Tanto mar: construção trocada em miúdos, por Elisa Campos de Quadros

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Tanto mar: construção trocada em miúdos 1 Profª Elisa Campos de Quadros 2 “Se, de repente, A gente se distraísse O ferro do suplício Ao som de uma canção”. (Fantasia – Chico Buarque) A música não é só forma de conhecimento ou reconhecimento do mundo, mas também de atuação sobre o mundo. A ideia de que ela exerce uma influência – e poderosa sobre o homem – sempre existiu. Seu papel é decisivo nas sociedades primitivas em que a arte tem uma atuação mágico-propiciatória, participando de todos os rituais de sociabilização. À poesia podemos atribuir a mesma importância. Tanto Platão quanto Aristóteles discutem, em várias de suas obras, os efeitos morais da música e da poesia. Essas artes sempre despertaram o interesse de filósofos, críticos e criadores que as relacionaram, interrogando-lhes as correspondências genéticas e, em muitos momentos, voltaram a conjugá-las, não só no sentido de usar efeitos sonoros do texto como recursos musicais, como no de propor também correlação semântica entre texto e música. A história da música popular brasileira é pródiga em exemplos da simbiose altamente produtiva que gera a figura do poeta-músico. Especialmente na década de 60, tivemos no Brasil um importante momento de variadas tendências de transformação e criação nessa parceria da música com a poesia. A canção de protesto é uma das vertentes mais férteis desses veios múltiplos que se configuraram então, e que atraiu muitos e expressivos talentos para a sua modalidade. Em Chico Buarque de Holanda, vamos encontrar uma das adesões mais significativas a essa música que tinha como escopo uma leitura crítica da situação do país. Participante da vida universitária como estudante de arquitetura e com uma vivência familiar altamente intelectualizada, construiu textos poético-musicais extremamente elaborados. Teve uma projeção rápida e ampla com o engajamento nos festivais de música popular, que mobilizaram jovens de todo o país na época. A eficácia e a eficiência da música participativa de Chico se torna voz de resistência a partir da década de 70. Sua aceitação popular se transforma em perigo para o regime estabelecido. Assim, suas músicas passam a ser alvo da ferrenha atuação da censura que vetava duas em cada 1 Artigo originalmente publicado in Fragmenta. Curitiba: UFPR, n. 7, 1990. p. 47-75. A presente versão traz atualizações em relação ao Acordo Ortográfico de 1990 e à NBR 14724, que rege trabalhos acadêmicos no Brasil. 2 Bolsista da CAPES.

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Artigo originalmente publicado por Elisa Campos de Quadros na revista Fragmenta, da UFPR, sobre a canção "Tanto mar", de Chico Buarque.

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Tanto mar: construção trocada em miúdos1

Profª Elisa Campos de Quadros2

“Se, de repente, A gente se distraísse O ferro do suplício Ao som de uma canção”. (Fantasia – Chico Buarque)

A música não é só forma de conhecimento ou reconhecimento do mundo, mas

também de atuação sobre o mundo. A ideia de que ela exerce uma influência – e poderosa sobre

o homem – sempre existiu. Seu papel é decisivo nas sociedades primitivas em que a arte tem uma

atuação mágico-propiciatória, participando de todos os rituais de sociabilização.

À poesia podemos atribuir a mesma importância. Tanto Platão quanto Aristóteles

discutem, em várias de suas obras, os efeitos morais da música e da poesia. Essas artes sempre

despertaram o interesse de filósofos, críticos e criadores que as relacionaram, interrogando-lhes as

correspondências genéticas e, em muitos momentos, voltaram a conjugá-las, não só no sentido de

usar efeitos sonoros do texto como recursos musicais, como no de propor também correlação

semântica entre texto e música.

A história da música popular brasileira é pródiga em exemplos da simbiose altamente

produtiva que gera a figura do poeta-músico. Especialmente na década de 60, tivemos no Brasil

um importante momento de variadas tendências de transformação e criação nessa parceria da

música com a poesia. A canção de protesto é uma das vertentes mais férteis desses veios

múltiplos que se configuraram então, e que atraiu muitos e expressivos talentos para a sua

modalidade.

Em Chico Buarque de Holanda, vamos encontrar uma das adesões mais significativas

a essa música que tinha como escopo uma leitura crítica da situação do país. Participante da vida

universitária como estudante de arquitetura e com uma vivência familiar altamente

intelectualizada, construiu textos poético-musicais extremamente elaborados. Teve uma projeção

rápida e ampla com o engajamento nos festivais de música popular, que mobilizaram jovens de

todo o país na época.

A eficácia e a eficiência da música participativa de Chico se torna voz de resistência a

partir da década de 70. Sua aceitação popular se transforma em perigo para o regime estabelecido.

Assim, suas músicas passam a ser alvo da ferrenha atuação da censura que vetava duas em cada

1 Artigo originalmente publicado in Fragmenta. Curitiba: UFPR, n. 7, 1990. p. 47-75. A presente versão traz atualizações em relação ao Acordo Ortográfico de 1990 e à NBR 14724, que rege trabalhos acadêmicos no Brasil. 2 Bolsista da CAPES.

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três que compunha. O Brasil vivia, ainda naquele momento, como estratégia cultural, a política

de supressão: AI nº 5, a apreensão de livros, discos e revistas; a proibição de filmes e peças;

enfim, uma censura rígida. Nessa situação, a arte não dialoga com a realidade, mas com a censura.

A alternativa para o criador é desenvolver uma linguagem estética da malandragem, que possa

pronunciar alegoricamente o que a censura procura silenciar.

Esse é o caso da música “Tanto mar” que Chico compõe em homenagem à

Revolução Portuguesa de 1974 e que foi cantada em show com Maria Bethânia em 1975. Por

apresentar uma referencialidade de louvor à revolução bastante explícita, a música é censurada e

aparece no disco do show apenas orquestrada. Com letra modificada, reaparece em 1978, no

disco Chico Buarque. O caráter mais cifrado do novo texto representa a astúcia do artista que,

mesmo em face da censura, leva adiante seu compromisso de expressão. Trata-se de uma

composição com particularidades curiosas e com uma extraordinária conjunção de letra e música,

que vale a pena ser analisada.

Tanto mar (versão 1975)

Sei que estás em festa, pá

Fico contente

E enquanto estou ausente

Guarda um cravo para mim

Eu queria estar na festa, pá

Com a tua gente

E colher pessoalmente

Uma flor do teu jardim

Sei que há léguas a nos separar

Tanto mar, tanto mar

Sei também quanto é preciso, pá

Navegar, navegar

Lá faz primavera, pá

Cá estou doente

Manda urgentemente

Algum cheirinho de alecrim

Tanto mar (versão 1978)

Foi bonita a festa, pá

Fiquei contente

E inda guardo, renitente

Um velho cravo para mim

Já murcharam tua festa, pá

Mas certamente

Esqueceram uma semente

Nalgum canto do jardim

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Sei que há léguas a nos separar

Tanto mar, tanto mar

Sei também quanto é preciso, pá

Navegar, navegar

Canta a primavera, pá

Cá estou carente

Manda novamente

Algum cheirinho de alecrim

Distanciado do evento, o texto de 1978 exigiu modificações, porque a canção de

protesto tem um caráter histórico bem datado. Essas modificações deram uma feição de alegoria

política muito mais marcante ao texto, que se tornou mais elaborado esteticamente. Nossa análise

se fará fundamentalmente sobre esta versão.

Todo o artifício de composição poemática desse texto se funda em duas imagens:

festa e mar. Um acontecimento e um espaço. Essas imagens vão sendo desdobradas em

elementos correlatos ao longo de 4 segmentos, correspondendo às 4 estrofes em que se organiza

o poema transformando-o num caleidoscópio de sentidos que se interrelacionam em múltiplas

(incontáveis) possibilidades de leitura.

O acontecimento – festa – constitui o incipit 3 do texto. É enunciado nos dois

primeiros segmentos que trazem entre si uma relação de sequencialidade causal e temporal. No

terceiro segmento, há uma ruptura narrativa, e a relação com os segmentos anteriores é mantida

apenas pela permanência de um receptor anteriormente anunciado e com quem ou “eu” poético

dialoga. Aqui é situado o espaço – mar. Espaço intermediário, em cujos extremos se encontram,

como antípodas, os dois interlocutores. O quarto segmento contém a intencionalidade do

emissor: transportar o acontecimento do espaço do receptor para o seu próprio espaço.

A festa, apresentada no verso inicial, é, no terceiro verso do primeiro segmento,

metonimicamente referenciada por cravo e, a partir de então, temos um intenso jogo metonímico

que desencadeia um arsenal imagético de base vegetal: murchar, semente, jardim, primavera e alecrim.

Murchar, que, no segundo segmento, é o desdobramento negativo de festa e que se

entrecruza semanticamente com cravo, é uma etapa natural do ciclo vegetativo. Assim, esse caráter

degenerativo apresenta uma negatividade reversível, porque, quando murcha, a flor deixa como

consequência a semente. Na semente está prometida a flor e a festa. A continuidade do jardim

fica praticamente garantida pela semente esquecida em algum canto. Basta que haja condições

favoráveis e a semente eclodirá, como no mito dionisíaco em que deus renasce na primavera.

3 Na sociocrítica, o incipit é um fragmento do início de um texto em que são supostas revelar-se as condições de legibilidade desse texto. O explicit seria o fragmento final do texto, constituindo juntamente com o incipit uma particularidade dos sistemas modelizantes secundários (como os sistemas artísticos).

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Num aprofundamento de análise, buscando a referencialidade dessa metáfora mítico-

vegetativa, percebemos que ela está relacionada a uma circunstância histórico-política de

Portugal: a Revolução dos Cravos que em 1974 derrubou a ditadura salazarista.

Sem que em nenhum momento seja explicitada a palavra revolução ou mencionado o

nome de Portugal, o compositor vai, ao longo do texto, lançando uma teia de indícios que

constroem o motivo poemático. A revolução é metonimicamente revelada pelo seu efeito festa e,

ainda, por seu símbolo cravo. A primavera é mais um indício que aponta para a época da revolução,

25 de abril, tempo de primavera e de revoluções na Europa. É oportuno relembrar que esta

revolução que está sendo louvada por uma música, teve como senha desencadeadora da ação

revolucionária outra música: Grândola; Vila morena. O tema da música-senha gira em torno de

Grândola, espaço paradisíaco, “terra da felicidade”.

Portugal é referido por uma série de sutis indicações: pá, mar, alecrim, jardim. Pá! é uma

interjeição que identifica linguisticamente Portugal. Mar representa o espaço contíguo à terra

portuguesa, está íntima e estreitamente ligado à história de Portugal, principalmente a partir dos

descobrimentos marítimos: “Ó mar salgado, quanto de teu sal / São lágrimas de Portugal!”4.

Encravado entre o mar e a “Estremadura” espanhola, a mirada de Portugal teve que

inevitavelmente se fazer para o ocidente, vencendo o mar, transformando-se no “Império que

nasceu no mar”5. Ao motivo mar do texto estão vinculadas palavras como léguas (medida

marítima) e navegar. Além disso tudo, Portugal é conhecido como “o jardim da Europa à beira-

mar plantado”. Daí a felicidade da utilização dos motivos vegetais que, reiteradamente, aparecem

no texto. Aliados a jardim sugerem uma certa ordem ideal, harmoniosa. Por outro lado, alecrim

está ligado ao culto que cada grupo social faz à natureza, atribuindo poderes místicos a certos

vegetais. O alecrim é, em Portugal, considerado uma planta que só nasce nos jardins dos justos.

Também é símbolo do amor, da fidelidade e da felicidade. Colocado sobre brasas, serve para

desinfetar o ambiente dos maus cheiros e, principalmente, dos maus fluidos.

As escolhas léxicas, que a montagem dessa bela alegoria exigiu, fazem apelo a quatro

operações fundamentais: isolar, articular, ordenar e teatralizar. Nossa análise veio até aqui

tentando isolar alguns elementos, articulando-os e ordenando-os para melhor manifestar a planta

baixa do texto. Queremos agora estudar a operação de teatralização que se realiza. Um “eu”

poético relata um fato passado – a festa – e os desdobramentos desse fato. A seguir, é

mencionada a relação emocional que o “eu” poético tem com o acontecimento – “fiquei

contente”.

4 PESSOA, Fernando. Mar português. In: _____, Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1977, p. 82. 5 PAES, José Paulo. Um por todos. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 145.

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Surge, no segundo segmento, a figura do destinatário que, em verdade, é o agente do

evento anteriormente anunciado: “Já murcharam tua festa”. O resultado da festa ficou aquém do

projeto. O sonho revolucionário estava além do que há presentemente, mas, a qualquer

momento, pode realizar-se em plenitude.

No terceiro segmento, o “eu” poético relaciona sua própria condição com a do “tu”

do segmento anterior: “sei que há léguas a nos separar”. A consciência dessa condição é enfatizada

anaforicamente pelo verso: “Sei também quanto é preciso...”. A realidade em que se encontra o

emissor da mensagem poética está a léguas de distância das conquistas obtidas na festa que está

sendo comentada.

No último segmento, há uma radical mudança de tom e a voz do “eu” poético passa

a ser de comando, como uma ordem ou súplica: “Canta a primavera”, “Manda novamente...”. Em

“canta a primavera”, desenvolve-se a ideia do poder do canto, elemento demiúrgico capaz de

fazer a primavera, fazer brotar a semente. Aí condensam-se dois significados metamusicais: a

primavera sendo cantada e a primavera cantando. Nos dois casos, um enfático apelo à vinda de

um tempo novo para alterar um espaço de carência: “Cã estou carente”. O espaço de carência,

que não experimentou o gozo da festa, só se modificará em tempo de eclosão de sementes, em

tempo de fertilidade, de despertar do vigor vegetativo. E o cheirinho de alecrim é

estrategicamente o explicit do contexto, constituído por todas as conotações simbólicas que já

apresentamos e tornando-se no delicado vínculo com os ares desejados.

Junto com este texto é possível articular, em análise, dois outros de Chico Buarque:

“Sabiá”, de 1968, e “Fado tropical”, de 1973, que se acha integrado à peça Calabar. Nesses três

textos poético-musicais é notável a recorrência de um cá e um lá, que remetem à “Canção do

exílio”, de Gonçalves Dias.

“Sabiá”, o primeiro deles, é nitidamente uma “Canção do exílio”, em que cá e lá,

dêiticos espaciais, passam a ter uma significação temporal, fato que, em certa medida, também

acontece em “Tanto mar”.

Um sujeito, num tempo presente, sonha regenerar o espaço em que uma palmeira já

(agora) não há; a flor que já (agora) não dá, mas que em outro tempo foi o lugar de se “ouvir

cantar uma sabiá”. E onde o exilado sabe ser o seu universo, o seu lugar.

Adélia Bezerra de Meneses analisa magistralmente este texto em Desenho mágico: poesia

e política em Chico Buarque. Diz a autora: “O presente aqui significa o exílio – no caso, exílio interior

de quem se sente desterrado em sua própria terra”6.

6 MENESES, Adélia Bezerra de. Desenho mágico: poesia e política em Chico Buarque. São Paulo: Hucitec, 1982, p. 162.

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Em “Tanto mar”, também o “eu” poético é um exilado na própria pátria, “um

desterrado em sua terra” a solicitar uma justa equiparação com conquistas de um outro espaço.

Temos em “Fado tropical” a manifestação do desejo de implantação do modelo

cultural do “lá” (de Portugal) no espaço “cá” (do Brasil). E a mistura se constitui em algo

absolutamente insólito, porque cada elemento lusitano faz parelha com um elemento tropical,

como se pré-anuncia no título da música “Fado tropical”, que amalgama elementos

identificadores dos espaços culturais que se pretende aproximar. Assim, surgem avencas na

caatinga, alecrins no canavial, o vinho tropical, a mulata com rendas do Alentejo e mais guitarras

e sanfonas; jasmim, coqueiro e fontes, sardinhas e mandioca, o rio Amazonas correndo trás-os-

montes e numa pororoca desaguando no Tejo. Esta seria a forma de esta terra cumprir seu ideal,

tornando-se “um imenso Portugal”7.

Aí o problema da busca da identidade da nação é fundamental. A expressão colocada

na boca de Matias de Albuquerque, em dado momento da peça Calabar resume todos os

equívocos de nossa história: “O que é bom para Portugal é bom para o Brasil”.

Sérgio Buarque de Holanda sintetiza com muita propriedade a questão:

A tentativa de implantação da cultura europeia em extenso território, dotado de condições naturais, se não adversas, largamente estranhas ‘a sua tradição milenar, é, nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em consequências. Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas ideias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desconfortável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra. Podemos construir obras excelentes, enriquecer nossa humanidade de aspectos novos e imprevistos, elevar à perfeição o tipo de civilização que representamos: o certo é que todo o fruto do nosso trabalho ou de nossa preguiça parece participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e de outra paisagem.8

O desterro, o exílio a que “Tanto mar” se refere, dá-se justamente porque não se

implantam, plantam, em nosso território elementos que possam florescer na possibilidade de uma

cultura autóctone, na liberdade de ser brasileiro.

O paradoxal e irônico disto tudo é que efetivamente no século XVII, tempo em que

se passa o drama de Calabar, o Brasil copia o modelo de “Fado tropical”. No tempo em que

“Tanto mar” propõe a possibilidade do modelo português para imitação não se tem nem

cheirinho de alecrim.

A tensão que se estabelece em “Sabiá” e “Tanto mar” não é, como na “Canção do

exílio”, de Gonçalves Dias, de espaço, mas de tempo. O que se busca é um futuro que torne

isotópicos os espaços de liberdade.

7 A ideia de que Portugal deve cumprir é de Fernando Pessoa e está disseminada na “Mensagem”. 8 HOLANDA, Sérgio Buarque de apud MENESES, Adélia Bezerra de, op. cit., p. 163.

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Diferentemente de “Sabiá”, que se insere na temática do “Dia-que-virá”9 com um

tom de grande melancolia, “Tanto mar” não apresenta, na sua segunda versão, aquele valor

soteriológico de eximir o sujeito-histórico de uma responsabilidade histórica. Em “Sei que há

léguas a nos separar/Tanto mar, tanto mar,/ Sei também quanto é preciso, pá/Navegar, navegar”

também está dito o que está silenciado: “navegar é preciso; viver não é preciso”10. E nos versos

de Chico Buarque, mutatis mutandi, navegar é igual a lutar. Assim, lutar é preciso; viver não é

preciso. Configura-se o reconhecimento de que estamos longe de uma consciência política, a

léguas dela, é necessário vencer a distância. Há um incitamento a vencer a distância. Há um

incitamento a vencer o mar ideológico, que precisa ser transposto.

Trabalhadas algumas possibilidades de leitura do texto, queremos agora mostrar

como Chico Buarque fundiu com rara felicidade o componente linguístico ao componente

melódico, numa permanente correspondência que garante “eficácia e encanto” ao conjunto.

Para esse tipo de investigação, tomaremos como fundamento o estudo de Luiz Tatit

sobre a canção11.

“Tanto mar” tem uma estrutura melódica que congrega relações modais de três tipos

de persuasão: por figurativização, por paixão e por decantação.

Se pensarmos inicialmente na canção enquanto forma comunicativa, verificamos que,

além de uma modalização fazer do destinador e da modalização fazer do ouvinte, há também uma

sobremodalização. A canção de Chico, principalmente por ser de protesto, realiza uma

sobremodalização do seguinte tipo: o destinador sabe fazer e quer fazer. Essa pressão comunicativa

atua sobre o destinatário, induzindo-o a “querer fazer” e “dever fazer”. O ouvinte não só é

tomado pelo encantamento da música, querendo ouvi-la (querer fazer), mas, como se trata de um

tema político, é pressionado a dever ouvi-la (dever fazer). A tensão situa-se numa outra

modalidade: o poder fazer, daí o seu caráter alegórico. A ação da censura inibe os dois actantes da

comunicação, não permite que o destinador e o destinatário fechem diretamente o circuito de

comunicação por meio da consequente atuação.

Analisando a persuasão figurativa do texto, é possível identificá-la, na medida em que

se percebe que o diálogo entre o destinador e o ouvinte se insere em outro diálogo: no diálogo

entre o “eu” poético e um “tu” presente no texto. O ouvinte passa a ser envolvido por esse

diálogo simulado, fazendo ao mesmo tempo parte do diálogo que a canção mantém com ele.

Conforme Tatit: “A função do simulacro é imitar a locução principal, presentificando a situação.

Durante o mesmo tempo que o interlocutor fala com o interlocutário, o destinador canta para o

9 GALVÃO, Walnice Nogueira. MMPB: uma analise ideológica. In: ____, Saco de gatos. São Paulo: Duas cidades, 1976, p. 96. 10 Citação de Fernando Pessoa que introduz a Obra poética, op. cit., p. 15. 11 TATIT, Luiz. A canção-eficácia e encanto. 2 ed. São Paulo: Atual, 1987.

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destinatário ouvinte. A locução é uma só”12. Melodia e texto revelam a presença de um diálogo,

porque ganham contornos e características que muito as aproximam da entoação da fala, do

discurso oral. Nisso se instaura o valor de verdade que a persuasão figurativa produz.

Outro recurso da persuasão figurativa é a acomodação da melodia ao texto. Embora

a linha melódico seja altamente reiterativa na canção que estamos tratando, ou seja, possui uma

periodicidade muito definida, temos nos primeiros versos de cada segmento um deslocamento da

acentuação, para que esta se adapte ao texto. Por exemplo:

1º segmento: sílabas – 3; 5; 7.

2º segmento: sílabas – 3; 7; 9.

3º segmento: sílabas – 3; 7.

4º segmento: sílabas – 1; 5; 7.

Somente em um verso há o procedimento inverso em que a acentuação textual se

modifica para se acomodar à melodia:

“Sei que há léguas a nos separar”.

Separar se transforma em séparar. Esse procedimento, no entanto, mesmo

constituindo exceção, não desvincula melodia e texto. Ao contrário, reforça a ideia de diferença,

de separação, que está no texto.

Também no caso da acomodação, podemos dizer que ela se prende ao movimento

da linguagem coloquial, em que os significados o texto exigem modificação entoativas.

Da mesma forma, a presença dos dêiticos, abundantes no texto, reforça a veracidade

do “simulacro de locução”. Estes sugerem uma vinculação direta com a realidade do diálogo,

porque situam o ato elocutório e orientam o momento de comunicação.

Em “Tanto mar”, há dêiticos de vários tipos:

- dêiticos imperativos:

“Canta a primavera”

“Manda novamente...”

Nesses dêiticos está sugerida a atuação de um tu que deve ter uma atitude, porque há

necessidade de satisfazer uma carência.

- dêiticos de lugar:

“Cá estou carente”

“Sei que há léguas a nos separar”

Cá e léguas definem espacialmente a situação dos interlocutores no ambiente locutivo.

- dêiticos de tempo:

12 TATIT, Luiz, op. cit., p. 28.

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“Manda novamente”

“Inda guardo”

Além desses, os próprios verbos apresentam indicações temporais, que manifestam

uma tensão entre um passado e um presente.

- dêiticos interjetivos e exclamativos:

“Foi bonita a festa, pá”

“Tanto mar, tanto mar”

A interjeição pá caracteriza cacoetes linguísticos peculiares à fala portuguesa. Tanto

mar funciona como indicador do assombro que as dificuldades da empreitada apresentam.

Estes são alguns elementos que comprovam a persuasão figurativa do texto em que o

compositor/cantor se investe de enunciador de uma situação que tem todos os sintomas de uma

realidade que está naquele momento sendo comunicada.

A figura passional do texto se estabelece pela tensão entre a realidade em que o

destinador está (“cá estou carente”) e a situação almejada. A disposição passional, nesse caso,

decorre da ausência da modalidade poder. A emoção avulta, ainda, porque o destinador sabe (“sei

quanto é preciso, pá”) e quer, mas não pode, daí o pedido de uma intervenção externa (“canta”,

“manda”).

A modalização passional da melodia está perfeitamente conectada à modalização

passional do texto. Em quase todos os segmentos, os versos finalizam por um tom descendente,

e muitas vezes grave, que confirma a sugestão de que se terá asseverando algo.

Ainda temos a inflexão passional trazida pela mudança de andamento melódico. O

início da canção com uma melodia lenta, que mal se manifesta, encoberta pela recitação e a

instrumentação que compõe esse fundo musical, remetem uma languidez de fim de festa (“foi

bonita a festa”). A guitarra, instrumento que toma o primeiro plano nesse acompanhamento,

lembra o dedilhar dolente de uma canção portuguesa.

A partir do 4º segmento altera-se o andamento do movimento melódico, que é

acelerado, correspondendo ao estado anímico de ansiedade do “eu” poético que revela no texto o

desejo de modificar a sua condição, por meio de frases imperativas que ganham influxo

contundente. A guitarra deixa o primeiro plano e temos a presença marcante de uma flauta

acompanhada de palmas frenéticas. Na nossa concepção, o compositor faz através do arranjo

instrumental e do andamento melódico a mesma simulação de referência a dois espaços lá e cá,

que já analisamos anteriormente. O cá, representado pela vibrante flauta em aceleração melódica,

nos sugere a música andina. Assim teríamos, por essa sugestão, uma ampliação geográfica. Cá não

é só o Brasil, mas toda a América Latina carente.

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Por fim, podemos apreender, nessa composição poético-musical, uma persuasão

decantatõria que parece prevalecer sobre as demais, sem contudo eliminá-las. Os contornos

melódicos da canção não aparecem de maneira caótica, organizam-se em princípios reiterativos,

conformando uma periodicidade, um motivo. Isso permite uma certa previsibilidade de

informação sonora e permite uma leitura, que pode avançar ou recuar. O motivo melódico é o

mesmo em todas as frases introdutórias de segmento – sete notas, mas se expande em duas mais

no 2º e 3º segmentos. Interessante que aí estão versos que contêm uma certa negatividade: “Já

murcharam tua festa, pá”, “Sei que há léguas a nos separar”. Nas demais frases melódicas, o

primeiro e o segundo segmentos são quase que totalmente paralelísticos.

O terceiro segmento é absolutamente isométrico, e nisso parece enfatizar o caráter de

segurança do saber que se enuncia e, como já fizemos notar, se manifesta anaforicamente pela

repetição de sei.

No 4º segmento, a narrativa vai sendo invadida pela sonorização e o motivo

melódico vai sendo repetido aceleradamente até quase atingir um frenesi, num tipo de persuasão

decantatória que se compatibiliza com a exaltação revolucionária proposta no texto.

A utilização desse multimeios de pressividade comunicativa conjugam texto e melodia.

Temos cálculo, jogo, canção, canto, encanto, encantamento.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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