Sulparati - Em Julho 2009
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Tão cedo passa tudo quanto passa!
Morre tão jovem ante os deuses quanto
Morre! Tudo é tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe
E cala. O mais é nada.
Ricardo Reis, Odes
Camille
Claudel
eli – Julho 2009
SONETO DE MAL-AMAR
Invento-te recordo-te distorço
a tua imagem mal e bem amada
sou apenas a forja em que me forço
a fazer das palavras tudo ou nada.
A palavra desejo incendiada
lambendo a trave mestra do teu corpo
a palavra ciúme atormentada
a provar-me que ainda não estou morto.
E as coisas que eu não disse? Que não digo:
Meu terraço de ausência meu castigo
meu pântano de rosas afogadas.
Por ti me reconheço e contradigo
chão das palavras mágoa joio e trigo
apenas por ternura levedadas.
José Carlos Ary dos Santos, Obra Poética
LEMBRA-TE
Lembra-te
que todos os momentos
que nos coroaram
todas as estradas
radiosas que abrimos
irão achando sem fim
seu ansioso lugar
seu botão de florir
o horizonte
e que dessa procura
extenuante e precisa
não teremos sinal
senão o de saber
que irá por onde fomos
um para o outro
vividos
Mário Cesariny, Pena Capital
PROCURO-TE
Procuro a ternura súbita,
os olhos ou o sol por nascer
do tamanho do mundo,
o sangue que nenhuma espada viu,
o ar onde a respiração é doce,
um pássaro no bosque
com a forma de um grito de alegria.
Oh, a carícia da terra,
a juventude suspensa,
a fugidia voz da água entre o azul
do prado e de um corpo estendido.
Procuro-te: fruto ou nuvem ou música.
Chamo por ti, e o teu nome ilumina
as coisas mais simples:
o pão e a água,
a cama e a mesa,
os pequenos e dóceis animais,
onde também quero que chegue
o meu canto e a manhã de maio.
Um pássaro e um navio são a mesma coisa
quando te procuro de rosto cravado na luz.
Eu sei que há diferenças,
mas não quando se ama,
não quando apertamos contra o peito
uma flor ávida de orvalho.
Ter só dedos e dentes é muito triste:
dedos para amortalhar crianças,
dentes para roer a solidão,
enquanto o verão pinta de azul o céu
e o mar é devassado pelas estrelas.
Porém eu procuro-te.
Antes que a morte se aproxime, procuro-te.
Nas ruas, nos barcos, na cama,
com amor, com ódio, ao sol, à chuva,
de noite, de dia, triste, alegre - procuro-te.
Eugénio de Andrade, As Palavras Interditas
Kandinsky, Lyrical
LISBOA
Lisboa tem um vestido azul feito de mar e guerra.
E cheira a laranjas maduras.
Quando as gaivotas trazem no bico
os primeiros pedaços de sol para
acender o dia, Lisboa deixa correr
os cabelos pelo Tejo e o Povo pelas ruas.
À mesma hora, a coragem agita no
sangue duas grandes asas inquietas.
Por todas as janelas destruídas, já
o mar entrou, derrubando acácias
cantando hinos de espuma.
E porque toda a coragem é necessária,
toda a esperança é legítima.
Joaquim Pessoa, Amor Combate
HOJE É O TEMPO
Este é o tempo do insólito, do vigário, do capricho,
da mentira, da falsificação, do cheque sem
cobertura, da banha-de-cobra. Não temos um estalão
para nada, a própria Terra não garante a estabilidade
do metro, o sistema de pesos e medidas é duvidoso
que funcione, tudo existe em função de si e não de
qualquer outra coisa que lhe confira validade. Hoje
tudo é possível porque nada é possível. Hoje a
verdade não se demora até ser mentira mas uma e
outra se convertem mutuamente e são ambas válidas
na sua mútua referência, sendo a mentira verdade e
ao contrário. Hoje é o tempo dos aventureiros, do
medíocre sagaz, da esperteza, que é a inteligência da
astúcia. Hoje é o tempo do curandeiro, do endireita,
do bruxo, do vidente, do profeta, do prestidigitador.
Hoje é o tempo de ser estúpido porque o inteligente
não há razão para não ser mais estúpido do que ele.
Hoje é o tempo de todos os caminhos estarem
desimpedidos porque não é possível um sistema
alfandegário. Hoje é o tempo de todos os
contrabandos porque não há razão para um sistema
fiscal. Hoje é o tempo da noite para todos os gatos
terem a mesma identidade. Hoje é o tempo de tudo
ser tempo de. Hoje é o tempo de tudo, portanto de
nada. Hoje é o tempo de se não ser. Levanta em ti, se
puderes, o que te resta de homem, para seres alguma
coisa.
Vergílio Ferreira, Pensar
UMA MULHER QUASE NOVA…
Uma mulher quase nova
com um vestido quase
branco
numa tarde quase clara
com os olhos quase secos
vem e quase estende os dedos
ao sonho quase possível
quase fresca se liberta
do desespero quase morto
quase harmónica corrida
enche o espaço quase alegre
de cabelos quase soltos
transparente quase solta
o riso quase bastante
quase músculo florido
deste instante quase novo
quase vivo quase agora
Mário Dionísio, O Riso Dissonante
Edward Hopper, Summertime
POEMA SOBRE A RECUSA
como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
nem na polpa dos meus
dedos
se ter formado o afago
sem termos sido a cidade
nem termos rasgado pedras
sem descobrirmos a cor
nem o interior da erva
como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
minha raiva de
ternura
meu ódio de conhecer-te
minha alegria profunda
Maria Teresa Horta, Minha Senhora de Mim
Picasso,
Le repos (Marie-Thérèse
Walter)
6 DE AGOSTO DE 1945
Caldelas, 7 de Agosto - A primeira bomba atómica.
Que maravilhoso bicho, o homem! Teimou, teimou,
e descobriu a pedra filosofal!
Caldelas, 8 de Agosto - Em Hiroxima, onde a bomba
atómica foi lançada, tudo quanto era vida morreu.
Por causa do fumo e da poeira que se levantaram, o
mundo esteve de respiração suspensa durante vinte e
quatro horas, sem saber o que tinha acontecido. Mas
hoje, de manhã, os jornais, diligentes, já estavam
senhores da verdade inteira. Não tinham morrido
vinte, trinta ou quarenta mil pessoas, como era de
temer. Para matar a ridicularia de quarenta mil
pessoas não era necessário tanto sonho. Não,
felizmente, não se tratava de um desapontamento.
Nem quarenta, nem sessenta, nem setenta mil
mortos. Isto é: todos os seres vivos liquidados!
E a humanidade dobrou o jornal aliviada.
Miguel Torga, Diário
Antonio Saura, Crucifixion
PRAIA DO ENCONTRO
Esta imaginação de sal e duna,
inquieta e movediça como a areia,
ergue, isolada, a praia, mais a espuma
que sereia nenhuma
saboreia…
Quisesses tomar tu este veleiro,
que em secreto estaleiro construí,
sem velas, sem cordame, sem
madeira,
- mas branco!, e todo inteiro
para ti…
Brilha uma luz de morte sobre o porto
saído mesmo agora da memória…
Ali estarei, à tua espera, morto,
ou vivo em minha morte
transitória…
Combinado. Que eu juro não faltar!
Contrário de Tristão, renascerei,
se pressentir, aérea, sobre o mar,
a sombra singular
do barco que te dei.
David Mourão-Ferreira
UM AMOR
Aproximei-me de ti; e tu, pegando-me na mão,
puxaste-me para os teus olhos
transparentes como o fundo do mar para os
afogados. Depois, na rua,
ainda apanhámos o crepúsculo.
As luzes acendiam-se nos autocarros; um ar
diferente inundava a cidade. Sentei-me
nos degraus do cais, em silêncio.
Lembro-me do som dos teus passos,
uma respiração apressada, ou um princípio de
lágrimas,
e a tua figura luminosa atravessando a praça
até desaparecer. Ainda ali fiquei algum tempo, isto
é,
o tempo suficiente para me aperceber de que, sem
estares ali,
continuavas ao meu lado. E ainda hoje me
acompanha
essa doente sensação que
me deixaste como amada
recordação.
Nuno Júdice
Eric Vignaud, CrépusculeTraz
TRAZ OUTRO AMIGO TAMBÉM
Amigo
Maior que o pensamento
Por essa estrada amigo vem
Não percas tempo que o vento
É meu amigo também
Em terras
Em todas as fronteiras
Seja bem vindo quem vier por bem
Se alguém houver que não queira
Trá-lo contigo também
Aqueles
Aqueles que ficaram
(Em toda a parte todo o mundo tem)
Em sonhos me visitaram
Traz outro amigo também
José Afonso
O ESPÍRITO
Nada a fazer, amor, eu sou do bando
Impermanente das aves friorentas;
E nos galhos dos anos desbotando
Já as folhas me ofuscam macilentas;
E vou com as andorinhas. Até quando?
À vida breve não perguntes: cruentas
Rugas me humilham. Não mais em estilo brando
Ave estroina serei em mãos sedentas.
Pensa-me eterna que o eterno gera
Quem na amada o conjura. Além, mais alto,
Em ileso beiral, aí espera:
Andorinha indemne ao
sobressalto
Do tempo, núncia de perene
primavera.
Confia. Eu sou romântica. Não
falto.
Natália Correia, Sonetos Românticos
foto: eli
Como se de repente ao coração do Sol
as raízes da luz alguém as arrancasse...
Como se de repente as hélices do vento
arranhassem o ar, e o Mar estivesse perto...
Como se de repente o Mundo entontecesse...
Foi tudo de repente e tudo ao mesmo tempo:
escuridão, rumor, frescura, movimento.
Mas de entre as espirais confusas quem sabia
se era de novo amor, se era só melodia?
David Mourão-Ferreira
Giacomo Balla
, Ragazza che
corre al balcone
SÁBADOS
Morte procriadora de bens que são ser e nada ter
Olhos de seda e aço penetrando a fronteira
Guerreiro sem espada cansado das pedras que lhe
arremetem
E a terra lavrada com flores de pêssego e bandeiras
de milho
Misturando orvalho chuva água da mina ao leite
branco e doce
E nos baldios cabras buscando secos arbustos sem
amoras
E sem amores
Aos sábados visito-te de longe monto num cavalo
verde
E fico à porta atrás das grades
Não me perguntas se durmo se estou acordada nada
nunca em vida
me perguntaste
Na coragem do pacto da solidão
E eu passo no cavalo verde cavalo limpo de sela
Mas pelas grades não passam nossas lágrimas
brancas
E eu passo ao sábado todos os sábados e fico atrás
das grades
São tardes calmas em que os homens velhos de
pijamas às riscas
Dependuram as mãos nos parapeitos das janelas e
olham para fora
E as mulheres velhas encostam os peitos derrotados
à tristeza dos
próprios braços
E olham também
Matilde Rosa Araújo
Colóquio Letras, nº 73, Maio de 1983
Franz Marc, Die kleinen gelben Pferde
AS PALAVRAS
Há palavras que são sombras de árvores
ou um bálsamo da terra,
um pressentimento de espuma,
um incêndio do tacto,
uma reverência ao desconhecido.
Amo as palavras que são às vezes sonâmbulos
cavalos,
satélites de granito,
raparigas cegas no fundo das casas,
veias de uma estrela submarina.
Como não amá-las pela brisa
se são pétalas de um clamor silencioso
ou anjos sossegados dormindo sobre a terra
ou lúcidas e ébrias, majestosas e puras,
magníficas como um dorso recamado de estrelas,
intacta revelação de invioladas luas?
Desconfio das palavras, mas às vezes são leves,
musicais
aves que planam sobre uma cidade branca,
ilhas mágicas, selados vasos, cordeiros recém-
nascidos,
caravanas vermelhas, armadilhas de cristal,
amoroso tremor da matéria terrestre.
Como um boi nocturno das águas eu procuro
essas guitarras plantadas nas plantas
que através de eclipses e da distância
erguem uma árvore de música ou uma pirâmide
ou as lianas vivas que me defendem dos abismos.
Como estátuas de ar as palavras levantam-se
na harmonia delirante do nómada do deserto.
Quer sejam suspiros entre os arbustos ou
sonâmbulas melodias
estão sempre à altura dos seus próprios desejos.
Quer o cérebro sangre ou a terra estremeça
o seu cerimonial é inesgotável, as suas relíquias
vivas.
São abelhas ou astros que buscam alimento
nos ninhos de amêndoas ou nos espelhos da lua?
Amo as palavras, acredito nos seus cristais secretos,
nos seus cavalos subterrâneos, nos seus densos
diamantes.
Escrevo-as com minucioso ardor entre nascentes e
sombras,
sei que são anjos de argila, antiquíssmos arqueiros
que disparam as flechas de erva sobre estrelas vivas.
António Ramos Rosa, O Não e o Sim
fractal: mur du son
No amor também as palavras
são necessárias. Os gestos talvez não bastem.
Nem a chuva lá fora enquanto o amor se inflama.
Nem o sussurro nas árvores quando os corpos
serenam.
Nem a melopeia das águas quando as bocas se
esmagam.
Nem o fulgor dos olhos quando a paixão se
impacienta.
Penso no amor e logo invento palavras
e logo as palavras se põem ébrias.
Penso no amor e logo as palavras
se soltam como fogosas aves
a que não pergunto o rumo.
Penso no amor e logo preciso
que as palavras digam
que amor é este em que penso e em que grito.
Fernando Namora
Colóquio letras, nº 73, Maio de 1983
Magritte, Procura do Absoluto
Quem sou eu, a que está nesta varanda,
em frente deste mar, sob as estrelas,
vendo vultos andarem?
Sabem, acaso, os vultos quem vão sendo?
Sentem o céu, as águas, quando passam?
Ou não vêem, ou não lembram?
Quando alguém deste mundo para a lua
dirige os olhos, meditando coisas
e assim no vago mira,
para este mundo vão meus pensamentos,
tão estrangeiros, tão desapegados,
como se esta varanda fosse a lua.
Cecília Meireles
Carlo Carrà,
Mulher à
Janela
A perfeição das coisas
O vento - finalmente no fogo do dia - o vento do
mundo
neste lugar aberto
escreve a inclinação dos jovens álamos na última
colina
contra o céu para sempre novo e antigo.
As mãos do vento escrevem em verso ramos e
folhas, pontos e traços,
a sombra da luz; encurvam para a esquerda e em
cima
as hastes longas e breves: as vogais aéreas
da paisagem terrestre que teríamos esquecido.
É subitamente que o vês claramente visto
repetindo a imagem do tempo:
é uma caligrafia de acaso.
Mas é uma caligrafia minuciosa nítida;
inquieta e exacta;
ofuscante como a incriada perfeição das coisas.
Numa outra folha ou margem ou luz ou lugar do
mundo
és tu agora. Levantas o vestido leve; os teus dedos
enrodilham-no, subindo-o numa onda irrepetível e
contudo, repetidas vezes sem conta.
As tuas mãos enquanto quase quase danças - embora
apenas andes sobre o imortal chão da casa. -
sobem o pano
de algodão, apanham a bainha, colhem asas do
escasso mar
que te cobria e
levam-nas até à linha irrevogável das ancas
como se fossem prender o vestido à levíssima
ondulação
do mundo andante.
É como se uma onda no corpo abrisse lenta e
fulminante
a incalculável praia ao esplendor em que cada coisa
se diz
como se cantasse o nome do sem nome.
A curvatura daquelas hastes e a onda vertical que o
teu gesto inventa
escrevem então a infindável passagem entre os
separados mundos
e a isso só podemos chamar alegria.
Manuel Gusmão, Teatros do Tempo
Não basta abrir a janela
Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há ideias apenas.
Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;
E o sonho do que se poderia ver se a janela se
abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.
Alberto Caeiro, Poemas Inconjuntos
Foto: eli
Esperança
Esperança:
isto de sonhar bom para diante
eu fi-lo perfeitamente.
Para diante de tudo foi bom
bom de verdade
bem feito de sonho
podia segui-lo como realidade
Esperança:
isto de sonhar bom para diante
eu sei-o de cor.
Até reparo que tenho só esperança
nada mais do que esperança
pura esperança
esperança verdadeira
que engana
e promete
e só promete.
Esperança:
pobre mãe louca
que quer pôr o filho morto de pé?
Esperança
único que eu tenho
não me deixes sem nada
promete
engana engano que seja
não me deixes sozinho
esperança.
Almada Negreiros, Obras
Completas
Desenho de Almada Negreiros
Mar, Mar e Mar
Tu perguntas, e eu não sei,
eu também não sei o que é o mar.
É talvez a lágrima caída dos meus olhos
ao reler uma carta quando é de noite.
Os teus doentes, talvez os teus dentes,
miúdos, brancos, agudos, sejam o mar,
um mar pequeno e frágil,
afável, diáfano,
no entanto sem música.
É evidente que minha mãe me chama
quando uma onda e outra onda e outra
desfaz o seu corpo contra o meu corpo.
Então o mar é carícia,
luz molhada onde desperta
meu coração recente.
Às vezes o mar é uma figura branca
cintilando entre os rochedos.
Não sei se fita a água
ou se procura
um beijo entre conchas transparentes.
Não, o mar não é nardo nem açucena.
É um adolescente morto
de lábios abertos aos lábios da espuma.
É sangue,
sangue onde a luz se esconde
para amar outra luz sobre as areias.
Um pedaço de lua insiste,
insiste e sobre lento arrastando a noite.
Os cabelos de minha mãe desprendem-se,
espalham-se na água,
alisados por uma brisa
que nasce exactamente no meu coração.
O mar volta a ser pequeno e meu,
anémona perfeita abrindo nos meus dedos.
Eu também não sei o que é o mar.
Aguardo a madrugada, impaciente,
os pés descalços na areia.
Eugénio de Andrade, As palavras Interditas
Foto: eli
Prenda de anos
Abriu as mãos, desconchando-as, e delas tombou a
pedrinha. Os olhos da menina seguiram a queda, até
se fecharem como se se protegesse do adivinhado
ruído.
- Isso que trouxe para mim? O pai acenou. Que sim,
trouxera da viagem para o aniversário da mais nova.
Uma anónima pedra, sem tamanho nem cor
especiais. Ser pedra era o único valor daquela pedra.
A menina já conhecia as ofertas que lhe cabiam:
pena de corvo, casca de arbusto, fragmento de chão.
Tudo fragrância do natural, nada comparado nem
comparável. Esses sendo seus mimos desde que
nascera, consumando o pensar paterno – o que se dá,
quando se ama, não se compra. A moça levou a
prenda e colocou-a sobre a mesa do seu quarto.
Sentou-se, sem gesto nem ruído. Assim calada,
esperava que a pedra saísse do silêncio.
- Nenhuma coisa é um qualquer nada.
Assim aprendera a inventar nome para os muitos
anónimos objectos. Ela vestia esses pequenos
desvalores com histórias que retirava da sua fantasia.
Nesse criar ela mesmo se iluminava. A restante
família se opunha a este fazer de conta. Para os
outros aquilo era um desgaste de tempo,
desconversação. As amigas da moça, por igual, lhe
desvalorizavam as dádivas. E exibiam seus
pertences, cheios de preços. E tanto o faziam que, às
vezes, a menina era roída por súbitas invejas. Como
aquela que agora despontava em sua alma. Porque
ela, sentada na penumbra do quarto, não lograva
inventar nenhuma fantasia para a prenda de anos,
algo que convertesse a pedra em coisa única.
Então, o pai entrou no aposento e igualmente se
sentou. Não se imagina o que sentado se alcança
fazer. O Homem se constituiu graças à marcha. Mas
foi o sentar que forjou a maior fatia da nossa
humanidade.
- Lhe explico a palavra, filha. Paisagem vem de pai.
A filha riu, enquanto ele lhe contava como
descobrira aquela pedra, tão aquela e nenhuma
demais. Começava, então, a prenda não de
aniversário mas de eternidade. Conforme catava
magia com suas palavras o pai era todo dela,
entregue inteiro e aparecido, como se ela fosse
sempre o único motivo dela. Seu pai lhe dava um
outro pai, roubando-a dessa orfandade original que
nos ataca nas fraquezas.
A voz do pai dissolvia o tempo como açúcar se
extinguindo no chão. Na ensombração do quarto, o
mundo sumia enquanto uma pedra entrava em
ovulação.
Mia Couto, in ―Pública‖ ( Público, 18-6-2000)
Dos Sonetos a Orfeu
Um deus pode. Mas como erguer do sol,
na estreita lira, o canto de uma vida?
Sentir é dois; no beco sem saída
dos corações não há templos de Apolo.
Como ensinas, cantar não é a vaidade
de ir ao fim da meta cobiçada.
Cantar é ser. Aos deuses, quase nada.
Mas nós, quando é que somos? em que idade
nos devolvem a terra e as estrelas?
Amar, jovem, é pouco, e ainda que doam
as palavras nos lábios, ao dizê-las,
esquece os teus cantares. Já não soam.
Cantar é mais. Cantar é um outro alento.
Ar para nada. Arfar em deus. Um vento.
Rainer Maria Rilke
- trad. de Augusto de Campos
Antonio Canova, Orpheus
Hora grave
Quem chora agora em algum lugar do mundo,
sem razão chora no mundo,
chora por mim.
Quem ri agora em algum lugar da noite,
sem razão se ri na noite,
ri-se de mim.
Quem anda agora em algum lugar do mundo,
sem razão anda no mundo,
vem para mim.
Quem morre agora em algum lugar do mundo,
sem razão morre no mundo,
olha para mim.
Rainer Maria Rilke
- trad. de José Paulo Paes
Alexandre Seon,
Lamento de Orfeu
Orfeu Rebelde
Orfeu rebelde, canto como sou:
Canto como um possesso
Que na casca do tempo, a canivete,
Gravasse a fúria de cada momento;
Canto, a ver se o meu canto compromete
A eternidade do meu sofrimento.
Outros, felizes, sejam os rouxinóis...
Eu ergo a voz assim, num desafio:
Que o céu e a terra, pedras conjugadas
Do moinho cruel que me tritura,
Saibam que há gritos como há nortadas,
Violências famintas de ternura.
Bicho instintivo que adivinha a morte
No corpo dum poeta que a recusa,
Canto como quem usa
Os versos em legítima defesa.
Canto, sem perguntar à Musa
Se o canto é de terror ou de beleza.
Miguel Torga
Rodin, Orphée
Canto de Orfeu
Pendurou no salgueiro a cítara
caminhou diante dos seus passos
sendo depois punido pelos Anjos.
Caminhou sempre para o futuro
mesmo olhando para trás na memória
e por esse futuro foi punido
pois levaria consigo a imagem viva.
Não era Eurídice aquela que o seguia
mas a sua face figurada
pelos olhos de Orfeu ainda capazes
de criar o modelo e a imagem.
Depois da morte ela ainda vivia
pronta para o prender em espelhos dúplices
e ele que amava nela o corpo, a alma,
o suor, o aroma, a linha dos dedos,
levou-a para sempre escendida
ao Tempo do Espaço depois do futuro.
Foi punido por Anjos ciosos
da sua ciência da Origem,
enquanto outros Anjos doces coroavam
aquele Filho que também levara
na memória dos olhos a figura
da Mãe, que todos os filhos levam em si.
Um terrível canto de lamento humano
Depois soou: "Che farò senza Uridice?",
com o som das vogais mais dolorosas.
Mas o sábio Orfeu deixou a lira
somente ser tocada pelo vento
quando o canto perseguia a imagem.
Fiama Hasse Pais
Brandão, Cantos do Canto
Orfeu da Conceição
Monólogo de Orfeu
Mulher mais adorada!
Agora que não estás, deixa que rompa
O meu peito em soluços! Tu enrutiste
Em minha vida; e cada hora que passa
É mais por que te amar, a hora derrama
O seu óleo de amor, em mim, amada...
E sabes de uma coisa? Cada vez
Que o sofrimento vem, essa saudade
De estar perto se longe, ou estar mais perto
Se perto - que é que eu sei! Essa agonia
De viver fraco, o peito extravasado
O mel correndo; essa incapacidade
De me sentir mais eu, Orfeu; tudo isso
De um homem - nada disso tem importância
Quando tu chegas com essa charla antiga
Esse contentamento, essa harmonia
Esse corpo! E me dizes essas coisas
Que me dão essa força, essa coragem
Esse orgulho de rei. Ah, minha Eurídice,
Meu verso, meu silêncio, minha música!
Nunca fujas de mim! Sem ti sou nada
Sou coisa sem razão, jogada, sou
Pedra rolada. Orfeu menos Eurídice...
Coisa incompreensível! A existência
Sem ti é como olhar para um relógio
Só com o ponteiro dos minutos. Tu
És a hora, és o que dá sentido
E direcção ao tempo, minha amiga
Mais querida! Qual mãe, qual pai, qual nada!
A beleza da vida és tu, amada!
Milhões amada! Ah! criatura! Quem
Poderia pensar que Orfeu: Orfeu
Cujo violão é a vida da cidade
E cuja fala, como o vento à flor
Despetala as mulheres - que ele, Orfeu
Ficasse assim rendido aos teus encantos!
Mulata, pele-escura, dentebranco
Vai teu caminho que eu vou te seguindo
No pensamento e aqui me deixo rente
Quando voltares, pela lua cheia
Para os braços sem fim do teu amigo!
Vai tua vida, pássaro contente
Vai tua vida que eu estarei contigo!
Vinícius de Moraes, O Operário em Construção
Ouvindo:
Orfeu da
Conceição
Long Play 10", Odeon
MODB 3056
Lançado em 1956Música:
António Carlos Jobim
Letra: Vinícius de Moraes
Arranjos e regência: António
Carlos Jobim
Violão: Luiz Bonfá
Orfeu
Deixem-me a pedra fresca à face quente,
Condão da noite, íntegra em seu corpúsculo,
E lá deite a cabeça de repente
Como a bolha do Sol cai no crepúsculo.
Asa de ave sem canto é aquele ramúsculo
Que me caiu na testa. - E tanta gente
Vê nossa alma coroada! Oh! triste músculo
O coração do poeta que o não sente!
Um cansaço de morte gela o ousado
Domador de palavras como feras.
Orfeu sem Orco, ínvio ladrão de lume,
Quando, afinal, doméstico e roubado
Foi ele na paz da pedra, - e a outras quimeras
Sua coroa de rosas se resume.
Vitorino Nemésio, O Verbo e a Morte
Tiziano Vecellio, Orfeu e
Eurídice
Toda a noite acompanhei a tua viagem, Orfeu,
de fogo em fogo,
de melodia em melodia,
até o centro da Construção das Trevas.
Ah! E com que volúpia te vi de novo estrangular
a tua Eurídice
calada para sempre,
morta para sempre
- melodia
que só oculta no silêncio
atravessa as pedras...
E agora, Orfeu,
raiz do avesso,
vejo-te regressar lentamente à superfície da Terra,
com as mãos desfeitas em flor de orvalho
no fogo consumido.
Amanhece.
O planeta é de vidro.
José Gomes Ferreira, Encruzilhadas
Jules-Elie Delaunay.
Foyer de l'Opéra de
Paris
Soneto de Eurydice
Eurydice perdida que no cheiro
E nas vozes do mar procura Orpheu
Ausência que povoa terra e céu
E cobre de silêncio o mundo inteiro
Assim bebi manhãs de nevoeiro
E deixei de estar viva e de ser eu
Em procura de um rosto que era meu
O meu rosto secreto e verdadeiro
Porém nem nas marés nem na miragem
Eu te encontrei. Erguia-se somente
O rosto liso e puro da paisagem
E devagar tornei-me transparente
Como morta nascida à tua imagem
E no mundo perdida esterilmente.
Sophia de Mello Breyner Andresen, No Tempo
Dividido
Rodin, Orpheus and Euridyce
Summertime
Olho a sua boca. Tanto
que vem o punhal da luz
levar-me os olhos.
O carvão, a cinza dos
meus olhos. Os seus.
A sua boca, o sulco
onde me pergunta e eu
respondo. A morrer,
a olhar anavalhado
o seu brilho bravio.
Sons de sirenes, uivos,
estrondos, desabamentos,
ravinas donde rompe
o amor. A sua boca.
Joaquim Manuel Magalhães, Uma Exposição
Man Ray, Lips
As Mães
Quando voltar ao Alentejo as cigarras já terão
morrido. Passaram o verão todo a transformar a luz
em canto - não sei de destino mais glorioso. Quem lá
encontraremos, pela certa, são aquelas mulheres
envolvidas na sombra dos seus lutos, como se a terra
lhes tivesse morrido e para todo o sempre se
quedassem órfãs. Não as veremos apenas em
Barrancos ou em Castro Laboreiro, elas estão em
toda a parte onde nasce o sol: em Cória ou Catânia,
em Mistras ou Santa Clara del Cobre, em Varchats
ou Beni Mellal, porque elas são as mães. O olhar
esperto ou sonolento, o corpo feito um espeto ou mal
podendo com as carnes, elas são as Mães. A tua; a
minha, se não tivesse morrido tão cedo, sem tempo
para que o rosto viesse a ser lavrado pelo vento.
Provavelmente estão aí desde a primeira estrela. E o
que elas duram! Feitas de urze ressequida, parecem
imortais. Se o não forem, são pelo menos
incorruptíveis como se participassem da natureza do
fogo. Com mãos friáveis teceram a rede dos nossos
sonhos, alimentaram-nos com a luz coada pela
obscuridade dos seus lenços. Às vezes, encostam-se
à cal dos muros a ver passar os dias, roendo uma
côdea ou fazendo uns carapins para o último dos
netos, as entranhas abertas nas palavras que vão
trocando entre si; outras vezes caminham por
quelhas e quelhas de pedra solta, batem a um
postigo, pedem lume, umas pedrinhas de sal,
agradecem pelas almas de quem lá têm, voltam ao
calor animal da casa, aquecem
um migalho de café, regam as
sardinheiras, depois de
varrerem o terreiro. Elas são as
Mães, essas mulheres que
Goethe pensa estarem fora do
tempo e do espaço, anteriores
ao Céu e ao Inferno, assim
velhas, assim terrosas, os olhos
perdidos e vazios, ou vivos
como brasas assopradas.
Solitárias ou inumeráveis, aí as
tens na tua frente, graves,
caladas, quase solenes na sua
imobilidade, esquecidas de que
foram o primeiro orvalho do
homem, a primeira luz. Mas
também as podes ver seguindo
por lentas veredas de sombra,
as pernas pouco ajudando a
vontade, atrás de uma ou duas
cabras, com restos de garbo na
cabeça levantada, apesar das
tetas mirradas. Como
encontrarão descanso nos
caminhos do mundo? Não há
ninguém que as não tenha visto
com umas contas nas mãos
engelhadas rezando pelos seus
defuntos, rogando pragas a
uma vizinha que plantou à roda do curral mais três
pés de couve do que ela, regressando da fonte
amaldiçoando os anos que já não podem com o
cântaro, ou debaixo de uma oliveira roubando
alguma azeitona para retalhar. E cheiram a migas de
alho, a ranço, a aguardente, mas também a poejos
colhidos nas represas, a manjerico quando é pelo S.
João. E aos domingos lavam a cara e mudam de
roupa, e vão buscar à arca um lenço de seda preta,
que também põem nos enterros. E vede como, ao
abrir, a arca cheira a alfazema! Algumas ainda
cuidam das sécias que levam aos cemitérios ou
vendem pelas termas, juntamente com um punhado
de maçãs amadurecidas no aroma dos fenos. E
conheço uma que passa as horas vigiando as
traquinices de um garoto que tem na testa uma
estrelinha de cabrito montês - e que só ela vê, só ela
vê.
Elas são as Mães, ignorantes da morte mas certas da
sua ressurreição.
Eugénio de Andrade, Vertentes do olhar
Luís de Camões
Tinha uma flauta.
Não tinha mais nada mas tinha uma flauta
tinha um órgão no sangue uma fonte de música
tinha uma flauta.
Os outros armavam-se mas ele não:
tinha uma flauta.
Os outros jogavam perdiam ganhavam
tinham Madrid e tinham Lisboa
tinham escravos na Índia mas ele não:
tinha uma flauta.
Tinham navios tinham soldados
tinham palácios e tinham forcas
tinham igrejas e tribunais
mas ele não:
tinha uma flauta.
Só ele Príncipe.
Dormiam rainhas na cama do rei
princesas esperavam no belvedere
Ele tinha uma escrava que morreu no mar.
Morreram escravas as rainhas
morreram escravas as princesas
nenhuma teve o seu rei
para nenhuma chegou o Príncipe.
Por issoo a única rainha
foi aquela escrava que morreu no mar:
só ela teve
o que tinha uma flauta.
Morreram os reis que tinham impérios
morreram os príncipes que tinham castelos
mas ele não:
tinha uma flauta.
De fora vieram reis
vieram armas de fora
os príncipes entregaram armas
ficou sem armas o povo.
As armas de fora venceram
todas as armas de dentro.
Só não venceram o que não tinha armas:
tinha uma flauta.
E as vozes de fora mandaram
calar as vozes de dentro.
Só não puderam calar aquela flauta.
Vieram juízes e cadeias.
Mas a flauta cantava.
Passaram por todas as fronteiras.
Só não puderam passar
pela fronteira
daquela flauta.
E quando tudo se perdeu
ficou a arma do que não tinha armas:
tinha uma flauta.
Ficou uma flauta que cantava.
E era uma Pátria.
Manuel Alegre, O Canto e as
Armas
Manet, O Flautista
Viagem
Aparelhei o barco da ilusão
E reforcei a fé de marinheiro.
Era longe o meu sonho, e traiçoeiro
O mar...
(Só nos é concedida
Esta vida
Que temos;
E é nela que é preciso
Procurar
O velho paraíso
Que perdemos).
Prestes, larguei a vela
E disse adeus ao cais, à paz tolhida.
Desmedida,
A revolta imensidão
Transforma dia a dia a embarcação
Numa errante e alada sepultura...
Mas corto as ondas sem desanimar.
Em qualquer aventura,
O que importa é partir, não é chegar.
Miguel Torga
Um nome
Di-lo-ei pela cor dos teus olhos,
pela luz
onde me deito,
di-lo-ei pelo ódio, pelo amor
com que toquei as pedras nuas,
por uns passos verdes de ternura,
pelas adelfas,
quando as adelfas nestas ruas
podem saber a morte,
pelo mar
azul,
azul-cantábrico, azul-bilbau,
quando amanhece,
di-lo-ei pelo sangue
violado
e limpo e inocente,
por uma árvore,
uma só árvore, di-lo-ei:
Guernica!
Eugénio de Andrade, Mar de Setembro
Picasso,
Guernica
Charneca em flor
Enche o meu peito, num encanto mago,
O frémito das coisas dolorosas...
Sob as urzes queimadas nascem rosas...
Nos meus olhos as lágrimas apago...
Anseio! Asas abertas! O que trago
Em mim? Eu oiço bocas silenciosas
Murmurar-me as palavras misteriosas
Que perturbam meu ser como um afago!
E, nesta febre ansiosa que me invade,
Dispo a minha mortalha, o meu burel,
E, já não sou, Amor, Sóror Saudade...
Olhos a arder em êxtases de amor,
Boca a saber a sol, a fruto, a mel:
Sou a charneca rude a abrir em flor!
Florbela Espanca, Charneca em Flor
Georges Braque, "l'oiseau dans le
feuillage"
Eros e Psique
Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante que viria
De além do muro da estrada.
Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à princesa vem.
A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera.
Sonha em morte sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.
Longe, o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado.
Ele dela é ignorado.
Ela para ele é ninguém.
Mas cada um cumpre o Destino -
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.
E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E, vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora.
E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.
Fernando Pessoa, Poesias
Éros et Psyché, musée
archéologique d'Ephèse
Olhar o rio que é de tempo e água
E recordar que o tempo é outro rio,
Saber que nos perdemos como o rio
E que os rostos passam como a água.
Sentir que a vigília é outro sono
Que sonha não sonhar e que a morte
Que teme a nossa carne é essa morte
De cada noite, que se chama sono.
Ver no dia ou até no ano um símbolo
Quer dos dias do homem quer dos anos,
Converter a perseguição dos anos
Numa música, um rumor e um símbolo,
Ver na morte o sono, no ocaso
Um triste ouro, assim é a poesia
Que é imortal e pobre. A poesia
Volta como a aurora e o ocaso
Às vezes certas tardes uma cara
Olha-nos do mais fundo dum espelho;
A arte deve ser como esse espelho
Que nos revela a nossa própria cara.
Contam que Ulisses, farto de prodígios
Chorou de amor ao divisar a Ítaca
Verde e humilde. A arte é essa Ítaca
De verde eternidade e não prodígios.
Também é como o rio interminável
Que passa e fica e é cristal dum mesmo
Heraclito inconstante, que é o
mesmo
E é outro, como o rio
interminável.
Jorge Luis Borges, in Poemas
Escolhidos, Trad. Ruy Belo
Foto: eli
Ressurgiremos
Ressurgiremos ainda sob os muros de Cnossos
E em Delphos centro do mundo
Ressurgiremos ainda na dura luz de Creta
Ressurgiremos ali onde as palavras
São o nome das coisas
E onde são claros e vivos os contornos
Na aguda luz de Creta
Ressurgiremos ali onde pedra estrela e tempo
São o reino do homem
Ressurgiremos para olhar para a terra de frente
Na luz limpa de Creta
Pois convém tornar claro o coração do homem
E erguer a negra exactidão da cruz
Na luz branca de Creta.
Sophia de Mello Breyner Andresen, Livro Sexto
n memoriam
Arpad Szenes
"Transforma-se o amador na coisa amada"
«Transforma-se o amador na coisa amada», com seu
feroz sorriso, os dentes,
as mãos que relampejam no escuro. Traz ruído
e silêncio. Traz o barulho das ondas frias
e das ardentes pedras que tem dentro de si.
E cobre esse ruído rudimentar com o assombrado
silêncio da sua última vida.
O amador transforma-se de instante para instante,
e sente-se o espírito imortal do amor
criando a carne em extremas atmosferas, acima
de todas as coisas mortas.
Transforma-se o amador. Corre pelas formas dentro.
E a coisa amada é uma baía estanque.
É o espaço de um castiçal,
a coluna vertebral e o espírito
das mulheres sentadas.
Transforma-se em noite extintora.
Porque o amador é tudo, e a coisa amada
é uma cortina
onde o vento do amador bate no alto da janela
aberta. O amador entra
por todas as janelas abertas. Ele bate, bate, bate.
O amador é um martelo que esmaga.
Que transforma a coisa amada.
Ele entra pelos ouvidos, e depois a mulher
que escuta
fica com aquele grito para sempre na cabeça
a arder como o primeiro dia do verão. Ela ouve
e vai-se transformando, enquanto dorme, naquele
grito
do amador.
Depois acorda, e vai, e dá-se ao amador,
dá-lhe o grito dele.
E o amador e a coisa amada são um único grito
anterior de amor.
E gritam e batem. Ele bate-lhe com o seu espírito
de amador. E ela é batida, e bate-lhe
com o seu espírito de amada.
Então o mundo transforma-se neste ruído áspero
do amor. Enquanto em cima
o silêncio do amador e da amada alimentam
o imprevisto silêncio do mundo e do amor.
Herberto Helder
"Transforma-se o amador na coisa amada"
Transforma-se o amador na coisa amada
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho, logo, mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.
Se nela está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
Pois com ele tal alma está liada.
Mas esta linda e pura semideia,
Que, como o acidente em seu sujeito
Assim como a alma minha se conforma
Está no pensamento como ideia;
O vivo e puro amor de que sou feito
Como a matéria simples busca a forma.
Luís de Camões
Epístola para Dédalo
Porque deste a teu filho asas de plumagem e cera
se o sol todo-poderoso no alto as desfaria?
Não me ouviu, de tão longe, porém pensei que disse:
todos os filhos são Ícaros que vão morrer no mar.
Depois regressam, pródigos, ao amor entre o sangue
dos que eram e dos que são agora, filhos dos filhos.
Fiama Hasse Pais Brandão,
Epístolas e Memorandos
Dédalo e Ícaro
MERIDIONAL
CABELOS
Ó vagas de cabelo esparsas longamente,
Que sois o vasto espelho onde eu me vou mirar,
E tendes o cristal dum lago refulgente
E a rude escuridão dum largo e negro mar;
Cabelos torrenciais daquela que me enleva,
Deixai-me mergulhar as mãos e os braços nus
No báratro febril da vossa grande treva,
Que tem cintilações e meigos céus de luz.
Deixai-me navegar, morosamente, a remos,
Quando ele estiver brando e livre de tufões,
E, ao plácido luar, ó vagas, marulhemos
E enchamos de harmonia as amplas solidões.
Deixai-me naufragar no cimo dos cachopos
Ocultos nesse abismo ebânico e tão bom
Como um licor renano a fermentar nos copos,
Abismo que se espraia em rendas de Alençon!
E, ó mágica mulher, ó minha Inigualável,
Que tens o imenso bem de ter cabelos tais,
E os pisas desdenhosa, altiva, imperturbável,
Entre o rumor banal dos hinos triunfais;
Consente que eu aspire esse perfume raro,
Que exalas da cabeça erguida com fulgor,
Perfume que estonteia um milionário avaro
E faz morrer de febre um louco sonhador.
Eu sei que tu possuis balsâmicos desejos,
E vais na direção constante do querer,
Mas ouço, ao ver-te andar, melódicos harpejos,
Que fazem mansamente amar e elanguescer.
E a tua cabeleira, errante pelas costas,
Suponho que te serve, em noites de verão,
De flácido espaldar aonde te recostas
Se sentes o abandono e a morna prostração.
E ela há-de, ela há-de, um dia, em turbilhões
insanos
Nos rolos envolver-me e armar-me do vigor
Que antigamente deu, nos circos dos Romanos,
Um óleo para ungir o corpo ao gladiador.
.................................................................
.................................................................
Ó mantos de veludo esplêndido e sombrio,
Na vossa vastidão posso talvez morrer!
Mas vinde-me aquecer, que eu tenho muito frio
E quero asfixiar-me em ondas de prazer.
Cesário Verde, O Livro de Cesário Verde
La Chevelure
O toison, moutonnant jusque sur l'encolure!
O boucles! O parfum chargé de nonchaloir!
Extase! Pour peupler ce soir l'alcôve obscure
Des souvenirs dormant dans cette chevelure,
Je la veux agiter dans l'air comme un mouchoir!
La langoureuse Asie et la brûlante Afrique,
Tout un monde lointain, absent, presque défunt,
Vit dans tes profondeurs, forêt aromatique!
Comme d'autres esprits voguent sur la musique,
Le mien, ô mon amour! nage sur ton parfum.
J'irai là-bas où l'arbre et l'homme, pleins de sève,
Se pâment longuement sous l'ardeur des climats;
Fortes tresses, soyez la houle qui m'enlève!
Tu contiens, mer d'ébène, un éblouissant rêve
De voiles, de rameurs, de flammes et de mâts:
Un port retentissant où mon âme peut boire
A grands flots le parfum, le son et la couleur
Où les vaisseaux, glissant dans l'or et dans la moire
Ouvrent leurs vastes bras pour embrasser la gloire
D'un ciel pur où frémit l'éternelle chaleur.
Je plongerai ma tête amoureuse d'ivresse
Dans ce noir océan où l'autre est enfermé;
Et mon esprit subtil que le roulis caresse
Saura vous retrouver, ô féconde paresse,
Infinis bercements du loisir embaumé!
Cheveux bleus, pavillon de ténèbres tendues
Vous me rendez l'azur du ciel immense et rond;
Sur les bords duvetés de vos mèches tordues
Je m'enivre ardemment des senteurs confondues
De l'huile de coco, du musc et du goudron.
Longtemps! toujours! ma main dans ta crinière
lourde
Sèmera le rubis, la perle et le saphir,
Afin qu'à mon désir tu ne sois jamais sourde!
N'es-tu pas l'oasis où je rêve, et la gourde
Où je hume à longs traits le vin du souvenir?
Charles Baudelaire, Les Fleurs du mal
Estrela da Tarde
Era a tarde mais longa de todas as tardes que me
acontecia
Eu esperava por ti, tu não vinhas, tardavas e eu
entardecia
Era tarde, tão tarde, que a boca, tardando-lhe o beijo,
mordia
Quando à boca da noite surgiste na tarde tal rosa
tardia
Quando nós nos olhámos tardámos no beijo que a
boca pedia
E na tarde ficámos unidos ardendo na luz que morria
Em nós dois nessa tarde em que tanto tardaste o sol
amanhecia
Era tarde de mais para haver outra noite, para haver
outro dia
Meu amor, meu amor
Minha estrela da tarde
Que o luar te amanheça e o meu corpo te guarde
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza
Se tu és a alegria ou se és a tristeza
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza
Foi a noite mais bela de todas as noites que me
adormeceram
Dos nocturnos silêncios que à noite de aromas e
beijos se encheram
Foi a noite em que os nossos dois corpos cansados
não adormeceram
E da estrada mais linda da noite uma festa de fogo
fizeram
Foram noites e noites que numa só noite nos
aconteceram
Era o dia da noite de todas as noites que nos
precederam
Era a noite mais clara daqueles que à noite amando
se deram E entre os braços da noite de tanto se
amarem, vivendo morreram
Eu não sei, meu amor, se o que digo é ternura, se é
riso, se é pranto
É por ti que adormeço e acordo e acordado recordo
no canto
Essa tarde em que tarde surgiste dum triste e
profundo recanto
Essa noite em que cedo nasceste despida de mágoa e
de espanto
Meu amor, nunca é tarde nem cedo para quem se
quer tanto!
José Carlos Ary dos Santos
Uma voz na pedra
Não sei se respondo ou se pergunto.
Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.
Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra.
Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho.
De súbito, ergo-me como uma torre de sombra
fulgurante.
A minha tristeza é a da sede e a da chama.
Com esta pequena centelha quero incendiar o
silêncio.
O que eu amo não sei. Amo. Amo em total
abandono.
Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma
oculta nascente.
Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.
Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido.
Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da
presença.
Não sou a destruição cega nem a esperança
impossível.
Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.
António Ramos Rosa
Abismos
Entre estes meus amigos através
de cujos corações arde o horizonte e a ponte
da qual o seu sorriso era um dos arcos
abriram-se os abismos.
Luís Miguel Nava, Rebentação
Soneto menor à chegada do verão
Eis como o vento
chega de súbito,
com seus potros fulvos,
seus dentes miúdos,
seus múltiplos, longos
corredores de cal,
as paredes nuas,
a luz de metal,
seu dardo mais puro
cravado na terra,
cobras que despertam
no silêncio duro...
Eis como o verão
entra no poema.
Eugénio de Andrade, Ostinato Rigore
Nesta última tarde em que (te) respiro
Nesta última tarde em que respiro
A justa luz que nasce das palavras
E no largo horizonte se dissipa
Quantos segredos únicos, precisos,
E que altiva promessa fica ardendo
Na ausência interminável do teu rosto.
Pois não posso dizer sequer que te amei nunca
Senão em cada gesto e pensamento
E dentro destes vagos vãos poemas;
E já todos me ensinam em linguagem simples
Que somos mera fábula, obscuramente
Inventada na rima de um qualquer
Cantor sem voz batendo no teclado;
Desta falta de tempo, sorte, e jeito,
Se faz noutro futuro o nosso encontro
António Franco Alexandre
Não sei, Luís, o que está a acontecer com a máquina
do mundo. A tua, etérea, elemental, fabricada que
foi do saber alto e profundo e que é sem princípio e
meta limitada, era cercada por Deus. A nossa, a dos
meus dias, ganhou buracos negros, e Deus poderá
entrar em geração espontânea.
Mas a máquina que neste momento mais me
preocupa não é a do mundo. É a minha. Passo o
tempo no ar. Ando de Metro Voador dentro dos
meus sonhos [...]. E tudo sobre o céu de Lisboa, à
distância do vento e dos pedintes, da porcaria dos
cães e do ar cabisbaixo e triste dos transeuntes
terrenos. E eu, que nunca tive o menor senso de
equilíbrio e jamais entendi o que fossem relações de
massa, olho para o céu e nele vejo crescer, como
cogumelos fantásticos, pilares de alabastro ou de
cristal à prova de cataclismos. E discuto com o
Velho a engenharia das pontes pênseis, sustidas no
ar como por milagre. O Velho entusiasma-se e deixa
o Metro Voador a percorrer os seus antigos mapas:
- Uma obra magnífica, digna dum povo que regressa
à terra, desiste do Adamastor e das Tormentas e sabe
levedar em cimento, ferro e outras matérias, o sonho
dos seus sonhos. Um país finalmente alevantado,
orgulho em trânsito na fronte da Europa.
Armando Silva Carvalho, Em Nome da Mãe
Postscriptum
... apercebo o lume dum coração antigo e simples
atravesso a cor luminosa dos sonhos sem me deter...
... aqui deixo o espólio daquele cuja vida
é cintilação de lugares nítidos...
(um pouco de café, uma carta, um pedaço de vidro)
... tenho a certeza de que se virasse o corpo do
avesso
ficaria tudo por recomeçar...
... mas se aqui voltares
talvez encontres estes papéis escritos
no recanto mais esquecido da noite... talvez
descubras o vazio onde o corpo desgasto esperou...
... vou destruir todas as imagens onde me reconheço
e passar o resto da vida assobiando ao medo...
Al Berto, O Medo
karskaya
SONETO DO CATIVO
Se é sem dúvida Amor esta explosão
de tantas sensações contraditórias;
a sórdida mistura das memórias,
tão longe da verdade e da invenção;
o espelho deformante; a profusão
de frases insensatas, incensórias;
a cúmplice partilha nas histórias
do que outros dirão ou não dirão;
se é sem dúvida Amor a cobardia
de buscar nos lençois a mais sombria
razão de encantamento e de desprezo;
não há dúvida, Amor, que te não fujo
e que, por ti, tão cego, surdo e sujo,
tenho vivido eternamente preso!
David Mourão Ferreira
AUSÊNCIA
Quero dizer-te uma coisa simples: a tua
ausência dói-me. Refiro-me a essa dor que não
magoa, que se limita à alma; mas que não deixa,
por isso, de deixar alguns sinais - um peso
nos olhos, no lugar da tua imagem, e
um vazio nas mãos. Como se as tuas mãos lhes
tivessem roubado o tacto. São estas as formas
do amor, podia dizer-te; e acrescentar que
as coisas simples também podem ser
complicadas, quando nos damos conta da
diferença entre o sonho e a realidade. Porém,
é o sonho que me traz a tua memória; e a
realidade aproxima-me de ti, agora que
os dias correm mais depressa, e as palavras
ficam pressas numa refracção de instantes,
quando a tua voz me chama de dentro de
mim - e me faz responder-te uma coisa simples,
como dizer que a tua ausência me dói.
Nuno Júdice
Tudo cura o tempo, tudo faz esquecer, tudo gasta,
tudo digere, tudo acaba. Atreve-se o tempo a colunas
de mármore, quanto mais a corações de cera! São as
feições como as vidas, que não há mais certo sinal
de haverem de durar pouco, que terem durado muito.
São como as linhas, que partem do centro para a
circunferência, que quanto mais continuadas, tanto
menos unidas. Por isso os antigos sabiamente
pintaram o amor menino; porque não há amor tão
robusto que chegue a ser velho. De todos os
instrumentos com que o armou a natureza o desarma
o tempo. Afrouxa-lhe o arco, com que já não atira;
embota-lhe as setas, com que já não fere; abre-lhe os
olhos com que vê o que não via; e faz-lhe crescer as
asas, com que voa e foge. A razão natural de toda
esta diferença é porque o tempo tira novidade às
coisas, descobre-lhe os defeitos, enfastia-lhe o gosto,
e bastam que sejam usadas para não serem as
mesmas. Gasta-se o ferro com o uso, quanto mais o
amor?! O mesmo amar é causa de não amar e o ter
amado muito, de amar menos.
António Vieira, Sermão do Mandato
William Bouguereau,
Jeune fille se defendant
contre l'amour
So, we’ll go no more a roving
I
So, we’ll go no more a roving
So late into the night,
Though the heart be still as loving,
And the moon be still as bright.
II
For the sword outwears its sheath,
And the soul wears out the breast,
And the heart must pause to breathe,
And love itself have rest.
III
Though the night was made for loving,
And the day returns too soon,
Yet we’ll go no more a roving
By the light of the moon.
Byron
Glosa de “so we’ll go no more a roving” de Byron
Não irei mais meu erro errando errante
Pela noite fora
Embora a lua brilhe tanto como outrora
Não cesse do amor a voz uivante
Que me devora
Pois o coração gasta o peito
E a espada gasta a bainha
O tempo rói o coração desfeito
E a alma é sozinha
Embora a noite sempre peça amor
E o dia volte demasiado cedo
E o luar corte como espada nua
Não irei mais em pânico e segredo
Sob a luz da lua
Sophia de Mello Breyner Andresen, Ilhas
Glosa de “So, we’ll go no more a roving”
Não mais prazer nos daremos
até a noite acabar,
se bem que inda nos amemos
e como antes brilhe o luar.
A espada à bainha gasta,
as almas cansam o seio.
Coração que não se afasta
pode até ficar em meio.
Para o amor a noite é feita
e depressa chega o dia.
Mas o prazer nos enjeita
à luz da lua sombria.
Jorge de Sena , in Poesia de
26 séculos
Um pouco de certo modo por toda a parte
há homens desmaiados ou simplesmente mortos
O AMOR REDIME O MUNDO diziam eles
mas onde está o mundo senão aqui?
Mário Cesariny, Pena Capital
No mais, Musa, no mais, que a Lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
Não no dá a pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
Dhüa austera, apagada e vil tristeza.
Lusíadas, X,145
Poema Mestiço
escrevo mediterrâneo
na serena voz do índico
sangro norte
em coração do sul
na praia do oriente
sou areia náufraga
de nenhum mundo
hei-de
começar mais tarde
por ora
sou a pegada
do passo por acontecer
Mia Couto
O meu mundo tem estado à tua espera; mas
não há flores nas jarras, nem velas sobre a mesa,
nem retratos escondidos no fundo das gavetas. Sei
que um poema se escreveria entre nós dois; mas
não comprei o vinho, não mudei os lençóis,
não perfumei o decote do vestido.
Se ouço falar de ti, comove-me o teu nome
(mas nem pensar em suspirá-lo ao teu ouvido);
se me dizem que vens, o corpo é uma fogueira –
estalam-me brasas no peito, desvairadas, e respiro
com a violência de um incêndio; mas parto
antes de saber como seria. Não me perguntes
porque se mata o sol na lâmina dos dias
e o meu mundo continua à tua espera:
houve sempre coisas de esguelha nas paisagens
e amores imperfeitos – Deus tem as mãos grandes
Maria do Rosário Pedreira, O Canto do Vento nos
Ciprestes
A que vens, solidão, com teu relógio
de ponteiros de visgo, de bater de feltro?
Ombro nenhum ao meu ombro encostado,
a que vens, ó camarada solidão?
Companheira, amiga, até amante,
até ausente, ó solidão, te amei,
como se ama o frio até o frio dar
a chama que tu dás, ó solidão!
A que vens, enfermeira? Não sabes que estou morto,
que se digo o meu sim ou o meu não
é só para que os outros me julguem mais um outro,
é só para que um morto não tire o sono aos outros?
A que vens, solidão? Vai antes possuir
os que amam sem esperança e sem saber esperam,
dá-lhes o teu conforto, encosta-lhes ao ombro
o teu ombro nenhum, ó solidão!
Alexandre O'Neill, Poemas com endereço
Portugal
Ó Portugal, se fosses só três sílabas.
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
jerico rapando o espinhaço da terra,
surdo e miudinho,
moinho a braços com um vento
testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,
se fosses só o sal, o sol, o sul,
o ladino pardal,
o manso boi coloquial,
a rechinante sardinha,
a desancada varina,
o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,
a muda queixa amendoada
duns olhos pestanítidos,
se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,
o ferrugento cão asmático das praias,
o grilo engaiolado, a grila no lábio,
o calendário na parede, o emblema na lapela,
Ó Portugal, se fosses só três sílabas
de plástico, que era mais barato!
Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
não há «papo-de-anjo» que seja o meu derriço,
galo que cante a cores na minha prateleira,
alvura arrendada para meu devaneio,
bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.
Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós...
Alexandre O'Neill, Poesias Completas
Eu sei, não te conheço, mas existes ...
Eu sei, não te conheço mas existes.
Por isso os deuses não existem,
a solidão não existe
e apenas me dói a tua ausência
como uma fogueira
ou um grito.
Não me perguntes como mas ainda me lembro
quando no outono cresceram no teu peito
duas alegres laranjas que eu apertei nas minhas
mãos
e perfumaram depois a minha boca.
Eu sei, não digas, deixa-me inventar-te.
Não é um sonho, juro, são apenas as minhas mãos
sobre a tua nudez
como uma sombra no deserto.
É apenas este rio que me percorre há muito e
desagua em ti,
porque tu és o mar que acolhe os meus destroços.
É apenas uma tristeza inadiável, uma outra maneira
de habitares
em todas as palavras do meu canto.
Tenho construído o teu nome com todas as coisas.
tenho feito amor de muitas maneiras,
docemente,
lentamente
desesperadamente
à tua procura, sempre à tua procura
até me dar conta que estás em mim,
que em mim devo procurar-te,
e tu apenas existes porque eu existo
e eu não estou só contigo
mas é contigo que eu quero ficar só
porque é a ti,
a ti que eu amo.
Joaquim Pessoa, Os Olhos de Isa
Madrigal
Toda a manhã
fui a flor
impaciente
por abrir.
Toda a manhã
fui ardor
do sol
no teu telhado.
Toda a manhã
fui ave
inquieta
no teu jardim.
Toda a manhã
fui ave ou sol ou flor
secretamente
ao pé de ti.
Eugénio de Andrade
Que instância determina ser ou não ser razão
se é uma ficção o espírito? Nada tem a marca do
eterno
e no entanto Gioconda sorri
os girassóis de Van Gogh germinam com uma
violência solar
Astreia é ainda a pureza de um rosto entre duas
sombras
E Orfeu toca a sua lira na ausência de Eurídice
perdida
Nada é eterno mas o efémero pode ser o instante
glorioso
a salvação da invenção porque tudo é invenção
contra o jugo do destino. Assim a obra nasce
para consagrar o que ainda está inacabado
mas que vai além da sombra espessa
que há na matéria do claro dia
António Ramos Rosa, Deambulações Oblíquas
Reconhecimento à Loucura
Já alguém sentiu a loucura
vestir de repente o nosso corpo?
Já.
E tomar a forma dos objectos?
Sim.
E acender relâmpagos no pensamento?
Também.
E às vezes parecer ser o fim?
Exactamente.
Como o cavalo do soneto de Ângelo de Lima?
Tal e qual.
E depois mostrar-nos o que há-de vir
muito melhor do que está?
E dar-nos a cheirar uma cor
que nos faz seguir viagem
sem paragem
nem resignação?
E sentirmo-nos empurrados pelos rins
na aula de descer abismos
e fazer dos abismos descidas de recreio
e covas de encher novidade?
E de uns fazer gigantes
e de outros alienados?
E fazer frente ao impossível
atrevidamente
e ganhar-Ihe, e ganhar-Ihe
a ponto do impossível ficar possível?
E quando tudo parece perfeito
poder-se ir ainda mais além?
E isto de desencantar vidas
aos que julgam que a vida é só uma?
E isto de haver sempre ainda mais uma maneira pra
tudo?
Tu só, loucura, és capaz de transformar
o mundo tantas vezes quantas sejam as necessárias
para olhos individuais
Só tu és capaz de fazer que tenham razão
tantas razões que hão-de viver juntas.
Tudo, excepto tu, é rotina peganhenta.
Só tu tens asas para dar
a quem tas vier buscar.
José de Almada Negreiros, Obras Completas
Há palavras como mulheres nuas violentamente
sumptuosas
Escrevê-las ou lê-las é como tocar os flancos de uma
indolente lua
Às vezes têm um rosto de águia e de andorinha
e redondos seios de melodiosa sereia
Como eu amo o seu corpo as suas maravilhosas
minúcias
e a sua larga ondulação unânime!
As palavras e o corpo não se separam como a luz da
luz não se distingue
e se chamo ao púbis de uma mulher uma crespa
concha de cabelos
é a palavra mesma que brilha e coincidindo apaga e
revela a própria coisa
Por isso já não sei se estou a falar de uma palavra ou
de uma mulher
ou se não estou a esculpir uma flexível estátua
de longas pernas robustas mas voluptuosamente
delicadas
Esta clara oscilação é o movimento mesmo da
matéria inaugural
da palavra que cria a transparência e amanhece na
noite
com frágeis ou duros diademas das suas sílabas
solares
António Ramos Rosa, Primeira Vez
M.
Todos os dias as suas águas pequenas afloram os
meus olhos. E eles, que morriam de inanidade,
ganham então súbitos brilhos, abrindo respiradouros
para a vida. A pureza, quando não é um olhar
infantil, é uma aprendizagem entre venenos subtis.
Raramente se alcança, e quando isso acontece já os
nossos olhos estão secos - como poderá tão
melindrosa flor abrir no deserto? Por isso estas
águas, por mais exíguas, me são tão preciosas.
Eugénio de Andrade, Vertentes do Olhar
VERSOS QUASE TRISTES
Trago no sangue o mistério
daquele resto de estrada
que não andei...
E era talvez ali
que eu ia ser feliz:
ali
que viriam as Fadas pra contar-me
os contos lindos das Princesas
e de Palácios
e de Florestas
que ficaram por contar;
ali que havia de abrir-se
o tal jardim
com flores que nunca morrem
ou, se morrem, há-de ser
na pujança da frescura
por medo de envelhecer...
Mas não passei além da curva...
O meu alento
já dobrou o joelho desistiu.
E eu sei tão bem que há Glória que me chama
e que tudo que digo aqui, ou faço,
é só arremedar, adivinhar,
o que, pra lá da curva que não passo,
havia de fazer ou de dizer!
E eu sei tão bem
que sem tomar nas mãos a
Glória apetecida
me não contento!...
- Por que é que tu és só
pressentimento,
minha vida?
Sebastião da Gama,
Serra-Mãe
Se uma pausa não é fim
e silêncio não é ausência,
se um ramo partido não mata uma árvore,
um amor que é perdido, será acabado?
um ouvido que escuta
uma alma que espera...
-uma onda desfeita
É ou já não era?
Nuvem solitária,
silenciosa e breve,
nuvem transparente,
desenho etéreo de anjo distraído...
nuvem,
esquecida em céu de esperança,
forma irreal de sonho interrompido..
nuvem,
luz e sombra,
forma e movimento,
fantasia breve de ânsia de infinito...
nuvem que foste
e já não és:
desejo formulado e incompreendido.
Ana Hatherly
DISCURSO AO PRÍNCIPE DE
EPAMINONDAS, MANCEBO DE GRANDE
FUTURO
Despe-te de verdades
das grandes primeiro que das pequenas
das tuas antes que de quaisquer outras
abre uma cova e enterra-as
a teu lado
primeiro as que te impuseram eras ainda imbele
e não possuías mácula senão a de um nome estranho
depois as que crescendo penosamente vestiste
a verdade do pão a verdade das lágrimas
pois não és flor nem luto nem acalanto nem estrela
depois as que ganhaste com o teu sémen
onde a manhã ergue um espelho vazio
e uma criança chora entre nuvens e abismos
depois as que hão-de pôr em cima do teu retrato
quando lhes forneceres a grande recordação
que todos esperam tanto porque a esperam de ti
Nada depois, só tu e o teu silêncio
e veias de coral rasgando-nos os pulsos
Então, meu senhor, poderemos passar
pela planície nua
o teu corpo com nuvens pelos ombros
as minhas mãos cheias de barbas brancas
Aí não haverá demora nem abrigo nem chegada
mas um quadrado de fogo sobre as nossas cabeças
e uma estrada de pedra até ao fim das luzes
e um silêncio de morte à nossa passagem.
Mário Cesariny, Manual de
Prestidigitação
Oh! como se me alonga, de ano em ano,
a peregrinação cansada minha!
Como se encurta, e como ao fim caminha
este meu breve e vão discurso humano!
Vai-se gastando a idade e cresce o dano;
perde-se-me um remédio, que inda tinha;
se por experiência se adivinha,
qualquer grande esperança é grande engano.
Corro após este bem que não se alcança;
no meio do caminho me falece,
mil vezes caio, e perco a confiança.
Quando ele foge, eu tardo; e, na tardança,
se os olhos ergo a ver se inda parece,
da vista se me perde e da esperança.
Luís de Camões, Lírica Completa II
Fuga
Aos ventos espalhei a cinza dos meus gestos.
Num desprezo de mim, fiz-me poeta,
traí os meus sonhos, enchendo vãos papéis
de traços sem sentido e talvez falsos.
Fui poeta como alguns se suicidam,
como outros partem sem destino certo.
Sonhei-me longe de tudo o que possuo
- longe de mim, longe de quem?-
afastado, sem contas a prestar...
Foi longo o meu engano. Agora vejo
que nunca de mim eu me afastei...
Adolfo Casais Monteiro, Confusão
SEGREDO DE TI
Tenho segredo de
ti
meu amor de meu invento
convento onde te
fecho
com o meu corpo lá dentro
Tenho segredo de
ti
onde me prendo e me deito
e onde te roubo
as mãos
para as pôr sobre o meu peito
Maria Teresa Horta, Minha senhora de mim
S.O.S.
O mundo
inteiro está
sozinho.
Cada pessoa
vive isolada
no meio das
multidões. As
multidões são
formadas por
indivíduos, por numerosíssimos indivíduos
separados uns dos outros.
As palavras caem perdidas no chão.
Sozinhos todos. Ninguém se entende. A humanidade
inteira está reduzida à solidão de cada um dos seus
indivíduos.
O mundo inteiro está dividido em tantos
mundozinhos individuais, pequeníssimos
microscópicos, quantos são os seus habitantes.
Mas aquele mundo da colaboração de todos, o único
real afinal de contas, esse já não existe. Veio cada
qual roubar-lhe o seu pedacito e o mundo ficou feito
em migalhas, reduzido a grãos de areia, pó, nada!
Vós, indivíduos das cidades, e dos campos, vós
indivíduos de todas as partes e que fazeis parte de
todas as multidões, respondei todos um por um:
Com quem comunicas tu?
Não te perguntamos com quem tratas todos os dias,
nem com quem falas, nem com quem vives, nem
com quem dormes. Perguntamos-te unicamente:
com quem te entendes?
Com ninguém!
Estás tão sozinho no meio de toda a gente ou ainda
mais do que se não houvesse no mundo mais
ninguém do que tu. [...]
S.O.S. perdidos, desencontrados, sozinhos! S.O.S.
estamos todos desencontrados, estamos todos
sozinhos, perdidos todos! S.O.S. sozinhos! S.O.S.
desencontrados! S.O.S. perdidos! S.O.S.! sós! S.O.S.
S.O.S é o sinal internacional de telegrafia a pedir
socorro.
Está formado pelas três letras iniciais da frase
inglesa: «Save Our Souls», que quer dizer em
português: «Salvai Nossas Almas».
Estas três letras S.O.S. são as mesmas com que se
escreve em português o plural do indivíduo isolado:
Sós.
Almada Negreiros,, Obras Completas
esta esquisita prova me tentou
de tecer um rumor em muros de água
ossos de terra calcinada
o jugo
culpado me castigo com engenho
e da voz desenhada o artifício
restos de pele antiga
no laço da armadilha
em silêncio me muro e me demoro
no cálculo de rotas inexactas
um duro arbítrio quer que me desprenda
dos cinco ou mais sentidos
vou ser livre na terra desnudada
vou dizer o que sei como quem mente.
António Franco Alexandre, A Pequena Face
Olho os livros - e de súbito os livros multiplicam-se
desde o chão até ao tecto. Paredes imensas,
corredores infindáveis compactos de livros, e as
caves, e as escadarias interiores, depósitos de in-
fólios no sótão, a cerimónia findou, estou eu só na
Biblioteca Geral. Fecharam os portões, ninguém,
todo o grande edifício deserto. Passo pelos longos
corredores, de cima a baixo os livros nos seus
túmulos. São milénios de balbúrdia, tagarelice
infindável, [...] interminável algazarra através das
eras - estão imóveis nos seus túmulos irrisórios.
Passo ao longo dos corredores, ecoam pelo tecto os
meus passos claros no mosaico - silêncio. É a hora
grave do fim [...]
Vergílio Ferreira, Para Sempre
Arcimboldo
Meditação
Tudo imaterial na praia rasa
Cheia de sol, ao fim da tarde,
Proa ao vento quebrada
A vaga entre rochedos, se ilumina.
É tudo imaterial, tudo neblina
Ténue que aos poucos arde,
Ao fim da tarde se desfaz, flutua,
E voo de ave deslisa
Ao longe linha pura.
Tudo imaterial na praia rasa.
Aqui ninguém me vê: amo a ternura.
Ruy Cinatti, O Livro do Nómada Meu Amigo
Mas que sei eu das folhas no outono
ao vento vorazmente arremessadas
quando eu passo pelas madrugadas
tal qual passaria qualquer dono?
Eu sei que é vão o vento e lento o sono
e acabam coisas mal principiadas
no ínvio precipício das geadas
que pressinto no meu fundo abandono
Nenhum súbito súbdito lamenta
a dor de assim passar que me atormenta
e me ergue no ar como outra folha
qualquer. Mas eu que sei destas manhãs?
As coisas vêm vão e são tão vãs
como este olhar que ignoro que me olha.
Ruy Belo, Todos os poemas
APONTAMENTOS ÍNTIMOS
Não sei quem sou, que alma tenho.
Quando falo com sinceridade não sei com que
sinceridade falo. Sou variamente outro do que um eu
que não sei se existe (se é esses outros).
Sinto crenças que não tenho. Enlevam-me ânsias que
repudio. A minha perpétua atenção sobre mim
perpetuamente me aponta traições de alma a um
carácter que talvez eu não tenha, nem ela julga que
eu tenho.
Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com
inúmeros espelhos fantásticos que torcem para
reflexões falsas uma única anterior realidade que não
está em nenhuma e está em todas.
Como o panteísta se sente árvore e até flor, eu sinto-
me vários seres. Sinto-me viver vidas alheias, em
mim, incompletamente, como se o meu ser
participasse de todos os homens, incompletamente
de cada, por uma suma de não-eus sintetizados num
eu postiço.
*
Sendo nós portugueses, convém saber o que é que
somos.
a) adaptabilidade, que no mental dá a instabilidade, e
portanto a diversificação do indivíduo dentro de si
mesmo. O bom português é várias pessoas.
b) a predominância da emoção sobre a paixão.
Somos ternos e pouco intensos, ao contrário dos
espanhóis – nossos absolutos contrários –, que são
apaixonados e frios.
Nunca me sinto tão portuguesmente eu como quando
me sinto diferente de mim – Alberto Caeiro, Ricardo
Reis, Álvaro de Campos, Fernando Pessoa, e quanto
mais haja havidos ou por haver.
Fernando Pessoa
Homens que são como lugares mal situados
Homens que são como lugares mal situados
Homens que são como casas saqueadas
Como são como sítios fora dos mapas
Como pedras fora do chão
Como crianças órfãs
Homens sem fuso horário
Homens agitados sem bússola onde repousem
Homens que são como fronteiras invadidas
Que são como caminhos barricados
Homens que querem passar pelos atalhos sufocados
Homens sulfatados por todos os destinos
Desempregados das suas vidas
Homens que são como a negação das estratégias
Que são como os esconderijos dos contrabandistas
Homens encarcerados abrindo-se com facas
Homens que são como danos irreparáveis
Homens que são sobreviventes vivos
Homens que são como sítios desviados
Do lugar
Homens que são como projectos de casas
Em suas varandas inclinadas para o mundo
Homens nas varandas voltados para a velhice
Muito danificados pelas intempéries
Homens cheios de vasilhas esperando a chuva
Parados à espera
De um companheiro possível para o diálogo interior
Homens muito voltados para um modo de ver
Um olhar fixo como quem vem caminhando ao
encontro
De si mesmo
Homens tão impreparados tão desprevenidos
Para se receber
Homens à chuva com as mãos nos olhos
Imaginando relâmpagos
Homens abrindo lume
Para enxaguar o rosto para fechar os olhos
Tão impreparados tão desprevenidos
Tão confusos à espera de um sistema solar
Onde seja possível uma sombra maior
Daniel Faria, Homens que são como Lugares Mal
Situados
Imobilizar as coisas, as pessoas, os momentos,
arrancar-lhes um a um todos os véus, depois olhá-los
bem, longamente, saciar-se deles até os olhos
ficarem doridos e as pálpebras descerem de
cansadas. Olhá-los assim para ter coragem. Observar
com atenção tudo aquilo que deixa, tudo, bem de
frente, por uma vez, sem receio, e verificar que não
tem pena de se ir embora. Não fugir, não se escapar
pelas ruas transversais, não se esconder na primeira
porta aberta. Não sonhar. Sobretudo não sonhar.
[...] de súbito, não sabe porquê, os sonhos tornam-se
insuficientes. Agora há sempre uma larga margem
de angústia branca, que se lhe enrola ao peito como
uma serpente, que o aperta, que lhe corta a
respiração e que faz doer. E já não só peito, é todo
ele que é apertado, comprimido, por múltiplos,
invisíveis anéis.
Maria Judite de Carvalho, Paisagem sem Barcos
Recusa
Não terás para me
dar
quotidiano contigo
abrigo
corpo despido
Nem terás para me
dar
a segurança do perigo
mais do que o gesto
ocupado
o afago
o desmentido
Não terás para me
dar
o espanto de estar contigo.
Maria Teresa Horta
Creio
Creio nos anjos que andam pelo mundo,
Creio na Deusa com olhos de diamante,
Creio em amores lunares com piano ao fundo,
Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes,
Creio num engenho que falta mais fecundo
De harmonizar as partes dissonantes,
Creio que tudo é eterno num segundo,
Creio num céu futuro que houve dantes,
Creio nos deuses de um astral mais puro,
Na flor humilde que se encosta ao muro,
Creio na carne que enfeitiça o além,
Creio no incrível, nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo pelas rosas,
Creio que o Amor tem asas de ouro. Ámen.
Natália Correia, Sonetos Românticos
No sonho não há asperezas, nem contrariedades – o
sonho é como um rio imenso que corre e transborda.
Não se lhe opõem diques: não há força que lhe
resista. A realidade é cheia de intransigências
mesquinhas, de ásperos ângulos, de mínimos e
resistentes pormenores.
[…]
Cada ser tem a sua atmosfera própria, cada criatura
vive rodeada duma auréola de sonho. Todas as almas
segregam sonho, como todas as flores exalam
perfume. É uma irradiação.
[…]
Morre um sonho – outro nasce. Para o construir
basta um simples nada – mas sem essa atmosfera é
que ninguém pode viver. É muitas vezes feita de
penas, de gritos – mas tão indispensável como o pão
de cada dia. Há homens que arrastam mantos
impalpáveis, esplêndidos – noutros o sonho reduz-
se, apaga-se, mas existe sempre, até nas almas
rudimentares. Constitui, apesar de não entrarmos
com ele em linha de conta, quase toda a nossa vida.
Há atmosferas dessas que se ligam – nasce a
simpatia; outras que se repelem – vem o ódio. A
verdadeira existência, a que mais nos custa a deixar,
é essa que nos parece quimérica. É até, se me não
engano, a única que existe. Às vezes morre, dilui-se:
a alma já não exala sonho e o corpo continua a viver
– mas em verdade vos digo que o homem a quem
isto suceda não passa dum cadáver.
[…]
Além disso, o ser que se
habitua a sonhar, precisa
constantemente de sonho: é
como uma fornalha acesa: não
há carvão que lhe chegue: a
mina, ao fim de tempo, passa
inteira pelo metro quadrado
duma fornalha…
Raul Brandão, A Farsa
Através da cela ouve tropel de cavalos e alarido de
muito povo, a entrecortar um sussurro distante,
confuso, de música e tiros e vozes... É a Feira.
Gineto anima-se, crente de que os companheiros
virão buscá-lo neste dia de festa, trazendo Rosete
com eles. Encosta a face às grades, espera o regresso
à vida livre.
Uma voz canta, mesmo por baixo da janela, uma
canção que ele ouviu, certa tarde, no alto do mirante.
E então grita:
- Gaitinhas! Tou aqui, Gaitinhas!
Mas a voz afasta-se. Gaitinhas-cantor vai com o
Sagui correr os caminhos do mundo, à procura do
pai. E quando o encontrar, virá então dar liberdade
ao Gineto e mandar para a escola aquela malta dos
telhais - moços que parecem homens e nunca foram
meninos.
Soeiro Pereira Gomes, Esteiros
Cantiga
Entre tamanhas mudanças,
Que coisa terei segura?
Duvidosas esperanças
Tão certa desaventura.
Venham estes desenganos
Do meu longo engano, e vão,
Que já o tempo e os anos
Outros cuidam que me dão.
Já não sou para mudanças,
Mais quero uma dor segura.
Vá crê-las, vãs esperanças,
Quem não sabe o qu'aventura.
Bernardim Ribeiro
ALEXANDRÍNICOS DILEMAS
E fico neste estado catatónico,
telegráfico, estúpido, lacónico,
quando te vejo ou ouço a tua voz.
Bem queria que passasse este registo,
que, se é para ser isto sem ter isto,
melhor que te tomar é tomar pós
de frutos, contra enjoos, suculentos,
bons para a pele, na alma como unguentos
ou band-aids em chuva autocolante.
Mas em qualquer dos casos, o que resta
é: não te veja, ou veja (em curta festa):
a saudade: submersa e naufragante.
Não te posso ouvir mais, digo três vezes,
e com muito fervor e muitas preces,
como se esconjurasse Satanás.
Depois, uma palavra, um leve traço,
um minúsculo gesto abrindo o espaço
e, mesmo que não estejas, aqui estás.
E sentas-te a meu lado na cadeira.
Ninguém te vê: só eu. A curva inteira
do pescoço, dos ombros, ou da mão.
Toco-te levemente e o vizinho
na mesa ao lado, espreita-me, de mansinho,
pensando que perdi toda a razão.
E devo ter perdido, se o real
me parece uma coisa desigual,
um band-aid barato, a descolar.
E a única coisa mais parecida
com o ser realmente é uma vida
que não posso, nem devo, acarinhar.
E até essa palavra lembra ti,
e a fractura começa por aí,
numa sintaxe que não sei rimar:
Não te posso ver mais. Não, não e não!
(E sai-me o verso assim, como vulcão
limitado a explodir dentro do mar).
E agora, o quê? Pergunto-me, interrogo-me,
faço das linhas coração. E chovo-me:
miríade em band-aids, tão veloz:
é que fico na mesma catatónica,
telegráfica, estúpida, lacónica,
se torno em verso, e minha, a tua voz.
Ana Luísa Amaral
Mãe!
Mãe! dói-me o peito. Bati com o peito contra a
estátua que tem em cima o
verbo ganhar. Ainda não sei como foi. Eu ia tão
contente! eu ia a pensar em ti e
no verbo ganhar. Estava tudo a ser tão fácil! Já
estava a imaginar a tua alegria
quando eu voltasse a casa com o verbo saber e o
verbo ganhar, um em cada
mão!
Dói-me muito o peito, Mãe! passa a tua mão pela
minha cabeça!
Almada Negreiros, A Invenção do Dia Claro
O Imperador baixou mais a voz:
- As coisas são como são, Lúcio Quíncio. Suporta-as
e abstém-te da indignação. Não se pode impor a
cada cidadão um filósofo a seguir-lhe os passos. E,
sendo, pelo que sei, um jovem promissor da tua
cidade, nunca demonstres, por actos ou omissões,
que estás longe do sentir do povo. Poderias romper
um equilíbrio fixado na ordem natural das coisas, em
que as tuas convicções interviriam como mero
capricho pessoal, alheio e perturbador.
Mário de Carvalho, Um Deus Passeando pela
Brisa da Tarde
Adeus
Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.
Meto as mãos nas algibeiras
e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro!
Era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!
E eu acreditava!
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
no tempo em que o teu corpo era um aquário,
no tempo em que os teus olhos
eram peixes verdes.
Hoje são apenas os teus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.
Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor...
já não se passa absolutamente nada.
E, no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos nada que dar.
Dentro de ti
Não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
Adeus.
Eugénio de Andrade, Os Amantes sem Dinheiro
YOU ARE WELCOME TO ELSINORE
Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos a morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício
Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição
Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor
E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo
do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmos só amor só solidão desfeita
Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar
Mário Cesariny, Pena Capital
ACONTECEU-ME
Eu vinha de comprar fósforos
e uns olhos de mulher feita
olhos de menos idade que a sua
não deixavam acender-me o cigarro.
Eu era eureka para aqueles olhos.
Entre mim e ela passava gente como se não passasse
e ela não podia ficar parada
nem eu vê-la sumir-se.
Retive a sua silhueta
para não perder-me daqueles olhos que me levavam
espetado.
E eu tenho visto olhos!
Mas nenhuns que me vissem
nenhuns para quem eu fosse um achado existir
para quem eu lhes acertasse lá na sua ideia
olhos como agulhas de despertar
como íman de atrair-me vivo
olhos para mim!
Quanto havia mais luz
a luz tornava-me quase real o seu corpo
e apagavam-se-me os seus olhos
o mistério suspenso por um cabelo
pelo hábito deste real injusto
tinha de pôr mais distância entre ela e mim
para acender outra vez aqueles olhos
que talvez não fossem como eu os vi
e ainda que não fossem, que importa?
Vi o mistério!
Obrigado a ti mulher que não conheço.
Almada Negreiros
Estamos agora em paz
sabendo simular o esquecimento
sentados
com os olhos no vento
lá de fora atirado para antes
de nós as mãos caídas
nos joelhos mas nada suplicantes
só esvaídas
conformados
com não nos conformarmos
resignados
a esperando não esperarmos
como se tudo fosse um imenso tanto faz
Mário Dionísio, Terceira Idade
Então eu mais-vi: toalha de gente sobre altar-mor
face a sacrário: Carmo, o com e sem ruínas,
bebedoiro e muralhas linhas de céu que nem talha
onde apontarem baterias-velas pretas enristadas. As
árvores: cheias de corpos com cabeças tão viventes
lamparinas: o cabelo de minha mulher também
arborescia: tanta sarça ardendo nessa espera então
tudo. […] Se isto esturra vai ser uma contusão dos
fiéis que nem maremoto do Cisma. […] Ah, Maria
S., ali no Largo que hoje me parece mais estreito
como se olhos me fossem nele ameninados das Zeiss
e loucas moções, estava orando a gente um poder-
em-Ser. […] Tal como em Missa havia um não saber
de ires e vires e flexões e genuflexões, braços ao alto
do puto tropa em Kyries de eu a ver: a cara aflita a
dizer ao oficiante longe a eucaristia bronca: sangue e
esquírolas pelo templo ao léu, holocausto campal se
desse para o torto. Oficiante de dentro, GNR sacrista
de emperrado sacrário, fazia que vinha e que não
vinha. Cara via-se bem borrada de nec plus ultra. Eu
lia na boca do salgueiro, Maia que esse depois foi: a
porra, pá. E na cara dele à escuta os berros do bispo
recém que o havia de estar a atazanar da cripta
daquela Roma: […]«Afinfa-lhes, pá, ou pensas que é
só o Carmo que está em jogo. Vai». E ele foi […]
Ah, grande celebrante que lá havia de estar tão
oculto em câmara escura quanto estes que custavam
a ir ao Brasil de torna-viagem, sem terem feito
violência nenhumíssima ou terror, excepto o que
mandavam ter. O esquecido
que vai em nós todos da
evitada transmutação do
Carmo em missa roxa.
Maria Velho da Costa, Missa
in Albis
A minha solidão
A minha solidão
não é uma invenção
para enfeitar noites estreladas…
… Mas este querer arrancar a própria sombra do
chão
e ir com ela pelas ruas de mãos dadas.
… Mas este sufocar entre coisas mortas
e pedras de frio
onde nem sequer há portas
para o Calafrio.
… Mas este rir-me de repente
no poço das noites amarelas…
- única chama consciente
com boca nas estrelas.
… Mas este eterno Só-Um
(mesmo quando me queima a pele o teu suor)
- sem carne em comum
com o mundo em redor.
… Mas este haver entre mim e a vida
sempre uma sombra que me impede
de gozar na boca ressequida
o sabor da própria sede.
… Mas este sonho indeciso
de querer salvar o mundo
- e descobrir afinal que não piso
o mesmo chão do pobre e do vagabundo.
… Mas este saber que tudo me repele
no vento vestido de areia…
e até, quando a toco, a própria pele
me parece alheia…
Não. A minha solidão
Não é uma invenção
Para enfeitar o céu estrelado…
… mas este deitar-me de súbito a chorar no chão
e agarrar a terra para sentir um Corpo Vivo a meu
lado.
José Gomes Ferreira, Poesia III
Ainda é grande o silêncio
que temos dentro. Levamos
a sua lenta abóbada de tempo
cumprindo as estações e a rotação dos anos.
Mas, sobretudo, vamos crestando e sendo
a uma astral experiência. Vamos
adquirindo essa tez translúcida dos velhos
que sabe à estrutura dos planaltos.
E, um dia, iluminados, entraremos
pelo portão sagrado,
como quem deu por si em pensamento,
com todo o seu silêncio iluminando.
Fernando Echevarría, Figuras
"flor do frangipani"
Tudo sempre se passou aqui, nesta varanda, por
baixo desta árvore, a árvore do frangipani.
Minha vida se embebeu do perfume de suas flores
brancas, de coração amarelo. Agora não cheira a
nada, agora não é tempo das flores. O senhor é
negro, inspector. Não pode entender como
sempre amei essas árvores. É que aqui, na vossa
terra, não há outras árvores que fiquem sem
folhas. Só esta fica despida, faz conta está para
chegar um Inverno. Quando vim para África,
deixei de sentir o Outono. Era como se o tempo
não andasse, como se fosse sempre a mesma
estação. Só o frangipani me devolvia esse
sentimento do passar do tempo. Não que eu hoje
precise de sentir nenhuma passagem dos dias.
Mas o perfume desta varanda me cura nostalgias
dos tempos que vivi em Moçambique. E que
tempos foram esses!
Hoje eu sei: África rouba-nos o ser. E nos vaza de
maneira inversa: enchendo-nos de alma.
Mia Couto, A Varanda do Frangipani
E o espaço fica - ah fica - e ninguém ousa
mais que espreitar a medo para dentro dele
pelas grades de um verso em que palpita a vida,
tão pura e tão ausente como quando um dia
primeiro ela vibrou num cheiro de maresia,
ascendendo das águas, luminosa,
num corpo ainda escamoso cuja pele
seria este sabor de espaço e de ternura
em solidão perfeita descobrindo o amor.
Jorge de Sena, Conheço o sal
Cais
Nunca parti deste cais
e tenho o mundo na mão!
Para mim nunca é demais
responder sim
cinquenta vezes a cada não.
Por cada barco que me negou
cinquenta partem por mim
e o mar é plano e o céu azul sempre que vou!
Mundo pequeno para quem ficou...
Manuel Lopes
Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjectividade
objectiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um eléctrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia
seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço
planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o
mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de
dentro...
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não
digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-me
toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a
semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido
e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje qual é o espectáculo que me repetiria a
infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o
espectáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã
estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não
posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...
O porvir...
Sim, o porvir...
Fernando Pessoa
O ESTATUÁRIO
Arranca o estatuário uma pedra dessas montanhas,
tosca, bruta, dura, informe; e, depois que desbastou
o mais grosso, toma o maço e o cinzel na mão, e
começa a formar um homem, - primeiro, membro a
membro, e depois feição por feição, até à mais
miúda; ondeia-lhe os cabelos, alisa-lhe a testa, rasga-
lhe os olhos, afila-lhe o nariz, abre-lhe a boca,
avulta-lhe as faces, torneia-lhe o pescoço, estende-
lhe os braços, espalma-lhe as mãos, divide-lhe os
dedos, lança-lhe os vestidos; aqui desprega, ali
arruga, acolá recama; e fica um homem perfeito, e
talvez um santo que se pode pôr no altar.
Padre António Vieira, Sermão do Espírito Santo
Saberás que não te amo e que te amo
pois que de dois modos é a vida,
a palavra é uma asa do silêncio,
o fogo tem sua metade de frio.
Eu amo-te para começar a amar-te,
para recomeçar o infinito
e não deixar de amar-te nunca:
por isso é que ainda te não amo.
Amo-te e não amo como se tivesse
nas minhas mãos as chaves da fortuna
e um incerto destino infortunado.
Este amor tem duas vidas para amar-te.
Por isso amo-te quando não te amo
e por isso amo-te quando te amo.
Pablo Neruda, Antologia Breve
L'Angélus de Millet
Recolhidos
os camponeses de Millet olham a terra,
quando o céu, às Trindades, os convoca.
Forquilha, cesto, carro,
homem, mulher
- já tão longe na história!
Alexandre O'Neill, Poesias Completas
Jean François Millet
OS ÚLTIMOS MORTOS DA PIDE
Ainda é grande o silêncio
que temos dentro. Levamos
a sua lenta abóbada de tempo
cumprindo as estações e a rotação dos anos.
Mas, sobretudo, vamos crestando e sendo
a uma astral experiência. Vamos
adquirindo essa tez translúcida dos velhos
que sabe à estrutura dos planaltos.
E, um dia, iluminados, entraremos
pelo portão sagrado,
como quem deu por si em pensamento,
com todo o seu silêncio iluminando.
Fernando Echevarría, Figuras
Do meio dos telhados donde gatinhava
o regime que fora de salões e enxovias
bolçava contra a rebentação da cidade
a pedrada de tiros do rancor acossado.
A biltre obediência das inquirições,
das negaças, dos traços toldados,
dos pátios chulos onde grimpavam torturas
como hera de sangue pelas mãos caladas,
ia ainda metralhar à queima-roupa.
Sobre ti, sobre o outro além, sobre a alegria de
todos.
A sanha era qualquer um: matavam
esses últimos sinais do que tínhamos sido
Saíam em braços anónimos do erro nocturno
para a claridade que ninguém ainda conhecia.
Joaquim Manuel Magalhães
Como açucena, abre-se o teu rosto
por sobre a doce, tímida paisagem
Daniel Filipe
O GRITO: VARIAÇÕES
O caderno onde escrevo trouxe-mo a minha filha
de viagem. Tem «O Grito» de Munch sobre o corpo.
Sinuoso e disforme, auto-retrato raso, a boca em
verde, as mãos acompanhando a curva da cabeça,
e o resto em disjunção — como esse céu. As cores
serão de pouco mais de século, foram nórdicos
dedos
a compô-las. Mas há nessas figuras ao fundo de
uma
estrada, de uma ponte (divisão de harmonia e des-
conforto, de um azul escuro a encostar-se ao negro),
uma implosão comum. É uma ponte, tem que ser
uma ponte o que se vê, e o caos que se desenha
nesse rosto não deve estar atrás, mas no que está à
frente, no caminho. Qualquer futuro, invisível daqui.
E há os pequenos barcos, perigosamente em centro
indefinível. Redemoinho? Sol? Seja o que for,
reflecte,
parcialmente, um amarelo quente, ameaça de um
astro
que se põe. Ou de um meio-dia atravessado a ventos
ondulantes. Podia-se (inviamente) inverter o
caderno,
ver em diagonal. Mas seria uma imagem semelhante
à do caderno inteiro. Mesmo que do avesso, havia
de
falar a mesma dor. Curvo e sinusoidal, o mesmo
espaço.
Só a cerca castanha, precipitada no abismo verde,
é breve protecção.
Ela, e a mão que, de viagem, me trouxe este
caderno.
Um pouco ainda, também, as suas folhas, que, por
enquanto (e quase todas), brancas, lhe são um forro
quase mudo. Quase —
Ana Luísa Amaral
Tarde de mais
Quando chegaste enfim, para te ver
Abriu-se a noite em mágico luar;
E p’ra o som de teus passos conhecer
Pôs-se o silêncio, em volta, a escapar...
Chegaste, enfim! Milagre de endoidar!
Viu-se nessa hora o que não pode ser:
Em plena noite, a noite iluminar
E as pedras do caminho florescer!
Beijando a areia d’oiro dos desertos
Procura-te em vão! Braços abertos,
Pés nus, olhos a rir, a boca em flor!
E há cem anos que eu era nova e linda!...
E a minha boca morta grita ainda:
Por que chegaste tarde, ó meu amor?!...
Florbela Espanca, Livro de Soror Saudade
Retrato
Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos vazios,
nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
a minha face?
Cecília Meireles, Poesia
Picasso
Azagaia, Árvore, Sombra
Há objectos que perseguem a nossa infância,
depois, vida fora, esquecem-se os seus mágicos
nomes,
a sonhada utilidade que os anima.
Poderíamos pressenti-los dentro de nós,
e isso sucede, por instantes, quando o fundo que os
obscurece
se ilumina de repente
e os distinguimos a contra-luz.
Silhuetas animam-se na memória. Uma breve,
quase acessória, viagem no tempo começa.
Em África, na casa onde nasci, e depois de casa em
casa
- eram frequentes as mudanças –
o meu pai pendurava uma azagaia na parede.
Sempre a mesma azagaia. Era um objecto nobre.
marcava um hábito guerreiro: imaginar que a
sustinha sobre a cabeça,
que a arremessava longe, trespassando a sombra
da árvore que se erguia no quintal.
trespassava a sombra e não a árvore, repare-se.
E então a sombra, sob o sortilégio do imaginado
arremesso,
começava a retrair-se e a afilar-se. Desaparecia.
Com o desaparecimento da sombra
ficava apenas a árvore e a longa azagaia presa ao
solo.
A sombra de uma árvore visita-me agora.
Vem nos meus sonhos recentes dizer-me que há um
livro
nos sonhos, e que esse livro se escreve
com a linguagem crepuscular da memória.
Sei que se trata de uma sombra órfã.
Que se soltou das contingências de lugar e luz
para viajar no eterno. Sei agora que a substância da
árvore
se aliou à substância da azagaia. Que ambas
vibraram,
continuam a vibrar, juntas.
Luís Quintais, A Imprecisa Melancolia, Teorema,
1995.
"PROFISSÃO: POETA"
Um dia foi a minha vez de ir a Paris. Foi necessário
um passaporte. Pediram a minha profissão. Fiquei
atrapalhado! Pensei um pouco para responder
verdade e disse a verdade: Poeta!
Não aceitaram.
Também pediram o meu estado. Fiquei atrapalhado.
Pensei um pouco para responder verdade e disse a
verdade: Menino!
Também não aceitaram.
E para ter passaporte tive de dizer o que era
necessário para ter o passaporte, isto é – uma
profissão que houvesse e um estado que houvesse!
Almada Negreiros, A Invenção do Dia Claro
Sísifo
Recomeça...
Se puderes,
Sem angústia e sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro,
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.
E, nunca saciado,
Vai colhendo
Ilusões sucessivas no pomar
E vendo
Acordado,
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças.
Miguel Torga, Diário XIII
Baixo-relevo em pedra
Ítaca
Quando partires de regresso a Ítaca
deves orar por uma viagem longa,
plena de aventuras e de experiências.
Ciclopes, Lestrogónios, e mais monstros,
um Poseidon irado – não os temas,
jamais encontrarás tais coisas no caminho,
se o teu pensar for puro, e se um sentir sublime
teu corpo toca e o espírito te habita.
Ciclopes, Lestrogónios, e outros monstros,
Poseídon em fúria – nunca encontrarás,
se não é na tua alma que os transportes
ou ela os não erguer perante ti.
Deves orar por uma viagem longa.
Que sejam muitas as manhãs de Verão,
quando, com que prazer, com que deleite,
entrares em portos jamais antes vistos!
Em colónias fenícias deverás deter-te
para comprar mercadorias raras:
coral e madrepérola, âmbar e marfim,
e perfumes subtis de toda a espécie:
compra desses perfumes quanto possas
E vai ver as cidades do Egipto,
para aprenderes com os que sabem muito.
Terás sempre Ítaca no teu espírito,
que lá chegar é o teu destino último.
Mas não te apresses nunca na viagem.
É melhor que ela dure muitos anos,
que sejas velho já ao ancorar na ilha,
rico do que foi teu pelo caminho,
e sem esperar que Ítaca te dê riquezas.
Ítaca deu-te essa viagem esplêndida.
Sem Ítaca, não terias partido.
Mas Ítaca não tem mais nada para dar-te.
Por pobre que a descubras, Ítaca não te traiu.
Sábio como és agora, senhor de tanta experiência,
terás compreendido o sentido de Ítaca.
Constantino Cavafy, 90 e Mais Quatro Poemas
(versão de Jorge de Sena)
exercício espiritual
É preciso dizer rosa em vez de dizer ideia
é preciso dizer azul em vez de dizer pantera
é preciso dizer febre em vez de dizer inocência
é preciso dizer o mundo em vez de dizer um homem
É preciso dizer candelabro em vez de dizer arcano
é preciso dizer Para Sempre em vez de dizer Agora
é preciso dizer O Dia em vez de dizer Um Ano
é preciso dizer Maria em vez de dizer aurora
Mário Cesariny de Vasconcelos,
manual de prestidigitação
Meu aceso lume
Colheste as flores
da tua chama
apagaste devagar
os teus sentidos
sossegaste o corpo
em sua cama
desguarneceste em mim
os teus motivos
Que a vela acesa corte a madrugada
e lhe desdiga a calma e a palavra
Colheste devagar o meu queixume:
Ó meu amor!
Ó meu aceso lume!
Maria Teresa Horta
SONETO DA FIDELIDADE
De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.
Que vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei-de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.
E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.
Vinícius de Moraes
Chagall
"Fala, Yaka!"
A estátua yaka olhava para ele, muda. Os olhos
transparentes fitavam o velho e ele sentiu a falta de
ar que o acompanhava há tempos.
- Fala, Yaka – disse com muita dificuldade.
O segundo obus cortou o céu límpido e parecia mais
próximo do sapalalo. O pó amarelo saiu em maior
quantidade das paredes de cima. Um pouco dele veio
docemente pousar sobre o quintal. A explosão
também pareceu mais perto. Eles avançavam,
pensou o velho, e a estátua não fala.
É o fim, pensou ele, já sem forças para o dizer em
voz alta. Devo fazer o balanço da minha vida. Faz-se
sempre um balanço no fim, não é? Não falo, mas sei
que me estás a perceber, Yaka. No fim dum ano,
dum amor, dum negócio, duma guerra: a
contabilidade dos ganhos e perdas. Só tenho que
fazer a das perdas. Uma família a que dei origem,
hoje espalhada pelo mundo. Só Joel e Chico
sobraram. E Joel talvez agora já esteja morto, sem
sepultura. É importante estar sem sepultura?
Gostaria de levar a enterrar esse menino que
descobri no fim da vida. E fui egoísta, e ia dizer-lho,
quando me alegrei que fosse lutar. Ia fazer o que
nunca fui capaz de fazer, ele ia redimir-me. É
sempre assim, descobre-se demasiado tarde. Não
deixará traço no mundo. Nem o sapalalo. Não foi ele
que o construiu, mas deixei-o apodrecer, já sai pó
por todos os lados, basta uma
explosão aqui perto para ele
desabar. Nada, não deixa nada
atrás dele. A sociedade será
outra nesta terra, nem vestígios
registará na História. A
História guarda os feitos de
heróis, na medida que
interessam às forças vitoriosas
da época. Não são os seus
vestígios que a nova sociedade
vai querer na História. Um
colono a mais. Para esquecer.
A culpa foi minha? Tinha sido
apenas o mexilhão da estória,
uma bimba que se afogou
porque duas vagas chocaram
exactamente sobre ela.
Olhou para a estátua yaka, sem
falar, enquanto a cidade
estremecia sob as explosões
sucessivas que a abalavam. O
ar lhe faltava e deixou-se
deslizar para o chão. Encostou
a face na terra húmida e
contemplou a estátua de lado, a
boca aberta para sorver o ar
que já mal conseguia entrar
nela.
Pepetela, Yaka
"cansaço"
O que há em mim é sobretudo cansaço
Não d'isto ou daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
cansaço assim mesmo, ele mesmo,
cansaço
Álvaro de Campos
Tarde
A tarde trabalhava
sem rumor
no âmbito feliz das suas nuvens,
conjugava
cintilações e frémitos,
rimava
as ténues vibrações
do mundo,
quando vi
o poema organizado nas alturas
reflectir-se aqui,
em ritmos, desenhos, estruturas
duma sintaxe que produz
coisas aéreas como o vento e a luz.
Carlos de Oliveira
O menino que escrevia versos
De que vale ter voz
se só quando não falo é que me entendem?
De que vale acordar
se o que vivo é menos do que o que sonhei?
(Versos do menino que fazia versos)
Mia Couto, O fio das Missangas, (contos)
Ai que sábados mais profundos!
É curioso este planeta
com tanta gente em movimento:
ondas de pernas nos hotéis,
urgentes motociclistas,
carris que vão prá beira-mar
e quantas raparigas imóveis
raptadas pelas rodas rápidas.
Todas as semanas terminam
em homens, mulheres e areia,
e temos de correr, não perder nada,
vencer colinas tão inúteis,
mastigar música insolúvel,
voltar cansados ao cimento.
Eu bebo por todos os sábados
sem me esquecer do prisioneiro
atrás das paredes cruéis:
os dias dele não têm nome
e este rumor que passa e corre
vai-o cercando como o oceano
sem descobrir qual é a onda,
a onda do húmido sábado.
Ai que sábados irritantes
armados de bocas e pernas,
desenfreadas, sempre a correr,
bebendo mais do que é a conta:
não protestemos contra o bulício
que não quer andar connosco.
Pablo Neruda, Antologia
Breve
“duas pessoas”
-Sabem quantas pessoas tem havido desde o
princípio do mundo até hoje?
- Duas. Desde o princípio do mundo até hoje, não
houve mais do que duas pessoas: uma chama-se a
humanidade e a outra o indivíduo. Uma é toda a
gente e a outra uma pessoa só.
Um dia perguntaram a Demócrito como tinha
chegado a saber tantas coisas.
Respondeu: Perguntei tudo a toda a gente.
Bastantes séculos mais tarde, Goethe confessou por
sua própria boca que «se lhe tirassem tudo quanto
pertencia aos outros, ficava com muito pouco ou
nada».
Por aqui se vê que cada um é o resultado de toda a
gente; o que de maneira nenhuma quererá dizer que
seja o bastante ter cada qual conhecido toda a gente
para que resulte imediatamente um Demócrito ou
um Goethe! Precisamente o difícil não é chegar aos
Grandes, mas a si próprio!... Ser o próprio é uma
arte onde existe toda a gente e em que raros
assinaram a obra-prima.
O que está fora de dúvida é que cada um deve ser
como toda a gente, mas de maneira que a
humanidade tenha efectivamente um belo
representante em cada um de Nós.
Almada Negreiros, Obras Completas
Mentira
A Mentira é a recriação de uma Verdade. O
mentidor cria ou recria. Ou recreia. A fronteira entre
estas duas palavras é ténue e delicada. Mas as
fronteiras entre as palavras são todas ténues e
delicadas.
Entre a recriação e o recreio assenta todo o jogo. O
que não quer dizer que o jogo resulte sempre.
Resulte seja o que for ou do que for.
A Ambiguidade é a Arte do Suspenso. Tudo o que
está suspenso suspende ou equilibra. Ou instabiliza.
Mas tudo é instável ou está suspenso.
Pelo menos ainda.
Ainda é uma questão de tempo. Tudo depende da
noção de tempo ou duração ou extensão. A
aceleração do tempo pode traduzir-se pela
imobilidade pois que a imobilidade pode traduzir-se
por um máximo de aceleração ou um mínimo de
extensão: aceleração tão grande que já não se veja o
movimento ou o espaço ou a duração.
Tudo está sempre a destruir tudo. Ou qualquer coisa.
Ou alguém. Mas estamos sempre a destruir tudo ou
qualquer coisa. Ou alguém.
Ana Hatherly
A GÉNESE DO AMOR
Talvez um intervalo cósmico
a povoar, sem querer, a vida:
talvez quasar que a inundou de luz,
retransformou em matéria tão densa
que a cindiu,
a reteve, suspensa,
pelo espaço —
Eram formas cadentes
como estas:
Imagens como abóbadas de céu,
de espanto igual ao espanto em que nasceram
as primeiras perguntas sobre os deuses,
o zero, o universo,
a solidez da terra, redonda e luminosa,
esperando Adamastores que a domestiquem,
ou fogos-fátuos incendiando olhares,
ou marinheiros cegos, ávidos de luz,
da linha que, em compasso,
divide céu e
mar
Quasar é pouco, porque a palavra rasa
o que a pele descobriu. E a pele
também não chega:
pequeno meteoro em implosão
Estátua em lume, talvez,
à espera, a paz (ainda que haja ausente
crença ou fé), e, profano, o desenho
desses estranhos bichos,
semi-monges, malditos,
deslumbrados,
e uma visão, talvez,
na penumbra serena de algum
claustro
Talvez assim tivesse algum
sentido
a génese do amor
Ana Luísa Amaral
Poeta o que é?
Poeta o que é?
Um homem que leva
o facho da treva
no fundo da mina
- mas apenas vê
o que não ilumina.
José Gomes Ferreira, Poeta Militante
Chagall, the poet with the birds
"senhor doutor..."
eu somos tristes. Não me engano, digo bem.
Ou talvez: nós sou triste? Porque dentro de mim, não
sou sozinho. Sou muitos. E esses todos disputam
minha única vida. Vamos tendo nossas mortes. Mas
parto foi só um. Aí, o problema. Por isso, quando
conto a minha história me misturo, mulato não das
raças, mas de existências.
A minha mulher matei, dizem. Na vida real, matei
uma que não existia. Era um pássaro. Soltei-lhe
quando vi que ela não tinha voz, morria sem queixar.
Que bicho saiu dela, mudo, através do intervalo do
corpo?
O senhor, doutor das leis, me pediu de escrever a
minha história. Aos poucos, um pedaço cada dia.
Isto que eu vou contar o senhor vai usar no tribunal
para me defender. Enquanto nem me conhece. O
meu sofrimento lhe interessa, doutor? Não me
importa a mim, nem tão pouco. Estou aqui a falar,
isto-isto, mas já não quero nada, não quero sair nem
ficar. Seis anos que estou aqui preso chegaram para
desaprender a minha vida. Agora, doutor, quero só
ser moribundo. Morrer é muito de mais, viver é
pouco. Fico nas metades. Moribundo. Está-me a rir
de mim?
Explico: os moribundos tudo são permitidos.
Ninguém goza-lhes. O respeito dos mortos eles
antecipam, pré-falecidos. O
moribundo insulta-nos?
Perdoamos, com certeza. […]
Arranja lá uma maneira,
senhor doutor. Desarasca lá
uma maneira de eu ficar
moribundo, submorto.
Afinal, estou aqui na prisão
porque me destinei prisioneiro.
Nada, não foi ninguém que
queixou. Farto de mim, me
denunciei. Entreguei-me eu
mesmo. Devido, talvez, o
cansaço do tempo que não
vinha. Posso esperar, nunca
consigo nada. O futuro quando
chega não me encontra. Onde
estou, afinal eu?
Mia Couto, Vozes anoitecidas
A pequena angústia
Mais perto de mim são as estrelas
neste jardim,
do que os homens sentados a meu lado.
As estrelas brilham.
Os homens falam
lá entre eles.
Não escutam o silêncio
os homens que falam
neste jardim.
As estrelas falam
perto de mim.
Ruy Cinatti.
Cansa sentir quando se pensa.
No ar da noite a madrugar
Há uma solidão imensa
Que tem por corpo o frio do ar.
Neste momento insone e triste
Em que não sei quem hei-de ser,
Pesa-me o informe real que existe
Na noite antes de amanhecer.
Tudo isto me parece tudo.
E é uma noite a ter um fim
Um negro astral silêncio surdo
E não poder viver assim.
(Tudo isto me parece tudo.
Mas noite, frio, negror sem fim,
Mundo mudo, silêncio mudo –
Ah, nada é isto, nada é assim!)
Fernando Pessoa
Terra
Nha Chica, conte-me
aquela história
de meus irmãos
hoje perdidos
no mundo grande…
Nha Chica, eu sei:
anos de seca,
gentes morrendo,
casa sem telhas,
de porta em porta
olhos crescendo
barriga inchando,
um dia tombam
de olhos vidrados
por qualquer canto…
Lisboa, América,
Dacar ou Rio:
- dentro de nós
surge esta ideia
partir!, partir!
Resignados,
os que ficaram
ficam esperando
que as nuvens toldem
que a chuva caia
que o chão fecunde
cobrindo os montes
cobrindo as várzeas…
Ah! Anos fartos!
Milho, feijão,
pilão cochindo,
fumo no ar,
riso nos lábios,
grog, cigarros,
batuques, bailes
e casamentos…
Olho estes campos,
olho estes mares,
e sinto a vida
prendida à terra,
feita de sonhos
que um dia esvaem-se
- mas surgem sempre…
António Nunes
Belerofonte
Quem disse alguma vez que há deuses lá nos céus?
Não há, não há, não há. Não deixem que ninguém,
mesmo crente sincero nessas velhas fábulas,
com eles vos engane e vos iluda ainda,
Olhai o que acontece, e dai a quanto digo
a fé que isto merece: eu afirmo que os reis
matam, roubam, saqueiam à traição cidades
e, assim fazendo, vivem muito mais felizes
que quantos dia a dia pios são e justos.
Quantas nações pequenas, bem fiéis aos deuses,
sujeitas são dos ímpios com poder e força,
vencidas por exércitos que as escravizam.
E vós, se em vez de trabalhar rezais aos deuses,
e deixais de lutar para ganhar a vida,
aprendereis que os deuses não existem. Que
todas as divindades significam só
a sorte, boa ou má, que temos neste mundo.
Eurípedes
(trad. de Jorge de Sena, in Poesia de 26 Séculos)
SEXTA-FEIRA
Tranquila Sexta-feira
abandonada Sexta-feira
Sexta-feira cada vez mais triste como ruelas antigas
Sexta-feira de indolentes pensamentos indispostos
Sexta-feira de sinuosos e nefastos espreguiçamentos
Sexta-feira de nenhuma expectativa
Sexta-feira de rendição.
Casa vazia
casa solitária
casa trancada contra a investida da juventude
casa da escuridão e ânsias de sol
casa de solidão, augúrio e indecisão
casa de cortinas, livros, guarda-louça, fotografias.
Ah, como a minha vida fluiu silenciosa e serena
como uma corrente profunda
através do coração dessas silenciosas, abandonadas
Sextas-feiras
através do coração dessas tristes casas vazias
ah, como a minha vida fluiu silenciosa e serena.
Forough Farrokhzad, Versão de Vasco Gato
poema de combate
indecente rimar, uma criança
a esbugalhar os olhos de pavor.
uma cidade a arder. a governança
do mundo a esquivar-se: a sua dança
rima obscenamente com timor.
indecente rimar. lua assassina.
uma rajada e outra. um estertor.
um uivo, um corpo, um morto em cada esquina.
honra do mundo que se contamina
no arame farpado de timor.
indecente rimar sândalo e vândalo.
sacode a noite apenas o tambor
das sombras acossadas. tens o escândalo
que te invadiu a alma, mas comanda-lo?
onde te leva o grito por timor?
indecente rimar pois também rimam
temor, tremor, terror e invasor
por mais hipocrisias que se exprimam
enquanto de hora a hora se dizimam
os restos do que resta de timor.
indecente rimar: mas nas florestas
nunca rimaram tanta raiva e dor
a às vezes são precisas rimas destas,
bumerangue de sangue com arestas
da própria carne viva de timor.
Vasco Graça Moura
Estou com um dos homens que eu amo. Hoje, o mais
próximo, e que escreve; que eu amo através do
coração da inteligência; sua companhia preciosa não
deseja envolver-me senão muito docemente, com o
seu ouvido; ouvido de que eu receio a sombra, o
discernimento, como se não crêsse ainda na
persistência da minha duração. Virá o dia em que
sem esse mais, sem esse menos, o nosso
conhecimento será rasante. Por agora, é ainda uma
banda em declive.
Maria Gabriela Llansol, Causa Amante
O MAR AMADO
O que nele se move
é exactamente
o que amo
ou o que chamo
porque onda chamo
ao movimento
Cresce na tão igual
água
amado
por mim exactamente
amado
como se em vez de mar
fosse algo
mais
do que água
ou maior.
Fiama Hasse Pais Brandão
Procuro-te
Procuro a ternura súbita,
os olhos ou o sol por nascer
do tamanho do mundo,
o sangue que nenhuma espada viu,
o ar onde a respiração é doce,
um pássaro no bosque
com a forma de um grito de alegria.
Oh, a carícia da terra,
a juventude suspensa,
a fugidia voz da água entre o azul
do prado e de um corpo estendido.
Procuro-te: fruto ou nuvem ou música.
Chamo por ti, e o teu nome ilumina
as coisas mais simples:
o pão e a água,
a cama e a mesa,
os pequenos e dóceis animais,
onde também quero que chegue
o meu canto e a manhã de maio.
Um pássaro e um navio são a mesma coisa
quando te procuro de rosto cravado na luz.
Eu sei que há diferenças
mas não quando se ama,
não quando apertamos contra o peito
uma flor ávida de orvalho.
Ter só dedos e dentes é muito triste:
dedos para amortalhar crianças,
dentes para roer a solidão,
enquanto o verão pinta de azul o céu
e o mar é devassado pelas estrelas.
Porém eu procuro-te.
antes que a morte se aproxime, procuro-te.
Nas ruas, nos barcos, na cama,
com amor, com ódio, ao sol, à chuva,
de noite, de dia, triste, alegre – procuro-te.
Eugénio de Andrade, As Palavras Interditas
Creio, creio hoje firmemente, que os seres humanos
não foram destinados a verdadeiramente comunicar.
É-nos dado um nome e uma identidade própria
quando nascemos. Somos indivíduos e indivíduos
permanecemos. Somos únicos e únicos queremos
ser. Natural é que paguemos o preço.
[…]
Nenhum de nós disposto a abrir ao outro muito mais
do que a sua face mundana. Cada um, como tantas
vezes sucede, a ouvir o outro mais por cortesia do
que por interesse verdadeiro. No fundo, interessados
sobretudo em encontrar uma caixa de ressonância
perante a qual pudéssemos desenrolar o tema
preferido: falar de si mesmo.
Paulo Castilho, Fora de Horas
Criação Sonhada
Tanto
tempo a pensar
divino esforço
que adormecendo
deus sonhou consigo:
Sonhou braços e pernas
e cabeças,
sonhou paisagens
de mental pudor
conversas calmas
com o quase feito
E esforçado ficou
e exausto se quedou
ao ver-se assim traído
pela obra criada
Só em sonho
Ana Luísa Amaral
BARBARA
Rappelle-toi Barbara
Il pleuvait sans cesse sur Brest ce jour-là
Et tu marchais souriante
Épanouie ravie ruisselante
Sous la pluie
Rappelle-toi Barbara
Il pleuvait sans cesse sur Brest
Et je t'ai croisée rue de Siam
Tu souriais
Et moi je souriais de même
Rappelle-toi Barbara
Toi que je ne connaissais pas
Toi qui ne me connaissais pas
Rappelle-toi
Rappelle-toi quand même ce jour-là
N'oublie pas
Un homme sous un porche s'abritait
Et il a crié ton nom
Barbara
Et tu as couru vers lui sous la pluie
Ruisselante ravie épanouie
Et tu t'es jetée dans ses bras
Rappelle-toi cela Barbara
Et ne m'en veux pas si je te tutoie
Je dis tu a tous ceux que j'aime
Même si je ne les ai vus qu'une seule fois
Je dis tu a tous ceux qui s'aiment
Même si je ne les connais pas
Rappelle-toi Barbara
N'oublie pas
Cette pluie sage et heureuse
Sur ton visage heureux
Sur cette ville heureuse
Cette pluie sur la mer
Sur l'arsenal
Sur le bateau d'Ouessant
Oh Barbara
Quelle connerie la guerre
Qu'es-tu devenue maintenant
Sous cette pluie de fer
De feu d'acier de sang
Et celui qui te serrait dans ses
bras
Amoureusement
Est-il mort disparu ou bien
encore vivant
Oh Barbara
Il pleut sans cesse sur Brest
Comme il pleuvait avant
Mais ce n'est plus pareil et tout
est abîmé
C'est une pluie de deuil terrible
et désolée
Ce n'est même plus l'orage
De fer d'acier de sang
Tout simplement des nuages
Qui crèvent comme des chiens
Des chiens qui disparaissent
Au fil de l'eau sur Brest
Et vont pourrir au loin
Au loin très loin de Brest
Dont il ne reste rien.
Jacques Prévert
É apenas o começo. Só depois dói,
e se lhe dá nome.
Às vezes chamam-lhe paixão. Que pode
acontecer da maneira mais simples:
umas gotas de chuva no cabelo.
Aproximas a mão, os dedos
desatam a arder inesperadamente,
recuas de medo. Aqueles cabelos,
as suas gotas de água são o começo,
apenas o começo. Antes do fim terás de pegar no
fogo
e fazeres do inverno
a mais ardente das estações.
Eugénio de Andrade, Sulcos da Sede
«Sabes, tenho estado a pensar numa coisa estranha:
quando nos apaixonamos por alguém, esse
apaixonarmo-nos diz concretamente respeito a
quem? Não é à pessoa propriamente dita, não pode
ser, porque ao princípio não a conhecemos: só
vemos nela o que projectamos: uma estátua grega,
um verso de Camões, as Glosas do Caballero de
Cabezón...
[...]
não me parece que a palavra "sentimento» seja
susceptível de integrar uma expressão pleonástica.
Pleonasmo implica redundância, não é? Acho que no
amor nunca há o perigo de redundância; ou melhor:
pode-se ser redundante à vontade no sentido em que
chover no molhado é já de si uma componente
própria do estado de estarmos apaixonados; é
monocórdico amar-se alguém, deliciosamente
monocórdico... tomáramos que a pessoa amada fosse
duas vezes ela própria!»
Frederico Lourenço, pode um desejo imenso
Eu não procuro nada em ti,
nem a mim próprio, é algo em ti
que procura algo em ti
no labirinto dos meus pensamentos.
Eu estou entre ti e ti,
a minha vida, os meus sentidos
(principalmente os meus sentidos)
toldam de sombras o teu rosto.
O meu rosto não reflecte a tua imagem,
o meu silêncio não te deixa falar,
o meu corpo não deixa que se juntem
as partes dispersas de ti em mim.
Eu sou talvez
aquele que procuras,
e as minhas dúvidas a tua voz
chamando do fundo do meu coração.
Manuel António Pina
Enigma
Os que a ouvem quando a chuva
bate nos vidros – a chuva mais fria,
a de dezembro, ou a que desce
das montanhas, durante a noite – não
sabem por quem ela chama. nos seus lábios
de musgo, os nomes confundem-se num
gemido antigo; e os que encostam o ouvido
aos vidros, interrogando o outro lado
da janela, nem assim distinguem
um pouco mais do que é lícito saber,
ao homem, do que se passa na terra.
Nuno Júdice
Era mi dolor tan alto,
que la puerta de la casa
de donde salí llorando
me llegaba a la cintura.
¡Qué pequeños resultaban
los hombres que iban conmigo!
Crecí como una alta llama
de tela blanca y cabellos.
Si derribaran mi frente
los toros bravos saldrían,
luto en desorden, dementes,
contra los cuerpos humanos.
Era mi dolor tan alto,
que miraba al otro mundo
por encima del ocaso.
Manuel Altolaguirre
"O nascido depois"
Eu confesso: eu
não tenho esperança.
Os cegos falam de uma saída. Eu vejo.
Após os erros terem sido usados
como última companhia, à nossa frente
senta-se o Nada.
Bertolt Brecht
Imprevisto corrigido
Se minto? Quantas vezes!
Mas em palavras. Não
Nos meus olhos castanhos,
Nestas linhas atávicas da mão…
Se minto?... Minto, pois!
Mas nas orais palavras que vos digo,
Não nas que estão a sós comigo,
E em que enfim deixo de ser dois.
Não nas que entrego a músicas, miragens,
Alegorias, fábulas, mentiras,
Cadências, símbolos, imagens,
Ecos da minha e mil milhões de liras.
Se minto?... Minto! É regra de viver.
Mas não quando, poeta, me desnudo,
E a mim me visto de inocência e a tudo.
Venha quem saiba ver!
Venha quem saiba ler!
José Régio, As Encruzilhadas de Deus,
«Por um desvio semântico qualquer, que os filólogos
ainda não estudaram, passámos a chamar manhã à
infância das aves. De facto envelhecem quando a
tarde cai e é por isso que ao anoitecer as árvores nos
surgem tão carregadas de tempo.»
Carlos de Oliveira, Trabalho Poético, Sá da Costa
"Eco"
«Tão tarde. Adão não vem? Aonde iria Adão?!
Talvez que fosse à caça: quer fazer surpresas com
alguma corça branca lá da floresta.
Era p’lo entardecer, e Eva já sentia cuidados por
tantas demoras. Foi chamar ao cimo dos rochedos, e
uma voz de mulher também, também chamou Adão.
Teve medo. Mas julgando fantasia chamou de novo:
Adão? E uma voz de mulher também, também
chamou Adão.
Foi-se triste para a tenda.
Adão já tinha vindo e trouxera as setas todas, e a
caça era nenhuma! E ele a saudá-la ameaçou-lhe um
beijo e ela fugiu-lhe.
- Outra que não Ela chamara também por Ele.»
Almada Negreiros, Orpheu I
"O silêncio"
«O silêncio desenhava as paredes, cobria as mesas,
emoldurava os volumes, recortava as linhas,
aprofundava os espaços. Tudo era plástico e
vibrante, denso da própria realidade. O silêncio
como um estremecer profundo percorria a casa.
[…]
O silêncio era agora maior. Era como uma flor que
tivesse desabrochado inteiramente e alimentasse
todas as suas pétalas»
Sophia de Mello Breyner Andresen, ―O
silêncio‖ in Histórias da Terra e do Mar
UM DIA
O Excesso Mais Perfeito
Queria um poema de respiração tensa
e sem pudor.
Com a elegância redonda das mulheres barrocas
e o avesso todo do arbusto esguio.
Um poema que Rubens invejasse, ao ver,
lá do fundo de três séculos,
o seu corpo magnífico deitado sobre um divã,
e reclinados os braços nus,
só com pulseiras tão (mas tão) preciosas,
e um anjinho de cima,
no seu pequeno nicho feito nuvem,
a resguardá-lo, doce.
Um tal poema queria.
Muito mais tudo que as gregas dignidades
de equilíbrio.
Um poema feito de excessos e dourados,
e todavia muito belo na sua pujança obscura
e mística.
Ah, como eu queria um poema diferente
da pureza do granito, e da pureza do branco,
e da transparência das coisas transparentes.
Um poema exultando na angústia,
um largo rododendro cor de sangue.
Uma alameda inteira de rododendros por onde o
vento,
ao passar, parasse deslumbrado
e em desvelo. E ali ficasse, aprisionado ao cântico
das suas pulseiras tão (mas tão)
preciosas.
Nu, de redondas formas, um tal poema queria.
Uma contra-reforma do silêncio.
Música, música, música a preencher-lhe o corpo
e o cabelo entrançado de flores e de serpentes,
e uma fonte de espanto polifónico
a escorrer-lhe dos dedos.
Reclinado em divã forrado de veludo,
a sua nudez redonda e plena
faria grifos e sereias empalidecer.
E aos pobres templos, de linhas tão contidas e tão
puras,
tremer de medo só da fulguração
do seu olhar. Dourado.
Música, música, música e a explosão da cor.
Espreitando lá do fundo de três séculos,
um Murillo calado, ao ver que simples eram os seus
anjos
junto dos anjos nus deste poema,
cantando em conjunção com outros
astros louros
salmodias de amor e de perfeito excesso.
Gôngora empalidece, como os grifos,
agora que o contempla.
Esta contra-reforma do
silêncio.
A sua mão erguida rumo ao
céu, carregada
de nada.
Ana Luísa Amaral
"figura que me é querida"
«_____________ o homem só vulto esteve aqui
hoje, com sua imagem infeliz. […] passeia
incansavelmente nestes pinhais e, à noite, pára onde
uma vela brilha. Pára raramente, pois o seu vulto
fatiga-se quando espera, e as portas são pedras
opacas que defendem as casas disseminadas por
entre as árvores e os jardins.
Quando o olho, no íntimo de mim mesma, e no seu
lugar objectivo, não tenho pensamento. Ele traz às
costas um saco onde vai deitando todos os restos de
misericórdia que há por aqui, incluindo a
misericórdia por nós que brota de uma fonte algures,
ignore onde.
Refiro-me a ele, refiro-me à sombra, refiro-me à
precisão geométrica de um vulto. A este dia de sol
sobrepôs-se um dia de paz e nevoeiro por onde ele
caminha sem o podermos chamar de nenhum sítio.
Com precisão, não sei onde ele está, quem é, e o que
está para ser. Mas sei que ele é alguém destituído do
peso da sua forma, […]. Continuo a vê-lo,
homogéneo no seu movimento cinzento delimitado;
de mim para ele estabelece-se uma ponta de
nostalgia através da qual lhe entrego a parte maior
da minha tristeza; vejo-o parar com nitidez, abrir as
costas e o saco, e aprofundar o meu peso em si. Já
leva outros pesos que ele trata como pesos ligeiros,
ou pequenas medidas estuantes de vida. É, entre
outras coisas, o passageiro de
misericórdia do pinhal, figura
que me é querida e que nunca
deixa de invadir-me.»
Maria Gabriela Llansol, um
beijo dado mais tarde, pp. 97-
98, edições rolim
MAIS TARDE
A minha morte chegará um dia
Um dia na primavera, luminoso e gracioso
Um dia de inverno, poeirento, distante
Um dia vazio de outono, desprovido de alegria.
A minha morte chegará um dia
Um dia doceamargo, como todos os meus dias
Um dia oco como o que passou
Sombra de hoje ou de amanhã.
Os meus olhos adaptam-se à penumbra dos pátios
As minhas faces parecem frio, pálido mármore
Subitamente o sono arrasta-se sobre mim
Livro-me de todos os gritos dolorosos.
Lentamente minhas mãos deslizam sobre anotações
Que chegaram até mim debaixo do feitiço da poesia,
Relembro que outrora em minhas mãos
Retive o sangue flamejante da poesia.
A terra convida-me para os seus braços,
As gentes reúnem-se para me sepultar aqui
Talvez à meia-noite os meus amantes
Coloquem sobre mim coroas de muitas rosas.
Forough Farrokhzad, versão de Vasco Gato
“De olhar por esta janela”
«De olhar por esta janela este céu de cidade…
De cidade, digo eu… Este céu, sem traço de vida,
sem cor, sem uma silhueta de terra nem de árvores,
extraordinariamente esbranquiçado… De o olhar só,
me vem uma grande opressão! Sinto-me perdida
num infinito apagado, e incapaz de toda a fixação.
Como somos difíceis de conquistar! Julgamo-nos às
vezes a pisar terra firme, a conhecer os lugares e as
pessoas, e basta uma impressão destas, um nada,
para nos abater. Não é saudade que sinto, é
desapego, é falta de segurança.»
Irene Lisboa, Solidão, Presença
Somos como as folhas das árvores...
Quais folhas criadas pela estação florida da
primavera,
quando de súbito crescem sob os raios do sol,
assim somos nós: por um tempo de nada, nos deleita
a flor da juventude, sem conhecermos o mal ou o
bem que vêm
dos deuses. Ao lado estão as Keres tenebrosas,
uma detentora da velhice medonha,
a outra, da morte. Pouco dura o fruto da juventude
- o tempo de o sol derramar a sua luz sobre a terra.
E depois, logo que chega o fim da estação.
melhor é morrer logo do que viver,
pois são muitos os males que surgem no nosso
coração: ora é a casa
que cai em ruína, ora os efeitos dolorosos da
pobreza;
outro não tem filhos, e, sentindo a sua falta.
desce ao Hades, debaixo da terra;
outro tem doença que lhe destrói a vida. Não há
homem
a quem Zeus não dê muitos infortúnios.
Mimnermo (Séc.VII a.C.) Trad. Maria Helena da
Rocha Pereira, in Hélade
Retrato em Movimento
Era uma vez um pintor que tinha um
aquário e, dentro do aquário, um peixe encarnado.
Vivia o peixe tranquilamente acompanhado pela sua
cor encarnada, quando a certa altura começou a
tornar-se negro a partir – digamos – de dentro. Era
um nó negro por detrás da cor vermelha e que,
insidioso, se desenvolvia para fora, alastrando-se e
tomando conta de todo o peixe. Por fora do aquário,
o pintor assistia surpreendido à chegada do novo
peixe.
O problema do artista era este: obrigado a
interromper o quadro que pintava e onde estava a
aparecer o vermelho do seu peixe, não sabia o que
fazer agora da cor preta que o peixe lhe ensinava.
Assim, os elementos do problema constituíam-se na
própria observação dos factos e punham-se por uma
ordem, a saber: 1º - peixe, cor vermelha, pintor, em
que a cor vermelha era o nexo estabelecido entre o
peixe e o quadro, através do pintor; - 2º - peixe, cor
preta, pintor em que a cor preta formava a insídia do
real e abria um abismo na primitiva fidelidade do
pintor.
Ao meditar acerca das razões por que o
peixe mudara de cor precisamente na hora em que o
pintor assentava na sua fidelidade, ele pensou que, lá
de dentro do aquário, o peixe, realizando o seu
número de prestidigitação, pretendia fazer notar que
existia apenas uma lei que
abrange tanto o mundo das
coisas como o da imaginação.
Essa lei seria a metamorfose.
Compreendida a nova espécie
de fidelidade, o artista pintou
na sua tela um peixe amarelo.
Herberto
Helder, Retrato em
Movimento
"Mas com zurrapa, não..."
«Rasgar um véu e espreitar. A importância do véu
reside exactamente no facto de ser preciso rasgá-lo
para ver melhor. Como as aparências. Passar ao lado
de lá é dalgum modo transgredir fazer de contas que
não existe um risco de giz, um limite a deter-nos.
Compete à alma jogar, mais uma vez, o seu jogo.
Mas com zurrapa, não, zurrapa quer dizer batota, e
grosseira.»
Carlos de Oliveira, Pequenos burgueses, pág. 182,
Encostei-me para trás na cadeira de convés e fechei
os olhos,
E o meu destino apareceu-me na alma como um
precipício.
A minha vida passada misturou-se-me com a futura,
E houve no meio um ruído do salão de fumo,
Onde, aos meus ouvidos, acabara a partida de
xadrez.
Ah, balouçado
Na sensação das ondas,
Ah, embalado
Na ideia tão confortável de hoje ainda não ser
amanhã,
De pelo menos neste momento não ter
responsabilidades nenhumas,
De não ter personalidade propriamente, mas sentir-
me ali,
Em cima da cadeira como um livro que a sueca ali
deixasse.
Ah, afundado
Num torpor da imaginação, sem dúvida um pouco
sono,
Irrequieto tão sossegadamente,
Tão análogo de repente à criança que fui outrora
Quando brincava na quinta e não sabia álgebra,
Nem as outras álgebras com x e y's de sentimento.
Ah, todo eu anseio
Por esse momento sem importância nenhuma
Na minha vida,
Ah, todo eu anseio por esse momento, como por
outros análogos
Aqueles momentos em que não tive importância
nenhuma,
Aqueles em que compreendi todo o vácuo da
existência sem
inteligência para o compreender
E havia luar e mar e a solidão, ó Álvaro.
Fernando Pessoa, Poemas de Álvaro de Campos
"quer lá saber"
«É jogador até ao fundo da alma, e com a alma não
brinca ele. Senta-se, mergulha na tensão do jogo,
como se mergulhasse no mistério da missa, e tenta
compreendê-lo. Aceita a divindade, quer dizer, o
acaso, mas não deixa por isso de o interrogar ou
corrigir, quando pode, e em geral sai-se bastante
bem. Os outros pesam pouco, pesam apenas na
medida em que hesitam, erram ou acertam,
influenciando o jogo, influência aliás diminuta
porque é fácil prever-lhes os erros, os acertos, as
hesitações. Se descobre qualquer aldrabice, o que
raramente acontece, deixa andar. O acaso, o
essencial, também se faz desses acidentes. Uma vez
que dê por eles, que não passe por parvo diante de si
mesmo, quer lá saber.»
Carlos de Oliveira, Pequenos burgueses
«A vida era um labirinto de escuridão, sem alvores
de madrugada que lhe orientassem a cegueira.
Habitava um vazio sem rostos, onde mesmo o seu já
não tinha significado. […] O seu destino de mulher
era um destino de silêncio e de ausência. Ah! Poder
voltar atrás àquele tempo em que vivera descuidada
e feliz, como se estivesse à espera de outros ainda
mais felizes.»
[…]
"Canta-se o que se perde", estava escrito no poema
que relia. Mas não cantava. Limitava-se a escrever,
como as avós tinham bordado, para encher as horas
dos dias, se propor uma tarefa, uma finalidade que
lhe apagasse a frustração e o vazio. Uma escrita,
contida, do e no silêncio.»
Luísa Dacosta, O planeta desconhecido e romance
da que fui antes de mim,
"apenas silêncio"
« e o silêncio cresce e é fundo e é total, de tal modo
que poucos notam que é apenas silêncio, porque há
sempre ruídos sobrepostos, preenchendo-o, música
de fundo, speakers, relatos, informações,
publicidade, avisos, profusões de linguagens
balbuciadas, com uma extensão talvez máxima, mas
com uma comunicação sempre mínima, as pessoas
circulam, eficientes, em circuitos cada vez mais
fechados, interiorizaram a tal ponto o universo de
não-palavras que as circunda que acabaram por
emudecer por completo,»
[…]
«[…] mas a literatura também se converteu em
silêncio, tornou-se apenas imanente, as palavras
ficam cercadas, bloqueadas, e encontra-se sempre
um meio de demonstrar às pessoas que elas
significam tudo, e que, portanto, não significam
nada, a palavra escrita é uma palavra morta e por
isso eu quero a palavra dita, rente ao corpo,
inseparada do corpo, língua, boca, braço, mão, gesto,
movimento do eu e do outro, do eu para os outros e
de novo destes para mim, a palavra que está no
princípio do eu e do mundo e da vida e que é talvez,
talvez, o amor, […]»
Teolinda Gersão, O Silêncio,
«uma pequena orelha verde»
«É um mundo que começou a enlouquecer, disse de
repente, sem preparação. Um mundo eficiente, de
silêncio total, em que ninguém mais fala com
ninguém. As pessoas estão sentadas, ombro contra
ombro, à espera, mas o objectivo da espera é sempre
falso, o autocarro, o comboio, o avião, porque todos
os lugares são iguais e nada é diferente em parte
alguma. E enquanto se espera o silêncio cresce, vai
ficando sempre mais denso e mais pesado, e algumas
pessoas começam a ficar inquietas, porque de
repente percebem que estão bloqueadas, dentro de
caixas de vidro, o universo é um conjunto gigantesco
de sucessivas caixas de vidro, e elas apenas
transitam, ou são transportadas, de umas para as
outras, casas, escritórios, autocarros, hospitais,
aeroportos, aviões, transatlânticos, é inútil percorrer
milhões de quilómetros porque o mundo fica sempre
cada vez mais longe, é como se flutuassem,
imponderáveis, num espaço vazio, os seus pés não
assentam mais sobre a terra, correm seis dias sobre
escadas rolantes e tapetes rolantes e no sétimo dia
ficam parados sobre uma alcatifa, e o mundo que
não tocam mais vem até elas apenas em imagens,
dentro da televisão-caixa-de-vidro. Então algumas
pessoas são tomadas de pânico e começam a falar,
porque acham necessário modificar este estado de
coisas, mas descobrem que não é possível falar
porque as pessoas do lado as olham com estranheza,
a tal ponto se habituaram a
viver dentro de caixas bem
isoladas que qualquer som
espontâneo as incomoda,
transportam em volta da
cabeça uma caixa de vidro
mental que se fecha por si
mesma à menor suspeita de
desordem, e então alguém
propõe que quem estiver
disposto a escutar os outros
ponha na lapela uma pequena
orelha verde.»
Teolinda Gersão, O Silêncio,
«talvez nunca»
«A tensão entre ambos, desde o início. Porque eles
eram dois mundos sem pontos de contacto. A
consciência disso, desde o primeiro instante. As
tardes em que ela vagueava ao longo do rio, solta,
dispersa, confundida com as coisas, as árvores, o rio,
os barcos, os movimentos da água, o ondular do
vento, uma figura indefinida caminhando através da
luz baça. E do outro lado da ponte a janela
iluminada, a pequena casa para onde ele se mudara,
dissera-lhe, e esperava por ela, detrás das janelas
altas. Entrar na casa e tomar a forma da casa, reunir
na bruma os pedaços do seu corpo e ser breve e
mortal entre dois braços, partir correndo, subir até ao
último andar, abrir a porta e entrar de repente em sua
vida, levando atrás de si o rio, a noite, o vento, a
água, a bruma, o obscuro milagre que no universo
dele não existia - mas Afonso não punha nunca o seu
próprio universo em causa, e não viria nunca ao seu
encontro. Ele não aceitava risco algum. Porquê então
o absurdo impulso de atravessar a ponte quando não
haveria talvez nunca uma ponte possível,»
Teolinda Gersão, O Silêncio
Um dia, gastos, voltaremos
A viver livres como os animais
E mesmo tão cansados floriremos
Irmãos vivos do mar e dos pinhais.
O vento levará os mil cansaços
Dos gestos agitados irreais
E há-de voltar aos nossos membros lassos
A leve rapidez dos animais.
Só então poderemos caminhar
Através do mistério que se embala
No verde dos pinhais na voz do mar
E em nós germinará a sua fala.
Sophia de Mello Breyner Andresen
Tão cedo passa tudo quanto passa!
Morre tão jovem ante os deuses quanto
Morre! Tudo é tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe
E cala. O mais é nada.
Ricardo Reis, Odes
Camille
Claudel
eli – Julho 2009