Tá na Água de Beber culto aos ancestrais na capoeira - Carlos Vinicius Frota de Albuquerque

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    T na gua de Beber: Culto aosAncestrais na Capoeira

    Carlos Vinicius Frota de Albuquerque

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEAR

    CENTRO DE HUMANIDADES

    DEPARTAMENTO DE CINCIAS SOCIAIS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SOCIOLOGIA

    CARLOS VINICIUS FROTA DE ALBUQUERQUE

    T NA GUA DE BEBER

    :

    CULTO AOS ANCESTRAIS NA CAPOEIRA

    FORTALEZA

    2012

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    CARLOS VINICIUS FROTA DE ALBUQUERQUE

    T NA GUA DE BEBER:

    CULTO AOS ANCESTRAIS NA CAPOEIRA

    Dissertao apresentada ao Programa dePs-Graduao em Sociologia doDepartamento de Cincias Sociais da

    Universidade Federal do Cear, comorequisito parcial para obteno do ttulode mestre em Sociologia.

    Orientadora: Prof. Dr. Isabelle BrazPeixoto da Silva.

    FORTALEZA2012

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    Dados Internacionais de Catalogao na PublicaoUniversidade Federal do Cear

    Biblioteca de Cincias Humanas

    A299t Albuquerque, Carlos Vinicius Frota de.T na gua de beber : culto aos ancestrais na capoeira / Carlos Vinicius Frota de Albuquerque.

    2012.131 f. : il., enc. ; 30 cm.

    Dissertao (mestrado)Universidade Federal do Cear, Centro de Humanidades,Departamentode Cincias Socais, Programa de Ps-Graduao em Sociologia, Fortaleza, 2012.

    rea de Concentrao: Sociologia.Orientao: Profa. Dra. Isabelle Braz Peixoto da Silva.

    1.CapoeiraAspectos sociaisFortaleza(CE). 2.CapoeiristasFortaleza(CE)Atitudes.3.Memria coletiva. 4.Culto dos antepassados. 5.Centro Cultural Capoeira gua de Beber. I. Ttulo.

    CDD 796.81098131

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    CARLOS VINICIUS FROTA DE ALBUQUERQUE

    T NA GUA DE BEBER:

    CULTO AOS ANCESTRAIS NA CAPOEIRA

    Dissertao apresentada ao Programa dePs-Graduao em Sociologia doDepartamento de Cincias Sociais da

    Universidade Federal do Cear, comorequisito parcial para obteno do ttulode mestre em Sociologia.

    Aprovada em: ___/___/_____.

    BANCA EXAMINADORA

    ____________________________________________________

    Prof. Dr Isabelle Braz Peixoto da Silva (Orientadora)

    Universidade Federal do Cear (UFC)

    ____________________________________________________

    Prof. Dr. Alba Maria Pinho de CarvalhoUniversidade Federal do Cear (UFC)

    ____________________________________________________

    Prof. Dr. Marcelo Tavares Natividade

    Universidade Federal do Cear (UFC)

    ____________________________________________________

    Prof. Dr. Luiz Renato Vieira

    Universidade de Braslia (UnB)

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    minha me, Maria das Graas da SilvaFrota, minha av, Iene da Silva Frota, e

    minha noiva e companheira de todos os

    momentos, Kilvia Paula Soares Macedo.

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    AGRADECIMENTOS

    Exu, orix responsvel pela dinamicidade, pelo movimento e pelas

    transformaes, e aos meus ancestrais.

    Kilvia, minha noiva, por todo seu amor, companheirismo, cumplicidade

    e compreenso comigo ao longo destes quatro anos que estamos juntos e,

    especialmente, nestes dois anos em que estive cursando o mestrado. Sua

    participao em minha vida sempre de suma importncia.

    s minhas irms, Karina Karla e Karla Iene, pela pacincia e

    compreenso que tiveram com os momentos de correria e tenso com os quais

    conviveram ao longo dos ltimos anos. Ao longo de nossas vidas, temos percorridocaminhos muitas vezes tortuosos, mas com muita garra e desejo de vencer.

    Lgia Viana, pelo companheirismo e amizade, estando sempre

    disponvel a escutar-me nos meus momentos de angstia e a compartilhar dos

    momentos de felicidade, bem como pela leitura atenciosa do texto da dissertao,

    contribuindo com observaes de grande relevncia.

    Aos amigos Virlnia Oliveira, Ricardo Pinheiro, Camila Lemos, Janayde

    Gonalves, Eliana Sampaio e Adriano Almeida pela grande amizade, apoio,companheirismo e compreenso com a minha ausncia e insistncia em conversar

    sobre meus estudos relacionados capoeira.

    Ao meu mestre e amigo, Robrio Batista de Queiroz (Mestre Ratto), por

    tudo que tenho aprendido com ele ao longo desses dez anos de convvio atravs da

    capoeira e pelo apoio incondicional que ofereceu para a realizao desta pesquisa.

    Ao amigo Mestre Rafael Magnata, pela amizade e pelos inmeros

    momentos de trocas de conhecimentos e recursos.A toda famlia gua de Beber, que tem sido ao longo de dez anos a base

    onde busco refgio para meus momentos de aflio e com a qual compartilho os de

    felicidade e vitrias. O carinho e amizade que construmos a partir da capoeira vo

    alm dos momentos das rodas e dos treinos. Agradeo, principalmente, pela

    colaborao que todos ofereceram ao longo dos dois anos de pesquisa.

    Aos colegas do mestrado, que juntos compartilhamos conhecimentos,

    angstias e apoio mtuo. Dedico a todos bastante carinho, especialmente aos

    amigos Ricardo Gadelha, rika Bezerra de Meneses, Joyce Martins, Cristina

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    Peixoto, Bruna Karoline, Narah Maia, Bruno Sampaio, Gabriel Andrade, Marco

    Aurlio Alves e Daniel Valentim.

    Prof. Isabelle Braz P. da Silva pela sbia orientao e pelas

    contribuies imprescindveis a este trabalho.

    Aos professores Alba Carvalho, Marcelo Natividade e Luiz Renato Vieira

    pelas grandes contribuies que deram ao desenvolvimento desta pesquisa, atravs

    de valiosas crticas e sugestes.

    Ao Prof. Ubiracy de Souza Braga pelas contribuies minha formao

    intelectual durante a minha trajetria no curso de bacharelado em Cincias Sociais

    da UECE.

    Ao colega Luiz Fbio Paiva, que leu atentamente o meu projeto depesquisa durante o processo de seleo para o mestrado, tecendo importantes

    crticas e questionamentos.

    s muitas pessoas, amigos, colegas e conhecidos, que torcem por mim e

    esperaram comigo ansiosamente pelo momento de concluso desta importante

    etapa da minha vida.

    CAPES, pelo apoio financeiro atravs da bolsa de pesquisa do

    Programa de Demanda Social.

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    RESUMO

    A capoeira uma luta-dana-jogo que faz parte do conjunto de tradies oriundas

    das heranas dos negros raptados no continente africano e submetidos ao regime

    escravocrata no Brasil. Na capoeira, os ancestrais so objeto de deferncia e

    admirao ao longo do ritual da roda e na transmisso dos conhecimentos. A

    pesquisa visa compreendero culto aos ancestrais na capoeira praticada no Centro

    Cultural Capoeira gua de Beber (CECAB), uma associao sem fins lucrativos que

    atua difundindo esta manifestao cultural. Partindo de uma perspectiva etnogrfica,

    a observao participante apresenta-se como principal procedimento metodolgico,

    priorizando uma anlise qualitativa. Para a realizao do levantamento bibliogrfico,recorremos principalmente literatura cientfica produzida em torno das temticas

    da capoeira, de memria coletiva, e dos conceitos de campo, habitus e classe em

    Pierre Bourdieu. Observamos a devoo aos ancestrais, no cotidiano do CECAB, ao

    longo da transmisso dos saberes, do ritual da roda, das narrativas e dos discursos

    do mestre, das relaes de poder e do tratamento da temtica da religiosidade. A

    memria destes personagens, dos acontecimentos e de lugares da histria da

    capoeira projetada sobre as experincias contemporneas, oferecendo suporte aosentimento de pertena ao grupo e trajetria das culturas negras no Brasil. Os

    ancestrais so apresentados enquanto autnticos representantes da relao da

    capoeira com as demais culturas afro-brasileiras, relao esta que, no dia-a-dia dos

    treinos, das rodas e dos eventos, os capoeiristas do CECAB afirmam o compromisso

    com a sua continuidade. Os mestres so os guardies das memrias dos ancestrais

    e principais responsveis pela preservao da tradio. Contudo, no culto aos

    ancestrais, a memria moldada de forma a consolidar a ordem social e legitimar opoder dos seus atuais representantes, os mestres do presente. As representaes

    acerca do passado e dos seus personagens sofrem um processo de seleo a partir

    das relaes de poder, dos interesses e das preocupaes presentes nos universo

    da capoeira no momento em que so articuladas e expressas.

    Palavras-chave: Memria. Culto aos ancestrais. Capoeira.

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    ABSTRACT

    Capoeira is a dance-fight-game that is part of the set of traditions coming from the

    heritage of blacks kidnapped in Africa and subject to the system of slavery in Brazil.

    In capoeira, the ancestors are the object of deference and admiration throughout the

    ritual of the wheel and the transmission of knowledge. The research aims to

    understand the ancestor worship practiced in the Centro Cultural Capoeira gua de

    Beber (CECAB), a nonprofit association that operates by spreading this cultural

    manifestation. From an ethnographic perspective, participant observation presents

    itself as the main methodological approach, emphasizing a qualitative analysis. To

    perform a bibliographic review, we turn to the scientific literature produced mainlyaround the themes ofcapoeira, the collective memory, and concepts of field, habitus

    and class in Pierre Bourdieu. We observed the devotion to the ancestors, in the daily

    CECAB along the transmission of knowledge, the ritual of the wheel, narratives and

    discourses of the master, power relations and treatment of the theme of religion. The

    memory of these characters, places and events in the history of capoeira is designed

    on contemporary experiences, offering support to the feeling of belonging to the

    group and the trajectory of black culture in Brazil. The ancestors are presented astrue representatives of the relationship of capoeira with other African-Brazilian

    culture, a relationship that, in day-to-day practice, the wheels and events, the

    capoeiristas of CECAB affirm your commitment to continuity. The masters are the

    guardians of the memories of ancestors and primarily responsible for the

    preservation of tradition. However, in the ancestor worship, the memory is shaped so

    as to consolidate the social order and legitimize the power of its current officers, the

    masters of this. The representations about the past and its characters undergo aprocess of selection from power relations, interests and concerns present in poultry

    in the universe when they are articulated and expressed.

    Keywords: Memory. Ancestor worship. Capoeira.

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    LISTA DE ILUSTRAES

    Ilustrao 01rvore genealgica de Mestre Ratto............................................... 39

    Ilustrao 02 Cartaz do Festival Tribos, Berimbaus e Tambores de 2010............. 73

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    LISTA DE FOTOGRAFIAS

    Fotografia 01 Quadros dos mestres Bimba (esquerda) e Pastinha (direita) na

    antiga sede do CECAB..................................................................... 43

    Fotografia 02 Mestre Ratto..................................................................................... 46

    Fotografia 03 Treino de maculel no IV Festival Tribos, Berimbaus e Tambores,

    em 2011............................................................................................ 56

    Fotografia 04 Mestre Ratto fazendo um a em uma roda na praia........................ 61

    Fotografia 05 Trecho do espetculo Quilombo em apresentao feita no ano de

    2009 no Teatro SESC Iracema, em Fortaleza (CE)......................... 70

    Fotografia 06 Cordas dos estgios de aluno no CECAB........................................ 82Fotografia 07 Cordas de estagirios do CECAB..................................................... 84

    Fotografia 08 Cordas de graduado, instrutor, professor e contramestre do

    CECAB............................................................................................. 85

    Fotografia 09 (Da esquerda para a direita) Peninha, Marcelo, Dentinho e Acau

    no Festival Tribos, Berimbaus e Tambores de 2009........................ 87

    Fotografia 10 Capoeiristas vestidas como Iemanj em espetculo do CECAB... 114

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    SUMRIO

    INTRODUO........................................................................................................... 11

    1 NOTAS SOBRE A HISTRIA DA CAPOEIRA................................................... 17

    1.1 Sobre capoeiras e maltas................................................................................... 20

    1.2 Da esportizao da capoeira contemporaneidade.......................................... 22

    1.3 Relatos sobre a capoeira no Cear.................................................................... 37

    2 ESPAO DE ENCONTRO COM A ANCESTRALIDADE................................... 41

    2.1 Os treinos no CECAB......................................................................................... 44

    2.2 Roda de capoeira................................................................................................ 58

    2.3 Roda de papoeira............................................................................................. 652.4 Festival Tribos, Berimbaus e Tambores............................................................. 71

    3 RELAES DE PODER NO JOGO DA CAPOEIRA.......................................... 77

    3.1 Relaes de gnero............................................................................................ 94

    4 RELIGIOSIDADE NA CAPOEIRA..................................................................... 105

    CONSIDERAES FINAIS..................................................................................... 123

    REFERNCIAS........................................................................................................ 126

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    INTRODUO

    A capoeira uma luta-dana-jogo que faz parte do conjunto de tradiesoriundas das heranas dos negros raptados no continente africano e submetidos ao

    regime escravocrata no Brasil.

    Meu interesse por compreend-la teve incio no ano de 1997, quando

    conclua o Ensino Mdio e tive meus primeiros contatos com essa manifestao

    cultural que veio a se tornar para mim uma paixo. Frequentando o centro esportivo

    do colgio em que estudava, comearam a atrair a minha ateno as aulas de

    capoeira, que me fascinaram pela sincronia entre os corpos dos praticantes e pelasmsicas que eram cantadas e escutadas durante os treinos.

    De incio, dividi-me entre a admirao pelos movimentos e o receio de

    tentar aprender algo que me parecia alm de minha capacidade motora e

    flexibilidade. Passei alguns meses s observando, porm foi para mim irresistvel o

    desejo de integrar-me quele ritual1 que via ocorrer em um crculo formado por

    brincantes guiados pelos toques do berimbau2. Ento, logo comecei a treinar a

    capoeira e a sentir os sons conduzirem meus movimentos.

    Na capoeira, as temticas presentes nos cnticos so bastante

    diversificadas. Encontramos, principalmente, narraes e referncias a seus

    personagens e a episdios da sua histria e da escravido. Chama-se a ateno

    para fatos que estejam acontecendo no momento em que esto sendo cantados na

    roda ou que tenham ocorrido em rodas passadas, criando uma ligao entre elas.

    A histria nos enganaDiz tudo pelo contrrio

    At diz que abolioAconteceu no ms de maio

    1Em Durkheim (1996, p. XVI), ritos, ou rituais, so [...] maneiras de agir que s surgem no interior degrupos coordenados e se destinam a suscitar, manter ou refazer alguns estados mentais dessesgrupos. Os ritos e smbolos, para Durkheim, tm uma funo social fundamental, pois soinstrumentos de manuteno da comunidade, acentuando o sentido de participao num grupo.2 O berimbau um instrumento musical constitudo por uma vara de madeira em arco, com ocomprimento aproximado de um metro e meio, e um fio de arame preso nas suas extremidades. Emsua base amarra-se uma cabaa com o fundo cortado, que funciona como uma caixa de ressonncia.Ao ser tocado, emprega-se uma mo para sustentar o berimbau e moviment-lo, utilizando uma

    pedra ou um dobro de cobre para pressionar o arame. Com a outra mo, utilizando uma varinha demadeira, toca-se o fio produzindo-se os sons. Os capoeiristas comandam a roda de capoeira e osoutros instrumentos a partir dos toques do berimbau, sendo considerado como um instrumentosagrado dentro do ritual da capoeira.

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    A prova dessa mentira que da misria eu no saioViva 20 de novembroMomento pra se lembrar

    No vejo em 13 de maioNada pra comemorarMuitos tempos se passaramE o negro sempre a lutarZumbi nosso heriDe Palmares foi senhorPela causa do homem negroFoi ele quem mais lutouApesar de toda lutaNegro no se libertouCamaradinha.(Composio: Mestre Moraes)

    Atravs dos cnticos adentrei no universo simblico da capoeira. Foi a

    partir deles, que escutava com ateno durante os treinos e as rodas, que comecei a

    conhecer a histria da capoeira e a sua relao com a da dispora negra no Brasil.

    Por intermdio dos cnticos tive meus primeiros contatos com as narrativas dos

    grandes personagens desta cultura, muitas vezes cantadas de formas mitolgicas,

    construindo um elo entre o presente e o passado.

    Os capoeiristas do passado, os ancestrais, so constantemente evocados

    nos espaos da capoeira para trazer seus ensinamentos, suas vivncias e seu ax 3.Estes ancestrais so objeto de deferncia e admirao ao longo do ritual da roda e

    na transmisso dos conhecimentos pelos mestres contemporneos. Os saberes

    deixados por estes personagens e suas histrias so referncias para a construo

    de uma memria coletiva, gerando um sentimento de pertena e de integrao dos

    capoeiristas do presente com os de outrora. A esta relao de devoo aos grandes

    capoeiristas do passado, que perpassa os vrios momentos dos treinos e das rodas,

    denominamos de culto aos ancestrais.O lcus da realizao da pesquisa o Centro Cultural Capoeira gua de

    Beber (CECAB), uma associao sem fins lucrativos. O CECAB surgiu em 2006, a

    partir de uma dissidncia do Grupo Capoeira Brasil, um dos maiores grupos de

    capoeira. coordenado por Robrio Batista, conhecido neste universo como Mestre

    Ratto. Ele saiu do Grupo Capoeira Brasil sob a justificativa de desejar desenvolver

    seu trabalho com mais autonomia, fundando o CECAB juntamente com seus alunos.

    3 Ax como se designa a fora vital que confere dinamismo e possibilita os acontecimentos etransformaes; a energia mgico-sagrada das divindades, dos seres vivos e das coisas.

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    Esta associao tem atuado difundindo a capoeira a partir de aulas, rodas,

    apresentaes artsticas, projetos de responsabilidade social, cursos tericos,

    eventos culturais, etc., agregando tambm outras manifestaes como o samba deroda e o maculel. Tem atuao nos estados do Cear, Pernambuco, Par e So

    Paulo, e est presente tambm nos pases: Venezuela, Portugal, Frana, Hungria,

    Holanda, Irlanda, Polnia, ustria e Turquia.

    A sede da associao situa-se no Cear, na cidade de Fortaleza. At

    julho de 2011, encontrava-se num antigo galpo restaurado, ao lado do Centro

    Cultural Drago do Mar, polo turstico e cultural da cidade. Neste local aconteciam

    treinos de capoeira trs vezes por semana, nas segundas, quartas e sextas. Esteespao reconhecido por capoeiristas do Cear, mestres e alunos, como um lugar

    que desempenhou importante papel nos movimentos contemporneos da capoeira

    do estado, havendo tambm um fluxo de participao de membros de outras

    associaes que trabalham com capoeira e de entidades que atuam em movimentos

    sociais. Atualmente, os treinos de capoeira deste grupo esto ocorrendo na Escola

    Vila, e as demais atividades na comunidade do Riacho Doce, no bairro Passar.

    Como compreender o culto aos ancestrais na capoeira praticada no

    Centro Cultural Capoeira gua de Beber? Esta inquietao a questo central que

    guia este estudo, que tem como objeto o culto aos ancestrais enquanto elemento

    estruturante de memria coletiva na capoeira. Temos como suporte de anlise que o

    culto aos ancestrais atua na construo de uma memria coletiva entre os

    capoeiristas, que os remete a um modo de sentir e relacionar-se com o mundo e

    com as pessoas neste universo simblico. No entanto, no processo de transmisso

    de saberes, esta memria gerida pelos mestres em funo do presente vivido pelo

    grupo e das relaes de poder deste campo.

    Tendo em vista que a cultura apresenta-se como uma teia de significados,

    como uma multiplicidade de estruturas conceituais complexas (GEERTZ, 1989), o

    trabalho aqui desenvolvido um esforo intelectual no sentido de compreender e

    traduzir os saberes, os smbolos e cdigos estabelecidos na relao dos

    capoeiristas com os mestres ancestrais, atravs de uma perspectiva etnogrfica.

    Buscamos inscrever o sentido das vrias vozes e dos silncios dos capoeiristas

    neste espao discursivo.

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    A observao participante apresenta-se neste trabalho como principal

    procedimento metodolgico, priorizando uma anlise qualitativa, atravs do olhar e

    do ouvir que nos permitiram articular a nossa percepo sobre a realidade empricacom o horizonte terico. Os fatos foram observados, descritos e interpretados em

    suas expresses, relaes e manifestaes no cotidiano deste grupo.

    Neste sentido, os atos de olhar e de ouvir so, a rigor, funes de umgnero de observao muito peculiar isto , peculiar antropologia, pormeio da qual o pesquisador busca interpretar ou compreender asociedade e a cultura do outro de dentro, em sua verdadeira interioridade.Ao tentar penetrar em formas de vida que lhe so estranhas, a vivncia quedelas passa a ter cumpre uma funo estratgica no ato de elaborao dotexto, uma vez que essa vivncia s assegurada pela observaoparticipante estando l passa a ser evocada durante toda a interpretaodo material etnogrfico no processo de sua inscrio no discurso dadisciplina. (OLIVEIRA, 2006, p.34).

    O recorte de tempo utilizado como referncia para a pesquisa o perodo

    dos anos de 2010 e de 2011. O fato de estar inserido no universo da capoeira e ser

    um membro do CECAB desde a sua fundao pode ser compreendido como um

    elemento positivo para a elaborao da pesquisa por propiciar melhor acesso aos

    seus cdigos e linguagens. Por outro lado, considero este um aspecto que exigiu do

    pesquisador/nativo uma grande vigilncia epistemolgica e cautela no trato das

    informaes, atentando para a desnaturalizao do olhar, para a cientificidade e

    para uma constante autocrtica, procurando sempre perceber o movimento de

    distanciamento entre pesquisador e objeto. Alm disto, a insero no CECAB

    enquanto pesquisador levou a dificuldades na prtica da capoeira. Diante da

    necessidade de exercer o distanciamento, muitas vezes no consegui dedicar-me

    adequadamente aos treinos. A necessidade de observar atentamente impediu

    muitas vezes de eu me deixar levar pelo treino. O distanciamento necessrio para a

    realizao da pesquisa levou ao distanciamento do capoeirista.

    Seguindo as indicaes de Malinowski (1978), fundamental desde o

    preldio do trabalho de campo a recolha e o registro detalhado das observaes e

    impresses das ocorrncias do cotidiano, dos desvios, das peculiaridades, dos

    comportamentos e das aes dos atores e dos espectadores. O uso de dirio

    etnogrfico foi importante para a consecuo desta tarefa. A partir do ms de maro

    de 2010, iniciamos a nossa insero em campo com um olhar atento, buscandoregistrar nossas observaes, reflexes e questionamentos no dirio de campo.

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    Fizemos-nos presentes no dia-a-dia dos treinos e dos eventos organizados pelo

    CECAB, registrando tambm estes momentos atravs de fotos e gravaes de

    udio. A nossa coleta de dados e insero no campo enquanto pesquisadorestendeu-se at dezembro de 2011.

    A aplicao de entrevistas junto ao Mestre Ratto, coordenador do

    CECAB, assim como o registro de narrativas, relatos e dilogos mantidos com os

    membros da associao ao longo da pesquisa, contriburam para nos dar arcabouo

    no exerccio da compreenso das conexes de sentidos presentes nas relaes que

    envolvem a construo de memria e da prtica da capoeira em torno da

    ancestralidade.A pesquisa se utilizou tambm de levantamento bibliogrfico, recorrendo

    principalmente literatura cientfica produzida em torno das temticas da capoeira,

    dos estudos acerca da memria coletiva e dos conceitos de campo, habitus e classe

    em Pierre Bourdieu. Esse levantamento conferiu suporte terico e histrico nossa

    reflexo, que se apresenta aqui distribuda em quatro captulos.

    O primeiro captulo apresenta notas sobre a histria e o cenrio

    contemporneo da capoeira. No entanto, enfatizamos que no nosso objetivo

    dialogar exaustivamente com a bibliografia existente sobre o assunto. Temos cincia

    de que, atualmente, existe uma ampla produo acadmica acerca desta temtica,

    com destaque para a sua trajetria no Rio de Janeiro e na Bahia. Contudo,

    acreditamos ser importante apresentar estas notas de forma a situar historicamente

    o objeto, inclusive no estado do Cear, propiciando ao leitor que no teve contatos

    prvios com esta literatura que possa localizar socialmente e historicamente a

    capoeira.

    No segundo captulo, realizamos uma descrio dos momentos dos

    treinos e das rodas no dia-a-dia do CECAB, com o intuito de compreendermos como

    so transmitidos os saberes da capoeira para os alunos e como a sua histria e as

    dos ancestrais so trabalhadas de forma a oferecer suporte construo de uma

    memria coletiva e de um sentimento de pertena ao grupo e trajetria das

    culturas negras no Brasil. Ao longo do texto, discorremos acerca da memria

    coletiva na capoeira embasados, principalmente, em nossas leituras de Ecla Bosi,

    Jol Candau, Michael Pollack e Jacques Le Goff. Ao trabalhar a formao dos

    capoeiristas, apoiados em Boaventura de Sousa Santos, tecemos reflexes tambm

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    sobre o dilogo promovido em eventos do CECAB entre os saberes tradicionais e os

    acadmicos envolvendo a capoeira e outras culturas afrodescendentes.

    Com o intuito de compreendermos como o culto aos ancestrais se articulana capoeira com as relaes de poder, no terceiro captulo analisamos a hierarquia

    do CECAB tendo como referncia os conceitos de campo, habitus e classe em

    Bourdieu. Ao tratarmos das relaes de poder consideramos importante destacar as

    relaes de gnero, pois estas tm contribudo tambm para delimitar o lugar social

    a ser ocupado pelos capoeiristas, refletindo-se nas representaes acerca dos

    ancestrais.

    No quarto captulo, discorremos sobre como abordada a religiosidadena capoeira e no CECAB. Apesar da presena na capoeira de elementos ligados

    religiosidade afro-brasileira e ao catolicismo popular, constatamos que esta temtica

    tem sido tratada com crescente cautela diante do crescimento do nmero de

    evanglicos e da diversidade religiosa presente entre os capoeiristas. Este captulo

    visa compreender qual o sentido que assume na capoeira praticada no CECAB, a

    preservao desses elementos no ritual associados tradio deixada pelos

    mestres ancestrais.

    Desta forma, a partir do olhar sobre o cotidiano do Centro Cultural

    Capoeira gua de Beber (CECAB), esta pesquisa apresenta contribuies para a

    compreenso do culto aos ancestrais da capoeira.

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    1 NOTAS SOBRE A HISTRIA DA CAPOEIRA

    At hoje a origem da capoeira imprecisa, gerando divergncias tantoentre os pesquisadores como entre os seus praticantes. Vieira e Assuno (1998)

    nos advertem quanto existncia de controvrsias, mitos e semi-verdades

    vigentes no universo da capoeira, veiculados por capoeiristas e at mesmo por

    estudiosos. Segundo os autores, a partir de discursos essencialistas, esses mitos

    instrumentalizam a histria da capoeira de forma a permitir a articulao de uma

    identidade e a legitimao das posies dos grupos dentro do mundo da capoeira

    como tambm dentro da sociedade mais abrangente. (VIEIRA; ASSUNO, 1998,p. 109). Muitos se disseminaram com tamanha eficcia que encontramos estudos e

    trabalhos acadmicos que, ao se utilizarem deles, deixaram de lado o rigor cientfico

    e to somente reproduziram esses discursos nativos.

    A verso mais divulgada at hoje da origem da capoeira continua sendo a

    de que ela teria surgido por volta do sculo XVII durante as lutas quilombolas4.

    Segundo esta acepo (AREIAS, 1983), os negros africanos trazidos para o Brasil,

    guiados pelos seus instintos de preservao, teriam incorporado movimentos de

    animais em situaes de defesa s suas estruturas culturais, dando origem a essa

    luta. O seu nome seria oriundo das capoeiras, expresso que designa o mato ralo e

    mido.

    Alguns capoeiristas, embora atualmente em um nmero bem reduzido,

    acreditam ainda que a capoeira teria vindo com os africanos escravizados, oriundos

    principalmente de Angola. Assim, o Brasil seria o pas onde estes africanos e seus

    descendentes teriam mantido a prtica da capoeira at os dias atuais. Mestre

    Pastinha (1988, p. 22), por exemplo, afirmou que: No h dvida que a Capoeira

    4 O aquilombamento foi, no Brasil, prtica constante de reao escravido. Onde quer quehouvesse escravido h notcias da existncia de quilombos, quer fosse em montanhas, florestas,vizinhanas de fazendas ou em pequenas e grandes cidades. Nos quilombos, os negros intentavamreproduzir os moldes comunitrios africanos, e buscavam a liberdade para praticar seus rituaisreligiosos, falar suas lnguas e reconstruir suas culturas. O combate a estes foi brutal, pois eramameaas ao regime escravista e ao sistema econmico dominante. O mais clebre foi o Quilombodos Palmares, que resistiu por mais de um sculo durante o perodo colonial, tendo se desfeito porvolta de 1710. O mais importante lder de Palmares foi Zumbi, morto, em 20 de novembro de 1695,em ao liderada por Domingos Jorge Velho contra o quilombo. O Quilombo de Palmares e Zumbi

    so exaltados em diversos cnticos de capoeira, sendo associados ao seu surgimento. Algunscnticos retratam Zumbi como um grande guerreiro capoeirista. Atualmente, no Brasil, temos milharesde comunidades remanescentes de quilombos que lutam por cidadania e pelo direito de preservarsuas culturas e identidades.

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    veio para o Brasil com os escravos africanos. Era uma forma de luta, apresentando

    caractersticas prprias que conserva at nossos dias.

    O viajante portugus Neves e Souza, na dcada de 1960, divulgou assemelhanas entre as expresses culturais de povos africanos e dos negros

    brasileiros. Segundo ele, o ngolo, ou dana da zebra, seria uma luta ancestral da

    capoeira, havendo vrias semelhanas. O ngolo era uma dana cerimonial de

    iniciao, em Angola, na qual os rapazes tinham como objetivo atingir o rosto do

    adversrio com o p. Esta tese passou a ser defendida pelo folclorista Cmara

    Cascudo, que no livro Folclore do Brasilcitou trechos da carta que Neves e Souza

    havia escrito a ele com suas ideias

    5

    . Segundo Soares (1994), encontram-sesemelhanas da capoeira tambm com a bssula, uma luta de pescadores de

    Luanda. Conforme Vieira e Assuno (1998), alguns pesquisadores chegaram ainda

    a encontrar lutas parecidas com a capoeira, como a ladja na Martinica e o moringue

    no Oceano ndico, que foram consideradas como irms da capoeira. A capoeira,

    por estas verses, seria uma expresso cultural formada a partir de diversos rituais

    africanos que no Brasil encontraram ambiente propcio para a sua fuso.

    Soares (1994, 2004) afirma que Adolfo Morales de Los Rios Filho, ainda

    em 1926, fez importantes estudos refutando a hiptese de a capoeira ser derivada

    dos quilombos, e apontando a origem da capoeira como sendo urbana. Morales de

    Los Rios ressaltou a impossibilidade de escravos desarmados se refugiarem em

    capoeiras para enfrentar capites do mato bem armados. Estes matos ralos no

    ofereceriam condies fsicas para a luta dos capoeiras, j que neles poderiam ser

    facilmente localizados e alvejados a longa distncia. Segundo este autor, a capoeira

    teria surgido nas primeiras grandes cidades brasileiras entre os escravos urbanos,

    mais especificamente entre os escravos de ganho6. Seus estudos etimolgicos

    demonstrariam ainda que a derivao mais provvel do termo de caapo,

    expresso de origem tupi-guarani que designaria os cestos de palha entrelaada,

    utilizados pelos escravos urbanos no perodo colonial para desembarcar e carregar

    mercadorias. Os capoeiros seriam ento os cestos utilizados pelos escravos

    urbanos, e os carregadores destes teriam passado a ser conhecidos por capoeiras.

    5 Cascudo tambm explora no seu Dicionrio do Folclore Brasileiro as explicaes de Neves e Souzaacerca dessa ancestralidade.6 Escravos que prestavam servios remunerados e deveriam pagar parcela de sua renda ao seuproprietrio.

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    Ainda cabe acrescentar que Pires (1996) afirma ter encontrado, na

    linguagem de portugueses do sculo XVIII, registros do uso do termo capoeira

    referindo-se a malfeitores ou bandidos.

    [...] encontrei um documento datado do sculo XVIII que pode ser reveladorde novos significados para a conceituao da capoeira, pois essaexpresso ganha novos sentidos em Portugal, onde possui o significadono s de cestos de se carregar galinhas como do prprio galinheiro. E foiassim que o portugus Francisco Xavier Mendona Furtado, em cartadatada de 1757, escrita ao irmo, o Marqus de Pombal, denunciando avinda de Lisboa de ladres, assassinos, e outros tipos de bandidos, dizestar uma capoeira cheia dessa gente para mandarem para c. Furtadopedia a seu irmo para que tais capoeiras de malfeitores se distribussempor outras partes e no para um estado que estava se formando. O Estado

    ao qual Furtado se refere o Amazonas, mas percebam que Furtadochama de capoeiras a um agrupamento de marginais lisboetasextraditados para a colnia portuguesa. (PIRES, 1996. p. 214).

    Alm disso, o termo capoeira encontrado nos registros do sculo XIX

    designando tanto a luta, com suas tcnicas de combate, quanto os integrantes dos

    grupos marginalizados que dela se utilizavam. A situao se complica ao se verificar

    que nem todos os integrantes desses grupos eram praticantes da luta, assim como

    nem todos os praticantes da luta integravam esses grupos. (ARAJO apud VIEIRA;

    ASSUNO, 1998). Isto vem dificultar, em algumas situaes, identificar-se quandoos registros desse perodo se referem luta ou a uma pessoa.

    No que diz respeito musicalidade na capoeira, no existem ainda

    estudos que apontem para dados precisos do momento em que os instrumentos e a

    msica se tornaram componentes dela. No entanto, a incorporao de instrumentos

    passou a ser observada com maior frequncia a partir dos finais do sculo XIX, na

    capoeira baiana. Rego (1968, p. 58) afirma que uma observao dos fatos me leva

    a crer que o acompanhamento musical no existia, consequentemente os toquesteriam vindo depois e se adaptado aos golpes e a eles ficado intimamente ligados

    [...]. Acredita-se que a msica tenha adentrado na prtica da capoeira atravs da

    intensa confraternizao com outras manifestaes culturais e rituais religiosos de

    origem africana, sendo introduzida como uma forma de disfarar a luta. Atualmente,

    encontramos nas rodas de capoeira a presena do berimbau, do atabaque 7, do

    pandeiro8, do agog9, do caxixi10 e do reco-reco11.

    7 O atabaque um instrumento musical de percusso, um tambor ligeiramente cnico com uma dasbocas coberta de couro. Na capoeira, ele tocado nas rodas com as mos, porm podemos

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    1.1 Sobre capoeiras e maltas

    As primeiras referncias consistentes da capoeira referem-se sprimeiras dcadas do sculo XIX, quando ela aparece como uma atividade de

    escravos urbanos. Neste perodo, comeam a surgir em grandes cidades, tais como

    Rio de Janeiro, Salvador e Recife, os primeiros relatos da sua prtica. Estas cidades

    eram regies porturias, havendo nelas um grande fluxo de escravos. Nelas, a

    capoeira ganha destaque diante dos olhares dos seus moradores. Ela era combatida

    como uma ameaa ordem social escravista e alimentava o imaginrio do medo

    branco da onda negra. (AZEVEDO apud REIS, 2000, p. 25). Os capoeiras eramacusados de promover desordens em praa pblica, gerando medo ou mesmo terror

    na populao das cidades.

    Na cidade do Rio de Janeiro, os capoeiras encontravam-se reunidos em

    bandos, denominados de maltas, que funcionavam como canais de socializao na

    Corte dos negros cativos ou libertos vindos do interior do pas. As maltas dividiam

    espacialmente os seus domnios e, quando se encontravam, era inevitvel o conflito.

    As cores das vestimentas, os tipos de chapus e as formas de us-los eram sinais

    de identificao e distino das maltas, traduzindo tambm diferenas tnicas,

    sociais e polticas (SOARES, 1994). No corpo encontrava-se caracterizado a que

    grupo pertenciam e, portanto, a qual faziam oposio.

    Na segunda metade do sculo XIX, a prtica da capoeira se estende

    tambm a outros segmentos da populao urbana, registrando-se a participao nas

    maltas no s de mestios, mas tambm de imigrantes pobres recm-chegados e

    at mesmo de alguns membros da elite branca, o que propiciou tambm uma

    intensa troca cultural. Nesse perodo, por exemplo, portugueses fadistas e capoeiras

    cariocas compartilharam condies de vida e trabalho. Foi marcante entre os

    encontr-lo em outros rituais sendo tocado com duas varetas ou com uma mo e uma vareta. Nocandombl, o atabaque considerado um instrumento sagrado.8 O pandeiro um instrumento musical de percusso formado por uma pele esticada numa armaocircular estreita. Alm da capoeira, encontrado em diversas manifestaes culturais, como o samba,maracatu, cco e o baio.9 O agog um instrumento de metal composto de dois cones ocos de ferro sem base, que soligados entre si por vrtices.10 O caxixi um pequeno cesto de palha tranada, com sementes secas dentro, fechado com umpedao de cabaa. Ao ser movimentado produz um som de chocalho.11 O reco-reco costuma ser utilizado na Capoeira Angola. Produz um som de raspagem, sendo nacapoeira utilizados, normalmente, os produzidos a partir de gomos de bambu com talhos transversais.

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    capoeiras do sculo XIX a disseminao do uso de navalhas12, assim como de

    lenos nos pescoos para proteo contra o corte destas. Dessa maneira, a

    capoeira ainda no perodo imperial demonstrava seu carter cosmopolita.Diante da destreza na luta corporal, da eficincia na sua organizao e no

    uso dos espaos urbanos, e da utilizao de navalhas, as maltas eram vistas como

    uma ameaa ao monoplio da violncia da polcia e dos militares, simbolizado pelo

    privilgio do manejo e armazenamento de armas. No entanto, tambm h diversos

    registros da presena de capoeiras nas foras policiais, na Guarda Nacional e at

    mesmo no exrcito, agindo em solidariedade e cumplicidade com as maltas contra

    os seus adversrios.Era frequente o recrutamento militar forado como punio prtica da

    capoeira e como uma forma de tentar livrar-se dos seus praticantes. Durante a

    poca da Guerra do Paraguai (1864-1870), os capoeiras destacaram-se por

    possurem destreza no combate corporal, tendo muitos recebido honras de heris.

    No entanto, ao retornarem gloriosos da guerra, muitos voltavam a se ligar s suas

    maltas, sendo, entretanto, mais difcil a sua represso por serem muitas vezes

    protegidos por seus comandantes.

    Durante o Imprio, expressiva tambm a atuao dos capoeiras como

    capangas, principalmente em perodos eleitorais. As maltas funcionavam como

    milcias em defesa de partidos e de polticos, tanto de conservadores quanto de

    liberais. Atravs do uso da violncia, buscavam intervir nos resultados das eleies,

    revertendo situaes desfavorveis. Em contrapartida, os polticos no poder

    proporcionavam proteo s maltas aliadas contra as foras repressivas do Estado,

    ao mesmo tempo em que reforavam o combate s maltas inimigas.

    Com a abolio da escravatura (1888), surge, na cidade do Rio de

    Janeiro, a Guarda Negra da Redentora13, uma milcia formada principalmente de

    12 Para Soares (1994), o uso da navalha vem demonstrar a relao cultural mantida entre oscapoeiras e os fadistas cantores de fado, geis na luta corporal e no manejo da navalha, que viviamnas ruas de Lisboa e do Porto no sculo XIX. Tanto os capoeiras quanto os fadistas forampersonagens ligados marginalidade da poca e frequentadores das crnicas policiais. Diante daproximidade econmica e social, a capoeira teria assimilado o uso da navalha como importantemarca no cenrio da violncia urbana.13 Segundo Abreu (2011), a Guarda Negra da Redentora tambm teve atuao em Salvador, Bahia,

    dissolvendo comcios e promovendo ataques a republicanos. Uma das aes na cidade ficouconhecida como Massacre do Tabuo, quando, no dia 15 de junho de 1889, liderada pelo capoeiraconhecido por Macaco Beleza, essa milcia armou uma emboscada a Silva Jardim e a lideranasrepublicanas que acompanhavam-no a um comcio no Club Republicano, no Carmo.

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    capoeiras. Essa milcia tinha como intuito unificar os libertos em luta contra os

    republicanos, demonstrando uma aproximao com a Monarquia. Ela tinha Jos do

    Patrocnio como idealizador e um de seus lderes. No entanto, com a derrocada daMonarquia e a proclamao da Repblica, a Guarda Negra foi dissolvida.

    A Repblica surge no Brasil com carter profundamente eugenizador14,

    intensificando o combate aos capoeiras que eram vistos como uma doena moral e

    uma mancha na civilizao, alm de uma ameaa pelo fato de grande parte destes

    terem unido fora aos monarquistas. Ento, com a publicao do Cdigo Penal de

    11 de outubro de 1890, a capoeira criminalizada. A partir da intensifica-se o

    combate aos capoeiras por parte da polcia, sendo as maltas severamentereprimidas.

    Art. 402. Fazer nas ruas e praas pblicas exerccios de agilidade edestreza corporal conhecidos pela denominao capoeiragem: andar emcorrerias, com armas ou instrumentos capazes de produzir uma lesocorporal, provocando tumulto ou desordens, ameaando pessoa certa ouincerta, ou incutindo temor de algum mal; Pena de priso celular de dois aseis meses. [...] Pargrafo nico: considerada circunstncia agravantepertencer o capoeira a algum bando ou malta. Aos chefes e cabeas seimpor a pena em dobro. (REGO, 1968, p. 292).

    1.2 Da esportizao da capoeira contemporaneidade

    Apesar da grande represso sofrida pela capoeira a partir da proclamao

    da Repblica, principalmente na sua capital, surge no ambiente cientfico e poltico

    nomes de grande vulto, como os do Baro do Rio Branco e do deputado Coelho

    Neto, que iam contra os juzos que condenavam a capoeira. Afirmava-se que ela

    seria um mal necessrio, e se pretendia transform-la numa ginstica brasileira

    atravs de seu embranquecimento social e simblico. Ensaiam-se a, no incio do

    sculo XX, as primeiras tentativas de esportizao da capoeira. Neste sentido,

    14 No final do sculo XIX e comeo do sculo XX, influenciados pelo determinismo biolgico dasteorias eugenistas em vigor na poca, intelectuais, como Nina Rodrigues, acreditando que a raanegra seria uma raa inferior e que atravs da mestiagem estaria provocando uma degenerao nopovo brasileiro, comeam a desenvolver teorias e tcnicas no intuito de expurgar os negros emestios da formao de uma raa brasileira. No entanto, outros intelectuais, como Oliveira Vianna,mesmo acreditando numa inferioridade da raa negra, apostaram na miscigenao como um fator

    positivo, pois desta maneira pretendiam atingir uma pureza tnica atravs de um ideal debranqueamento. Este outro grupo de intelectuais acreditava numa seleo eugnica em que o fatorbiolgico negro tido como inferior seria eliminado atravs de um constante processo demiscigenao.

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    enquanto esporte nacional, a capoeira se manteve ainda viva no territrio do Rio de

    Janeiro, inclusive em corporaes militares e policiais.

    Vale ressaltar que j nesse perodo alguns manuais sobre tcnicas emtodos de ensino da capoeira so escritos, como o Gymnastica Nacional

    (Capoeiragem) Methodizada e Regrada, publicado em 1928 por Annibal Burlamaqui,

    no qual o autor descreve detalhadamente os movimentos de golpes e aponta

    exerccios e regras para os treinos.

    importante aqui tambm fazer aluso figura de Sinhzinho, Agenor

    Moreira Sampaio, paulista que foi viver no Rio de Janeiro na dcada de 1920.

    Juntamente com Burlamaqui, ele foi um dos principais nomes desta busca detransformar a capoeira em esporte nacional. Alm de ter ministrado treinamentos de

    diversas atividades desportivas, Sinhzinho trabalhou como instrutor das polcias

    municipal e especial, passando treinamentos mistos de lutas, como boxe, luta livre,

    capoeira, etc. Conforme Pires (2010, p. 148), no ano de 1931, ele chegou a aparecer

    em um edio do jornal carioca Dirio de Notcias como o responsvel pela

    ressurreio da capoeira. Era esse um perodo que se encontrava em alta nessa

    cidade as lutas de ringue, ocorrendo diversos desafios entre lutadores, ilustrando as

    pginas dos jornais. Foi nesse cenrio que Sinhzinho ganhou fama de grande

    lutador e preparador de outros lutadores. Ele manteve seus treinamentos at a

    dcada de 1950, deixando alguns discpulos.

    Contudo, a capoeira permaneceu na ilegalidade at a dcada de 1930.

    Em 1937, na cidade de Salvador, na Bahia, o Mestre Bimba, Manuel dos Reis

    Machado, conseguiu uma licena oficial da Secretaria de Educao, Sade e

    Assistncia Pblica do Estado da Bahia para o seu Centro de Cultura Fsica e

    Capoeira Regional e um certificado de professor de Educao Fsica. O processo de

    legitimao da capoeira, que teve como figura central este mestre, assumiu um

    carter diferente daquele que se esboava no Rio de Janeiro do princpio do sculo

    XX. Enquanto que alguns intelectuais, polticos e lutadores pretendiam um projeto

    nacional e eugenizador para ela, falando-se em ginstica brasileira, a capoeira

    deixou de ser reprimida atravs de um projeto regional e tnico que se deu no

    cenrio da cidade de Salvador. A partir da ela se desmembrou em duas

    modalidades: Capoeira Regional e Capoeira Angola.

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    De maneira distinta dos propositores daquele jeito branco e erudito dacapoeira-esporte, nesse jeito negro e popular, a preocupao central no com a viabilidade da nao brasileira do que dependeria a prpriaformulao de nossa identidade nacional mas sim com a afirmao e

    legitimao social do negro e, particularmente, do negro baiano. (REIS,2000, p. 75).

    Mestre Bimba criou em 1928 a sua modalidade de capoeira, a Capoeira

    Regional Baiana, fundando a sua academia em 1932. A Capoeira Regional

    apresenta-se como uma proposta ecltica, incorporando aos movimentos corporais

    da capoeira passos de folguedos populares de origem negra, como o batuque, bem

    como alguns golpes e defesas de lutas orientais. Mestre Bimba trouxe uma proposta

    mais combativa, ao mesmo tempo em que entrou em amplo dilogo com os maisdiversos setores da sociedade. Levando a capoeira para dentro de academias, ele

    empenhou-se em dissoci-la da imagem de vadiagem e desordem. No intuito de

    legitim-la socialmente, transps prticas e rituais acadmicos (formatura,

    paraninfo), religiosos (batizado, padrinhos e madrinhas) e militares (as medalhas).

    Ele organizou tambm uma rgida disciplina e uma didtica para o ensino da

    Capoeira Regional. Alm disso, Mestre Bimba constituiu uma hierarquia entre seus

    alunos, criando um toque de berimbau, denominado de ina, que no poderia ser

    jogado por calouros. No entanto, conforme veremos no terceiro captulo,

    representando esta hierarquia utiliza o esguio de seda nos pescoos como smbolo

    relacionado ao passado da capoeira-luta, adquirindo um significado de confrontao

    (AREIAS, 1983; REIS, 2000).

    Em contraposio a essa modalidade, aparece a Capoeira Angola, que se

    afirma como um movimento de resgate da tradio e recuperao de uma

    identidade negra no cenrio nacional. Ela teve como seu principal representante

    Vicente Ferreira Pastinha, o Mestre Pastinha, que surgiu como liderana na dcada

    de 1940. No entanto, mesmo mantendo uma postura conservadora com relao aos

    hbitos e valores tradicionais, Pastinha tambm procurou distanci-la da

    marginalidade, adotou o uso de uniformes e transferiu a sua prtica para academias,

    com treinos regulares.

    A Capoeira Angola tambm nunca foi um estilo homogneo. Neste

    perodo, alm de Mestre Pastinha, outros nomes ganharam destaque e se tornaram

    referenciais dessa modalidade, como os de Mestre Waldemar da Paixo, de Mestre

    Cobrinha Verde e de Mestre Canjiquinha. Cada um deles destacava diferentes

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    aspectos da capoeira antiga e inseria caractersticas distintivas de sua linhagem,

    como movimentos, ritmos ou elementos do ritual. Havia toques de berimbau que

    eram particulares de cada mestre, e alguns que recebiam diferentes denominaes.Cada um escolhia tambm a ordem dos instrumentos e a composio da sua

    bateria15. Da mesma forma, apesar de haver movimentos e golpes que compunham

    um repertrio comum, muitos sofreram transformaes e, a partir de caractersticas

    pessoais, outros novos foram acrescentados. Assim, mesmo dentro da Capoeira

    Angola, encontramos muitos elementos que so distintivos de alguns mestres e de

    suas linhagens.

    A esse respeito Vieira e Assuno (2008, p.13) asseguram:

    [...] nunca houve tradio nica e monoltica na capoeira baiana antiga, oque, por sua vez, facilitou que posteriormente cada grupo ressaltasseelementos diversos e mesmo conflitantes da tradio. Por outro lado,convm salientar que ambos os estilos regional e angola coincidem nasua ruptura com a malandragem antiga, transferindo a prtica da capoeirada rua para uma academia, com treinos regulares, uniformes eregulamentos, expandindo o ensino a grupos maiores de alunos erecrutando novos segmentos da populao brasileira: crianas e jovens daclasse mdia e mulheres.

    Alegando uma continuidade com a capoeira baiana antiga, a CapoeiraAngola reinventa uma tradio atravs da recuperao de elementos, no plano

    simblico, que se relacionam ao mundo negro e sua matriz africana. Nesse contexto,

    Hobsbawm e Ranger (1997) nos lembram que, frequentemente, encontramos

    tradies que so consideradas antigas, mas na verdade so recentes ou

    inventadas. Estes autores compreendem que toda tradio inventada a partir de

    [...] um processo de formalizao e ritualizao, caracterizado por referir-se ao

    passado, mesmo que apenas pela imposio da repetio. (HOBSBAWM;RANGER, 1997, p. 12). Desta forma, entendemos como tradio inventada:

    [...] um conjunto de prticas, normalmente reguladas por regras tcita ouabertamente aceitas; tais prticas, de natureza ritual ou simblica, visaminculcar certos valores e normas de comportamento atravs da repetio, oque implica, automaticamente; uma continuidade em relao ao passado.[...] Contudo, na medida em que h referncia a um passado histrico, astradies inventadas caracterizam-se por estabelecer com ele umacontinuidade bastante artificial. Em poucas palavras, elas so reaes asituaes novas que ou assumem a forma de referncia a situaesanteriores, ou estabelecem seu prprio passado atravs da repetio quase

    que obrigatria. (Ibid., p. 9-10).

    15 Bateria como denominada na capoeira a orquestra que toca os instrumentos durante as rodas.

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    A partir desses dois estilos, no final da dcada de 1950, deu-se princpio

    disseminao da capoeira pelo Brasil. Alguns capoeiristas16 baianos comearam a

    se deslocar em busca de melhores condies de vida, indo principalmente para ascidades de Rio de Janeiro e So Paulo. Soma-se a isso o fato de alguns alunos que

    receberam noes bsicas de capoeira com grandes mestres da Bahia, ao voltar s

    suas cidades de origem, colaboraram tambm com a sua expanso, sendo alguns

    deles considerados atualmente precursores em seus estados. Alm disso, devemos

    levar em considerao tambm que em algumas cidades, como Rio de Janeiro,

    ainda resistiam capoeiristas ligados a tradies locais. A esse respeito, Vieira e

    Assuno (2008, p.13)afirmam:

    A expanso da capoeira moderna pelo Brasil a partir desses dois estilosbaianos complicou ainda mais a questo. A difuso ocorreu de vriasmaneiras (1) por meio de alunos j formados pelos mestres baianos que sefixaram em outros estados, sendo que a grande maioria migrou paracidades do Sudeste; (2) por iniciativa de alunos de outros estados que sreceberam instruo ocasional desses mestres quando iam Bahia. Nessecaso, o carter autodidata da prtica encorajava mudanas de estilo, comose pode ver no caso do grupo Senzala do Rio de Janeiro. Alm do mais, ascapoeiras baianas vo encontrar em vrias cidades tradies locais dacapoeira.

    Naquelas cidades, surgiram academias e associaes de capoeiras que

    visavam integr-la ao concorrido mercado das artes marciais. No entanto, nas

    dcadas de 1960 e 1970, a Capoeira Angola se manteve ainda pouco conhecida,

    predominando os praticantes oriundos da Capoeira Regional, uma vez que [...] de

    maneira geral, o estilo Angola, mais dependente de todo referencial cultural afro-

    baiano de mais difcil assimilao pelos novos grupos de praticantes, no se logrou

    impor durante esses anos. (Ibid., p.14).

    Novamente, so empreendidos esforos de desapropriao da capoeira

    de sua herana negra, representando-a como smbolo nacional. No entanto,

    enquanto uma cultura migrante, ela incorpora referncias nostlgicas Bahia,

    observadas at os dias atuais, a partir das diversas menes presentes nas

    msicas. Alm disto, as disputas em torno dos estilos se amenizaram, criando-se

    laos de solidariedade.

    16 Com o processo de esportizao os capoeiras passam a ser denominados de capoeiristas,trazendo essa expresso um carter desportivo.

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    No Rio de Janeiro, na dcada de 1960, surge o Grupo Senzala, que se

    tornou um dos mais conhecidos e uma das referncias para a organizao dos

    capoeiristas. Ele era composto em sua maioria por adolescentes da classe mdiacarioca. Apesar de seguirem a linha da Capoeira Regional, tendo alguns deles sido

    discpulos de Mestre Bimba, no tinham um mestre nico no comando do grupo.

    Comearam a introduzir modificaes na Capoeira Regional e a aumentar a nfase

    na uniformizao, na boa forma fsica e nos ataques rpidos, potentes e precisos.

    Ocorria a uma modificao do estilo da Capoeira Regional. (CAPOEIRA, 1998).

    Foi neste perodo que surgiram as primeiras escolas de capoeira de So

    Paulo. Estavam todos os capoeiristas na mesma rdua empreitada, sobreviver nametrpole paulistana, onde se iniciou e mais se desenvolveu o processo de

    industrializao. Diante disso, encontravam-se professores da Regional e da Angola

    dividindo o mesmo espao. Grupos de capoeira chegaram a ser fundados atravs

    dessas parcerias de mestres dos dois estilos, como o Cordo de Ouro, criado em

    1967 pelo Mestre Suassuna, da Regional, e pelo Mestre Braslia, da Angola.

    Durante o regime militar, em 1972, criou-se o departamento de capoeira

    junto Confederao Brasileira de Pugilismo. Federaes de capoeiristas

    comearam a ser institudas em diversos estados, sendo pioneira a paulista, criada

    em 1970.A partir da, observa-se um maior processo de institucionalizao e

    burocratizao da capoeira. A ao do Estado, com intuito homogeneizador, previa

    ainda a criao de uma estrutura administrativa centralizada numa confederao.

    Disseminou-se entre os capoeiristas a utilizao de graduaes, representadas por

    cordas17 que so amarradas na cintura, a exemplo das artes marciais orientais. Alm

    disso, passaram a ocorrer frequentes competies, onde se dava nfase ao

    confronto direto, quase abolindo a ginga, trao marcante da movimentao na

    capoeira.

    Durante os combates quase no se ginga, isto , o corpo quase no dana,do que decorre uma movimentao caracterizada pela agressividadeaberta, j que tem lugar um confronto mais direto entre os lutadores. Oramas justamente a ginga que, ao ensejar a dissimulao da inteno,possibilita aos jogadores o enfrentamento indireto, principal recurso tticodo jogo da capoeira. (REIS, 2000, p. 139).

    17 A corda tambm denominada de cordel pelos capoeiristas.

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    Entretanto, durante este perodo, antigos capoeiristas continuaram sendo

    vtimas do descaso oficial dos governos para com a cultura popular e seus

    representantes. Mestre Bimba, Mestre Pastinha e vrios outros mestres importantestiveram fins tristes, relegados em condies de desamparo e pobreza.

    Mestre Bimba, em seus ltimos tempos de estadia na Bahia, vivia

    revoltado com o tratamento recebido das autoridades e com a falta de apoio

    (ALMEIDA, 2002). Teve a sua academia em Amaralina18, erguida por ele mesmo,

    desapropriada para construo de uma rua, nunca recebendo a indenizao devida.

    Revoltado com sua situao, Mestre Bimba, em 1973, resolveu aceitar o convite

    feito por um ex-aluno para mudar-se para Goinia. Foram feitas a ele promessas deque teria duas casas prprias para abrigar seus 22 dependentes e que seria

    convidado para ser professor da Escola Superior de Educao Fsica, promessas

    que no foram cumpridas. Desgostoso tambm com sua vida em Goinia, Mestre

    Bimba sentia saudades de sua terra. Morreu de um derrame em 5 de fevereiro de

    1974, aps um espetculo. Em Goinia, at para enterr-lo foi difcil, pois foi

    necessria a mobilizao de alunos, escritores e jornalistas para arrecadar dinheiro

    para os custos.

    Mestre Pastinha, em 1971, precisou deixar o prdio onde ficava sua

    academia devido a ter sido necessrio fazer reformas no conjunto arquitetnico do

    Pelourinho, sendo prometido a ele que aps as reformas poderia retornar. Quando

    da poca da devoluo do prdio, foi informado que este tinha sido entregue ao

    Patrimnio Histrico da Fundao Pelourinho, que o vendeu ao Servio Nacional de

    Aprendizagem Comercial (SENAC). Os seus pertences, que ali estavam,

    instrumentos, mveis e fotos desapareceram, no conseguindo ele reav-los. Nesta

    poca, Mestre Pastinha j se encontrava cego e com problemas srios de sade.

    Este fato trouxe-lhe grande amargura, caindo em profunda depresso. O seu

    sustento, desde ento e at a sua morte, foi garantido por sua esposa, atravs da

    venda de acarajs e pela ajuda de discpulos e amigos. Apenas atravs da

    interveno do escritor e seu amigo Jorge Amado que Pastinha conseguiu receber

    uma penso da prefeitura de Salvador para auxiliar na sua subsistncia. Pastinha

    morreu com 92 anos, no dia 13 de novembro de 1981, morando em um abrigo.

    18 Bairro de Salvador (BA).

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    importante destacar uma observao de Mestre Pastinha, perto de sua

    morte, ao ser indagado se a capoeira se encontrava mal (ABREU, 2003). Nessa

    ocasio, respondeu que a capoeira estava muito bem, que estava presente nauniversidade e no exterior; quem estava mal era ele, o capoeirista.

    Contudo, em 1971, surge em So Paulo o grupo Capites dAreia, tendo

    como principal lder Almir das Areias. Este grupo teria se afastado da Federao

    Paulista de Capoeira por no aceitar as novas formas como a capoeira estava sendo

    transmitida.

    Surge, nesse momento, uma corrente contrria a essa poltica da

    Federao. Essa corrente era representada pelo grupo Capites de Areia,reunindo os mestres Demir, Valdir Baiano, Carioca, Pessoa e eu, e noaceitava esse novo caminho imposto capoeiragem, um caminho por ns,na poca, considerado traidor e conflituoso dentro do nosso universo, poisa capoeira, para ns, era muito mais que uma luta e um esporte, era acimade tudo uma conscincia de vida e um reencontro com a nossa identidade.(AREIAS, 1983, p. 78).

    Os capites, como ficaram conhecidos os membros desse grupo, davam

    nfase capoeira como uma manifestao brasileira de resistncia popular. Eles

    criticavam a imposio de uma viso harmnica sob a forma de um smbolo nacional

    que omitia a dominao branca sobre o negro, e buscavam afirmar a presena

    negra no cenrio nacional, realando a importncia da participao e atuao

    poltica nas transformaes sociais do pas.

    Entre fins dos anos 1970 e incio dos anos 1980, surge, em So Paulo, o

    grupo Cativeiro. Ele desponta no contexto histrico da redemocratizao e afirmao

    das diferenas. O Cativeiro busca legitimar a capoeira socialmente, reafirmando sua

    origem negra. D nfase a sacralizao da capoeira, incorporando vrios costumes

    e smbolos do candombl a esta luta.

    Em resposta, os Capites e mais tarde o Cativeiro reatualizaro o jeitonegro e popular de esportizao da capoeira baiana dos anos 30 e 40. Acrtica principal dos dois grupos Federao era desafricanizao da luta.Ambos assinalaro tambm a singularidade tcnica da capoeira que prev oconfronto indireto, ao contrrio, dizem eles, das lutas orientaiscaracterizadas pelo combate direto. (REIS, 2000, p. 157).

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    Apesar das crticas capoeira branca e marcializada da Federao,

    tanto os capites quanto os membros do grupo Cativeiro aderiram utilizao de

    graduao, porm adotando cores alternativas. Segundo Reis (2000), estacaracterstica, provavelmente, tem a ver com a necessidade de coexistir com as

    outras modalidades de lutas.

    Nesse momento, tinha-se como pano de fundo a luta pela

    redemocratizao e do crescimento dos movimentos negros no Brasil. A partir da

    dcada de 1980, ganha nfase a dimenso cultural da capoeira, e a Angola,

    enquanto depositria da tradio, se revigora. Desta forma, alguns angoleiros19,

    que se encontraram afastados durante o seu declnio, retornaram sua prtica, eela passa a conquistar novos adeptos no s no Brasil, mas tambm em outros

    pases. Alm disso, muitos capoeiristas ligados Regional passam a iniciar-se nos

    fundamentos da Angola, a aprender seus cantos, toques de berimbau e movimentos

    corporais. Os capoeiristas passam a dar mais ateno necessidade de conhecer

    as histrias dos antigos mestres baianos e de resguard-los contra as intempries

    do destino. Contudo, com isto revigoram-se tambm as tenses entre eles.

    A partir de ento, ocorrem tenses entre um estilo angola, cujos gruposinvocam uma linhagem direta com um mestre baiano, e estilos quepoderamos denominar de angolizados, por incorporar parte dascaractersticas estilsticas dos angoleiros, mas sem abandonar outrascaractersticas suas, consideradas regional pelos primeiros. Isso ocorreu aponto de alguns grupos passarem a reivindicar a condio de angoleiros,qualificativo que lhes negado pelos praticantes do que poderiamoschamar o ncleo duro da angola. (VIEIRA; ASSUNO, 2008, p.15).

    Alm disso, comum que os angoleiros deste ncleo duro se refiram a

    todos os demais como seguidores da Capoeira Regional, muitas vezes com uma

    conotao negativa. No entanto, os conflitos no so mais amenos quando se trata

    da Regional. Alguns discpulos de Mestre Bimba, como Mestre Nenel, seu filho,

    lutam para manter a Capoeira Regional como foi deixada por ele, sem aderir a

    inovaes. Eles proclamam que somente eles podem ser considerados Capoeira

    Regional. Entretanto, muitos dos que no pertence ao estilo puro da Regional, e

    aderiram ao uso de cordas e a inovaes nos movimentos, continuam se

    proclamando como membros da Regional. Contudo, encontramos tambm muitos

    19 Os praticantes da Capoeira Angola autodenominam-se de angoleiros.

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    que passaram a se definir como praticantes de uma capoeira contempornea, dos

    dois estilos, ou simplesmente como capoeiristas.

    Assim, ao contrrio da Regional e da Angola, a capoeira contemporneano propriamente um estilo. Ela fruto do processo de atualizao, recriao e de

    fuso de aspectos dessas duas. Segundo Viera e Assuno (1998, p. 108), seus

    defensores partem do princpio de que a capoeira uma s e dividi -la em estilos

    enfraquec-la. A respeito da denominao capoeira contempornea, esses

    autores tambm afirmam:

    Falar de capoeira contempornea, no entanto, no esclarece muito de que

    capoeira se trata, dado que h muitas formas distintas na atualidade, acomear pela angola e regional contemporneas. A sada da capoeira doseu contexto original e seu ingresso em academias, escolas, universidades,palcos de dana, competies de luta livre e at salas de terapia multiplicousentidos, significados, formas, maneiras de treinar e de jogar. Em outraspalavras a transformao da capoeiragem entendida aqui como ocontexto social da capoeira tambm impactou o contedo da arte.Acreditamos, por isso, que preciso, alm da clssica oposio binriaangola-regional, distinguir vrios estilos de capoeira, dependendo dosaspectos enfatizados: luta, tradio, cultura, brincadeira ou dana. (Id.,2008, p.15).

    Contudo, as dcadas de 1970 e 1980 aparecem tambm como a poca

    do desenvolvimento e proliferao de grandes projetos que passaram a inserir a

    capoeira em diversos tipos de espaos e instituies. A capoeira, alm de atrair a

    ateno enquanto desporto e manifestao cultural afro-brasileira, passa a ser

    trabalhada tambm como ferramenta scio-educativa e de incluso social. Alm

    disso, desde a dcada de 1980, comeam a ser desenvolvidas pesquisas de

    mestrado e doutorado, passando ela a ser objeto de reflexes acadmicas em reas

    como a histria, a sociologia, a antropologia, a educao fsica e as cincias da

    educao. Esses estudos, muitos deles produzidos por pesquisadores que tambm

    so praticantes, passaram a ser discutidos tambm em eventos e cursos que so

    organizados pelos prprios capoeiristas.

    Assim, as dcadas de 70 e 80 se caracterizam como a poca dos grandesprojetos relacionados capoeira, a maioria deles com algum grau depioneirismo (embora houvesse muitas e importantes iniciativas isoladasanteriores): capoeira na escola, na universidade, para portadores denecessidades especiais, nos cursos de licenciatura em educao fsica, eminstitutos de reeducao de menores infratores, como terapia, como

    ginstica brasileira e como objeto de dissertaes e teses acadmicas. (Ibid., p. 10).

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    A dcada de 1980 tambm o perodo da consolidao e expanso dos

    grandes grupos de capoeira, firmando-se este como modelo de organizao para os

    capoeiristas. Atualmente, os jovens capoeiristas que no so filiados a gruposdificilmente conseguem espao dentro do universo da capoeira. Os grandes grupos,

    com nomes fortes no mercado da capoeira, passaram a arregimentar capoeiristas

    que a eles se integram no sentido de buscar tambm reforo ao seu trabalho a partir

    da vinculao de seus nomes aos de grupos e mestres j reconhecidos.

    A partir da dcada de 1970, e com mais intensidade a partir da de 1980,

    uma grande quantidade de capoeiristas comeou a viajar para o exterior, almejando

    com isso melhores condies econmicas e disseminar seus trabalhos por outroshorizontes. Nestes pases, alguns comearam a receber o reconhecimento social e

    econmico que aqui no recebiam. Mestre Joo Grande, por exemplo, que no Brasil

    vivia em condies precrias, recebeu convite, em 1990, para fixar-se nos Estados

    Unidos e l recebeu, em 1994, o ttulo de Doutor Honoris Causa e, em 2001, o

    prmio da National Heritage Fellowships (Comunidades do Patrimnio Nacional), o

    mais alto ttulo concedido neste pas para pessoas que lidam com artes folclricas.

    No entanto, alm dos que fixaram residncia no exterior, temos tambm diversos

    mestres e professores que, ao adquirirem fama e respeito, passam a realizar

    frequentes viagens para outros estados ou pases para ministrar pequenos cursos,

    palestras ou oficinas, sendo muitas vezes atravs dos recursos destes que so

    mantidos seus trabalhos em suas cidades de origem.

    Atualmente, a maioria dos grupos que j tm um trabalho consolidado no

    Brasil possuem tambm professores filiados atuando no exterior. A capoeira

    encontra-se espalhada pelo Brasil e pelo mundo, sendo um dos principais smbolos

    da cultura brasileira e divulgadora da lngua portuguesa20. Nos dias atuais, temos

    grupos de capoeira em mais de 150 pases21, o que tem levado os mestres e

    20 Nos diversos pases em que a capoeira praticada, as msicas so cantadas em portugus, bemcomo so mantidos neste idioma os nomes dos movimentos, instrumentos, graduaes, etc.21 A disseminao da capoeira no exterior deu origem a especulaes em torno da possibilidade delatornar-se um esporte olmpico. A Confederao Brasileira de Capoeira, entidade nacional que seprope a representar a capoeira enquanto atividade desportiva, tem levantado discusses em tornodesta possibilidade. No entanto, mesmo entre os capoeiristas esta uma questo bastante

    controversa, na medida em que se alega que as formas de avaliao das Olimpadas no soadequadas para julgar-se um capoeirista, j que a esta interessa uma avaliao fsica do atleta. Ocapoeirista leva consigo a malandragem, a malcia, a mandinga, a musicalidade, a ginga de corpo, acriatividade, atributos que no seriam possveis de serem avaliados atravs de jogos olmpicos. Alm

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    professores que estabelecem trabalhos no exterior a requererem polticas de apoio

    do Ministrio das Relaes Exteriores do Brasil, atravs de embaixadas e

    consulados. Outra reivindicao desses mestres e professores a adoo demedidas que os diferenciem de aventureiros que vo ganhar a vida no exterior e

    passam a adotar indevidamente a titulao de professores, sem terem de fato

    nenhuma experincia no ensino da capoeira.

    Encontramos tambm a presena da capoeira no cinema, em peas de

    teatro, em shows, nas publicidades, em academias de ginstica, em grandes

    companhias de dana, em ONGs, em escolas, universidades, etc., constituindo

    parcerias com os setores pblico e privado. Muitos grupos tm ainda se utilizado dasubmisso de projetos a editais pblicos voltados para as reas da cultura e do

    esporte como uma forma de obter recursos para atender diversidade de suas

    prticas. Nesse sentido, ressaltamos que, ao se pensar na difuso da capoeira

    deve-se ter em mente o [...] princpio de que no h uma capoeira apenas, mas

    capoeiras, no plural. Preservar essa diversidade e difundir uma cultura de tolerncia

    preservar um cenrio em que cada manifestao particular da capoeira encontra

    seu lugar. (VIEIRA; ASSUNO, 2008, p.17).

    Atravs principalmente de iniciativas de capoeiristas, existe hoje tambm

    uma diversidade de produtos especializados, indo desde os que tm um alcance

    restrito a pequenos grupos aos que tm uma circulao internacional e entre vrios

    grupos. Nos diversos eventos de capoeira encontramos expostos a venda CDs,

    DVDs, revistas, livros, vestimentas e instrumentos. Normalmente, quando os

    capoeiristas viajam para ministrar cursos j levam consigo o material produzido por

    ele ou por seu grupo. Outros adquirem alguns produtos de mais difcil acesso para

    revenderem por preos maiores. Nas bancas de revistas de todo o pas tambm

    encontramos publicaes voltadas para os capoeiristas, que vm frequentemente

    acompanhadas de CDs e DVDs.

    Nesses tempos de globalizao, a internet tornou-se uma ferramenta

    importante de comunicao e divulgao de trabalhos e produtos voltados

    capoeira. Atualmente, muito comum que os mestres e professores mantenham

    stios na internetonde disponibilizam informaes sobre a sua trajetria e a do seu

    disso, esta pretenso vai de encontro inexistncia de uma uniformidade e um consenso nas formasem que treinada e praticada entre os estilos e diversos grupos.

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    grupo, fotos e registros dos trabalhos realizados, dados para contato, etc. Alm

    disso, os grupos costumam manter redes de e-mail e utilizar contas nas redes

    sociais, como o facebook, para a comunicao com alunos e professores presentesem outros pases.

    As novas tecnologias tm proporcionado o acesso em todo o mundo aos

    conhecimentos da capoeira e aos ensinamentos dos antigos mestres. Muitos

    capoeiristas possuem stios e blogs onde so hospedados vdeos, msicas,

    reportagens, artigos, etc. Encontramos iniciativas bastante interessantes, como a de

    um capoeirista apelidado por Teimosia que construiu um banco de dados com um

    mapeamento genealgico dos principais mestres de capoeira e seus discpulos,disponibilizado na internetem um blogcom o nome de CapoeiraGens22. No youtube,

    stio de compartilhamento de vdeos, qualquer iniciante ou curioso tem fcil acesso a

    vdeos com imagens e falas de novos e antigos mestres, a documentrios, a

    gravaes de eventos e de rodas, a aulas de movimentaes e de instrumentos de

    capoeira, etc. No entanto, o uso da internetcomo ferramenta de aprendizado ainda

    bastante questionado por mestres de capoeira, apesar deles mesmo utilizarem

    amplamente, pois vai de encontro aos mtodos tradicionais de ensino, que

    privilegiam a transmisso oral e os saberes passados diretamente de mestre a

    discpulo.

    Com a criao da lei 10.63923, em 2003, ampliaram-se as possibilidades

    de insero dos capoeiristas dentro dos espaos escolares e universitrios. A partir

    da preocupao com o ensino e a valorizao das culturas afro-brasileiras, a

    capoeira passou a ser mais frequentemente observada como atividade

    complementar e at mesmo como componente curricular, atuando junto s reas de

    educao fsica, histria, educao artstica, literatura, etc.

    22 O blogse encontra hospedado no endereo . Acesso em: 08 mai.2012.23 A lei 10.639 foi promulgada em 09 de janeiro de 2003. Ela alterou as diretrizes e bases daeducao nacional, incluindo no currculo oficial a obrigatoriedade da temtica "Histria e CulturaAfro-Brasileira. O objetivo da lei que, trabalhando a histria e as culturas dos povos da frica e donegro no Brasil ao longo do cotidiano das escolas, criem-se condies de reforar o clima de respeitoe valorizao das diferenas, conscientizando da importncia das culturas e dos povos negros naformao da nao brasileira, possibilitando o surgimento de cidados mais conscientes de seus

    direitos, deveres e valores, e superando atitudes preconceituosas e discriminatrias com as quais nosdeparamos diariamente, gerando novos olhares em torno da alteridade.

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    Como uma importante poltica pblica voltada para a valorizao da

    capoeira, foi lanado em 2006 o Projeto Capoeira Viva, do Ministrio da Cultura

    (MinC). Conforme Vieira e Assuno (2008, p. 18), [...] consiste basicamente noapoio, mediante regras publicadas em edital de ampla divulgao, a projetos

    relacionados capoeira em diversas reas, da organizao de acervos documentais

    a aes relacionadas ao ensino da arte em comunidades pobres. Atravs dele,

    muitos mestres obtiveram recursos que foram fundamentais para o desenvolvimento

    de diversos projetos que vieram contribuir com a divulgao e valorizao dessa

    cultura. Segundo os autores, outras iniciativas j teriam sido lanadas pelo governo

    federal, algumas ainda na dcada de 1980, mas esta se diferenciaria das demais.

    [...] o que peculiariza o projeto Capoeira Viva, em nossa avaliao, oesforo no sentido de assegurar a transparncia na definio de critriospara a seleo de projetos a serem financiados e a ampla divulgao deseus resultados. Dessa forma, tem-se, no incio do sculo XXI, uma primeiraao governamental, de carter sistmico, relacionada ao desenvolvimentoda capoeira. (Ibid., p.18).

    No dia 15 de julho de 2008, a capoeira foi registrada como Patrimnio

    Cultural Imaterial do Brasil, pelo Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional

    (IPHAN), a partir da incluso do ofcio dos mestres de capoeira no Livro dos Saberes

    e da roda de capoeira no Livro das Formas de Expresso. Esse registro veio

    possibilitar o maior desenvolvimento de polticas pblicas de suporte e incentivo

    comunidade da capoeira, e, principalmente, de amparo aos velhos mestres.

    J em decorrncia desse registro, foi constitudo, em 2009, o Grupo de

    Trabalho Pr-Capoeira (GTPC), composto por representantes de unidades do

    Ministrio da Cultura do Brasil (MinC)24 para estruturar o Programa Nacional de

    Salvaguarda e Incentivo Capoeira (Pr-Capoeira). Nesse sentido, atravs doIPHAN, o Ministrio da Cultura promoveu trs encontros regionais do Pr-Capoeira

    no ano de 2010. Os encontros ocorreram nas cidades de Recife, Rio de Janeiro e

    Braslia25, e reuniram representantes do poder pblico e de diversos segmentos

    sociais da capoeira para propor, discutir e planejar aes e demandas a serem

    24 O Grupo de Trabalho Pr-Capoeira coordenado pelo Instituto do Patrimnio Histrico e ArtsticoNacional (IPHAN), sendo composto tambm por representantes da Fundao Cultural Palmares

    (FCP), das secretarias da Identidade e da Diversidade Cultural (SID) e de Polticas Culturais (PC).25 Havia o indicativo de que ocorreria em 2011 um encontro nacional na cidade de Salvador (BA), oque no se concretizou. At o momento no foi divulgada previso de data para a sua realizao.

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    consideradas na formulao do programa. Durante os mesmos, os participantes

    foram distribudos entre seis grupos de trabalho que tinham como temticas:

    capoeira e polticas de fomento; capoeira, profissionalizao, organizao social einternacionalizao; capoeira e educao; capoeira, esporte e lazer; capoeira e

    polticas de desenvolvimento sustentvel; e capoeira, identidade e diversidade.

    Nos dias atuais, entre as demandas que se colocam como centrais para

    as polticas pblicas destinadas capoeira, temos a necessidade de

    reconhecimento e apoio aos mestres idosos, de forma a possibilit-los uma melhor

    qualidade de vida e a continuidade do trabalho de transmisso dos conhecimentos

    tradicionais da capoeira. Neste sentido, como ao do Pr-Capoeira, foi lanado, emoutubro de 2010, o edital do Prmio Viva Meu Mestre, que concedeu cem prmios

    no valor de quinze mil reais26 para mestres de capoeira com mais de cinquenta e

    cinco anos de idade, em situao de vulnerabilidade econmica, e com os seus

    trabalhos reconhecidos no universo da capoeira pela contribuio para a

    transmisso das tradies. Para a seleo dos mestres foi criada uma comisso

    composta por trs representantes do MinC, um da Fundao Cultural Palmares, um

    do IPHAN, trs capoeiristas reconhecidos e dois reconhecidos acadmicos

    pesquisadores da capoeira. O resultado final dos prmios foi divulgado em agosto

    de 2011, porm trs mestres selecionados faleceram antes do anncio27.

    Alm disso, em maro de 2012, o IPHAN enviou Organizao das

    Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (UNESCO) a candidatura da

    roda de capoeira Patrimnio Cultural Imaterial da Humanidade. Desde ento, ele

    tem coletado assinaturas de apoio atravs de uma petio pblica presente na

    internet28, j tendo reunido mais de mil adeses. A candidatura tem como finalidade

    oferecer capoeira mais fora poltica para pressionar governos e instituies a

    manterem dilogo com a comunidade de capoeiristas e a criarem mais polticas

    continuadas de incentivo e investimento.

    26 Deste valor foram deduzidos impostos, restando aproximadamente R$10.800,00 para cadapremiado.27 So eles os mestres Arthur Emdio, Peixinho (estes dois agraciados pelo importante trabalhodesenvolvido no Rio de Janeiro) e Bigodinho (agraciado pelo trabalho desenvolvido na Bahia). Alm

    deles, o tambm premiado Mestre Joo Pequeno, discpulo de Mestre Pastinha, morreu no dia 09 dedezembro de 2011.28 A petio pblica encontra-se disponvel no endereo eletrnico:. Acesso em: 08 mai. 2012.

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    1.3 Relatos sobre a capoeira no Cear

    Falar sobre a trajetria da capoeira no Cear uma tarefa rdua, devido escassez de registros disponveis. Como forma de contornar esta dificuldade, os

    relatos orais de mestres e capoeiristas antigos tm sido utilizados frequentemente

    como principais fontes de informao.

    Contam os mestres mais antigos, entre eles Mestre Lula e Mestre Z

    Renato, que a capoeira recente no Cear, sendo na dcada de 1970 que comeou

    a se desenvolver a sua prtica no estado. Entretanto, tivemos cearenses jogando a

    capoeira j na dcada de 1930. Conforme Almeida (2002), o cearense JosSisnando Lima, em 1932, foi procurar o Mestre Bimba no intuito de aprender com ele

    a capoeira, luta que no haveria em sua terra natal. Devido a Sisnando ser branco,

    Mestre Bimba inicialmente resistiu ideia, mas aceitou ensin-lo. Sisnando estava

    cursando a Faculdade de Medicina na Bahia, e atravs dele comeou a divulgao

    da capoeira no meio universitrio, pois vrios outros alunos de medicina o

    acompanharam academia de Mestre Bimba. O Mestre aceitou e foi assim que a

    Capoeira entrou pela primeira vez no meio universitrio, sendo a sua Academia na

    Roa do Lobo freqentada por vrios estudantes que junto com o povo fizeram a

    histria da Regional. (ALMEIDA, 2002, p. 18). Sisnando foi um dos alunos que mais

    ajudou Mestre Bimba durante o perodo inicial da Capoeira Regional, tendo ficado

    conhecido como a pedra fundamental da Regional, expresso que se encontra at

    hoje em uma foto sua, presente na Fundao Mestre Bimba, em Salvador,

    atualmente comandada por Mestre Nenel, filho de Mestre Bimba. Assim como

    Sisnando, outros cearenses que estudaram medicina na Bahia tambm chegaram a

    treinar com Mestre Bimba. Entre esses, temos conhecimento dos nomes de Ruy

    Gouveia, Daltro Holanda e Aquiles Gadelha.

    Em 1955, Mestre Bimba e alguns de seus alunos estiveram no Cear

    mostrando a sua Capoeira Regional. No dia 07 de fevereiro de 1955, o jornal O

    Povo veiculou uma matria divulgando que eles apresentariam nessa data a

    capoeira e o candombl, em Fortaleza, no Teatro Jos de Alencar, em um

    espetculo denominado Uma noite na Bahia.

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    Contudo, Jos Renato Vasconcelos de Carvalho, conhecido como Mestre

    Z Renato, reconhecido pelos capoeiristas do Cear como o primeiro professor de

    capoeira no estado a formar discpulos que deram continuidade prtica dacapoeira e criao de grupos. Nascido na cidade de Crates, ele aprendeu a

    capoeira em viagens feitas pela Bahia, pelo Rio de Janeiro e pelo Maranho.

    Segundo ele relata, teve aulas de capoeira com diversos renomados mestres, como

    Mestre Bimba e Mestre Leopoldina. Chegando a Fortaleza, em 1972, comeou a dar

    aulas de capoeira no colgio Oliveira Paiva. Foram seus discpulos os capoeiristas

    conhecidos como Jorge Nego, Everaldo Ema e Joo Baiano, que deram

    continuidade a divulgao da capoeira no estado. Grande parte dos mestres querepresentam e comandam hoje a capoeira do Cear tem em sua genealogia o nome

    de Mestre Z Renato e de seus discpulos.

    Depois de Z Renato, outros capoeiristas vieram a esse estado trazendo

    influncias da capoeira praticada em outros loca