Teatro de Grupo e a noção de coletivo creativo

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Texto de André Acrreira sobre o Teatro de Grupo no Brasil. Publicado no portal ABRACE, 2010.

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    Teatro de grupo e a noo de coletivo criativo Andr Carreira Professor Adjunto e Pesquisador CNPq Doutorado em Teatro Universidad de Buenos Aires Argentina. Departamento de Artes Cnicas. Programa de Ps-Graduao em Teatro UDESC Palavras chave: grupalidade; processos de criao; teatro brasileiro

    A reflexo que este trabalho apresenta se relaciona com as experincias

    dos grupos surgidos nos anos 80 e 90, quando o movimento de grupos experimentou

    um incremento significativo. Durante a redemocratizao do final do sculo XX, se

    estabeleceu um campo especfico dos grupos dentro do fazer teatral nacional. Isso

    encontra semelhanas com movimentos teatrais na Amrica Latina, mas se

    particulariza pela penetrao ampla em todo territrio nacional, e pelo dilogo intenso

    entre centro e periferia.

    A partir dos anos 80, a expresso teatro de grupo passou a fazer parte do

    vocabulrio teatral brasileiro, e uma dcada depois, se fez uma noo comum que

    est vinculada, principalmente, a modelos alternativos de produo teatral. Essa ideia

    de fala alternativa pode ser discutida se consideramos em detalhe as variadas formas

    de trabalho, e suas relaes com os instrumentos de financiamento. No seio do

    movimento de teatro de grupo existem organizaes que se estruturam segundo os

    princpios tradicionais dos grupos cooperativados, bem como grupos que esto bem

    prximos das operaes comerciais das empresas teatrais que caracterizam a vida

    teatral do pas, e ainda h aqueles que se assemelham a empresas familiares.

    O estudo dos grupos faz visvel que ideia de que o teatro de grupo, em sua

    totalidade, se oponha aos modelos mais empresariais de produo no se verifica na

    realidade. As estruturas de trabalho identificadas entre os grupos podem se

    assemelhar a empresas antes que ao antigo modelo do grupo amador, ou semi

    amador dos anos 60. Essa diversidade de formas no , no entanto, obstculo para

    que possa ver o teatro de grupo como um fenmeno relacionado com a criao de

    um campo alternativo da cena nacional, dado que sob essa nomenclatura se renem

    coletivos que tm impulsionado a criao de um espao para um teatro que se realiza

    buscando independncia com relao aos principais fenmenos do mercado do

    entretenimento.

    O movimento dos grupos multifactico, e tem amplitude nacional, ainda

    que se trate de um movimento informal que apresenta elementos que so comuns a

    grupos das mais diferentes regies do pas. Coletivos de ambientes teatrais to

    distintos como Acre, So Paulo e Sergipe, se sentem parte de um fenmeno que

    reconhecido como alternativo.

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    A percepo do teatro de grupos como prtica alternativa pode ser

    relacionada com o paradigma militante que predominou nos 60 e 70. Os modelos de

    grupos como o Teatro de Arena e o Oficina, e os mitos construdos ao redor dessas

    experincias, sustentaram o processo de organizao de coletivos ao longo da dcada

    de 80. No entanto, o perodo da redemocratizao foi marcado pela crise desses

    modelos no que diz respeito presena do projeto militante como eixo da organizao

    coletiva. Articularam-se no incio dos 90 novos modelos de trabalho grupal que

    apresentaram uma clara preocupao com a sobrevivncia dos membros, e um foco

    vinculado produo de novas estticas.

    O vigor militante que resistia ditadura, aliando-se populaes carentes

    nos bairros (ver GARCIA, Silvana), ou associando-se com movimentos de resistncia

    da classe mdia como o movimento estudantil ou dos intelectuais, deu lugar a uma

    gerao que precisava redefinir seu teatro. Estes jovens artistas necessitavam saber

    que teatro permitia um dilogo com as inquietaes de seu tempo.

    Dois exemplos marcam esse processo de transio. No Sul, o i Nis Aqui

    Traveiz e o Galpo em Minas Gerais. Ambos os grupos tiveram no seu incio alguma

    relao com as mobilizaes que marcaram o final dos anos 70 e incio dos 80. Mas a

    participao desses coletivos em passeatas e atos estudantis e sindicais, no

    constituiu o eixo de seus respectivos projetos.

    Como representantes dessa nova gerao de grupos que, aparentemente,

    carecia de modelos de trabalho atorial, os coletivos dirigiram sua ateno para a

    experimentao. Os processos de pesquisa de linguagem foram acompanhados pela

    reivindicao do lugar do coletivo como espao de criao. Antes que mbito de

    mobilizao, o grupo foi percebido como instrumento que impulsionaria um tipo

    especfico de processo criativo. Observa-se uma tendncia a trabalhar a partir da

    noo de grupalidade, fazendo com que o grupo, como estrutura organizativa

    geradora do trabalho criativo, constitusse o elemento central do processo. A conquista

    da sede representa tambm um contraponto com a experincia dos 60/70, pois se

    antes as sedes estavam muito relacionadas com a possibilidade de poder estabelecer

    relaes com as comunidades dos bairros e como os movimentos sociais. A partir dos

    anos 90, ter uma sede passou a ser fundamental, pois esta estava destinada a ser o

    espao de treinamento, reunio e administrao a partir do qual os grupos articulam

    seus projetos espetaculares e pedaggicos.

    A sede se define ento como Lugar (AUG) a partir do qual o grupo se

    funda cotidianamente como unidade criativa. Lugar porque a sede considerada como

    um espao histrico onde se constri identidades, o que se coaduna estreitamente

    como o mandato coletivo de construir zonas simblicas alternas aos procedimentos

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    impessoais da mercadoria. A sede representa um lugar de referncia e espao poltico

    que os grupos reivindicam como instrumento para impulsionar a prpria sobrevivncia

    do coletivo. Note-se que nem sempre a sede um teatro, isto , um local de

    apresentaes. Uma das funes mais destacadas para as sedes a realizao de

    trabalhos pedaggicos. A oferta de oficinas e sesses de treinamento ocupam muito

    tempo nos cronogramas das sedes, o que est relacionado com as aes de gerao

    de renda por meio de projetos para editais pblicos. O uso das sedes tambm se

    relaciona adoo de polticas de contra partidas exigidas em muitos editais pblicos.

    Assim, ter uma sede implica em poder oferecer uma eventual oficina para um pblico

    carente, ou abrir a sede como espao para a comunidade para projetos sociais

    consorciados com o fazer artstico.

    Uma caracterstica que ajuda a compreender esse processo a definitiva

    introduo da noo do treinamento do ator como ferramenta do processo criativo.

    Observa-se um deslocamento no tratamento do trabalho do ator desde uma

    perspectiva funcional dentro dos processos de criao, para uma operao estrutural.

    Se antes os grupos quando muito buscavam formar um ator a partir de seminrios e

    cursos, no final do sculo XX, a formao do ator passa a ser uma prtica axial que

    funciona dando forma aos prprios grupos. Neste processo dois fatos so importantes:

    a necessidade dos coletivos inventarem novas poticas, uma vez que o perodo da

    redemocratizao impe a tarefa de readequao a uma nova situao poltica e

    cultural; comea a funcionar entre os criadores a percepo de que a estruturao de

    projetos teatrais consistentes nasce dos modelos de atores escolhidos.

    Certamente estes elementos no so originais dos anos 80, podemos

    perceb-los em experincias que ressoaram no Brasil o teatro grotowskiano nos 70,

    No entanto, no foi antes do ciclo dos grupos nos 80 que isso tomou forma estrutural

    nas prticas e discursos dos grupos. O aparecimento de grupos cujos trabalhos

    nascem da reunio de atores que buscam uma forma de fazer teatro, como o caso

    do j citado Galpo, ou do Lume (Campinas), ajuda a compreender essas dinmicas

    que colocam o discurso cnico no centro das preocupaes coletivas.

    As estruturas de trabalho sofreram mudanas decorrentes dessa

    necessidade de pesquisar o trabalho do ator, e de se fazer disso o elemento de

    impulso da organizao coletiva. A instalao de procedimentos de aprendizagem de

    novas tcnicas abriu espao para a instalao de prticas de treinamento. Neste

    sentido interessante destacar o fato que houve uma influncia de propostas de

    grupos e artistas europeus que deve ser reconhecida como elemento chave nas

    transformaes experimentadas pelos grupos nacionais. Ainda considerando o Lume e

    o Galpo, vemos como o contato com diretores e experincias do teatro de coletivos

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    da Europa ambas as agrupaes, consideraram importante a introduo de

    treinamento coletivo para a construo do projeto de grupo.

    Estes dois grupos, alm do i Nis, podem ser considerados como

    exemplares, pois tm funcionado como referncias para muitos coletivos no pas, e

    so responsveis por iniciativas pedaggicas sistemticas ao redor das quais se

    encontram um grande nmero de artistas. O Lume com suas oficinas do ms de

    fevereiro, o Galpo com o Oficino, e o i Nis com sua Escola de um teatro popular,

    tm contribudo com a formulao do prprio movimento e conceito de teatro de grupo.

    As aes pedaggicas de coletivos que tm uma presena destacada em seus

    ambientes regionais funcionam como plos de formao de atores, constituindo um

    esforo paralelo s aes institucionais. Isso se observa no Nordeste do pas com o

    Imbuaa (Macei), o Clowns de Shakespeare (Natal), e a Escola do Piolim (Joo

    Pessoa).

    Isso nos permite uma aproximao com o projeto dos seminrios do Teatro

    de Arena nos anos 60, quando o grupo tratou de abrir um espao de formao com o

    objetivo tanto de formar novos autores como de construir uma dramaturgia nacional.

    Este projeto pode ser considerado um exemplo de gerao de poltica a partir de

    grupos independentes.

    No final do sculo XX o teatro de grupo ganhou um destaque na vida

    cultural atravs de aes polticas relacionadas com as polticas publicas para as

    artes, e isso esteve associado a uma intensificao nos processos de criao com a

    formulao de modelos e procedimentos de trabalho com o ator. A produo de

    dramaturgia tambm ocupou a ateno daqueles que buscaram a forma dos coletivos

    teatrais. Uma visitao plataforma da criao coletiva combinada com o foco no ator

    como protagonista da construo cnica gerou os processos colaborativos que

    caracterizaram diversos grupos brasileiros.

    Referncias

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