H (Rude) Você não quer me ajudar. Irmã I Mas você não poderá jamais sair daqui. Nem eu. Há o muro. Irmã H Tenho certeza que nós arranjaremos uma saída. Irmã I Uma saída? Você sabe que é impossível, você sabe que quem toma

conta do muro é a madre. Irmã H Mas ela dorme também, não é? Irmã I Dorme... você chama aquilo de dormir? Você acha que quem toma

conta do muro pode dormir? E além disso existe a cerca que ela mandou fazer. A cinco metros do muro.

Irmã H Mas a cerca não é frágil? Irmã I Mas o muro é altíssimo. E nem tem porta. Irmã H Deve haver cordas. Nós acharemos cordas. As do poço! Irmã I Mas não vão até a metade do muro. Irmã H (Rude) Você mente. Mentira. Irmã I Mas por que você acha que eu minto?

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Irmã H Porque nenhum muro pode ser tão alto, nenhum poço tão profundo. (Pausa)

Irmã I (Aproximando-se da pequena janela) Demorou tanto tempo, tanto

tempo! E daqui, você pode ver as enormes feridas que ficaram nas montanhas de pedra. Venha. Olhe. O muro é tão alto, e as pedras são tão lisas. (Ouvem a porta abrir-se lentamente) Olha, vem alguém. Não seria ela?

Irmã H Não. É a nossa irmãzinha G. Irmã I Ainda bem. Que alívio. Irmã G Irmangá! Irmangá! Irmã H Sim, estou aqui. Irmã G Pobrezinha! Sabe, eu pensei se a senhora não teria por acaso uma

rosquinha... Ah, Irmã I, a senhora também está, eu compreendo, quer ajudar a irmãzinha, não é? Não direi nada, nada, pode ficar sossegada, mas não tem uma rosquinha? Tenho tanta fome.

Irmã H Não, não tenho. Irmã G Mas a senhora não disse que não teve para quem dar o seu pão e o

seu leite? Antes era para o gato. Agora pode dar para mim. Ele morreu... foi maldade, mas ele morreu.

Irmã H Mas não fui eu quem disse do leite e do pão... Alguém disse isso? Irmã G (Tom cantante) Ai... Aí... A... í... A... í. Sempre me confundo. Irmã I Sempre nos confundimos. Irmã G (Conta nos dedos) A, B, C, D, E... Ah, é isso mesmo, foi a irmãzinha

E, pobrezinha. Irmã I Quem sabe se a irmã D, porque matou e está mais aliviada, não lhe

conseguirá uma comidinha? Irmã H É isso mesmo. Tente.

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Irmã G A irmã D? Deus me livre. Tenho muito medo. Ela põe sempre o

veneno para cupins perto da nossa comida. Alguém menos avisado pode pensar que é mel. É da mesma cor... Mas não tem mesmo uma rosquinha?

Irmã H Não, não tenho. Irmã I (Severa) Ela nunca mente. Irmã G Mas é verdade? Pode estar mentindo só para poder confessar uma

culpa amanhã. Irmã I (Severa) Não, ela nunca mente. Irmã H Sinto muito, irmã G, mas é verdade. Não tenho mesmo nada. Irmã G Está tão escuro aqui... Vamos acender mais algumas velas? (Acende

duas ou três velas) Bem... bem... (Aproxima o castiçal do rosto da irmã H) Oh... mas está tão pálida, pobrezinha.

Irmã I Está cansada. Irmã G De tanto pensar (olha para os lados, cautelosa) neles, não é? Irmã H É verdade, não deixo de pensar neles, nunca. Irmã G Eu também os vi... e não sei se a senhora reparou. Irmã I e H O quê? Irmã G O hálito. Irmã I e H O hálito? Irmã G É... o que saía de dentro... era luminoso... quando eles moviam os

lábios. Irmã I Eles moveram os lábios? Irmã H Não...

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Irmã G Sim sim, moveram os lábios. Irmã H Mas quando? Irmã G Quando tocaram as pedras do muro. Irmã I Tocaram as pedras do muro? Irmã G Sim sim, tocaram as pedras do muro. Irmã I e H Mas quando? (Ouve-se a porta abrir-se) Irmã H Olhem... vem alguém. Irmã I Ó meu Deus, outra vez. Irmã G (Escondendo-se) Eu não quero que ela me veja... Pode me deixar sem

comer de pura maldade. Irmã H Não tenha medo, não é ela não, é a Irmã A. Irmã I Ainda bem, que alívio! Irmã G Uf, uf! Irmã A (Os olhos muito abertos) Estão aqui? Tem alguém aqui? Ah, estão,

que bom... A Irmãzinha G também está? Irmã G Estou aqui, sim. Quer alguma coisa? Irmã A Ah, Irmãzinha, a minha vista, os meus olhos... Hoje de manhã havia sol

e eu me alegrei, mas agora... Irmã H Agora já é noite. Irmã A Eu sei, eu sei, mas ... Irmã G Mas você quer sempre o sol, não é?

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Irmã A A senhora me compreende bem. Não sei se é a memória que nos confunde, mas havia tanta luz onde eu nasci. Não sei se era tanta, tanta luz, porque depois... (Olha cautelosa para os lados) deles, o que nós vemos ainda é luz? Primeiro me vêm à lembrança certas águas... o rio, o rio enorme da infância. Um sol que cegava todos. A mim, não. E muitos diziam: só ela é que não põe a mão sobre os olhos, um dia certamente ficará cega. Mas isso não aconteceu. Vejo perfeitamente, só que à noite os olhos doem. Eles precisam da luz do sol, e por isso, para não incomodá-los, fico assim de olhos bem abertos... sempre há alguma luz ao redor, não é mesmo? Talvez a Irmãzinha G tenha alguma coisa para mim.

Irmã G Não tenho nada e nem consigo lembrar-me se tenho ou não, com essa

fome que estou. Irmã A A senhora está com muita fome? Irmã G Muita, muita. Por quê? Tem alguma coisa aí? Procurem. Procure. (As

três freiras, A, I e H, procuram nos bolsos do hábito) Irmã I Se eu tivesse... mas não. Irmã H E eu não tenho nada mesmo. Irmã A A senhora tem sorte, pois agora me lembrei desta maçã. Tome. Irmã G Uma maçã? Verdade? É verdade... mas onde foi que descobriu? Irmã A Na cozinha... de repente. Estava um pouco escondida, perto... Irmã G (Interrompe) Perto do remédio dos cupins? Irmã I Mas que idéia fixa, Irmã G. Irmã H O remédio dos cupins é para os cupins. Irmã G E para o gato também... Irmã A Mas a senhora não é cupim nem é gato. Coma, coma. Irmã G Tenho tanto medo... A Irmã D não terá posto o remédio na maçã?

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Irmã H Meu Deus, desde Adão que não vejo tanto medo de maçã! Irmã I Aqui, nós todas temos muito medo. Irmã A Deles? Irmã G Não, da Madre. Irmã A Deles eu não tive medo nenhum. Irmã H A senhora os viu bem? Irmã A Como poderia deixar de vê-los? Irmã I Mas viu assim? Os olhos tão abertos? Irmã A Ah, nunca meus olhos se alegraram tanto. Irmã G (Sempre comendo) Sabe que eu não vi exatamente quando eles

chegaram, mas depois, quando tocaram o muro... aí eu vi bem. Irmã A É verdade, tocaram o muro. Irmã H Mas eu não vi, eu não vi! Irmã I Nem eu. Irmã A Não é possível. Acho que todas viram. Irmã G Eu não disse? Tocaram sim. Irmã A E moveram os lábios. Irmã G Eu não disse? Irmã A E de dentro da boca saía uma corda de luz. Irmã G Não sei se era uma corda mas era bem luminoso. Irmã H Mas por que será que eles tocaram o muro?

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Irmã A Ah, isso eu não sei. Irmã I Ninguém sabe. Irmã G Acho que era para ver como era. Irmã H O tato. Irmã I A temperatura. Irmã A Da pedra? Irmã G Se você estivesse no mundo deles, também, não gostaria de tocar o

muro deles? (A porta abre-se violentamente) Ai, quem é? Que foi? O que foi? (Esconde-se)

Irmã I É você? Irmã B Sou eu mesma sim, o que foi/ Irmã G (Saindo de onde estava) Quem é? Quem é? Irmã H É a Irmã B. Irmã A Precisava fazer assim? Tanto barulho? Irmã B Precisava. Irmã G Por quê Irmã B Para vencer o medo. Irmã H Você também tem medo? Irmã B Sim, eu também tenho medo. Irmã A E por que... Irmã B (Interrompe) Porque hoje eu vi terra e sombra. Foi junto do muro.

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Irmã A Junto do muro? Irmã H Você chegou até o muro? Irmã B Não. Agora existe a cerca. Mas havia a sombra do muro. É quase a

mesma coisa. E perto da cerca a terra estava revolvida. Irmã G É por causa dos girassóis que serão plantados amanhã. Você tem

alguma coisa aí? (Procura nos bolsos da Irmã B) Irmã B Os girassóis... Isso se a nossa Irmã não continuar a procurar o gato. Irmã H Quem? Irmã G Vocês sempre se esquecem... a Irmã E. Irmã B Os girassóis precisam ser plantados logo. Todas (menos a Irmã G) Por quê? Irmã B Para não se ver o muro. Irmã I Imagine se os girassóis vão cobrir o muro! Irmã H Que tolice! (Ri) Irmã A Que engraçado! (Ri muito) Irmã B Parece uma conversa sem sentido. Irmã G Procurem outra vez nos bolsos alguma coisa para mim. Irmã B Não cobrirão o muro mas a gente se esquecerá dele. Irmã H E por que você acha que é preciso esquecer o muro? Irmã G (Para a Irmã B) Não tem mesmo nada? Você não procurou direito. Irmã B (Procurando) Então vocês não perceberam?

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Todas (menos a O quê? Irmã G que tenta revistar uma por uma) Irmã B Que ela quer que a gente se esqueça do muro? Todas (menos a Irmã G) Por quê? Irmã G Esperem um pouco, antes de discutirem sobre isso, ninguém tem

mesmo nada para mim? Irmã B Tenho as balas que a Irmã D fez para comemorar a morte do gato.

(Tira muitas balas, do bolso do hábito, enroladas em papel colorido) Irmã G Hum... Tenho tanto medo... mas deixa ver. Irmã B Parecem boas. Pode ficar com todas. Irmã G Não tenho confiança mas... muito obrigada coitadinha. Irmã H (Para a irmã B) Diga de uma vez porque é que ela quer que a gente se

esqueça do muro. Todas Diga, diga. Irmã B Mas é tão claro! Antes... quando (Olha para os lados) eles ainda não

tinham vindo, a gente quase encostava no muro, na hora da meditação e da leitura. Agora, se você vai só até a cerca, ela pede para que se afaste.

Irmã I Ela pediu isso para você? Irmã B Pediu. Foi à tardinha. Fui ver se as covas eram suficientes para os

girassóis e estava lá examinando quando ela disse: (Aparecem a Superiora e a Irmã B, destacadas, ???junto à cerca)

Superiora Afaste-se daí. Irmã B Vim ver os girassóis.

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Teatro reunido Hilda Hilst 332

Superiora Mas não há girassóis. Irmã B Eu sei. Mas vim ver se as covas estão prontas para os girassóis. Superiora Isso não é o seu trabalho. Irmã B Mas mesmo assim, o que é que tem, Madre? Sempre gostei tanto de

ajudar. Superiora Ajude-se a si mesmo. Olhe cada vez mais para baixo, mas não neste

lugar. Irmã B E será que eu posso perguntar por quê? Superiora Não deveria, mas posso responder: se ficar por perto, terá vontade de

colher as sementes dos girassóis quando eles crescerem. Irmã B E isso teria muita importância, Madre? Superiora Lógico. Olhando para o alto, na hora de colher as sementes, você

veria o muro. Irmã B Nós sempre veremos o muro, Madre. De qualquer lado que se olhe...

E mesmo se eu não colher as sementes, a outra Irmã há de fazê-lo. A Irmã E. Ela verá o muro.

Superiora A Irmã E só sabe ver o gato. Irmã B Mas o gato morreu hoje de manhã. Superiora Mas ela continuará a procurá-lo sempre. Nunca viu nada além do

gato. E basta. Afaste-se daí. (Some) PLANO DA CAPELA Irmã H E por que seria? Irmã B Porque eles tocaram o muro, não será?

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Irmã A Ah, você também viu? Irmã G Todas viram. Irmãs H e I Nós não. Irmã G E porque duas só vêem a si mesmas... e o gesto do outro fica inútil...

invisível. Irmã H Mas nós duas vimos os seres, não foi, minha irmãzinha? Irmã I Sim, é preciso esquecer... mas vimos. Irmã B Mas não perto do muro. Irmã H É. Isso não. Irmã I E por que seria? Irmã A (Para a Irmã I) Talvez porque para a senhora o muro é maior do que

devia? Irmã H E para mim? Não perco jamais a esperança, já disse... se houvesse

cordas... Irmã G Ainda que as houvesse... Irmã H Por quê? Por que a senhora fala assim? Não vê que eu sofro? Que

desejo tanto ir além do que me prende? Irmã A (Para a Irmã H) E a senhora iria... (aponta para a Irmã I) sem ela?

(Irmã H abaixa a cabeça) Irmã G O sangue tem cordas invisíveis. (Ouvem a porta abrir -se) Irmã I Cht! Cht! Irmã G (Escondendo-se) Não posso comer em paz com esse entra e sai. Todas juntas Irmã C! (Suspiram aliviadas. Irmã G sai de onde se escondeu)

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Irmã C (Gemendo) Ai. Ai. Ai. Irmã B Meu Deus, ela está cheia de sangue. Todas juntas Sangue! Irmã C Estou sempre assim. É todos os dias a mesma coisa na hora da

confissão e do castigo. Irmã H Não. O que a senhora diz é: Todas juntas Hoje olhei para dentro de mim. Havia sangue. Tive medo. Irmã I E se é por dentro, como saberemos nós? Irmã C Mas é a mesma coisa. Então não vêem? Irmã H Imagine... as nossas coisas de dentro são tão complicadas. Irmã A Milhares de ramificações. Irmã I Às vezes até sem sentido. Irmã C Nunca! Irmã A A luz, o sol é que nos faz ser assim como somos. Irmã C Aquela luz me fez mal... Quando (olha para os lados) eles vieram, na

noite, foi minha noite pior. Irmã H Todas viram então. Menos a Madre. Por que seria? Irmã I Quando nós queremos falar nisso, ela sempre diz: “Eles já se forma,

basta!” Irmã C Aquela noite, tudo em mim pedia complacência. Irmã G E eu tinha muito menos fome, muito menos, lembro-me perfeitamente,

porque isso é quase impossível em mim.

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Irmã A E sabem? Quando fechei os olhos, naquela noite, não senti muita dor. Irmã B Engraçado... e eu, antes deles aparecerem estava justamente

pensando que não era só terra e sombra o que existia. Mais fundo, mais fundo... existia outra coisa. A terra não é só o que se vê. Mas eu não sei como chamar isso que eu sentia.

Irmã I Seria fadiga? Irmã C Será que nós estávamos tão fatigados e por isso é que vimos? Irmã H Nunca! Eles deixaram as manchas... aqui (Aponta a parede) Irmã I E no pátio! Irmã B Eles tocaram o muro. Irmã A Moveram os lábios. Irmã G Tinham o hálito luminoso. Irmã C Eles... sangravam. Todas juntas Sangravam?! Irmã C Sem! Essas manchas na parede e aquelas outras no pátio são manchas

de sangue. Irmã H (Em pânico) Mas não é possível... são tão escuras. (Todas tocam as

manchas vagarosamente, menos a Irmã G) Irmã G É que já faz muito tempo. É bem possível que sejam de sangue. Vocês

acham que eles tocariam o muro impunemente? Irmã H (Examinando as manchas) De sangue? Irmã I De sangue? Irmã C (Tentando alcançar uma mancha mais alta na parede e raspando-a

com a unha) Olhem, se vocês rasparem assim, elas ficam mais claras.

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Irmã A Deixa ver. Irmã B É sim. raspando é vermelho vivo, olhem, venha ver Irmãzinha G. Irmã G Eu já sei, eu já sei. Irmã H A senhora já sabia que as manchas eram de sangue? Irmã A Sabia nada. Ela nem tem memória. Irmã I Será que todas são assim? Por dentro, vermelho vivo? Irmã C São todas iguais. Irmã H (Enjoada) Sangue. Irmã I (Para a Irmã H) A nossa mãe me disse uma vez que quando você

nasceu, foi difícil limpar o teu rosto... estava cheio de sangue. Irmã H (Enjoada) Você nunca me disse isso. Irmã A Sai sangue quando as crianças nascem? Irmã B Lógico. Sai sangue... muito. Irmã A (Olhando-se e olhando as manchas com horror) Não... Irmã H (Para a Irmã I) E depois? Depois limparam o meu rosto? Irmã I (Sorrindo) Limparam sim. Mas você chorou tanto. Irmã A Ela não queria que a limpassem? Irmã C Ela queria crescer cheia de sangue. Irmã I Ela fechava as mãozinhas e parecia pedir: me deixem assim, me

deixem assim. Irmã G É sempre muito difícil a gente se limpar. Irmã H Mas não era eu que me limpava.

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Irmã G Mas é sempre muito difícil. Muito. Todas

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Por quê? Irmã G Porque é inútil querer desfazer-se de todas as culpas. Irmã H Não fale assim. Irmã G Não é preciso carregá-las... sempre. É como alguém que está

habituado a cada dia com seu feixe de lenha sobre os ombros. experimente tirar. Esse alguém andará sempre curvado.

Irmã B Nada disso é verdade. Ela não tem memória. Irmã C Ela só tem fome. Vocês não vêem? Irmã A (Voz baixa) Ela já está aqui há quinhentos anos. Irmã G Eu sempre estive aqui. E sempre tive essa fome. Irmã I (Rindo) Ela tem bons ouvidos. (Todas riem) Irmã G Eu vi muitas iguais a vocês. Algumas... se tocavam, assim, assim,

como se fosse possível descobrir pelo tato as invasões do tempo. E outras choravam. Uma chegou a dizer: eu vou matar esse meu corpo que só conhece a treva. E por aqui, no pescoço, ela ficou negra.

Irmã H Por quê? Irmã G Porque ela quis conhecer o seu próprio desgosto. E é sempre aqui

(passa a mão no pescoço) nessa faixa do medo que a palavra tenta explicar-se e sair.

Irmã I Ela falava? Irmã G Falava e chorava muito. Aqui na capela ela discursava. E tudo o que

ela falou eu agora tento engolir. Irmã C Como é difícil entender o que ela diz. (Ouve-se um ruído) O que é? Irmã I Você também ouviu? Irmã G Talvez seja um rato.

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Irmã A Não é ninguém. Irmã H (Dirigindo-se à janela) Eu não entendo porque temos tanto medo que

ela venha até aqui. Da janela podemos ver o que se passa lá , perto do muro... olhem... ela já está lá! E conversa com a Irmã D.

Irmã A Com a Irmãzinha que matou o gato? Irmã B (Dirigindo-se à janela) É mesmo! O que será que elas dizem? Luz violenta sobre a Superiora e a Irmã D, ??? junto à cerca. Superiora (Para a Irmã D) Você fez bem em matá-lo. Ele movia-se com muita

liberdade. Mas eu nunca posso dizer essas coisas diante das outras. Irmã D Elas têm esperança. E a eterna vontade de falar sempre neles. Superiora Que estória... A noite toda passam acordadas por causa disso. Estão

na capela como todas as noites e imaginam que eu não sei. (Olha para cima, para a capela. As outras afastam-se da janela rapidamente. Superiora e Irmã D somem)

Irmã I Será que vocês viram? Irmã C Nem pense nisso. Elas só pensam em tomar conta do muro. Irmã H A Irmã D também? Irmã I Não. Irmã A Não. Irmã B Não. Irmã C Sim, a Irmã D também. Vocês não estão vendo? Vocês não sabiam? Irmãs H, I, A, B O quê? Irmã C Que ela também toma conta do muro?

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Irmã H, I, A, B Mas por quê? (Indo à janela novamente) Irmã C Porque ela matou o gato! Irmã H Que estranho. O que tem uma coisa a ver com a outra? Irmã G Não é nada estranho. Uma matou o gato, a outra nos sufoca até...

até... Em breve, serão cúmplices. Então. (Todas voltam à jane la, menos a Irmã G)

Luz violenta ???junto à cerca e sobre a Superiora e a Irmã D. Superiora Ainda que elas consigam tocar o muro, não adianta. Irmã D Ainda que existam ótimas fotografias... deles. Superiora E relatórios. Irmã D E monografias. Superiora E estatísticas convincentes. Irmã D Auditórios repletos. Superiora Conferências. Irmã D Pesquisas. Superiora Trocas. Irmã D De órgãos vitais. Superiora Substanciosas. Irmã D (Apontando a cabeça) O tálamo, o hipotálamo. Superiora Devassado. Irmã D Compreendido. Superiora (Aponta a cabeça) A zona do silêncio.

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Irmã D Distendida, dissecada. Superiora Aproveitada. Irmã D Em mil tarefas exatas... Superiora Ainda assim. Irmã D Não adiantaria... Superiora Um outro muro maior se ergueria. (Somem) Irmã G Olhe um rato. Irmã H Onde? Irmã G Lá, lá... agora escondeu-se. (Pausa) Dizem que o rato tem dois tons. Irmã A Dois tons? Como é isso? Irmã G Um é sobre a pele, escuro e modulado. conforme suas heranças e seu

patriarcado. Irmã H Às vezes é branco. Irmã I Ah, isso é raro. Irmã G Mas nem tanto... Se a senhora quiser ver um rato branco, procure na

limpeza. Homens do mesmo tom descobrem as suas vísceras com tais delicadezas, que é preciso parar para espiar tanta pesquisa e sutileza..

Irmã B Então é o rato que ajuda o homem a ser mais homem? Irmã C Ou menos realeza. (Pausa) Irmã H (Pensando) O rato tem dois tons? Irmã G Um outro mais fundo: uma ânsia de ser vertical e agudo. A senhora

nunca viu um rato sobre o muro... naquela pedra lisa?

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Irmã I Não... mas talvez fosse porque havia o gato. Irmã G Nem por isso... E se o rato chegasse até lá, na manhã ou no escuro,

não poderia libertar-se? Irmã A De qualquer forma, não seria sempre um rato? Irmã G Seria um rato sobre um muro. Olhando para o alto pode ver o mais

fundo. Irmã C E olhando para baixo. Irmã G Você quer dizer para dentro de si mesmo? Irmã C Assim como eu tenho feito sempre. Irmã G Pode ver sangue. Mas no alto, saberá resistir. Irmã B (Repensando) De qualquer forma, ser rato é: primeiro, sendo branco,

ficar entre as tramas de alguns homens de branco. Irmã H Segundo: ser escuro e modulado conforme suas heranças e seu

patriarcado, mas tentar subir, subir sempre. (Sorrindo) Imaginar que é homem e nunca desistir.

Irmãs I, A, B, C (Fazendo um gesto vertical, com a mão distendida) Assim? Irmã G Sem limites. Irmã I (Na janela) Devíamos ter pensado nisso antes. Muito antes. Irmã A No quê? No rato? Irmã I Não. Em olhar pela janela e sossegar. Tivemos tanto sobressalto

quando era tão simples olhar. Irmã G Parece simples... parece simples. Irmã H (Olhando o anjo) Eles eram quase assim. Irmã G Mas de hálito luminoso.

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Irmã A Como uma corda. Irmã B E tocaram o muro. Irmã G E moviam os lábios. Irmã C E sangravam. Entra a Irmã F, vagarosamente. Irmã F Fiquei sozinha durante muito tempo. Irmã A E por que não veio antes? Você sabe que nós estamos sempre aqui. Irmã F Fiquei olhando o pássaro que pousou na janela. Irmã I Mas até agora? Irmã F Sim. Irmã B Não pode ser. Já é tão tarde. Irmã F Ele está sempre lá. Vocês é que não vêem. Irmã C Mas não foi só hoje que você confessou esses culpa? Irmã F Só hoje? Imagine! Eu digo isso todos os dias. Vocês é que não me

ouvem. Irmã G Mas isso pode ser? Será assim? Todas juntas Não, não pode ser. Irmã H Só hoje é que você confessou. Todas juntas O dia foi tão longo. Fiquei olhando o pássaro que pousou na janela.

Tive vontade de ser. Irmã F Nós nunca nos ouvimos... nunca. Porque sempre pensamos... neles.

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Teatro reunido Hilda Hilst 344

Irmã C Neles... e no rato.

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Irmã F Um rato esteve aqui? Irmã B Esteve mas não deixou vestígios. Irmã A E nós deixaremos algum vestígio, um dia? Irmã H Deixaremos uma testemunha? Irmã G (Deixando de comer pela primeira vez) Sim, esta: a cruz. (Pausa)

Sabem o que Ele disse um pouco antes de ser crucificado? Todas juntas “Ó sagrada cruz! Ergue-me a ti, sagrada cruz. Eles hão de me

crucificar sobre ti e tu serás a minha testemunha. Toma-me. Não chores, mas alegra-te. Tu levarás a coroa do meu reino.”

Entram a Irmã Superiora e a Irmã D, carregando um pequeno caixão como de uma criança. Branco. Todas juntas Oh! Superiora Ela matou-se. Não tinha mais para quem dar o seu pão e o seu leite. Irmã H Mas ela está aí? Nesse caixãozinho? Superiora Ela era uma mulher-criança. E as mulheres-crianças ficam deste

tamanho quando morrem. Irmã A E ainda existe alguém que se mata por causa de um gato? Que se

mata? Superiora Evidente, se ela está morta. Irmã C E não seria por outra coisa? Talvez pelas próprias culpas? Pelas

próprias culpas? Irmã H (Em aflição) Não fale assim, não fale assim, meu Deus, nós temos que

chegar até o muro. (Vai até a janela) Olhem, olhem aquela ferida enorme nas montanhas de pedra... Tudo isso não deve ser em vão. Ninguém arranca as vísceras de uma montanha por nada.

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Hilda Hilst A empresa (A possessa) 346

Irmã I Mas se arrancam as vísceras do rato, porque não arrancariam as da pedra?

Superiora (Para a Irmã D) Eu não disse que elas ficam patéticas diante da

morte? Irmã H (Com firmeza) Nós queremos chegar até o muro. Superiora Vocês sabem que é impossível. Irmã D É inútil, é inútil. Todas (menos a Irmã G e Irmã D) Por quê? Superiora Porque sempre foi assim. Irmã D Sempre. Irmã B Não é verdade o que elas dizem. Nós podíamos quase encostar no

muro, na hora da meditação e da leitura. Não é verdade? Superiora É verdade somente nessa hora. Mas assim mesmo vocês nunca

chegaram muito perto. Por quê? Irmã B Não sei... Irmã H Vocês sabem? Irmã A Eu não. Irmã C Eu também não sei. Irmã F Nem eu. Irmã D (Ri altíssimo) Elas nem sabem o que querem. Chegaram tão perto... Superiora É porque o muro parece tão irreal agora que vocês o desejam. Irmã H A senhora quer nos confundir.

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Hilda Hilst A empresa (A possessa) 347

Irmã G Nós nos confundimos sempre. Irmã C (Referindo-se à Superiora) Só quando ela está por perto. Temos

medo. Superiora Vocês têm medo de mim? Irmã F Mas aos poucos perderemos. Superiora Vocês têm medo é disto. (Aponta o caixão) Irmã I Imagine, eu posso até tocá-lo. Irmã A Eu também. E vocês? Irmã B, C e F Nós não temos medo. (Tocam o caixão) Pronto. Irmã H Nem temos medo... deles. Superiora Deles, quem? Irmã H A senhora sabe muito bem. Os seres. Superiora Os estrangeiros? Irmã I Os que vieram na noite. Superiora Cada uma de vocês pensará sempre nessa possibilidade. Irmã H Que possibilidade? Superiora De chegar até o muro. Irmã A De subi-lo. Irmã B Transpô-lo. Irmã C Ver mais adiante. Irmã D É inútil. É inútil.

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Hilda Hilst A empresa (A possessa) 348

Irmã F (Vibra as mãos como se fossem asas, cada vez mais alto) Como um pássaro... como um pássaro! Irmã H É preciso que nós façamos tudo na noite. A noite á sempre melhor

para essas empresas. Irmã I (Olhando pela janela) Lua... baça. Irmã H (Em aflição) O quê? Irmã I Lua... baça. Irmã H (Indo rapidamente até a janela) Apenas uma névoa. Vamos. Superiora E se eu disser a vocês que isso é impossível? Irmã B Nós temos força. Somos em maior número. Irmã A Todos esses ritos, todos os dias... sempre na sombra. Irmã C E eu estou cansada de sangrar. Irmã F Como um pássaro... como um pássaro! Irmã G Eu não me canso de comer. É uma coisa do ventre. É doença. Superiora É culpa. (Todas voltam-se para a Superiora) Irmãs A, B, C e F (Vagarosamente) Tan tás, tan tás, tan tás... Superiora E de que espécie? Irmãs A, B, C e F (Tom cantante. Tensão. Destacando as sílabas) Múltiplas. (Irmã H

desespera-se, faz gestos para que não continuem) Superiora (Tom crescente) De A a I? Irmãs A, B, C e F (Tom cantante, crescente. Tensão) Ai... sim... AAAAíííí... A... í.

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Hilda Hilst A empresa (A possessa) 349

Irmã H Parem! Parem! Vocês não vêem que ela está tentando nos deixar sem resposta? Que quando ela fala na culpa nós pensamos no tempo? E que diante dela nós nos comportamos como um brinquedo de corda? Que estamos fartas de ficar diante da morte e da renúncia?

Irmã G Olhe o rato? (não entendi o porquê da interrogação????) Superiora (Para a Irmã H. Severa) O rato é você. Que deseja subir e ver. (Tom

crescente, procurando tensão) Irmã D No entanto, no entanto. Superiora Ainda que tu subisses... Irmã D Aquela pedra lisa... Superiora E assistisses... Irmã D O mais fundo, o mais alegre. Superiora O mais triste. Irmã D Ainda que tocasses... Superiora Aquela pedra rara... Irmã D E deixasses o vestígio... Superiora De uma mancha... Irmã D Escura ou clara. Superiora e Irmã D Ainda... Ainda. Superiora Não seria suficiente... Irmã D Para o teu desejo de ser mais. Superiora E mais, e mais... (Apontando a Irmã G) como a tua vontade enorme

de comer!

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Hilda Hilst A empresa (A possessa) 350

Irmã G (Tom cantante) Oh, Senhor de todas as nossas culpas, entristecei-

vos. Superiora Hein? Como disseram? Irmã H Não respondam, por favor, não respondam! Todas (menos a Irmã H) (Tom agudo) Alegrai-vos, para que nós não nos esqueçamos de

todas as nossas culpas. Irmã H Parem pelo amor de Deus, parem! Superiora São muitas? Todas juntas (menos a Irmã H) (Tom cantante) Muitíssimas... Superiora Quantas? Irmã H Não, não continuem! (Repetindo “PAREM”, até a exaustão) Todas (Diversos tons) Tan tás, tan tás, tan tás, tan tás. Irmã H aproxima-se da Irmã I, agarra-a sempre repetindo “PAREM”. Rola pelo chão. F I M