Suplemento Politica Operaria 124

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SUPLEMENTO MAR /ABR 2010 Nº 124 “O esquerdismo facilitou a contra-revolução”, repetiu há dias, pela centésima vez, Carlos Brito, numa assembleia do PCP consagrada ao 25 de Abril. É bom que continuem com a cantilena, que equivale a uma confissão. Na verdade, a cam- panha contra os malefícios do “esquerdismo” contém muito mais do que a busca dum bode expiatório, ou a tacanha arro- gância de quem se julga dono do movimento e não tolera o desrespeito pelas suas “directivas”; ela resume a linha política real do PCP melhor do que todos os quilómetros de resoluções do comité central. O caso é que o PCP ainda não conseguiu, e provavelmente nunca conseguirá, digerir este facto, assombroso e desnorteante à luz do seu “marxismo”: a vaga popular espontânea que galgou os limites da democratização fixados pela Junta de Salvação Nacional e modificou anarquicamente todas as regras do jogo. Apenas uma semana após o 25 de Abril, Cunhal e os seus amigos descobriam com apreensão e alguma amargura que os trabalhadores, manifestando-lhes reconhecimento pelo seu passado de resistência ao fascismo, não se contentavam com a liberdade outorgada e davam ouvidos às mais estranhas ideias. Os factos políticos começaram a ser criados na rua e nos plenários, ao sabor de agitadores de ocasião – desde o sanea- mento de administradores à ocupação de casas, à proposta de igualização dos salários ou à exigência de independência ime- diata para as colónias. Comissões ad hoc, eleitas em assembleia e com uma composição imprevisível, assumiram a direcção dos acontecimentos. E, facto alarmante para o PC, as iniciativas vanguardistas, provenientes de pequenas minorias, popularizavam-se pron- tamente e em breve se tornavam corrente dominante, sem ter em conta os ritmos previstos e deitando por terra os equilíbrios laboriosamente negociados ao nível do governo ou da Junta. O PC encontrou-se assim na situação desconfortável de ter que pedir às massas que se comportassem ordeiramente para não comprometer a sua credibilidade perante os parceiros do governo. Como não foi obedecido, criou a psicose das “pro- vocações esquerdistas”, que transviavam o bom-senso dos trabalhadores. Ora, os “esquerdistas”, pulverizados em grupos e grupi- nhos (maoistas, anarquistas, anarco-sindicalistas, anarco-comu- nistas, guevaristas, leninistas...), numericamente insignifican- tes, sem experiência política, só deviam a sua inesperada influência ao facto de irem ao encontro do estado de espírito da vanguarda. E foi assim ao longo de todo o primeiro ano, A culpa foi do esquerdismo? até às eleições para a Constituinte, como mostram numerosos episódios entretanto apagados e hoje esquecidos de quase todos. O “PARTIDO DE VANGUARDA” FICA PARA TRÁS Quem se lembra de que, pouco mais de um mês após o 25 de Abril, José Magro, dirigente do PC, foi expulso dos CTT por acusar a greve (que nós apoiávamos) de pretender “fo- mentar um clima de descontentamento e de revolta que só à reacção e ao fascismo aproveitam”? Ou de que a primeira resposta da Intersindical às greves que proliferavam como cogumelos foi considerá-las “inoportunas” e “encorajadas pela reacção”, enquanto Cunhal admoestava que “a greve gene- ralizada pode levar ao caos”? Ou de que o slogan “nem mais um só soldado para as colónias”, lançado pelos maoístas, foi adoptado pelo povo nas manifestações, apesar da desaprovação do PC? Nesse Verão, enquanto os “esquerdistas” ajudavam febril- mente os moradores das barracas a ocupar casas, faziam pique- tes à porta da Penitenciária para não deixar soltar os pides, exigiam a libertação dos primeiros presos políticos da democra- cia, activavam as primeiras ocupações, o PC afadigava-se a cuidar dos sindicatos e do MDP, a prevista “frente popular” que acabou como refúgio de democratas moderados, ou enredava- -se nas tricas do Conselho de Estado e do Governo Provisório, sem perceber que a corrente popular derivara para outros canais. Com os operários das multinacionais (Timex, ITT, Ap- plied, etc.) a lutar contra a sabotagem económica, o Avante deitava água na fervura, assegurando que “o investimento estrangeiro tem ainda vastas possibilidades de uma vantajosa e larga retribuição”. A greve da TAP, que formulou reivindi- cações avançadas, foi difamada em comunicados do PCP. Em Setembro, quando os operários da Lisnave puseram Lisboa em estado de choque, desfilando a exigir o saneamento dos administradores comprometidos com o fascismo, andava o PC a ver se apaziguava Spínola com uma manifestação de homenagem... O “partido de vanguarda” dava conselhos de prudência que não eram escutados, anunciava “conquistas” que o movimento já tinha deixado para trás, e, a cada passo, via com desgosto os seus militantes deixarem-se envolver pelos “esquerdistas”. O perigo de contágio tornou-se evidente na euforia do 28 de Setembro, que pôs lado a lado militantes “comunistas” e FRANCISCO MARTINS RODRIGUES Na passagem de mais um aniversário do 25 de Abril e do 11 de Março, publicamos um texto de 1994 em que Francisco Martins Rodrigues refere o papel do “esquerdismo”.

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Suplemento interior do numero 124 da revista comunista portuguesa Politica Operaria.

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2010

Nº 124

“O esquerdismo facilitou a contra-revolução”, repetiu hádias, pela centésima vez, Carlos Brito, numa assembleia doPCP consagrada ao 25 de Abril. É bom que continuem com acantilena, que equivale a uma confissão. Na verdade, a cam-panha contra os malefícios do “esquerdismo” contém muitomais do que a busca dum bode expiatório, ou a tacanha arro-gância de quem se julga dono do movimento e não tolera odesrespeito pelas suas “directivas”; ela resume a linha políticareal do PCP melhor do que todos os quilómetros de resoluçõesdo comité central.

O caso é que o PCP ainda não conseguiu, e provavelmentenunca conseguirá, digerir este facto, assombroso e desnorteanteà luz do seu “marxismo”: a vaga popular espontânea quegalgou os limites da democratização fixados pela Junta deSalvação Nacional e modificou anarquicamente todas as regrasdo jogo. Apenas uma semana após o 25 de Abril, Cunhal e osseus amigos descobriam com apreensão e alguma amarguraque os trabalhadores, manifestando-lhes reconhecimento peloseu passado de resistência ao fascismo, não se contentavamcom a liberdade outorgada e davam ouvidos às mais estranhasideias. Os factos políticos começaram a ser criados na rua e nosplenários, ao sabor de agitadores de ocasião – desde o sanea-mento de administradores à ocupação de casas, à proposta deigualização dos salários ou à exigência de independência ime-diata para as colónias. Comissões ad hoc, eleitas em assembleiae com uma composição imprevisível, assumiram a direcçãodos acontecimentos.

E, facto alarmante para o PC, as iniciativas vanguardistas,provenientes de pequenas minorias, popularizavam-se pron-tamente e em breve se tornavam corrente dominante, sem terem conta os ritmos previstos e deitando por terra os equilíbrioslaboriosamente negociados ao nível do governo ou da Junta.O PC encontrou-se assim na situação desconfortável de terque pedir às massas que se comportassem ordeiramente paranão comprometer a sua credibilidade perante os parceiros dogoverno. Como não foi obedecido, criou a psicose das “pro-vocações esquerdistas”, que transviavam o bom-senso dostrabalhadores.

Ora, os “esquerdistas”, pulverizados em grupos e grupi-nhos (maoistas, anarquistas, anarco-sindicalistas, anarco-comu-nistas, guevaristas, leninistas...), numericamente insignifican-tes, sem experiência política, só deviam a sua inesperadainfluência ao facto de irem ao encontro do estado de espíritoda vanguarda. E foi assim ao longo de todo o primeiro ano,

A culpa foi do esquerdismo?

até às eleições para a Constituinte, como mostram numerososepisódios entretanto apagados e hoje esquecidos de quasetodos.

O “PARTIDO DE VANGUARDA” FICA PARA TRÁS

Quem se lembra de que, pouco mais de um mês após o 25de Abril, José Magro, dirigente do PC, foi expulso dos CTTpor acusar a greve (que nós apoiávamos) de pretender “fo-mentar um clima de descontentamento e de revolta que só àreacção e ao fascismo aproveitam”? Ou de que a primeiraresposta da Intersindical às greves que proliferavam comocogumelos foi considerá-las “inoportunas” e “encorajadas pelareacção”, enquanto Cunhal admoestava que “a greve gene-ralizada pode levar ao caos”? Ou de que o slogan “nem maisum só soldado para as colónias”, lançado pelos maoístas, foiadoptado pelo povo nas manifestações, apesar da desaprovaçãodo PC?

Nesse Verão, enquanto os “esquerdistas” ajudavam febril-mente os moradores das barracas a ocupar casas, faziam pique-tes à porta da Penitenciária para não deixar soltar os pides,exigiam a libertação dos primeiros presos políticos da democra-cia, activavam as primeiras ocupações, o PC afadigava-se a cuidardos sindicatos e do MDP, a prevista “frente popular” queacabou como refúgio de democratas moderados, ou enredava--se nas tricas do Conselho de Estado e do Governo Provisório,sem perceber que a corrente popular derivara para outros canais.

Com os operários das multinacionais (Timex, ITT, Ap-plied, etc.) a lutar contra a sabotagem económica, o Avantedeitava água na fervura, assegurando que “o investimentoestrangeiro tem ainda vastas possibilidades de uma vantajosae larga retribuição”. A greve da TAP, que formulou reivindi-cações avançadas, foi difamada em comunicados do PCP. EmSetembro, quando os operários da Lisnave puseram Lisboaem estado de choque, desfilando a exigir o saneamento dosadministradores comprometidos com o fascismo, andava oPC a ver se apaziguava Spínola com uma manifestação dehomenagem... O “partido de vanguarda” dava conselhos deprudência que não eram escutados, anunciava “conquistas”que o movimento já tinha deixado para trás, e, a cada passo,via com desgosto os seus militantes deixarem-se envolver pelos“esquerdistas”.

O perigo de contágio tornou-se evidente na euforia do 28de Setembro, que pôs lado a lado militantes “comunistas” e

FRANCISCO MARTINS RODRIGUES

Na passagem de mais um aniversário do 25 de Abril e do 11 de Março, publicamos um textode 1994 em que Francisco Martins Rodrigues refere o papel do “esquerdismo”.

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“esquerdistas”, nas barragens contra a “maioriasilenciosa” e no assalto às sedes dos gruposfascistas. Alarmados com esta confraternização,os chefes do PC passaram a ter que manobrarem todas as frentes: dentro do governo e doMFA, com a rua, junto da sua própria base...num esforço esgotante de “desdobramentostácticos”. Para criar uma atmosfera de confi-ança no Governo, Cunhal assinou a lei anti-greve (que acabou por não ser aplicada devidoao repúdio dos trabalhadores); apelou à ofertadum dia de trabalho “para a Nação”; aconse-lhou os monopólios a “tirar uns tostões dosseus próprios bolsos para satisfazer as justasreivindicações dos trabalhadores”; condenouas primeiras ocupações de herdades no Alentejo,apoiadas pelos “esquerdistas”.

EM DEFESA DA ORDEM

Ao entrar o ano de 75, quando a pressãodo PS e PPD já provocava sinais de clivagemno seio do MFA, o PC endureceu a batalhaanti-esquerdista. O cerco ao congresso do CDSno Porto, levado a cabo pelos “esquerdistas”com largo apoio popular, uma das acções quemais fizeram progredir a consciência políticados trabalhadores do Norte, foi condenadocomo “acto desordeiro”. No 7 de Fevereiro,com milhares de operários a protestar na ruacontra a entrada no Tejo da esquadra da NATO,Octávio Pato veio para a televisão comparar amanifestação à da “maioria silenciosa” e pedirum acolhimento amistoso aos marinheirosamericanos! Às vésperas do 11 de Março estavaJoaquim Gomes no Pavilhão dos Desportosa dizer aos oficiais da PSP e da GNR “confia-mos em vocês e esperamos que confiem emnós”. No decurso do golpe, enquanto os “es-querdistas” acorriam ao Ralis e saqueavam acasa de Spínola, o PC ordenava aos seus militan-tes a máxima contenção, para não agravar asdesinteligências entre os militares. Em 19 deMaio, para mostrar à GNR que não havia quetemer radicalismos, Miguel Urbano Rodriguessentou-se ao lado deles numa homenagem aCatarina Eufémia, em Baleizão!

Se o 25 de Abril foi algo mais do que umavulgar liberalização, isso deveu-se à irrupçãopopular incontrolável desses primeiros meses.O PCP opôs-se-lhe, por ver nessas iniciativas umaameaça à “consolidação da democracia”: ouporque poderiam dividir o MFA, ou hostilizaras classes médias, ou cair numa provocação im-perialista... Para os líderes do PC, o “desenvol-vimento do processo revolucionário” consistianum trabalho exaustivo de atracção dos secto-res moderados, de neutralização de adversários,de hábeis manobras de cúpula. Cultivavamuma imagem de “vanguarda responsável” quesabe para onde vai e obtém avanços sem neces-sidade de desordens, o que agradava à massa mo-deradamente “progressista” mas à custa dumcorte crescente com a vanguarda do movimento.Assim, num período de agitação revolucionária,em que tudo dependia do protagonismo da van-guarda com o resto a vir por arrasto, o PC dis-tanciou-se dela e hostilizou-a. É isto que permi-te apontá-lo como o responsável pela derrotado campo popular face à direita.

O VERÃO DA AGONIA

Os seis meses seguintes, geralmente apre-sentados como o “auge da revolução”, foramna realidade a sua agonia tumultuosa. Tudofora jogado e perdido no primeiro ano. Se atéaí o movimento fizera uma avançada fulguran-te, isso devera-se à cobertura das unidades mili-tares afectas à esquerda. Nunca tivera que de-frontar uma oposição séria; as duas tentativasda direita foram tão ineptas que ainda favorece-ram mais a radicalização do processo. Por isso,quando, com as eleições, a burguesia e a vastamassa popular sob sua influência afirmaram,com a votação maioritária no PS e no PPD, oanseio de pôr termo à “bagunça”, a esquerdaficou desamparada. Se o povo não queria a re-volução, podiam os revolucionários impô-la?

Na realidade, a convocação precipitada deeleições, antes de estarem cumpridas as tarefasprimárias de liquidação da ditadura – prisão ejulgamento dos fascistas, criminosos de guerra ereaccionários; reconhecimento da independênciadas colónias: expropriação do grande capital; re-forma agrária – foi uma cedência do MFA à pressãoimperialista e uma oportunidade graciosamenteoferecida à burguesia para restaurar a ordem. For-talecida com a autoridade do voto popular, a bur-guesia retomou a iniciativa e lançou-se na acu-mulação de forças para a contra-revolução.

Nesta nova etapa, revelou-se toda a fragili-dade da extrema esquerda, que alimentara nãopoucas ilusões no guarda-chuva militar e não sepreparara de forma alguma para o momentoinevitável da luta pelo poder. As suas ruidosasacções de força que se multiplicaram durante o“Verão quente” (República, Renascença, mani-festação pelo Copcon...) chocavam-se contra omuro da conspiração contra-revolucionária queavançava passo a passo. Com uma parte dosgrupos maoístas negociando a fusão num parti-do único no pior momento; com outra parte(AOC e MRPP) a fazer causa comum com o PSe com os Nove, ou seja, efectivamente ao serviçoda reacção; com outros ainda (PRP, MES) embre-nhados em conspirações de quartel e na disputade caudilhos militares, com os anarquistas exi-bindo a sua soberana indiferença pelas necessi-dades reais do movimento – a extrema esquerdanão foi capaz de reganhar a iniciativa, apesar dajusteza de acções pontuais como o assalto à em-baixada de Espanha, a defesa das sedes no Porto,ou o lançamento, tarde demais, de uma organi-zação independente de soldados.

Do lado do PC, todavia, o problema não erade fragilidade ou de imaturidade mas de buscacalculista de uma saída airosa da balbúrdia que lhegarantisse uma posição estável na futura demo-cracia. Vendo a sua cotação como pára-raios popu-lar baixar vertiginosamente à medida que a bur-guesia readquiria confiança em si própria, escorra-çado do governo pela assembleia de Tancos, comas sedes queimadas pelos fascistas, empurradopara diante pela onda de ocupações de terras noAlentejo e Ribatejo, nem por isso o PC se aproxi-mou dos “esquerdistas”, embora uma parte dosmilitantes o desejasse. A táctica seguida visouessencialmente conduzir os trabalhadores às boasà resignação face ao “restabelecimento da ordem”e negociar um entendimento qualquer com osmilitares golpistas. As “grandes jornadas demassas” de Agosto, o cerco à Assembleia, etc.,

serviram à direcção do PC apenas para regatearas condições desse acordo.

AS CULPAS DO PC

A nossa resposta à acusação de que “oesquerdismo facilitou a contra-revolução” poderesumir-se assim:

1) Desde o primeiro dia, havia que apostartudo na livre expansão da iniciativa da rua, numaofensiva permanente que desse confiança aosexplorados, mantivesse os reaccionários à defesa,não lhes desse fôlego para se reorganizar, desarti-culasse os aparelhos de poder e paralisasse a ins-tabilidade dos sectores intermédios. Em vez dis-so, o PC envolveu-se num tortuoso jogo duplo,buscando contentar os trabalhadores e o gover-no, os operários e os patrões, os soldados e osoficiais – e com isso desorganizou a vanguardae permitiu o reagrupamento da direita.

2) A chave da táctica do PC, a celebérrima“aliança Povo-MFA”, com a qual esperava fo-mentar a confiança e colaboração mútuas entrea oficialidade e o movimento popular, tevecomo resultado o prolongamento das ilusõesda massa trabalhadora no MFA, alargando oespaço de manobra do Grupo dos Nove paraa preparação do golpe de direita.

3) Ao participar no Conselho de Estado enos governos provisórios, a direcção do PCgabava-se, com típica miopia reformista, de es-tar a garantir posições de força para o movi-mento operário; na realidade, estava a consti-tuir-se em refém da burguesia e garante damanutenção da ordem; só por isso exigiu aburguesia a sua presença nos órgãos de poderenquanto lhe foi necessária.

4) Amarrado ao respeito pela legalidade de-mocrática, ansioso por agradar aos sectoresintermédios, o PC não podia fazer a campanharevolucionária que se impunha pelo adiamentodas eleições até serem completadas as tarefasessenciais de extirpação da herança fascista-colo-nialista. (É verdade que, neste ponto, a extremaesquerda demonstrou igual cegueira).

5) Perante a ofensiva combinada da social--democracia, dos liberais e dos fascistas parapôr termo às conquistas populares, o PC apos-tou no clássico arsenal dos oportunistas à beirado abismo: tentar meter medo à direita sempreparar os trabalhadores para a disputa dopoder, o que conduziu o movimento a cair naarmadilha do “contragolpe” e à bancarrota.

6) Esta sucessão de erros não foi resultadode uma má avaliação das possibilidades; ins-creveu-se num plano global de democratizaçãoburguesa, que Cunhal baptizara pomposa-mente de “revolução democrática e nacional” epara o qual preparara o partido por um longopercurso reformista sob o fascismo.

Apontando o dedo acusador ao “esquerdis-mo”, os chefes do PC revelam pois involuntaria-mente a sua postura intermédia, reformista –isto é, burguesa –, hostil às potencialidades revo-lucionárias do movimento. O ingénuo generalVasco Gonçalves deixou-o escapar uma vez maisna assembleia referida no início deste artigo: “Ossoldados, generosos e inexperientes, queriamdum dia para o outro o céu e a terra e nós nãotínhamos quadros preparados dentro do Exérci-to para combater o esquerdismo”. Podem felici-tar-se por ter ganho a batalha.2

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Alexandra Kollontai (1872-1952)foi uma das figuras mais destacadas darevolução russa, em particular pelosseus contributos teóricos e práticossobre a relação entre o socialismo e acondição feminina.

Teve um trajecto político singulare exemplar. Com um passado presti-giado de velha bolchevique e notabili-zada pelo papel que desempenhou co-mo comissária do povo após a Revolu-ção de Outubro, bem como pelas ideiasque defendeu sobre o casamento pa-triarcal, o amor livre e a sexualidade, apartir de 1924 fez uma carreira viradapara a política externa – a primeira mu-lher no mundo a ser embaixadora –em que acompanhou todos os decisi-vos momentos preparatórios e subse-quentes da II Grande Guerra, paraterminar os seus dias ignorada e solitá-ria num pequeno apartamento emMoscovo.

No entanto, Alexandra Kollontaitinha sido poupada às purgas dos anos30 e seguintes e foi a única que se salvouentre os velhos  bolcheviques.  De fac-to, em 1939, do Comité Central de 1917de Lenine, só estavam três membros vivos:Estaline, Trotski (assassinado a 20 de Agostode 1940) e ela. Todos os outros tinham sidoexecutados ou levados ao suicídio, tirandoLenine e Sverdlov, desaparecidos por mortenatural.

Por isso ainda hoje se colocam questõessobre a sua atitude em relação ao regime deEstaline. Ter-se-ia ela rendido ao terror reinantee abjurado das posições anteriores? Até queponto teria colaborado com as várias oposi-ções que sucessivamente a abordaram? Comojulgar do ponto de vista ético o seu percurso,desde o momento em que chefiou a facção daOposição Operária, em 1920, até àquele em que,nos anos 50 e com Estaline ainda vivo, se reco-lheu em silêncio à privacidade da sua casa?

ETERNA EXILADA

Apesar de as teses da Oposição Operáriaterem sido rechaçadas no XI Congresso do par-tido em Agosto de 1922, Kollontai manteve--se nas suas posições. Ela e os restantes dirigen-tes da oposição foram criticados e o comitécentral recomendou a sua expulsão, coisa que oCongresso vetou. Em Outubro desse ano, foimandada para Oslo, por ser demasiado incó-moda dentro da URSS.

Em Maio de 1923 foi nomeada como em-baixadora da União Soviética na Noruega.Nesse mesmo mês e apesar de o seu afastamen-to do país ter sido uma maneira airosa de aneutralizar, escreveu uma série de artigos parao jornal da juventude comunista em que de-fendia as suas ideias sobre a liberdade sexual.Causava assim mais um escândalo, porque pu-

nha em confronto a relação contraditória entreo poder político e as ideias sociais da revoluçãoque ainda subsistiam nas consciências em lutacontra os costumes antigos. Já não cabia naideologia do partido a ideia de que o amor livre– ideal da Revolução de Outubro – não forapossível na sociedade capitalista porque a noçãode propriedade privada penetrara no casamentoe fizera das mulheres uma das formas dessapropriedade.

Kollontai defendia nesses artigos que oamor nunca fora um fenómeno apenas bioló-gico, mas também um factor social, com for-mas legais que diferiam segundo o tipo de so-ciedade e as suas necessidades. Tratava-se agorade encontrar a forma de amor adequada às con-dições proletárias, um amor multifacetado enão exclusivo, feito de simpatia, amizade ecompreensão entre camaradas e reconhecimen-to de direitos mútuos, em vez da escravaturadoméstica da mulher, da prostituição e da per-versão burguesas. Terá sido nesse momentoque Alexandra Kollontai selou o seu destinode eterna exilada. Com a defesa activa dessasideias “deslocadas”, ela, figura prestigiada e comprovas dadas na prática, no seu país e a nívelinternacional, passou a ser vista como umaameaça contra o poder do partido, que abando-nara já o programa da “nova moral” preconiza-do pelos bolcheviques e não estava disposto aque se instalassem mudanças sociais radicaisque estabelecessem o que via como o “caossocial permanente”.

Para complicar a sua situação, no Verão de1923 Alexandra Kollontai esteve em Moscovoe avistou-se com uma delegação da OposiçãoOperária. Estaline soube da entrevista e, quan-

do a embaixadora regressou a Oslo,chamou os responsáveis por esseencontro à Comissão Central de Con-trole para lhes pedir satisfações.

Noutra viagem que fez a Moscovo,certa noite Kollontai foi convocada àmesma comissão e questionada sobreas suas relações com os elementos daoposição. Finalmente, num entrevistacom Estaline, queixou-se: “Que que-rem eles de mim? Todas as noites te-nho de me justificar diante da Comis-são Central de Controle por uma acti-vidade política que abandonei”. Estali-ne prometeu estudar a questão e, comoque por coincidência, cessou a campa-nha contra ela no Pravda e nos órgãosdo partido. Em 1925, Kollontai terádesabafado com o francês Marcel Body(1894-1984), seu amigo íntimo, confi-dente e colega na embaixada: “Comolutar, como defender-me contra as calú-nias? Eles dispõem de tantos meiospara as pôr a circular!”

A campanha voltou a acender-seem 1926. Kollontai foi acusada detentar destruir a família com vista a dis-seminar entre os jovens uma sexuali-

dade desenfreada. Tinha-se formado um blocode opositores à política de Estaline e os adeptosdeste não podiam permitir que um membroinfluente desse sector exprimisse ideias contrá-rias à linha do partido, tanto mais que se prepa-rava a publicação de um novo Código da famíliaanulando o de 1918, do qual Kollontai tinhasido a principal responsável.

Em Outubro de 1926, Kollontai esteve emMoscovo entre duas missões diplomáticas. Foicontactada por um representante de Trotski,que a convidou a juntar-se à oposição. Recusoue nesse período não se pronunciou publicamen-te nem a favor dele, nem de Estaline, ao con-trário de Chliapnikov e Medvedev, seus antigosparceiros da Oposição Operária, que assinaramna altura uma confissão pública e receberam operdão de chefe supremo.

No XV Congresso do Partido, no Outonode 1926, Estaline anunciou aos delegados queNadia Krupskaia tinha renunciado à oposição.No entanto, esta declaração pareceu pouco cre-dível, já que, semanas antes, a 18 de Outubro,Krupskaia tinha promovido a publicação noNew York Times do testamento de Lenine, mui-to desfavorável a Estaline. A 20 de Maio de1927, provavelmente pressionada pelo regime,Krupskaia publicou no Pravda uma carta emque, tendo em conta a grave ameaça externa,apelava ao fim da oposição.

Em Novembro de 1927, Trotski foi expul-so do partido. Tendo-se avistado com Trotskiquando este abandonou a URSS e ainda seencontrava na Europa, Kollontai discordou dassuas teses e, na qualidade de embaixadora dogoverno soviético, solicitou a expulsão de Trot-ski da Noruega. (Aliás, todas as tentativas de

Kollontai, dissidente ou estalinista?

ANA BARRADAS

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deste de se coligar ou obter apoio de váriosopositores do estalinismo se goraram.)

Embora não existam nenhuns documen-tos a corroborar estes factos prováveis, que al-guns quiseram fazer passar por capitulação, em1930 Kollontai terá admitido a necessidade dosistema estalinista e tê-lo-á defendido contra aoposição de direita. De 1930 a 1945, foi embai-xadora da União Soviética na Noruega e noMéxico e nunca mais se manifestou contra oregime. Pelo seu prestígio de veterana e talvezpor estar, na maior parte do tempo, longe doterror estalinista, a verdade é que sobreviveu àspurgas sem grandes embaraços, tanto mais queo regime necessitava muito da sua actividadediplomática.

DISSIDENTES SILENCIADOS

Foram várias as figuras que se dobraramao regime e muito vasto o leque de cedênciasque cada um aceitou fazer. Um dos casos foi ode Nadia Krupskaia, que se afastou do grupoOposição Operária e acabou por ser isolada po-liticamente pelos estalinistas. Outro caso im-pressionante é o de Antonov-Ovseienko, eleitomembro do Comissariado do Povo para As-suntos de Guerra e de Marinha na Frente Inter-na. Em fins de 1923, aderiu à Oposição deEsquerda. Em virtude disso, foi destituído docomando militar e afastado, em 1925, da lutapolítica. Continuou na Oposição Operária até1928, quando capitulou, repudiando em tribu-nal as suas “ilusões trotskistas” e pronuncian-do-se a favor da punição de todos os acusados.Em Outubro de 1937, foi preso na sua casaem Moscovo, sob a acusação de prática de “crimecontra o Estado soviético”. Negou-se a assinaruma “confissão” falsificada por Vischinsky, foicondenado a 10 anos de prisão e torturado atéà morte. Clara Zetkin, refugiada na União So-viética, nunca disse uma palavra contra Estaline.

Anna Larina, a viúva de Bhukarine, explicaesses fenómenos de submissão ao regime por

parte de figuras históricas de grande enverga-dura política: “Havia uma verdadeira fórmulamágica que actuava imediatamente: a ameaçade exclusão do Partido… Tanto uns como ou-tros, os ‘trotskistas’ como os ‘direitistas’, à custade serem humilhados, à custa do achincalha-mento da sua própria dignidade, procuravama todo o preço não romper com o PCR(b), nãopensavam senão regressar ao Partido a despeitode Estaline. Mas, entretanto o Partido tinha-setornado o partido de Estaline. Ficando nele,os antigos oposicionistas, gente de espírito crí-tico, submeteram-se, em nome da manutençãoda unidade, ao diktat de Estaline. Nisto reside,parece-me, uma das causas essenciais do destinotrágico que conheceram os velhos bolche-viques”.

Caso raro, Gabriel Ilich Miasnikov (1889-1945), outro dissidente famoso, nunca se sub-meteu. Expulso do partido em 1922, formouuma facção chamada Grupo dos Operários doPartido Comunista Russo, composto sobretu-do por antigos membros da Oposição Operá-ria. Preso por três vezes, em 1927 foi exiladopara a Arménia, de onde fugiu para o Irão.Novamente preso, foi deportado para a Tur-quia. Em 1930 emigrou para a França. Em 1945foi sequestrado pela polícia política soviética erecambiado para a Rússia, onde foi executado.Tinha perdido os três filhos na frente de batalhacontra os nazis e a mulher, enlouquecida pelasprovações, só lhe sobreviveu poucos meses.Ao contrário de muitos, Miasnikov nunca dei-xou de defender o seu ideário: a criação de sovie-tes de produtores para gerirem a economia e atotal liberdade de expressão para todos os tra-balhadores. Foi reabilitado em 2001.

Alexandra Kollontai, pelo seu lado, terá aca-bado por prometer a Estaline não se envolverem política para assim assegurar a sobrevivênciafísica, segundo Marcel Body, que aliás muito aincentivou nesse sentido. Nunca fez nenhumadeclaração pública de louvor ao regime nemapontou o dedo ou denunciou ninguém, mas

resignou-se à omnipotência burocrática: “Nãopodemos ir contra o aparelho. Pelo meu lado,arrumei num canto da minha consciência osmeus princípios e executo o melhor possível apolítica que me indicam”, confidenciou em1929.

Essa consciência que refere não estava to-talmente adormecida. Isabel de Palencia, embai-xadora na Suécia da Espanha republicana, co-nheceu Kollontai, que lhe disse ter escrito umaautobiografia detalhada, bem mais completado que o resumo publicado na Revolução Proletá-ria russa de 1921, este conhecido como Autobio-grafia de uma mulher emancipada e mil vezes reto-cado e censurado pelos estalinistas. Esta infor-mação sobre um diário autobiográfico é corro-borada por Marcel Body. Mas em 1944.Vladimir Petrov, um agente do MVD destaca-do para a embaixada, foi encarregado de encon-trar e fotografar o manuscrito que a diplomataguardava no seu apartamento. Enviou o filmepara Moscovo, aparentemente sem o conheci-mento da embaixadora. A investigadora A. M.Itkina, que fez uma monografia sobre Kollon-tai, afirma que esses documentos e outrospapéis pessoais e apontamentos, ainda inéditos,estão na posse do Instituto Marx-Engels. Tal-vez a sua consulta nos desse mais esclarecimen-tos sobre o verdadeiro alcance do silenciamentode Kollontai.

A verdade é que, rodeada de espiões e dela-tores, ao mesmo tempo que continua a serapontada como alguém de quem a União So-viética se pode orgulhar, a diplomata AlexandraKollontai fica presa numa armadilha paradoxalda qual não mais se virá a desenvencilhar: passaa ser um troféu do regime, o mesmo regimeque deu cabo das grandes conquistas da emanci-pação feminina conseguidas nos primeiros anosda Revolução de 1917, em grande parte graçasao seu genial desempenho enquanto dirigentedo PCUS e comissária do povo.

A nova concepção de família propagan-deada pelos revolucionários de Outubro e a

“nova vida” anunciada comobandeira dos direitos das mu-lheres passavam a ser apresen-tadas como relíquias do passa-do e tomadas como excessosque era preciso corrigir. Res-taurado o patriarcado sob no-vas vestes adaptadas às neces-sidades do estalinismo, ressur-gia o que havia de pior nasociedade antiga. Kollontai sópode ter morrido na maioramargura, a 9 de Março de1952, de enfarte do miocárdio,um ano antes de Estaline e amenos de um mês de com-pletar 80 anos. Foi enterradano sector reservado aos diplo-matas e não no que se desti-nava às figuras históricas dopartido, como lhe era devido.Ainda lá está.

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Com efeito, foi por proposta de ClaraZetkin que o 8 de Março foi proclamadoo Dia Internacional da Trabalhadora pelasmais de 100 mulheres de 17 países presen-tes na 2ª Conferência Internacional deMulheres Socialistas em Copenhaga, em1910 : “As socialistas de todas as naçõesorganizarão um Dia da Mulher específico,cujo primeiro objectivo será promover odireito de voto das mulheres. É precisodiscutir esta proposta ligando-a à questãomais ampla das mulheres numa perspec-tiva socialista.”

A 8 de Março de 1911, um milhão demulheres manifestaram-se sob os lemas“O direito ao voto para as trabalhadoras”e “Unir forças pela luta pelo socialismo”na Alemanha, Áustria, Dinamarca e Suíça.Nesse mesmo ano, em Portugal, a médicaCarolina Beatriz Ângelo, presidente daAssociação de Propaganda Feminista,viúva e mãe, votou nas eleições para aAssembleia Constituinte da Repúblicarecém-instituída, invocando a sua quali-dade de chefe de família, o que provocoua posterior alteração da lei, reconhecendoo direito de voto apenas aos homens.

Nessa altura Clara Zetkin era já uma figurarespeitada, secretária internacional das mulheressocialistas e chefe de redacção do prestigiadojornal feminino Die Gleichheit (A Igualdade).Já em 1907 e apesar de, dentro da Internacional,se levantar uma oposição sistemática ao votofeminino, visto como uma forma de desviar asforças revolucionárias das mulheres e conside-rado como uma reivindicação burguesa, as 58delegadas de 14 países reunidas em 1907, emStuttgart, na Alemanha, na 1ª Conferência In-ternacional das Mulheres Socialistas, encabeça-das por Clara Zetkin, Rosa Luxemburgo e Ale-xandra Kollontai, tinham elaborado uma mo-ção que comprometia os partidos a envolver--se na luta pelo voto feminino.

A 8 de Março de 1917 (23 de Fevereiro nocalendário russo), as mulheres de Petrogradosaíram às ruas a exigir pão e paz. Ao juntar-seao meio milhão de trabalhadores em greve –entre os quais as tecelãs, costureiras e operáriastêxteis – esta manifestação maciça de mulheresfoi decisiva para obrigar o czar a abdicar e paradesencadear a Revolução de Fevereiro.

Desde então, o Dia da Mulher, com as suasconsignas feministas, ficou consagrado nospartidos comunistas como dia de luta pelaemancipação feminina. Estava demonstradoque as trabalhadoras se podiam organizar sobbandeiras próprias, ampliando assim a luta do

proletariado. A organização feminina dos socia-listas alemães dirigida por Clara Zetkin era oprincipal exemplo pelo qual se guiava o movi-mento internacional.

Desde então, duas conquistas principaisficaram adquiridas até aos dias de hoje: o princí-pio emancipador do trabalho da mulher forado lar e o direito de voto.

BURGUESAS E OPERÁRIAS

O que distinguia este movimento das co-munistas dos restantes na Europa e nas Améri-cas – na altura muito activos mas implantadossobretudo na pequena burguesia – era que asrevolucionárias insistiam em que só o proletaria-do estaria em condições de criar as condiçõespara a emancipação feminina, através do comu-nismo. Segundo elas, existe uma ligação inque-brantável entre a posição social e humana damulher e a propriedade privada dos meios deprodução. Ao salientar este dado objectivo, ascomunistas traçavam uma forte linha de demar-cação com o movimento burguês pela liberta-ção. Ao mesmo tempo, passavam a dispor deuma base para analisar a questão feminina comoparte integrante da questão da classe operária epara a associar firmemente à luta de classes e àideia da revolução.

Definiam o feminismo comunista comoum movimento de massas integrado no movi-

mento geral, não só dos proletários, masde todos os explorados e oprimidos, detodas as vítimas do capitalismo ou daclasse dominante. Daí derivava a noçãodo grande significado que teria o movi-mento feminista para a luta do proleta-riado e a sua missão histórica: a criação deuma sociedade comunista. Embora orgu-lhosas de terem nos seus partidos a fina--flor das revolucionárias, as comunistassabiam que o decisivo era ganhar para essaluta pela emancipação milhões de traba-lhadoras das cidades e dos campos queviessem a perceber que a construção deuma sociedade comunista seria a sua sal-vação. Sem essas mulheres, não poderiahaver um verdadeiro movimento demassas.

Segundo um relato de Clara Zetkin, opróprio Lenine comentou um dia comela, em 1920: “Temos de combinar onosso apelo político à consciência dasmassas femininas com os sofrimentos,as necessidades e os desejos das trabalha-doras. Todas devem saber o que a dita-dura do proletariado significará para elas:

a total igualdade de direitos com os homens,quer legais, quer na prática, na família, no Estadoe na sociedade, e que isso corresponderá tam-bém ao aniquilamento do poder da burgue-sia.”

O movimento sufragista burguês não tinhauma perspectiva tão grandiosa, em nada o preo-cupava a libertação social das operárias e nuncaaprofundava a análise das causas da desigualda-de dos sexos, pois lhe escapava a noção de queo sistema capitalista era o gerador de todo ofeixe de contradições contra as quais se insurgia.Apesar da sua pujança e projecção de massas,nesse aspecto estava muito mais atrasado doque o feminismo socialista.

Embora partilhando em muitos aspectosa sua condição de oprimidas, de facto as mulhe-res estão separadas entre si pelas suas respecti-vas classes, cujos interesses se revelam intrans-poníveis. Patroas e assalariadas nunca se po-deriam irmanar em tudo, antes se haveriam deopor justamente por causa das posições antagó-nicas em que se encontravam do ponto de vistasocial.

No relato já citado de uma conversa comLenine, Clara conta como lhe expôs a ideia deque ia propor ao congresso das mulheres socia-listas a realizar em breve. Tratava-se de chamara uma grande reunião internacional não só asmilitantes dos partidos comunistas, mastambém muitas outras que se destacavam na

8 DE MARÇO

ANA BARRADAS

Clara Zetkin, a pioneira

É na acção pioneira de Clara Zetkin que se pode encontrar a matriz original do modelo de feminismoadoptado pelos partidos comunistas no período efémero que vai desde o início do século XX

até à contra-revolução estalinista. Foi graças ao seu voluntarismo e acção afirmativa que o 8 de Marçopassou a simbolizar a luta pela emancipação feminina.

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luta pelos direitos das mulheres: as líderes dasoperárias organizadas nos respectivos sectoreslaborais, as trabalhadoras envolvidas em temaspolíticos ou sociais, todas as organizações dasmulheres burguesas, independentemente doseu pendor, e por fim professoras, médicas,escritoras e outras figuras de destaque.

O congresso, que devia ser um “corpo re-presentativo popular”, discutiria primeiro o di-reito de acesso das mulheres a todas as activi-dades e profissões. Ao entrar por este tema,automaticamente levantaria outras questões:desemprego, salário igual para trabalho igual,jornada de trabalho de oito horas, protecçãolaboral para as mulheres, organização de sindi-catos, assistência social às mães e crianças, me-didas sociais para aliviar a carga de trabalho eresponsabilidades das mães e donas de casa, oestatuto da mulher no casamento, na legislaçãosobre a família e nas leis em geral.

Quando Lenine lhe perguntou se tinha acerteza de que as comunistas seriam capazes desustentar esse debate com as não comunistas– que estariam em superioridade numérica eeram feministas muito batidas na luta política,com grande prestígio e poder de argumentação– Clara respondeu-lhe que sim, desde que seprovidenciasse uma boa preparação prévia etrabalho de equipa, porque além disso tinhama seu favor a admirável experiência da revoluçãona Rússia no que tocava à emancipação dasmulheres. E concluiu: “Mesmo que as nossaspropostas não sejam aprovadas, o simples factode termos travado esse combate porá o comu-nismo num primeiro plano e terá um grandeefeito em termos de propaganda. Além disso,dar-nos-á pontos de partida para um trabalhosubsequente.”

Infelizmente a ideia de Zetkin não mereceua aprovação da reunião das mulheres socialistas,sobretudo por causa da oposição das delegadasbúlgaras e alemãs, que dirigiam os maiores mo-vimentos de mulheres comunistas fora daUnião Soviética. Quando mais tarde Clara in-formou Lenine desta decisão, este comentou:“Que pena, que grande pena! As camaradasperderam uma excelente oportunidade de daruma nova e melhor perspectiva de esperança àsmassas de mulheres e assim atraí-las para aslutas revolucionárias do proletariado. (...) Sema actividade organizada das massas sob lideran-ça comunista não se pode vencer o capitalismoe construir o comunismo. É por isso que asmassas femininas ainda adormecidas têm deser finalmente postas em movimento.”

AS MULHERES, A GUERRAE A LUTA ANTIFASCISTA

Na primeira década do século XX, começa-vam a acumular-se as tensões que iriam darorigem à Primeira Guerra Mundial. O Congres-so Internacional Socialista de Sttutgart de 1907foi aquele em que Lenine, Rosa Luxemburgo eMartov travaram um debate aceso sobre a ne-cessidade de os comunistas não apoiarem astendências belicistas das suas burguesias. Infe-lizmente, o movimento dos partidos comunis-tas da época orientava-se já no sentido do so-cial-patriotismo.

Em 1912, no Congresso Socialista Interna-cional realizado em Basileia, Clara Zetkin fez

um apelo às mulheres para que lutassem con-tra este ambiente e se manifestassem claramentecontra a guerra.

Quando em 1914 e os deputados comunis-tas se prontificaram a votar nos respectivos par-lamentos a favor dos créditos de guerra quepermitiram o desencadear do conflito, Clara Ze-tkin aderiu sem hesitar à facção espartaquistade Rosa Luxemburgo e bateu-se pela defesados ideais internacionalistas, proletários e revo-lucionários.

Em 1915, declaradas as hostilidades, Claraorganizou a primeira Conferência Internacionaldas Mulheres pela Paz, em Berna, num país neu-tro, onde pela primeira vez se lançou a palavrade ordem da guerra revolucionária à guerra im-perialista, se exigiu o fim das hostilidades e umapaz sem anexações nem conquistas. Foi umadas iniciativas mais importantes do período daguerra e foi também a partir daqui que se cavoua divisão que depressa se iria tornar patente entreos movimentos socialista e comunista, o primei-ro a favor do apoio ao esforço de guerra, o segun-do jurando combater todas as acções belicistas.

Como principal dinamizadora da Conferên-cia Internacional, Clara passou a ser alvo daatenção da polícia, juntamente com os seuscompanheiros da ala esquerda do SPD (o parti-do comunista alemão), os espartaquistas, o quea obrigou a passar à clandestinidade. Nem porisso se coibiu de criticar a orientação política doseu partido, afirmando: “A maior parte da so-cial-democracia alemã não constitui hoje umpartido proletário, um partido socialista de lutade classe, mas um partido reformista, um par-tido nacionalista que se entusiasma com as ane-xações e conquistas coloniais”. Acusada pelosdirigentes do SPD de violar os estatutos dopartido, em Julho de 1915 foi presa e acusadade alta traição.

Não obstante a repressão exercida pelas au-toridades e pelos seus antigos companheirosde partido sobre os espartaquistas, Clara persis-te nas suas posições, apesar de em 1917 ter deabandonar a direcção do jornal Gleichheit quefundara em 1891 por, segundo se alegava, nãoseguir “a linha política do partido”.

Em Novembro de 1917 fundou o suple-mento feminino do jornal espartaquista Leip-ziger Volkezeitung, e em 1920 foi eleita presi-dente do Movimento Internacional de Mulhe-res Socialistas. Participou nas jornadas revolu-cionárias de Janeiro de 1919 em que foramassassinados os seus melhores amigos, RosaLuxemburgo, Karl Liebknecht e Leo Jogiches.

Em 1921, eleita para o comité executivo daIII Internacional, denunciou o reformismo dadirecção social-democrata e acusou-a de nãolutar com a devida energia contra a sociedadecapitalista.

Fundado o Partido Social-Democrata Inde-pendente Alemão (USPD) a partir da ala deesquerda, entre 1920 e 1932 representou-ocomo deputada no Reichstag. Quando os nazissubiram ao poder em 1933, na sua última inter-venção no parlamento fez um apelo à unidadecontra o fascismo.

Obrigada a exilar-se na Rússia – onde viveuum ano antes de morrer – adaptou-se ao estali-nismo e, à semelhança de Nadia Krupskaia,viúva de Lenine, transformou-se numa presti-giada figura simbólica.

DEPOIS DE CLARA ZETKIN

Na luta feminista, Clara teve como discípu-las de destaque Rosa Luxemburgo e AlexandraKollontai. Ambas prosseguiram o seu comba-te na teoria e na prática. A primeira teve poucotempo de vida e nunca pôde realizar todo oseu potencial. A segunda destacou-se entre to-das como a mais capaz de encontrar, a partirdas condições objectivas e com base nas premis-sas marxistas, o fio condutor teórico a seguirpelos comunistas para fazer avançar a causa fe-minista. Como comissária do povo do regimebolchevista, realizou uma obra social e políticanotável e produziu literatura institucional, lite-rária e teórica de grande valor. Ainda hoje épreciso recorrer a ela para encontrar resposta amuitos dos problemas que se colocam na abor-dagem comunista às questões do feminismo.

Lenine sintetizou bem o trabalho realizado:“Estamos a organizar cozinhas comunitárias erefeitórios públicos, lavandarias e oficinas dereparações, creches, infantários, lares para cri-anças e todo o tipo de instituições. Em suma,estamos muito empenhados em corresponderaos requisitos do nosso programa no sentidode transferirmos as funções domésticas e educa-tivas do âmbito individual e caseiro para asociedade. A mulher vai assim sendo libertadada sua velha escravatura doméstica e de toda adependência em relação ao marido. Passa a ter acapacidade de dar livre curso às suas aptidões einclinações. As crianças passam a ter oportunida-des de desenvolvimento melhores do que emcasa. Em relação à mulher, temos a legislaçãomais progressista do mundo e ela é posta emprática por representantes legítimos dos traba-lhadores organizados. Estamos a abrir materni-dades, casas para mulheres e crianças, centro desaúde materna, cursos de cuidados neonatais einfantis, fazemos exposições sobre cuidadosmaternos e infantis, e coisas assim. Esforçamo--nos ao máximo para prestar assistência a mu-lheres necessitadas e desempregadas.”

Se nos alongámos na citação, foi porquequisemos mostrar a importância que Leninedava a estes avanços e pôr em contraste estaatitude e situação com os tempos actuais, emtermos estruturais muito mais gravosos paraas mulheres e com tendência a piorar, tanto naesfera do trabalho como na vida privada.

As conquistas feministas da revolução deOutubro estavam na continuidade da linha in-ternacional sobre a emancipação feminina e con-tinham o germe de uma verdadeira transforma-ção futura. Todo esse processo foi interrompi-do e posto de lado pela contra-revolução estali-nista, que retomou o essencial da velha ideolo-gia patriarcal, adaptando-a aos interesses da no-va burguesia surgida no regime pós-leninista.

Também no Ocidente não deixou de seagravar desde então a opressão patriarcal e aexploração no trabalho. Persiste a dependênciada mulher, mesmo nos países onde se alcançoualgum desenvolvimento económico.

Não se pense pois que foi por mero acasoque em 2007, a 18 de Março, se assistiu à demo-lição no bairro Noerrebo de Copenhague doedifício em que Clara Zetkin e outras proclama-ram o 8 de Março como Dia da Mulher Tra-balhadora.

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Em Portugal, a revolução soviéticafoi saudada unanimemente por to-dos os sectores operários revolucio-nários, mas não havia cultura políticanem instrumental teórico para a apre-ciar devidamente. O poder soviétivoera uma ideia agradável aos própriosanarquistas mas foi retida especial-mente, como exemplar, pelos mili-tantes sindicalistas que nunca se dei-xaram conquistar completamente peladoutrina acrata, nomeadamente pordois dos envolvidos numa célebrepolémica de 1913, Manuel Ribeiro eCarlos Rates. Também o cruel fracassoda greve geral de Novembro de 1918exigia reflexão sobre a criação de veí-culos políticos próprios para preparare consolidar a tomada do poder pelasclasses trabalhadoras. Em Setembrode 1919 foi fundada a Federação Maxi-malista que, condicionalmente, semabandonar os princípios acratas dosindicalismo revolucionário, aceitava,como “meras práticas experimentais,imediatas, sem qualquer carácter filo-sófico ou de sistema”, “tanto a dita-dura proletariana como o regime dossoviets” (art.º 2 dos Estatutos). “Ma-ximalistas” era o termo com que, naim-prensa portuguesa da época, se tentoutraduzir bolcheviques (literalmente, os maiori-tários), denotando também que esses eram osque queriam conduzir a revolução russa ao seumáximo. O mais destacado fundador, secre-tário-geral desta organização e director do seuórgão próprio, Bandeira Vermelha, é o ferroviárioManuel Ribeiro (1871-1941), sindicalista jáveterano, publicista, romancista de mérito ealgum êxito, com lugar conquistado na históriada literatura portuguesa.

O Bandeira Vermelha saiu até Agosto de1920, difundindo sempre as ideias do bolche-vismo, como elas podiam ser entendidas porquem não tinha qualquer formação marxista.Publicou textos de Lenine, Trotski e Rosa Lu-xemburgo, além de documentos da Internacio-nal Comunista e de partidos comunistas es-trangeiros, acompanhou apaixonadamente asvagas revolucionárias húngara e italiana, pro-pugnando também para Portugal uma “revo-lução imediata” que realize a palavra de ordem:“as terras para os camponeses e as oficinas e asfábricas para o operário!”(1). Em 1919 foi publi-cado A Rússia bolchevista: a doutrina, os homens, apropriedade, o regime industrial, política interna eexterna, documentos oficiais de Etienne Antonelli,com tradução de Manuel Ribeiro, obra que teriaainda uma reedição em 1921. Manuel Ribeirodirigiu então várias colecções de livros de divul-gação “sovietista”, onde se publicaram A RússiaNova de Henriette Roland, a Constituição Políticada República dos Sovietes (precedida por um textode Trotski), anunciando-se livros de Lenine,

Bukarine, Souvarine e o capitão Sadoul. Sur-giram ainda, de diversos quadrantes, algumasoutras brochuras de divulgação sobre a revo-lução russa e seus propósitos.

Dissolvida a Federação Maximalista emDezembro de 1920, cria-se o Partido Comunis-ta Português (PCP) a 1 de Março de 1921.Alguns meses depois é constituída a sua JuntaNacional, secretariada por Caetano de Sousa.Manuel Ribeiro está na Comissão de Educaçãoe Propaganda do partido e é “redactor princi-pal” do seu semanário O Comunista, que todaviasuspende a publicação, pouco tempo depois.O romancista – que caíra sob a influência docélebre padre Cruz durante uma prisão quesofreu por ocasião da grande greve ferroviáriado Verão de 1919 – converte-se então ao cato-licismo, abandonando a militância comunistaactiva, sem contudo trair a causa popular e osideais socialistas. O Comunista retomaria a publi-cação em 1923, como quinzenário, sob a direc-ção de Carlos Rates, passando depois, a partirde meados de 1925, a ser dirigido pelo operárioe sindicalista agrícola de Coruche Manuel Fer-reira Quartel. Entretanto, de 1925 a 1926, pu-blicou-se no Porto uma nova série de A Ban-deira Vermelha, onde era editor o sapateiro JoséSilva (1894-1970), futuro autor das Memórias deum operário. Em Lisboa, o quinzenário A In-ternacional, dos partidários da InternacionalSindical Vermelha (ISV), publicou-se entre 1923e 1926 sob a direcção de João Pedro dos Santos.Este jornal deu ainda à estampa uma colecçãointitulada ‘Biblioteca da Internacional’, onde

se publicaram os Estatutos da ISV,dois livros de Alexandr Losovsky –A ditadura do proletariado (1924), Ossindicatos e a revolução (1925) - e Quinzedias na Rússia soviética de F. Liebers e J.B. Cornet.

À altura da fundação do PCP, JoséCarlos Rates (1879-1945) aparece noseu Conselho Económico. Antigomarinheiro e operário conserveiro,natural da região de Setúbal, era umsindicalista experiente e combativo,que se destacara como articulista naimprensa operária e como organizadorde sindicatos agrícolas nos camposalentejanos. Experimentara já duraspenas de prisão e participara, em lugarde destaque, em todos os congressosoperários. Tendo ascendido social-mente, adquiriu hábitos um poucomais burgueses e um certo pendorpara soluções administrativas e tecno-cráticas para os problemas sociais,nomeadamente por via da conciliaçãocom os reformistas e da negociaçãocom o poder. Aderiu de imediato àrevolução soviética e propugnou a di-tadura do proletariado, mas procu-rando integrá-la nos seus pontos devista de sindicalista revolucionário –

conforme expôs numa longa série de artigosno diário A Batalha – não tendo por issoaderido à Federação Maximalista.

Logo a seguir à fundação do partido for-mam-se as Juventudes Comunistas, lideradaspelo turbulento metalúrgico José de Sousa, queera secretário-geral das Juventudes Sindicalistase arrastou consigo uma parte destas. As relaçõescom a CGT azedam então definitivamentecom a publicação do Manifesto do PCP, queacompanhava a publicação das 21 condições daadesão à Internacional Comunista (IC). Estesdocumentos são aberta e veementementecondenados nas páginas de A Batalha, dando--se então a cisão e dissolução final no camposindicalista, com a CGT agora claramente come-tida aos princípios anarquistas e os simpatizan-tes do bolchevismo a decidirem-se pela adesãoao PCP e/ou à ISV. O 3º Congresso NacionalOperário realizado na Covilhã, em Outubrode 1922, seria já profundamente marcado poresta cisão, que atingiu aí expressões de grandevirulência, precisamente a propósito da filiaçãointernacional do movimento sindical portu-guês, tendo então vencido maioritariamente aopção pela adesão da CGT na AIT, de inspiraçãoanarquista, que aliás na altura ainda não estavasequer formada.

Caetano de Sousa, secretário-geral do novopartido, parte para Moscovo em finais de 1922,chefiando uma delegação que participa no IVCongresso da IC. No seu regresso estala umagrave crise no partido, que só será resolvidacom a realização do seu 1º Congresso, a 22-23

Nos primórdios do comunismo português

ÂNGELO NOVO

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RELENDO... ROSARELENDO... ROSARELENDO... ROSARELENDO... ROSARELENDO... ROSAA ilusão segundo a qual o parlamento é oeixo central da vida social, a força motrizda história universal, é uma ilusão que nãosó é possível explicar historicamente, co-mo é necessária para a burguesia em lutapelo poder e ainda mais para a burguesiaque o detém. O fruto natural dessa con-cepção é o famoso “cretinismo parlamen-tar” que, perante a verborreia satisfeitade algumas centenas de deputados numacâmara legislativa burguesa, fica cego pe-rante as forças gigantescas da históriamundial que agem no seu exterior, no flu-xo da evolução social, e que nenhum casofazem dos fazedores de leis parlamenta-res. Ora é precisamente este jogo das for-ças elementares brutas da evolução so-cial, no qual as próprias classes burguesasparticipam sem o saber nem querer, queconsegue reduzir constantemente não sóo significado imaginário mas todo o signifi-cado do parlamentarismo burguês. (…)O parlamentarismo, longe de ser um produ-to absoluto do desenvolvimento democrá-tico, do progresso da humanidade e deoutras belas coisas do género, é, ao con-trário, uma forma histórica determinadada dominação da burguesia e — isto é só oreverso dessa dominação — da sua lutacontra o feudalismo. O parlamentarismoburguês só é uma forma viva enquantodurar o conflito entre a burguesia e o feu-dalismo. Logo que o fogo vivificante destaluta se extinguir, o parlamentarismo perdeo seu objectivo histórico do ponto de vistada burguesia.(...)Os diferentes grupos da reacção feudal--burguesa dominante deixaram de ser,desde aí, decididos por provas de forçano parlamento, mas por negociatas noscorredores do parlamento. Os resíduosdos combates parlamentares abertos daburguesia já não são conflitos de classe ede partidos mas, quando muito, em paísesretardatários como a Áustria, querelas denacionalidades, isto é, de cliques cuja for-ma parlamentar adequada é a disputa, oescândalo.Com o fim dos combates entre partidosburgueses desaparecem igualmente assuas formas de expressão naturais: as per-sonalidades parlamentares marcantes, osgrandes oradores e os grandes discursos.O duelo de oratória como meio parlamen-tar só faz sentido afinal para um partidode combate que procure um apoio entreo povo. O discurso no parlamento é poressência sempre um discurso “à janela”.Do ponto de vista das negociatas de basti-dores, que são o meio normal de regularos conflitos de interesses no quadro docompromisso feudal-burguês, os duelos deoratória são desprovidos de sentido e atéimportunos. Isso explica a indignação dospartidos burgueses suscitada pelas “ver-borreias” no Reichstag, o sentimento deparalisia e de abatimento perante a pró-pria inutilidade que pesa como uma placade chumbo sobre as campanhas oratóriasdos partidos burgueses e que transformao Reichstag num lugar de deserto espiritualdos mais mortais.

(“Social-democracia e parlamentarismo”,

Sachsischs Arbeiterzeitung, 1904)

de Novembro, em Lisboa, onde intervém odelegado da IC Jules Humbert-Droz im-pondo Carlos Rates como secretário-geral,expulsando Caetano de Sousa e suspenden-do José de Sousa por seis meses. O Comunis-ta retoma a sua publicação em Maio de 1923,com Carlos Rates como “redactor principal”e artigos ou citações dos clássicos, de Lenine,Trotski, Zinoviev, Clara Zetkin e Lozovski(2).Tenta-se precisar no plano teórico o que seráa sociedade comunista e distinguem-se osprincípios do comunismo e do anarquismo.Propugna-se para Portugal, no imediato,um governo operário-camponês que previnaa ascenção do fascismo(3).

Em 1925 o partido português recebe avisita de dois agentes do Comintern, umdos quais o argentino Victorio Cordovilla,que passou então a ser o seu “controleiro”,a partir de Madrid. Inicia-se a “bolchevi-zação” organizativa do partido, estabelecem--se relações regulares com a InternacionalComunista e seus organismos da juventu-de, sindical, de camponeses, bem como como Socorro Vermelho Internacional. Para fazerface ao perigo do golpismo fascista, CarlosRates advoga uma aliança com o Partido Ra-dical e a Esquerda Democrática de Domin-gues dos Santos, mas a sua influência nopartido já começara a declinar, acabando mes-mo por ser expulso, por desviacionismo àsdirectivas políticas da Internacional, no 2ºCongresso do PCP, em Maio de 1926.Precisamente quando o fascismo batia àporta. Carlos Rates era um homem estudio-so e reflectido, que deixou alguma obra teó-rica (O problema português: os partidos e o opera-riado, 1919; A ditadura do proletariado, 1920; ARússia dos sovietes, 1925), que hoje tem apenasum interesse de curiosidade histórica. De-pois da sua expulsão do PCP enveredou pelojornalismo, publicou Democracias e ditaduras(1927) e acabaria por aderir à União Nacionalsalazarista em 1931, onde aliás não fez car-reira visível. Interessou-se por questõescoloniais (ele que tinha advogado a vendadas colónias à melhor oferta) e escreveu doisromances.

Da vida do PCP nos anos seguintes sabe--se que, sob a direcção de José de Sousa,participou em vários golpes e conspiraçõescontra o novo regime, com destaque para arevolta militar democrática de 3 a 9 de Fe-vereiro de 1927. À excepção desta, onde aliásos comunistas participaram de formasubalterna e praticamente desarmados, asrestantes foram sempre facilmente esma-gadas, após alguns tiros, bombas, brados ecorrerias. O jovem partido sofreu então forterepressão, com centenas de prisões e de-portações. Já nos anos 1930 haveria nova-mente algumas tentativas de “reviralho”com algum impacto, nomeadamente o gol-pe militar de 26 de Agosto de 1931. Segundoo duvidoso testemunho do ex-inspector daPIDE Fernando Gouveia, que cita documen-tação apreendida, o PCP terá firmado um“contrato” escrito com o major Sarmentode Beires para participar neste movimento,recebido armas para o efeito, já na previsãode, após a vitória, se rescusar a devolvê-lasao directório vencedor, aproveitando a opor-

tunidade para “fazer a revolução social eimplantar a ditadura do proletariado”(4).

Uma delegação do PCP que inclui o jo-vem torneiro transmontano Bento Gonçal-ves (1902-1942), do Arsenal da Marinha, vaia Moscovo em 1927, ao Congresso dosAmigos da URSS, por ocasião do 10º ani-versário da Revolução de Outubro, regres-sando com a incumbência de reorganizar opartido. Uma conferência realizada a 21 deAbril de 1929, nas instalações da Caixa dePrevidência do Arsenal, toma em mãos essatarefa, elegendo Bento Gonçalves como se-cretário-geral. O partido tem trinta membrosorganizados, abrindo-se nele um abismoem relação ao seu passado. Segundo algunstestemunhos, o barbeiro Júlio César Leitão,expulso do Brasil, e com alguma experiênciade militância no PCB, introduz em Portugalo método de organização por “comités dezona”, com reuniões em plena rua. O mé-todo de agitação e propaganda mais comumdesses dias era o chamado “comício-relâm-pago”, em que, protegido por dois ou trêscompanheiros armados, um orador discur-sava em público, por alguns breves minutos,procedendo-se a alguma distribuição de pan-fletos, dispersando todos depois em boaordem.

Por essa altura fixa-se em Lisboa umagente da IC de nacionalidade checa, Ber-nard Freund (“René”), que participa nadirecção da federação da juventude (e talveztambém do partido) até ser preso e expulsodo país em 1932. A 15 de Fevereiro de 1931começa a publicar-se o jornal Avante!. A linhageral do comunismo internacional na alturaera a doutrina “classe contra classe”, mascomeçava-se a evoluir, com novas instruções,no sentido do que viria a ser a linha da “frentepopular”, consagrada em 1935 no 7º Con-gresso da IC(5). Sem que alguma vez se ti-vesse disseminado na vanguarda operáriaorganizada do país um mínimo de culturamarxista, sem um verdadeiro processo de“bolchevização” do PCP, começava o pro-cesso da sua normalização estalinista.

1) João G. P. Quintela, Para a história do movi-mento comunista em Portugal: 1. A construçãodo partido (1º período 1919-1929), Afronta-mento, Porto, 1976, p. 30.

2) Podem ser visionadas em linha quinzeprimeiras páginas de O Comunista (entre1921 e 1926), em http://www.pcp.pt/partido/anos/80anos/o-comunista.html.

3) João G. P. Quintela, ob. cit., p. 58-61.4) Fernando Gouveia, Memórias de um inspec-

tor da PIDE, Roger Delraux, Lisboa, 1979,págs. 59-61.

5) João Arsénio Nunes, ‘Sobre alguns as-pectos da evolução política do Partido Co-munista Português após a reorganizaçãode 1929 (1931-33)’, in Análise Social, vol.XVII (67-68), 1981-3.º-4.º, p. 715-731.8