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    ESCOLA SUPERIOR DE TEOLOGIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO

    ROSANGELA STRMER

    RELIGIOSIDADE POPULAR: UMA ANLISE DOS PCNs DO ENSINORELIGIOSO EM CONFRONTO COM A PRXIS PEDAGGICA

    So Leopoldo

    2008

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    ROSANGELA STRMER

    RELIGIOSIDADE POPULAR: UMA ANLISE DOS PCNs DO ENSINORELIGIOSO EM CONFRONTO COM A PRXIS PEDAGGICA

    Dissertao de Mestrado

    Para obteno do graude Mestre em Teologia

    Escola Superior de Teologia

    Programa de Ps-Graduao

    Religio e Educao

    Orientador: Rem Klein

    So Leopoldo2008

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    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    Ficha elaborada pela Biblioteca da EST

    S936r Strmer, Rosangela

    Religiosidade popular : uma anlise dos PCNs do Ensino

    Religioso em confronto com a prxis pedaggica / Rosangela

    Strmer ; orientador Rem Klein. So Leopoldo : EST/PPG,

    2008.

    86 f.

    Dissertao (mestrado) Escola Superior de Teologia.

    Programa de Ps-Graduao. Mestrado em Teologia.

    So Leopoldo, 2008.

    1. Religiosidade. 2. Vida religiosa. 3. Ensino religioso

    Currculos. 4. Pedagogia crtica. 5. F e razo. I. Klein, Rem.

    II. Ttulo.

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    ROSANGELA STRMER

    RELIGIOSIDADE POPULAR: UMA ANLISE DOS PCNs DO ENSINORELIGIOSO EM CONFRONTO COM A PRXIS PEDAGGICA

    Dissertao de Mestrado

    Para obteno do grau

    de Mestre em Teologia

    Escola Superior de Teologia

    Programa de Ps-GraduaoReligio e Educao

    Data: 28 de fevereiro de 2008

    Jos Rogrio Lopes Doutor em Cincias Sociais - UNISINOS

    _____________________________________________________________________

    Manfredo Carlos Wachs Doutor em Teologia EST

    _____________________________________________________________________

    Rem Klein Doutor em Teologia - EST_____________________________________________________________________

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    Como o trapezista que tem de se lanar sobre oabismo, abandonando todos os pontos de apoio, a

    alma religiosa tem de se lanar tambm sobre o

    abismo, na direo das evidncias do sentimento, da

    voz do amor, das sugestes da esperana. (RubemAlves. O que religio? So Paulo: Brasiliense,1981, p. 125-126).

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    RESUMO

    Estudo que objetiva analisar a relao entre religiosidade popular e os ParmetrosCurriculares Nacionais do Ensino Religioso em confronto com a prxis pedaggica. Aprimeira parte aborda o surgimento da religiosidade popular procurando conceitu-la. Para

    isso foram realizadas no Grupo de pesquisa: Religiosidade Popular do Instituto de Teologia ePastoral ITEPA observaes de manifestaes de religiosidade popular em diferentes locaise dessas observaes foram realizados os dirios de bordo. A pergunta sobre o que faz o serhumano buscar expressar de alguma forma sua religiosidade, assim como a busca detranscendncia e o valor ao sagrado, finalizam esta primeira parte. A segunda parte procuracompreender a religiosidade popular num sentido antropolgico. Aborda a relao que o serhumano tem com o sagrado fortemente presente na religiosidade popular. Sendo que osagrado uma categoria presente em todas as religies e principalmente na religiosidadepopular que as pessoas o expressam de forma bem criativa, com simplicidade, sem sepreocuparem com os discursos teolgicos das instituies. Neste sentido, traz-se duasexperincias em sala de aula para mostrar que as manifestaes de religiosidade popular estopresentes no cotidiano escolar. A partir das respostas encontradas nesta parte do trabalhosurgem as questes referentes s crenas dos docentes e discentes e a relao com oconhecimento. Por isso importante rever de que modo os Parmetros Curriculares Nacionaisdo Ensino Religioso apresentam o tema da religiosidade popular. Atravs de uma experinciaem sala de aula constata-se que h uma tenso entre crena e conhecimento. Para tentarcontornar essa problemtica prope-se a pedagogia da pergunta, a qual vem demonstrar que omais importante no so as respostas, mas os questionamentos.

    Palavras-chave: religiosidade popular; Parmetros Curriculares Nacionais do EnsinoReligioso; sagrado, crena e conhecimento; pedagogia da pergunta.

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    ABSTRACT

    Study which aims to examine the relationship between popular religiosity and National

    Curricular Parameters of Religious Education in confrontation with the pedagogical practice.The first part deals with the emergence of popular religiosity. For that were held in Groupresearch: Religiosities People's Institute of Theology and Pastoral - ITEPA observations ofexpressions of popular religiosity in different places and these comments were made the logs.The question about what makes human beings seek in any way express their religiosity andthe search for transcendence and value to the sacred end this first part. The second part seeksto understand the popular religiosity in an anthropological sense. It addresses the relationshipthat the human being has with the sacred strongly present in popular religiosity. Since thesacred is a category present in all religions and is mainly in popular religiosity that peopleexpress so well the creative, with simplicity without caring about the speeches theologicalinstitutions. Therefore if brings two experiences in the classroom to show that the

    manifestations of popular religiosity are present in the daily school. From the answers foundin this part of the work is that the questions arise concerning the beliefs of teachers andstudents in connection with the knowledge. So it is important to review how the NationalCurricular Parameters of Religious Education present the theme of popular religiosity.Through an experiment in the classroom noted that there is a tension between belief andknowledge. To try to circumvent this problem is proposed to pedagogy of the question, whichcomes to show that the most important are not the answers but the questions.

    Keywords: popular religiosity; National Curricular Parameters of Religious Education; thesacred, the belief and knowledge; pedagogy of the question.

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    SUMRIO

    INTRODUO..................................................................................................................... 09

    1. O QUE RELIGIOSIDADE POPULAR...................................................................... 14

    1.1 Trajetria histrica e a formao da religiosidade popular: do Choque de doisMundos busca de uma Terra Sem Mal............................................................................ 15

    1.2 Na tentativa de conceituar o que religiosidade popular e sua presena entre todas asinstituies religiosas.............................................................................................................. 19

    1.3 Religiosidade popular, religio institucional e as Comunidades Eclesiais de Bases

    (CEBs): como se relacionam?................................................................................................. 241.4 Registros de manifestaes de religiosidade popular no Grupo de Pesquisa.................... 27

    1.4.1 Idia de Deus na religiosidade popular.......................................................................... 27

    1.4.2 Idia de sacrifcio e punio na religiosidade popular................................................... 29

    1.4.3 A presena do simblico na religiosidade popular........................................................ 30

    1.4.4 Algumas mudanas na religiosidade do povo................................................................ 31

    2 COMO ENTENDER ANTROPOLOGICAMENTE O FENMENO DARELIGIOSIDADE POPULAR............................................................................................ 34

    2.1 Experincia humana e experincia religiosa..................................................................... 352.2 Presena do sagrado e sua importncia concreta na vida cotidiana ................................. 41

    2.3 O sagrado em Rudolf Otto: o mistrio tremendo e o fascinante....................................... 46

    2.4 A noo do sagrado em Mircea Eliade............................................................................. 53

    2.5 A construo do espao sagrado em sala de aula: uma prxis pedaggica para trabalhara noo do sagrado e da religiosidade popular........................................................................ 54

    2.6 Espao sagrado e profano: um lugar penetrado de poder e outro amorfo......................... 57

    3. RELIGIOSIDADE POPULAR E OS PCNs DO ENSINO RELIGIOSO.................... 62

    3.1 Parmetros Curriculares Nacionais do Ensino Religioso e o modo de apresentar areligiosidade popular............................................................................................................... 63

    3.2 O conhecimento e as crenas............................................................................................ 66

    3.3 Assumindo uma pedagogia da pergunta........................................................................... 72

    CONCLUSO....................................................................................................................... 78

    REFERNCIAS.................................................................................................................... 82

    ANEXO.................................................................................................................................. 85

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    INTRODUO

    Dirigindo-me a Passo Fundo de nibus para o encontro do Grupo de Pesquisa sobrereligiosidade popular procurei observar de que forma as pessoas demonstram suareligiosidade. No foi preciso olhar muito e logo percebi um rosrio pendurado noretrovisor interno do nibus. Mais adiante embarca uma senhora idosa e senta aomeu lado, observo no seu brao direito uma corrente com vrias imagens de NossaSenhora e carregava na bolsa uma pedra branca que dizia ter ganhado de uma ciganapara lhe trazer sorte. Na volta do encontro esperando o nibus na rodoviria avisteidois senhores conversando sobre o que realizaram at o momento em suas vidas eum afirmava que sem Deus no somos nada. Depois se sentou ao meu lado um rapazquerendo vender para mim ervas medicinais e dizia que para salvar a alma sentrando na sua religio que dizia ser da Congregao Crist. Foi um dia normalcomo outros, apenas procurei dirigir meu olhar para essas manifestaes religiosas,as quais presenciamos, s vezes, sem muita ateno1.

    Ao iniciar essa pesquisa me perguntei sobre o porqu de ter escolhido o tema de

    Religiosidade Popular e Educao. A resposta talvez esteja nas experincias como docente

    nestes ltimos anos e ainda a participao como agente de pastoral numa comunidade j h

    muitos anos, que fez com que eu percebesse uma srie de manifestaes de cunho popular

    tanto em discentes como no povo dessa comunidade. Essas observaes me fizeram levantar

    perguntas e o desejo de encontrar uma resposta para essas manifestaes.

    Foram vrias as perguntas que vinham surgindo nestes ltimos anos como: Por que as

    pessoas precisam de religio? Como elas vivem sua religiosidade? Quais so suas crenas?

    Como elas relacionam certas crenas com a sua religio institucional, com a sua doutrina? Por

    que certas verdades hoje j no servem mais para o povo? Como a mdia e a cincia se

    1Meu dirio de bordo escrito em abril de 2007.

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    relacionam com a religiosidade do povo? O conhecimento cientfico aplicado na escola se

    relaciona de que forma na religiosidade dos alunos? Como a religiosidade desses alunos

    tratada nos contedos? Enfim, uma infinidade de perguntas das quais era preciso um bom

    tempo de pesquisa para tentar respond-las ou, pelo menos, para chegar prximo a uma

    resposta.

    Outro forte motivo que me instigou a pesquisar sobre este tema foram as incansveis

    discusses com meu irmo pesquisador na rea da Filosofia - a respeito da necessidade, ou

    no, das pessoas pertencerem a uma religio. Dessa forma, debatendo dvidas, interrogando-

    nos e desafiando-nos.

    Qual a metodologia pensada em desvelar essas questes? Acreditei ser mais

    conveniente, a partir das observaes feitas, continuar com os registros e as reflexes que j

    vinha fazendo h um bom tempo. Estes registros eu os denomino de dirio de bordo. Trata-

    se de um tipo de registro que explicita situaes, pessoas, ambientes e acontecimentos. um

    registro individual. Para alm do registro, o dirio de bordo uma reflexo sobre o prprio

    registro. Este material servir como subsdio para a pesquisa, ou seja, como desencadeador e

    no como objeto de anlise. Ajuda a aprofundar o tema em dilogo com a prxis educativa,

    realizando um olhar retrospectivo, circunspectivo e prospectivo.

    Ento, alm de ser de carter bibliogrfico, tambm sero realizadas reflexes a partir

    da minha insero eclesial e escolar, ou seja, da minha prpria vivncia prtica, atravs de

    registros de aula, registros de fatos do cotidiano na comunidade eclesial em que estou inserida

    e da participao em grupos de pesquisa. Serviram de inspirao as autoras Ana Lcia Souza

    de Freitas, Madalena Freire e Maria Isabel da Cunha, pois, como elas, acredito que observar

    a ferramenta bsica para o aprendizado da construo do olhar sensvel e pensante. Registrar

    deixar nossa marca no mundo, dar concretude ao nosso pensamento. A reflexo tece o

    processo de apropriao da prtica e da teoria do pesquisador reflexivo. Portanto, a

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    observao o incio de seu estudo. Atravs do registro de suas observaes e do

    planejamento, o pesquisador estrutura sua reflexo.

    Igualmente utilizo registros de outros educadores2comprometidos com a educao, os

    quais tambm usam esse mtodo e tambm acreditam que o ato de registrar se constitui num

    exerccio de investigao e de reflexo do professor sobre sua prpria prtica. Ao analisar e

    buscar a fundamentao terica para a sua prtica, o educador constri aprendizagem

    significativa, deixando de ser um mero transmissor de contedos. Esses registros nos

    auxiliaro para uma melhor compreenso das manifestaes religiosas no ser humano.

    Para Maria Isabel da Cunha: Experincia e narrativa se imbricam e se tornam parte da

    expresso de vida de um sujeito.3Com isso se pode afirmar que a escrita sobre uma realidade

    pode afetar esta mesma realidade, pois assim como so os pensamentos que orientam a ao

    racional, a narrao conduzir ao desempenho de fatos vitais.4

    Paulo Freire j afirmava que o ato de registrar uma postura cognitiva a ser assumida

    pelo educador. Com isso Paulo Freire quer dizer que o professor necessita estudar sua prpria

    prtica. Isso implica em estabelecer uma relao orgnica entre ensino e pesquisa. Para Freire

    faz parte da natureza da prtica docente a indagao, a busca, a pesquisa.5

    Nesta perspectiva de Paulo Freire registrar uma forma de inscrever-se no processo de

    construo do conhecimento. Tambm uma forma de concretizar a riqueza de nossas

    experincias vividas, de partilhar nossas reflexes, fazendo com que outros a ampliam. Como

    nos diz Paulo Freire: No escrevo somente porque me d prazer escrever, mas tambm

    porque me sinto politicamente comprometido, porque gostaria de convencer outras pessoas,

    2Estes registros so permitidos pelos educadores Adroaldo Strmer e Clarisse Hendges de serem utilizados napresente pesquisa, atravs do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.3 CUNHA, Maria Isabel da. O professor universitrio: na transio de paradigmas. Araraquara: JM Editora,

    1998. p. 40.4CUNHA, 1998, p. 40.5FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessrios prtica educativa. So Paulo: Paz e Terra,1996. p. 29.

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    sem a elas mentir, de que o sonho ou os sonhos de que falo, sobre que escrevo e por que luto

    valem a pena ser tentados.6

    Tambm como agente de pastoral procuro colocar um pouco dessa experincia no

    primeiro captulo quando busco esclarecer o que religiosidade popular, pois preciso

    mergulhar dentro do povo, tentar entend-lo, sistematizar e fundamentar teologicamente a

    prtica de f que o povo tem. Sendo agente de pastoral, tambm despertou interesse de

    pesquisar sobre religiosidade popular na educao. Ser educador relacionar sua vida, sua

    experincia vivida com seu trabalho. No somos partes quando estamos num lugar ou outro,

    mas somos um todo, carregamos conosco nossos sentimentos, nossa vivncia, nosso passado,

    nossa histria, nossas crenas. O professor constri sua performance a partir de inmeras

    referncias. Entre elas esto sua histria familiar, sua trajetria escolar e acadmica, sua

    convivncia com o ambiente de trabalho, sua insero cultural no tempo e espao.7

    Decidido meu mtodo de pesquisa no primeiro captulo que escrevo sobre o que se

    entende por religiosidade popular, fazendo um apanhado histrico e verificando sua relao

    com as religies institucionais. Nesse captulo narro um pouco da comunidade em que estou

    inserida e tambm minha insero no Grupo de Pesquisa Religiosidade Popular do ITEPA. Os

    encontros deste grupo so quinzenais. Alm de mim, participam seis seminaristas que cursam

    Teologia regular no Instituto de Teologia e Pastoral - ITEPA. O lder do grupo o Pe. Elli

    Beninc. A metodologia aplicada no grupo a pesquisa de campo, observando manifestaes

    de religiosidade popular nas Comunidades Eclesiais de Base CEBs, nas romarias e no

    cotidiano das pessoas. Dessas observaes so realizados dirios de bordo, os quais so

    apresentados nos encontros. Utilizo os dirios de bordo de alguns integrantes do grupo para

    6FREIRE, Paulo. Cartas Cristina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994. p. 15-16.7CUNHA, 1998, p. 41.

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    essa pesquisa8. Mesmo o grupo estando inserido num mbito catlico ele tambm busca

    realizar um olhar que abrange as outras religies.

    No segundo captulo a preocupao buscar compreender o fenmeno da

    religiosidade popular num sentido antropolgico. preciso entender antropologicamente o

    fenmeno religioso que se radica na finitude humana. Busquei auxlio na literatura dos

    principais autores: Rudolf Otto, Mircea Eliade, Elli Beninc, entre outros.

    Acredito que aps realizar essa abordagem sobre o que religiosidade popular e

    buscando compreend-lo num sentido antropolgico de fundamental importncia para

    entender as manifestaes de religiosidade em mbito educacional e como essas se

    relacionam com o conhecimento.

    Nesse sentido, demonstrar como os Parmetros Curriculares Nacionais do Ensino

    Religioso tratam a questo da cultura e da religiosidade popular tarefa para o terceiro

    captulo. Atravs de observaes e registros realizados nestes ltimos anos como docente, e

    tambm dirios de bordo de outros educadores, que busco verificar como o universo

    religioso tratado pelos sujeitos educativos e como estes se relacionam com suas prprias

    crenas. Tambm procuro neste captulo verificar como as reas de conhecimento se

    relacionam com a crena dos mesmos. E por fim, busco propor a pedagogia da pergunta que

    vem contornar a presente questo.

    8Estes registros so permitidos pelos pesquisadores Rudinei Negri e Mauro Luiz Argenton de serem utilizadosna presente pesquisa, atravs do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

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    1 O QUE RELIGIOSIDADE POPULAR

    Inmeras cincias, como a teologia, psicologia, sociologia e outras, j exploraram o

    tema da religiosidade popular, com o intuito de romper com o preconceito de o qualificar

    como grosseiro, supersticioso, de nvel inferior e ilgico.

    Antes de se aprofundar no estudo da religiosidade popular brasileira importante

    situ-la num contexto histrico, pois tem uma histria de quase cinco sculos e suas razes se

    adentram na Idade Mdia europia e tocam tambm as religies indgenas e afro.

    Primeiramente, faz-se a abordagem histrica para, em seguida, tentar responder o que

    religiosidade popular.

    Num segundo momento, busca-se compreender qual a relao entre religiosidade

    popular com as religies institucionais e com as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs).

    Posteriormente, se traz presente os registros referentes s manifestaes de

    religiosidade popular realizados no Grupo de Pesquisa sobre religiosidade popular no Instituto

    de Teologia e Pastoral - ITEPA.

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    1.1 Trajetria histrica e a formao da religiosidade popular: do Choque de dois

    Mundos busca de uma Terra Sem Mal

    A religiosidade popular permanece como um fato muito mais complicado do que se

    pode pensar. Para chegar prximo a uma compreenso, preciso buscar tambm na histria

    os fatos que contriburam para a sua formao.

    Quanto ao surgimento da religiosidade popular no Brasil, esta existe desde os tempos

    dos descobridores, conquistadores e colonizadores, como relata a Histria, portanto, desde oprimeiro encontro dos europeus com os habitantes do continente. Fala-se de encontro de dois

    mundos, mas talvez o mais correto seria dizer o choque de dois mundos, pois ocorreu de

    forma desigual.

    Assim como os europeus, ao entrarem em contato com os habitantes indgenas,

    acharam estes estranhos, tambm o universo indgena constituiu uma imagem fantstica da

    cultura europia. Porm, neste encontro os ndios foram prejudicados, vistos como submissos

    a aceitar a f crist imposta pelos colonizadores. Estes acreditavam que os ndios no tinham

    nenhuma religio. Procuraram domestic-los e submet-los autoridade de Colombo e de sua

    gente, aps serem batizados. Os ndios que se rebelavam, eram considerados infiis e idlatras

    e, de acordo com a teologia vigente, passavam a ser vistos como inimigos, declaravam-lhes

    guerra e, como prisioneiros de guerra, eram escravizados.

    Alm disso, a sociedade indgena na viso dos colonizadores era inferior. A prova

    disso est no escrito de Jos de Acosta9, o qual relata que devem ser reduzidas a trs as

    categorias de naes brbaras, sujeitas evangelizao. As culturas orientais (ndia, China,

    Japo), civilizaes do livro; os incas e os astecas, civilizaes urbanas, porm, sem escritura;

    9PARKER, Cristin. Religio popular e modernizao capitalista:outra lgica na Amrica Latina. Petrpolis,RJ: Vozes, 1995. p. 22.

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    e a terceira classe de brbaros, que so aqueles selvagens semelhantes a feras. E acrescentava

    ainda que no Novo Mundo h infinitas manadas deles e pouco se diferenciam dos animais.

    Neste sentido, a religio dos ndios ficaria condenvel como religio de brbaros e que

    deveria ser eliminada para impor o Evangelho. Afirmavam que a verdadeira religio era o

    cristianismo e que os ndios poderiam se adaptar a ele, se lhes fosse ensinado como proceder,

    pois para os conquistadores no existiam homens curtos de entendimento, mas simplesmente

    ignorantes. Ainda, estabelecendo como exemplo de Cristo, que no veio para perder homens,

    mas para salv-los, que pregou no s com palavras, mas tambm com obras, ope-se aos

    mtodos violentos de evangelizao, guerra, conquista e explorao dos indgenas.

    Houve a publicao de vrios documentos de cleros que eram contra a explorao de

    indgenas e que proclamavam a sua dignidade.10 Ainda, decretando a excomunho para

    aqueles que escravizassem os ndios, porm, as autoridades civis ocultaram estes documentos.

    As culturas indgenas haviam elaborado um conjunto de crenas e prticas religiosas

    bastante complexo e de grande contedo espiritual. Tinham desenvolvido a dana e a msica

    para manter equilbrio com a natureza e todos os seus rituais e prticas da medicina estavam

    ligados sua religio. O conhecimento e a sabedoria sobre a terra, as montanhas, os rios, os

    astros, as ervas medicinais, os ciclos da natureza e a biologia estavam inter-relacionados com

    as lendas e mitologias religiosas. Todas estas prticas e crenas eram consideradas pelos

    catequistas como paganismo e idolatrias. Era preciso evangelizar para destruir a religio

    indgena e substitu-la pelo catolicismo.

    A resposta religiosa do ndio se d de forma diversificada, dependendo do tipo de

    relao estabelecida com o conquistador, do modelo de insero e de relao estrutural, da

    10Alm dos testemunhos de Fr. Antn de Montecinos e de Fr. Bartolomeu de Las Casas, e tantos outros menosconhecidos, cabe destacar aqui a bula papal Sublimis Deus (1537) de Paulo III, escrito que proclamava adignidade do homem americano como membro do gnero humano, com pleno direito sua liberdade e suapropriedade, embora no tivesse aceitado a f crist. PARKER, 1995, p. 23.

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    rea geocultural ou geo-religiosa de que se trata, do tipo de tradies e de costumes e da

    capacidade de resistir de forma aberta ou latente invaso cultural.11

    Podemos distinguir quatro tipos de respostas indgenas: Uma se refere atitude

    rebelde, reivindicando as antigas divindades. Anchieta pe em evidncia esta questo ao

    afirmar: O que mais espanta os ndios e os faz fugir dos portugueses e, por conseguinte, das

    igrejas, so as tiranias que com eles usam, obrigando-os a servir por toda a sua vida como

    escravos, separando mulheres de maridos, pais de filhos...12 Por certo tempo os ndios

    aceitavam a f crist, mas logo voltavam a seus antigos usos e costumes.

    A submisso e a integrao cristandade colonial uma outra resposta religiosa dos

    ndios. Trata-se de casos nos quais a destruio das antigas crenas e o processo de

    aculturao so profundos.

    Outra resposta foi a resistncia ativa ordem colonial com conotaes messinicas.

    Entre os tupis-guaranis do Brasil surgiram lderes ou xams que anunciavam a iminente

    destruio do mundo e conduziam seus seguidores atravs da selva na busca da Terra Sem

    Mal. Isto significou, de forma simblica, a defesa do seu modo de vida e de sua identidade

    tnica e religiosa.

    A resposta mais significativa para compreender as atuais expresses das religies

    populares no Brasil foi a submisso parcial, aceitando o cristianismo, porm, assegurando a

    existncia de crenas ancestrais por meio do sincretismo. Neste sentido, cabe salientar que o

    ndio tem uma alma espontaneamente religiosa, conservou muitos de seus ritos e de suas

    crenas, mesmo com contedo cristo ou reinterpretando as prticas catlicas segundo as suas

    categorias. Por exemplo: a devoo a Maria tinha ligao com o culto da Me Terra.

    Os colonizadores portugueses contriburam para a formao da religiosidade popular

    no somente pelo fato de trazer o catolicismo, mas tambm por manter os escravos africanos11PARKER, 1995, p. 27.12PARKER, 1995, p. 27.

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    com suas crenas que se manifestam at hoje. Mesmo com o enorme genocdio cometido com

    os escravos africanos e a afirmao da Igreja Catlica Romana que justificava a matana

    dos negros afirmando que era uma raa inferior e que eles no tinham alma.

    Atualmente, porm, percebe-se uma grande mudana no comportamento da Igreja

    Catlica Romana frente s manifestaes religiosas de tendncia afro-brasileira. Os bispos

    afirmam que preciso reconhecer as responsabilidades histricas e os pecados cometidos

    contra as culturas indgenas e africanas. Respeitando o resgate pelas culturas existentes no

    Brasil, h de se honrar tambm o modo de expressar o sentimento religioso destas culturas.

    ndios, portugueses e africanos apresentam trs modos distintos de expressar a

    religiosidade. A tentativa de unificar estas expresses em um nico comportamento religioso

    deu origem ao catolicismo popular.

    O sculo XVII e parte do sculo XVIII foram a poca de ouro do catolicismo popular.

    As instituies pastorais estavam preparadas para a catequese. As confrarias, as procisses, as

    festas religiosas, as devoes multitudinrias e o teatro religioso tinham sentido evangelizador

    no meio do povo religioso e analfabeto, na sua grande maioria.

    J em meados do sculo XVIII teve incio a crise, um tempo de decadncia teolgica.

    Foi a poca da cristalizao do secularismo no pensamento filosfico, cientfico e social. Uma

    das caractersticas marcantes da modernidade a secularizao da sociedade e da cultura. O

    mundo moderno tornou-se secular e, enquanto tal, autnomo em relao a qualquer realidade

    transcendente. A modernidade se origina da guinada antropocntrica pela qual o sujeito

    humano, como razo e liberdade, se constitui em fundamento de todo sentido e valor e em

    senhor do mundo e da histria. Esta autonomia manifesta-se no plano do conhecimento,

    atravs da pretenso racionalista de uma explicao da realidade, cuja expresso mais

    significativa a cincia moderna.

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    A formao do quadro religioso no Brasil sofre novas mudanas a partir da segunda

    metade do sculo XIX, com a chegada das Igrejas oriundas da Reforma de Lutero. Os

    imigrantes trouxeram uma nova cultura europia e novas correntes teolgicas e expresses da

    f, provocando um profundo questionamento hegemonia absoluta do catolicismo no Brasil.

    Havia a crena de que nesse sculo a cincia substituiria a religio como fonte do verdadeiro

    conhecimento. A cincia desafiou os modelos religiosos. A modernidade profetizava que a

    razo moderna e o avano da tecnologia e da cincia iriam apagar o mundo religioso. Isto

    significa que as pessoas poderiam exercitar sua subjetividade e cultivar sua religiosidade no

    mundo da economia, da poltica e da cultura.

    1.2 Na tentativa de conceituar o que religiosidade popular e sua presena entre todas

    as instituies religiosas

    Conceituar religiosidade popular no tarefa fcil. primeira vista parece que no

    problema identific-la, pois todos ns temos alguma idia do que se quer dizer quando se fala

    em religiosidade popular. Porm, conceituar religiosidade popular com preciso cientfica

    exige uma anlise mais profunda e cautelosa, porque a religiosidade popular uma realidade

    demasiadamente variada e complexa.

    Quando se fala em religiosidade popular muitos a equivalem com a expresso

    catolicismo popular. Os dois conceitos no so equivalentes. Religiosidade popular abrange

    no somente o catolicismo popular, mas todas as formas de religiosidade popular existente.

    Outros confundem os dois conceitos pelo fato de que na Amrica Latina o catolicismo

    abrangia a imensa maioria do povo, recobrindo, assim, uma enorme faixa da religiosidade

    popular. Tambm h a religiosidade popular entre os no-cristos.

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    Jos Ivo Follmann, em seu artigo O mundo das religies e religiosidades13 coloca

    dados que mostram que a nvel mundial as tradies religiosas mais conhecidas so, por um

    lado, o hindusmo e o budismo em suas diferentes verses e, por outro, o judasmo, o

    cristianismo e o islamismo tambm em suas diferentes verses. Ainda, somam-se as religies

    africanas, as chinesas, as indo-americanas e as chamadas de arranjo pessoal que so as

    religiosidades difusas e sincrticas. Porm, o maior nmero de fiis concentra-se no

    cristianismo (34%, ou seja, um pouco mais de 1/3 da populao mundial) e no islamismo

    (20% que correspondem a 1/5 da populao mundial). O hindusmo (14%) e o budismo (6%).

    Hoje o islamismo j apresenta um nmero maior de seguidores do que o catolicismo. Em

    segundo lugar, o hindusmo.

    O cristianismo tambm vem crescendo, mas o seu ndice de crescimento no se

    diferencia to claramente do prprio aumento populacional. Ou seja, o islamismo chega a

    crescer em torno de 2% ao ano, enquanto que o crescimento da populao mundial est hoje

    em 1,3% ao ano. A presena do hindusmo, do budismo e do islamismo na Amrica Latina

    pouco expressiva ao lado do cristianismo. Em 1900, 95% da populao latino-americana era

    considerada crist e atualmente o quadro pouco se alterou, pois 92 a 93% da populao

    continua sendo identificada como crist. No Brasil 89% da populao brasileira, segundo o

    censo demogrfico de 2000, identificada como crist. J no catolicismo, especificamente,

    constatamos uma perda maior, mais de 20%, desde 1940. Os motivos so: o aumento de

    evanglicos e o aumento daqueles que se identificam como sem religio. E ainda,

    seguidores de outras religies. Dizer que o Brasil um pas catlico j no soa mais to

    evidente como soava em outros tempos.

    13 FOLLMANN, Jos Ivo. O mundo das religies e religiosidades: alguns nmeros e apontamentos para umareflexo sobre novos desafios. In SCARLATELLI, Cleide et al. Religio, cultura e educao. So Leopoldo:Ed. UNISINOS, 2006. p. 12-15.

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    A religiosidade popular um fenmeno inerente s religies existentes em todos os

    tempos. Assim, pode-se falar da religiosidade popular na ndia, na Europa, na frica, na

    Oceania ou na Amrica. Helcion Ribeiro, em seu livro Religiosidade popular na teologia

    latino-americana, acrescenta ainda que: Pode-se falar dela entre os povos pastores e

    caadores, antigos egpcios, gregos e romanos; entre brbaros primitivos e atuais budistas,

    muulmanos e outros.14

    Cabe salientar, por exemplo, o panteo popular hindu que muito confuso e

    heterogneo. O povo hindu venera muitas divindades15. O homem instrudo se contenta em

    dizer que todas elas so manifestaes do mesmo Brama. Inclusive o perigo do monismo

    real na religio hindu, enquanto que na religio popular se torna muito mais difcil evitar

    concepes pantestas. Dessa forma, evidencia-se que a expresso religiosidade popular

    muito mais complexa do que se pode imaginar. Esta religiosidade no-crist tambm

    possuidora de um mundo de smbolos, sinais, ritos e experincias. Estes so expresses

    visveis das relaes de um povo com Deus.

    Andr Droogers, no livro Religiosidade Popular Luterana16, procura mostrar que o

    conceito de religiosidade popular tambm se encontra no contexto das comunidades

    evanglicas luteranas, mesmo no havendo na vida dos evanglicos os santos, as promessas e

    as romarias. Porm, os evanglicos, assim como os catlicos, elaboram uma vivncia religiosa

    no decorrer da histria, atuando fora do controle do clero e da instituio Igreja. Esta

    religiosidade possibilita um contato direto com o sagrado. Ela no refletida como a

    institucional, ou seja, uma religiosidade opcional, no obrigatria, a qual est bem integrada

    14RIBEIRO, Helcion. Religiosidade popular na teologia latino-americana. So Paulo: Ed. Paulinas, 1984. p.12.15Em sua forma mais filosfica, o conceito hindu de divindade pantesta. A divindade no um ser pessoal,mas uma fora, uma energia que permeia tudo: os objetos inanimados, as plantas, os animais e os homens. No

    extremo menos filosfico do espectro h um conceito politesta, que acredita num grande nmero de deuses.Quase todas as aldeias tm a sua prpria divindade local. GAARDER, Jostein et al. O livro das Religies.SoPaulo: Companhia das Letras, 2000. p. 47.16DROOGERS, Andr. Religiosidade popular luterana.So Leopoldo. Editora Sinodal, 1984.

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    na vida diria das pessoas, contendo mais expresses emocionais do que a religiosidade

    institucional.

    Jos Lus Gonzles, no livro Catolicismo popular17, tenta expor os diferentes

    elementos e relaes que entram em jogo na religio popular, mais especificamente na

    religio popular catlica que so: a f crist, o eixo cultural e o eixo scio-histrico.

    A f crista vivida de forma distinta entre os pobres e as elites. So modos diferentes

    de viver os contedos da f crist. A institucional que se resume no credo, e a popular que se

    expressa em imagens, gestos, prticas devocionais, sentimentos.

    Se a religiosidade popular f crist, isto significa que tem alguma relao com Jesus

    Cristo. Mas qual a idia que o povo tem de Cristo? Qual o lugar que Cristo ocupa na vida

    crist do povo? Fala-se muito da supervalorizao das devoes em prejuzo de Jesus. O fato

    que o lugar e a pessoa de Jesus no cristianismo so critrio essencial de discernimento. A

    cristologia de uma religiosidade deficiente quando esta for insuficientemente evangelizada.

    A f popular busca a Deus mais a fim de bens messinicos materiais do que em vista dos

    espirituais.

    A catequese ibrica trouxe para a Amrica uma cristologia historicamente ligada a

    uma espiritualidade e a uma pastoral. A cristologia ibrica acentua com muita intensidade a

    divindade de Jesus e menos a sua humanidade. As razes histricas disto esto na origem do

    cristianismo da Pennsula Ibrica, que chegou f atravs da heresia ariana. Para o arianismo,

    Cristo era menor do que o Pai. O catolicismo hispnico, para superar este erro, acentuou a

    divindade de Jesus. Isto levou a f ibrica e latino-americana a crer que Cristo Deus,

    afastando o povo de sua humanidade e dos valores encarnativos da presena do Filho de Deus

    entre os homens. Dessa forma, desfaz-se o Cristo irmo, solidrio e modelo a ser imitado,

    ocorrendo, assim, um vazio de mediao entre um Deus distante e o povo. Como este precisa

    17GONZLES, Jos Lus et al. Catolicismo popular: histria, cultura, teologia. Petrpolis, RJ: Vozes, 1992. p.36.

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    de mediadores, tem necessidade de sentir perto de si a misericrdia e a benignidade do divino,

    a quem o povo ir recorrer? aqui que ele busca preencher esse vazio atravs da Virgem

    Maria e pela devoo aos santos.

    Na Amrica Latina, o catolicismo popular apresenta um mapa cultural muito variado.

    A razo se d porque na Amrica Latina se distinguem trs principais universos culturais: as

    culturas indgenas americanas, a cultura popular hispano-portuguesa e as culturas africanas.

    Isto demonstra que, por sua prpria natureza, o catolicismo precisa personificar e simbolizar

    as realidades sociais e histricas dos fiis, pois no pode haver um nico jeito de ser catlico.

    O processo histrico dos povos marcou profundamente sua religio. As heranas da

    Conquista, da Colnia, da resistncia e da independncia se refletem na religiosodade popular.

    As lendas e os mitos nos quais se do conta de aparies do Senhor e da Virgem aos ndios e

    aos negros so formas excelentes de transmitir a interpretao histrica que a conscincia

    popular elaborou a partir de sua f religiosa.

    Gonzles18defende que o grande motivo da existncia da religio popular se d pelo

    fato da necessidade que o pobre tem de resgatar diariamente sua vida da enfermidade, da

    fome, do desemprego. Desta forma, necessita se agarrar a Deus e, se possvel, obrig-lo a lhe

    dar ajuda, a permitir que viva e a libert-lo. Com isto o autor no quer afirmar que apenas o

    pobre cristo e tem devoo, mas que a maioria dos grandes fenmenos da religiosidade

    popular, nascidos entre os pobres, conservam neles seu sentido original. As maiores devoes

    latino-americanas se estendem a todos os setores sociais, porm, com sentido diferente.

    18GONZLES, 1992, p. 34.

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    1.3 Religiosidade popular, religio institucional e as Comunidades Eclesiais de Bases

    (CEBs): como se relacionam?

    Antes de fazer uma breve comparao entre a religiosidade popular e a religio

    institucional, convm esclarecer o termo popular. Popular , antes, o adjetivo que

    corresponde ao substantivo povo. Este no tem como sinnimo massa, nem gente. Leigo

    sinnimo de povo, porque vem da palavra grega Las, laics, de que se formou leigo. O

    povo de Deus, em grego, era las. A palavra povo ficou to esquecida na Igreja, por causa

    do clero, que leigo aquele que no sabe, que ignorante. Porm, se popular leigo,

    queiramos ou no, quando se fala em religiosidade popular, entende-se por religio dos

    ignorantes.

    comum ver em bibliografias a afirmao de que religio o conjunto de crenas e

    prticas produzidas pela ortodoxia da Igreja e que religiosidade a prtica e crena religiosa

    do povo. H, portanto, uma oposio entre religiosidade e religio. A religiosidade como algo

    difuso, vago e incoerente, quase que uma negao da religio, e que a religiosidade popular

    conflitaria com a religio institucional, ou, segundo Gonzles, religio das elites19.

    Elite d uma idia de excelncia, sua negao povo, que passa uma idia de vulgar,

    de pobre, de coisas supersticiosas e grosseiras. importante deixar bem claro que estas

    oposies e identificaes so pr-julgamentos preconceituosos e pejorativos das concepes

    elitistas e institucionais.

    A religiosidade popular na Amrica Latina se desenvolveu com uma globalidade

    bastante autnoma perante a hierarquia dirigente.

    19 O termo religio das elites denominado por Jos Lus Gonzles na obra Catolicismo popular: histria,cultura, teologia. O termo que se prefere utilizar no presente trabalho religio institucional. GONZLES,Jos Lus et al. Catolicismo popular: histria, cultura, teologia. Petrpolis, RJ: Vozes, 1992. p. 34.

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    Os diferentes componentes que integram e diversificam a religiosidade popular e a

    religio institucional so: a) com relao ao sagrado:que na religiosidade popular esta se d a

    partir das grandes necessidades humanas, busca de novas hierofanias e aparentemente

    utilitarista. J na religio institucional a relao com o sagrado se d a partir das categorias

    doutrinais e culturais, administrao da revelao e aparentemente gratuita; b) com relao

    natureza e ao mundo: a religiosidade popular tem uma relao vital com a natureza e

    integrao de suas foras experincia religiosa. A religio institucional tem uma relao

    secundria, ou seja, a natureza o profano; c) espao e tempo: embora haja espaos e tempos

    de especial fora convocatria, a experincia religiosa na religiosidade popular invade todo o

    tempo e espao. Na religio institucional tempo e espao sagrados so excludentemente

    marcados; d) situao social: na religiosidade popular a partir da marginalidade e das classes

    oprimidas. Das institucionalizadas a partir de posies privilegiadas de poder; e) acesso

    verdade: verdadeiro para a religiosidade popular o que ajuda a viver. Na religio

    institucional verdade o que se deduz de outra verdade ou ensinada pela autoridade; f)

    estrutura de culto: predomnio do emocional e do sensorial, dos gestos e dos smbolos na

    religio popular. No que tange s elites o predomnio da palavra convocadora de idias e

    administradora de ensinamentos; g) tica: na religiosidade popular uma tica simplificada e

    orientada para os grandes problemas da vida. Na religio institucional uma tica sofisticada e

    com freqncia instrumento de controle social

    20

    .

    Estes dados citados anteriormente no permitem entender o caso daqueles sacerdotes e

    bispos totalmente identificados com a religiosidade do povo e, por isso, devem ser usados

    com prudncia.

    Somente nos ltimos anos o tema da religiosidade popular tem surgido como uma das

    prioridades da pastoral latino-americana. Existem vrias explicaes para este fato. Uma delas

    20GONZLEZ, 1992, p. 39.

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    seria o interesse continental pelo autctone, pela cultura prpria, pela recuperao da prpria

    identidade. Ou seja, h uma conscientizao de que a Igreja e o cristo da Amrica Latina tm

    traos prprios e que requerem solues apropriadas, uma teologia mais fiel a nossa realidade.

    Neste contexto, o encontro com a religiosidade popular inevitvel.

    Outra explicao seria pelo fato de que pastoral se est definindo como missionria.

    Isso quer dizer que a preocupao com a instruo religiosa e os sacramentos no a

    primordial, mas a evangelizao.

    Neste sentido vale refletir acerca das Comunidades Eclesiais de Bases (CEBs) em

    relao ao catolicismo popular21. As Comunidades Eclesiais de Bases, segundo Gonzlez,

    so um problema real para a Igreja institucional como foram todos os movimentos, correntes,

    pregadores e telogos que enfrentaram a necessidade de serem mais coerentes com seus

    princpios constitutivos.22 Estas deram oportunidade para que o leigo assumisse tarefas e

    responsabilidades que h muitos sculos no eram permitidas a ele exercer. O crescimento do

    laicato assusta os bispos e agentes de pastoral que estavam acostumados a exercer o poder em

    forma piramidal. As Comunidades Eclesiais de Bases, em alguns casos, nascem da Pastoral da

    Libertao e, em outros, a reflexo libertadora surge da prxis comunitria. Elas surgem da

    anlise crtica da realidade e da necessidade de revelar suas formas ideolgicas.

    Assim, cabe salientar que as Comunidades Eclesiais de Bases no so a nica

    expresso popular da experincia crist. H duas posies com modalidades diferentes, uma

    mais militante e a outra mais racional. Enquanto que estas se estruturam em torno de uma

    mentalidade moderna, a religiosidade popular se estrutura na experincia religiosa, a partir

    dos componentes das culturas tradicionais. Neste aspecto, h uma diferena no modo de

    conceber a racionalidade histrica e a forma de assumir os processos sociais.

    21Acredito ser importante refletir a cerca das CEBs, pois o Grupo de Pesquisa sobre religiosidade popular estinserido em mbito catlico no deixando de abranger as demais religies.22GONZLEZ, 1992, p. 62.

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    Dessa forma, parece que as Comunidades Eclesiais de Bases produzem militantes e o

    catolicismo popular, o devoto. Julga-se que o catolicismo popular uma f desligada da vida.

    Criticam, ainda, que o catolicismo popular:

    [...] revestiu religiosamente a vida, interpretou religiosamente a identidade dacomunidade, respondeu religiosamente enfermidade [...] mas no transformou ahistria de tal modo que a vida, o mundo, a comunidade e a enfermidade em suasformas velhas desaparecesse. Evidentemente, neste sentido, o Catolicismo Popularno militante.23

    As Comunidades Eclesiais de Bases se articulam em torno do discurso, sendo assim

    mais propensas ao sincretismo poltico, e o catolicismo popular, ao sincretismo simblico.

    Assim como h diferenas entre elas e o catolicismo popular, tambm existem traos comuns:

    os ministrios so populares, anticlericais e suscitados pelo Esprito margem da hierarquia.

    1.4 Registros de manifestaes de religiosidade popular no Grupo de Pesquisa

    1.4.1 Idia de Deus na religiosidade popular

    A religiosidade popular devocional, com isso predominantemente afetiva e

    sentimental. Ela intuitiva e no se rege pela lgica racional. Galilea afirma que na

    religiosidade popular:

    Nota-se um profundo senso de Deus e sua providncia, chegando mesmo a um certofatalismo aparente. Deus est ao mesmo tempo perto e longe; simultaneamenteindulgente e severo. Em relao a Deus h sentimentos de amor e sintomas demedo.24

    23GONZLEZ, 1992, p. 67.24GALILEA, Segundo. Religiosidade popular e pastoral.So Paulo: Ed. Paulinas, 1978. p. 17.

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    Referente a essa idia de temor a Deus, no Grupo de Pesquisa do Instituto de Teologia

    e Pastoral de Passo Fundo ITEPA25o integrante Mauro Luiz Argenton26registrou, no seu

    dirio de bordo27

    , manifestaes de religiosidade popular na comunidade onde reside sua

    famlia e observou que as pessoas buscam a Deus por necessidade, para proteo no momento

    da doena e da fome, ficando visvel o temor a Deus presente nas pessoas. Vem Deus como

    castigador, o Todo Poderoso que existe para julgar. Esta idia de Deus j repassada desde a

    infncia, pois comum ouvir pais falarem criana, quando esta faz algo de errado, que Deus

    ir castig-la eque o diabinho ir peg-la. Na Bblia, em especial no Antigo Testamento,

    evidenciam-se fatos, os quais mostram a ira de Deus, um Deus que vem castigar e julgar. Esta

    idia de Deus tambm tem forte relao com inferno e cu, ou seja, se voc fizer coisas boas,

    ir para o cu, caso contrrio, queimar no fogo do inferno eternamente.

    Argenton tambm observou a idia de um Deus manipulador, um Deus que intervm

    na vida das pessoas, estando presente a idia de resignao. Ouve-se muito a expresso Se

    Deus quiser. Este tipo de concepo preocupante, pois acarreta a ausncia do compromisso

    social.

    25 Os encontros so quinzenais. Alm de mim, participam seis seminaristas que cursam Teologia regular noInstituto de Teologia e Pastoral - ITEPA. O lder do grupo o Pe. Elli Beninc. A metodologia aplicada no grupo a pesquisa de campo, observando manifestaes de religiosidade popular nas Comunidades Eclesiais de Base CEBs, nas romarias e no cotidiano das pessoas. Dessas observaes so realizados dirios de bordo, os quais soapresentados nos encontros. Tambm foram realizadas entrevistas. O objetivo da nossa pesquisa compreendera dinmica da religiosidade popular. O problema, ento, a relao entre a Teologia e a religiosidade popular.Mesmo o grupo estando inserido num mbito catlico ele tambm busca realizar um olhar que abrange as outrasreligies.

    26Este registro permitido pelo pesquisador Mauro Luiz Argenton de ser utilizado na presente pesquisa, atravsdo Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.27O dirio de bordo um tipo de registro que explicita situaes, pessoas, ambientes e acontecimentos. umregistro individual. Para alm do registro, o dirio de bordo uma reflexo sobre o prprio registro.

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    1.4.2 Idia de sacrifcio e punio na religiosidade popular

    A idia de sacrifcio e punio tambm fortemente presenciada na religiosidade

    popular. Exemplo disso so as estranhas e extraordinrias promessas. Nestas est muito

    presente a idia de punio.

    Mauro Luiz Argenton lembrou-se tambm de uma promessa que fez na infncia:

    sendo torcedor gremista, prometeu a Deus que, se o seu time ganhasse o jogo, ficaria um dia

    sem comer nada que fosse doce. O Grmio ganhou o jogo e ele procurou cumprir a promessa.Porm, no final do dia lembrou-se de que havia tomado pela manh caf com acar, com

    isso culpou-se quanto promessa no bem cumprida.

    Muitos fiis procuram o padre, sendo este a pessoa que representa estar mais prxima

    de Deus28para modificar a promessa quando no a conseguem cumprir.

    Outro membro da pesquisa, Rudinei Negri29, contou de uma promessa que fez quando

    cursava a sexta srie do Ensino Fundamental. Este, percebendo que estava quase reprovado

    em uma disciplina, prometeu a Deus que, se ele fosse aprovado, iria ler toda a Bblia e rezaria

    o tero todos os dias. Foi aprovado e cumpriu a promessa rezando o tero todos os dias com

    sua me e lendo um trecho da Bblia a cada dia, levando dois anos para concluir a leitura.

    Tambm disse que fez anotaes do que lia. Na medida em que lia, foi se envolvendo com as

    interessantes histrias narradas na Bblia e isso o motivou a participar na comunidade e a

    pensar em ser seminarista, a fim de se tornar padre.

    28Vale aqui citar Andr Droogers, o qual mostra que tambm na religiosidade popular luterana o pastor vistocomo algum que possui poderes sacrais superiores aos dos leigos: Uma rea em que isso pode ser pesquisado a da bno dada pelo pastor, no incio e no fim dos cultos [...] smbolos usados pelos pastores, comorepresentantes de algo ausente ou abstrato, foram interpretados pelos membros como sinais sagrados com um

    certo poder e efeito. DROOGERS, Andr. Religiosidade popular luterana. So Leopoldo. Editora Sinodal,1984, p. 27-28.29 Este registro permitido pelo pesquisador Rudinei Negri de ser utilizado na presente pesquisa, atravs doTermo de Consentimento Livre e Esclarecido.

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    1.4.3 A presena do simblico na religiosidade popular

    Na religiosidade popular Deus est no culto, nos ritos e nas coisas sagradas. muito

    simblico. D-se muita ateno s bnos, s imagens, aos lugares, s velas, gua benta e

    aos demais smbolos religiosos.

    Neste sentido, comum observar pessoas procurando benzer os ramos para a proteo

    em dias de temporais e dar valor para gua benta, benzendo casas.Os filhos pedem bno

    aos pais ou avs ao chegar ou sair de casa, bem como o uso de smbolos para proteo.Ao participar de uma missa numa pequena comunidade30foi possvel notar um forte

    momento de expresso de religiosidade popular, registrando-se o intenso interesse por

    escapulrios (bentinho; objeto de devoo; dois quadradinhos de pano bento, com oraes

    escritas). Antes da bno final da missa, o padre que a presidia, ofereceu ao povo

    escapulrios para quem os quisesse. Todoo povo presente dirigiu-se at o altar para receber o

    objeto. Ao perceberem que o nmero de escapulrios era inferior ao das pessoas que ali

    estavam, os ltimos da fila expressavam uma enorme preocupao em no conseguirem o

    objeto devocional. O padre os acalmou dizendo que traria mais escapulrios numa prxima

    missa.

    Em Cristo, em Maria e nos santos se d mais sentido de poder do que de imitao.

    Existem muitos cristos e muitas nossas senhoras, exemplo: Virgem de Guadalupe, do Carmo;

    Jesus dos Milagres, Jesus do Grande Poder, recorrendo-se a eles em busca do extraordinrio e

    de respostas s necessidades. Um exemplo disso a comunidade citada anteriormente: no

    local de culto (igreja) a imagem de santos muito valorizada pelas pessoas integrantes desta.

    Ao construir a nova igreja, pensava-se em no mais expor as imagens de santo,como Santa

    30 A comunidade citada a que me refiro a comunidade catlica (CEB) de Linha So Paulo pertencente Parquia So Jos da cidade de Chapada, a qual faz parte da Diocese de Cruz Alta. Nasci nessa comunidade eparticipo das atividades pastorais a mais de vinte anos.

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    Brbara, So Lus Gonzaga, Santa Lcia, Nossa Senhora Menina, Santo Antnio, mas apenas

    a do padroeiro: So Paulo. Foi difcil a aceitao da comunidade, pois grande a f

    depositada nestes santos. Tambm, h um valor afetivo a estas imagens pelo fato de terem

    sido doadas por pessoas da prpria comunidade. A primeira igreja foi fundada pelos primeiros

    moradores em 1924, mas dois anos antes da construo da igreja estas famlias j rezavam

    semanalmente o tero em uma das casas dos moradores31.

    Outro exemplo disto Mauro Luiz Argenton tambm registrou no seu dirio de bordo

    de que as pessoas da comunidade de sua famlia do grande valor para os Santos e ao anjo

    Gabriel. Contou que uma prima sua leva o nome de Gabriela pelo fato dos pais crerem

    fortemente que o anjo Gabriel os acompanhou (protegeu) durante a gravidez. Gostam deste

    anjo, pois o sentem mais prximo do que Deus. Deus, para eles, est distante.

    Na religiosidade popular h uma construo de rituais de uso pessoal. Isso se percebe

    muito bem nas famlias, em seus objetos pessoais de proteo, como, por exemplo, o uso de

    escapulrios ou outras correntes e fitas para proteo. importante ressaltar que o ritual

    sempre uma ao repetitiva e passa a um significado consciente. Isso faz com que se perceba

    que o sagrado est no consciente. O sagrado uma produo do conhecimento. Ele est

    fortemente presente no cotidiano.

    1.4.4 Algumas mudanas na religiosidade do povo

    Ao fazer uma anlise na comunidade supracitada do que era h dez anos

    aproximadamente e comparando a hoje, nota-se algumas diferenas em relao s atitudes do

    povo com sua religiosidade. Por exemplo, acreditava-se muito em realizar procisses, com

    rezas repetitivas e cantos para pedir que Deus enviasse chuva. Era grande o nmero de31 Esses dados foram fornecidos pelas pessoas da comunidade, sendo que hoje esto escritos no Histrico daComunidade So Paulo. Texto redigido pela professora Beatriz Ecker.

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    pessoas presentes nestas procisses. Assim como a presena nas celebraes litrgicas

    dominicais, onde faltar um domingo na celebrao era considerado um pecado grave. Hoje,

    percebe-se que o povo, ou pelo menos a maior parte deste, no tem mais esta preocupao.

    Vo celebrar aos domingos quando esto com vontade, quando tm disponibilidade, fazendo

    com que as pessoas no tenham mais tanta necessidade de ir igreja. A mdia oferece muitas

    respostas. Por exemplo, no campo rural a meteorologia oferece ao agricultor informaes em

    relao ao clima, o que antes se relacionava ao mistrio. Isso significa que, descobrindo os

    mistrios da natureza, h uma forte desmistificao da religiosidade.

    Porm, mesmo diante destas mudanas, ainda se percebe uma forte presena de

    religiosidade popular. Mesmo com um nmero pequeno de participantes nas celebraes

    dominicais, percebe-se a busca incessante do Transcendente. Prova disso a manifestao da

    religiosidade popular no dia dos Finados. O grande nmero de pessoas que freqentam o

    cemitrio, visitando o tmulo de seus entes queridos, levando flores, objetos devocionais s

    capelinhas, como, rosrio, imagens de santos aos quais a pessoa falecida tinha devoo, cruz e

    velas para serem queimadas prximas ao tmulo. Existe um verdadeiro culto dos mortos

    unido convico do alm. Expressar estes gestos uma forma de lidar com o grande

    mistrio que a morte. Serve para amenizar o sofrimento, o mistrio e a insegurana diante da

    finitude. Tambm enorme a presena de pessoas na missa deste dia. Igreja lotada, fenmeno

    que acontece em celebraes como na Sexta-Feira Santa e no Natal.

    Estas so algumas das expresses da religiosidade popular de que se exige

    aprofundamento para se conhecer melhor. No tanto pelas suas manifestaes que se

    conhece uma religiosidade, mas pelas atitudes, pelos motivos e valores envolvidos nelas.

    At aqui se percebe que muitos identificam a religiosidade popular atravs das

    procisses, romarias e festas religiosas. Estas manifestaes podem ser tomadas como

    momentos fortes da religiosidade, que permitem apreci-la mais ao vivo, mas que no

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    constituem o seu aspecto mais significativo, pois na vida cotidiana do povo que a

    religiosidade se manifesta verdadeiramente. Dessa forma, evidencia-se que a religiosidade

    popular muito mais ampla. Acredita-se que importante realizar uma anlise antropolgica

    deste fenmeno: o da religiosidade popular.

    No prximo captulo busca-se compreender o que faz o ser humano buscar expressar

    de alguma forma popular ou no - sua religiosidade. Por que essa busca incessante de Deus,

    de transcender-se? Qual sua relao com o Sagrado?

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    2 COMO ENTENDER ANTROPOLOGICAMENTE O FENMENO DA

    RELIGIOSIDADE POPULAR

    A separao entre investigao cientfica e religio uma das heranas do

    cientificismo percebida em diversas reas do conhecimento, especialmente no campo

    educacional. No entanto, para os adeptos da corrente fenomenolgica, um dos maiores

    equvocos cometidos pelos herdeiros da modernidade imaginar que os nossos argumentos

    racionais sejam capazes de esgotar a essncia do divino, do numinoso. A religio no se

    esgota, como j demonstrara Rudolf Otto32.

    Num primeiro momento, busca-se fazer uma abordagem sobre a experincia humana e

    a experincia religiosa. Isso ajudar a compreender melhor a presena de uma religiosidade

    popular em todas as religies, pois a religiosidade popular uma forma de experincia

    religiosa vivida empiricamente por fiis. o desejo do homem crente de estabelecer com o

    divino relaes mais simples, mais diretas e mais benficas.

    Em seguida, analisa-se a categoria do sagrado. Sabe-se que as culturas populares

    buscam expressar sua experincia do sagrado de uma forma criativa. Possuem uma enorme

    riqueza em gestos, cantos, ritos, smbolos. Conseguem mesclar aquilo que lhes natural com

    aquilo que as instituies religiosas institucionais lhes oferecem ou que, na maioria das vezes,

    lhes so impostas. na religiosidade popular que as pessoas buscam com simplicidade e

    32OTTO, Rudolf. O sagrado. So Bernardo do Campo, Cincias da Religio, Imprensa Metodista, 1985.

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    ingenuidade a presena do sagrado, sem se preocuparem com os discursos teolgicos, pois a

    preocupao est na presena do sagrado e sua importncia concreta no cotidiano.

    E na terceira parte apresenta-se uma atividade pedaggica, ou seja, a construo de um

    espao sagrado em sala de aula, na qual se constatou que o sagrado est no consciente da

    pessoa e que a manifestao do sagrado est fortemente presente na religiosidade popular.

    Tambm servir de auxlio, nesse sentido, o pensador Mircea Eliade33.

    2.1 Experincia humana e experincia religiosa

    A experincia humana uma vivncia relacional, ou seja, o ser humano tem relao:

    com o mundo (a natureza, a vida e o que a realidade oferece), com o outro indivduo e com o

    grupo (famlia, municpio, Estado, Nao, Igreja, trabalho...), isto , o homem est sempre em

    sociedade. Isso tudo tem uma grande influncia na socializao da experincia religiosa.

    O ser humano tem tambm uma dimenso individual (desejos, projetos, realizaes ou

    frustraes). Cada ser humano constri (e em parte traz gravado) um projeto de vida que

    procura realizar durante sua existncia. Portanto: O viver humano oscila constantemente

    entre o subjetivo e o intersubjetivo ou relacional.34

    Antes de se falar sobre a experincia religiosa propriamente dita, importante tomar

    conhecimento sobre o que realmente experincia. A experincia sempre acontece num

    determinado cotidiano. Toma-se como exemplo a aula. A aula uma experincia, um

    acontecer. O acontecer um movimento que implica num passado, num presente e num

    futuro. Ou seja, o futuro ainda no , e o passado j foi. Futuro e passado so reais para a

    pessoa. O acontecer sempre um presente. Esse acontecer uma experincia do passado e

    33 ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano; a essncia das religies (Das Heilige und das Profane). Trad.Rogrio Fernandes . Lisboa, Edio Livros do Brasil, [s. d.].34 CROATTO, Jos Severino. As linguagens da experincia religiosa: uma introduo fenomenologia dareligio. So Paulo: Paulinas, 2001. p. 42.

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    abre perspectiva de futuro. Descobre-se o passado no presente. Assim, quando se assiste a

    uma aula, j se traz um sentido de aula que foi sendo construdo durante a vida. A experincia

    no totalmente original no momento em que se assiste a uma aula. O mesmo acontece com a

    experincia religiosa, a que se constri a partir do cotidiano. E o sentido que se produz no

    cotidiano o que se pode chamar de conhecimento.

    Isto remete a outra questo: O que acontece no ser humano quando ocorre a

    construo do conhecimento?

    O ser humano um ser que se pergunta. Constantemente angustiado, ele precisa de

    respostas a todas as perguntas que faz a partir dos acontecimentos que vivencia. As respostas

    podem ser obtidas atravs da evidncia imediata e da justificao. A evidncia imediata o

    conhecimento prprio e instantneo e a justificao um processo de investigao e anlise.

    No entanto, o conhecimento no somente resultado, somente produto, somente resposta, h

    um processo de construo do conhecimento.

    Os elementos para a construo do conhecimento so o sujeito, o objeto e o processo

    de construo desse conhecimento. O sujeito aquele que aprende, aquele que produz o

    conhecimento, o algo novo. No processo, ns temos o discurso, a imagem, o mtodo de

    investigao. Por fim, temos o objeto que est a para ser investigado e conhecido. No

    entanto, quando se analisa o ensino como construo do conhecimento, ns temos que partir

    do seguinte pressuposto: o sujeito que se dispe a aprender no se dirige ao objeto como uma

    folha em branco, ou seja, sem nenhum tipo de conhecimento. Muito pelo contrrio, quando o

    sujeito se dirige para o objeto, seus valores, seus atos, suas crenas e tudo aquilo que a

    sociedade nele acumulou, j esto presentes. Ele no nulo. Assim, o objeto tambm no se

    apresenta a ele como acabado, mas, sim, o objeto vai se manifestar em diferentes aspectos.

    Nisso, acontece o processo de conhecimento.

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    A maneira como o sujeito se dirige ao objeto depende da viso de mundo 35 que ele

    tem. A viso de mundo pode surgir das seguintes caractersticas: da leitura que se faz das

    coisas; da maneira de como se olha a sociedade, de como ela se organiza e de como ela

    acontece; e, por fim, da idealizao que se faz dessa sociedade. Pode-se aceit-la ou ter a

    utopia de transform-la. Essa viso de mundo carrega consigo um aspecto de juzo e de

    vontade. O juzo refere-se incorporao passiva em relao sociedade que nos dada ou

    aos sonhos em relao a essa sociedade. A vontade o desejo de transform-la.

    Como se v, o ser humano um ser que se questiona e que est sempre a se dirigir ao

    objeto. Esse ser que se pergunta ao se defrontar com o objeto, revela-se para o sujeito como

    algo que lhe conhecido e, tambm, como algo que lhe desconhecido, que oculto. A

    relao que o homem tem ao tentar quebrar a curiosidade que possui em relao ao objeto,

    aquilo que lhe oculto, ele a faz por que motivo? Primeiro, porque o homem no sabe e no

    conhece tudo, o homem no pode responder a todas as perguntas, principalmente porque ele

    um sujeito em construo.

    Nesse sentido, Paulo Freire define o ser humano como um ser inconcluso, inacabado36.

    J Heidegger37, numa viso existencialista, fala do homem como um ser de projeto, isto

    significa lanar-se para frente. Ou seja, o ser humano constri a vida, procura evoluir para ter

    uma vida melhor e tambm proporcionar isso queles que o rodeiam. Dessa forma, pode-se

    dizer que, ao buscar seu crescimento, o homem edifica a si prprio. Ele se humaniza na

    medida em que se constri e constri a sua vida (existncia). O ser humano busca sempre

    novas formas de evoluir, est sempre aprendendo coisas novas, diferentes. Nunca se satisfaz,

    35Os PCNs do Ensino Religioso afirmam que quando muitas respostas no conseguem ter coerncia entre si eso contraditrias: h necessidade de uma instncia que seja capaz de ordenar os conhecimentos recebidoscomo resposta e possibilitar uma viso global do mundo. Pode-se chamar a essa potncia, instncia, deconcepo de mundo. Assim, a concepo de mundo a maneira como cada ser humano compreende omundo. FONAPER. Parmetros Curriculares Nacionais do Ensino Religioso. So Paulo. Ed. Ave Maria,

    1997. p. 23-24.36FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessrios prtica educativa. So Paulo: Paz e Terra,1996.37HEIDEGGER, Martin. Sbre o Humanismo.Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967.

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    aprende sempre, tornando sua existncia mais significativa. Portanto, o homem um projeto

    no sentido de que est sempre em transformao, inacabado. A vida nesse aspecto tambm

    um projeto, j que ambos se misturam em seu processo de construo e tanto um quanto o

    outro so finitos e inacabados.

    Outro aspecto importante a ser visto que o ser humano tende totalidade. Segundo

    Croatto:

    Por isso sente com tanta intensidade suas necessidades e limitaes. E buscasuper-las. um ser que constantemente procura romper os limites, conseguirsuper-los, porm, uma miragem, uma u-topia, algo que no existe em lugaralgum.38

    Retornando ao exemplo da aula supracitada, pode-se dizer que a aula o objeto de

    experincia e essa se faz conforme a compreenso que temos dela. Assim sendo, cada sujeito

    tem um sentido e cada experincia uma verdade, mas no uma verdade total, pois o ser

    humano sendo inconcluso no pode dizer a verdade. no processo da experincia que se

    adquire o conhecimento (exemplo: a experincia da dor e do sofrimento). Enquanto o ser

    humano est vivo, adquire conhecimento atravs da experincia, porm, a experincia que o

    homem busca fazer sempre a experincia do total.

    No texto Conhecimento religioso,de Elli Beninc39, o autor considera que a raiz do

    fenmeno religioso se d no processo de luta entre a liberdade e a segurana. Nesse processo,

    encontramos o desejo do conhecimento dogmatizado, pois esse faz com que o homem se

    garanta como ser absolutizado, superando seus limites, sua finitude. O conhecimento religioso

    resulta das respostas que as perguntas oferecem. As perguntas o homem quem as faz. O

    conhecimento tem carter dogmatizante, porquanto o ser humano busca garantir a segurana

    38CROATTO, 2001, p. 43.39BENINC, Elli. Conhecimento religioso. Filosofazer. Passo Fundo, ano VI, n 11, p. 29 - 36, 1997.

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    de que o conhecimento que possui sobre as coisas do mistrio seja verdadeiro, isso atravs de

    uma autoridade que legitime, assegurando sua veracidade.

    Segundo o referido autor, o conhecimento, enquanto resposta, restabelece o equilbrio

    intelectual. J a pergunta provoca o desequilbrio e gera insegurana. A funo da pergunta

    de desequilibrar a inteligncia e pr em ao a busca de um novo equilbrio e com isso

    evoluir. A busca do equilbrio pode levar o ser humano a submeter-se a uma ditadura da

    concepo do mundo dogmatizado, o que vai oprimindo-o existencialmente e negando-lhe a

    prpria liberdade. E ainda o faz recorrer ao processo de fetichizao ocultando as ameaas

    para garantir a segurana. Beninc afirma, em seu texto citado acima:

    O drama humano reside na dialeticidade dessas tendncias, radicadas no horizontede sua finitude: a abertura para o infinito gerador de liberdade, mas ao mesmo tempofonte de insegurana; a segurana existencial como garantia de ser, que por suanatureza dogmatizante elabora estruturas objetivadas que se tornam opressoras enegadoras da liberdade.40

    Os Parmetros Curriculares Nacionais do Ensino Religioso tambm afirmam que: A

    raiz do fenmeno religioso encontra-se no limiar dessa liberdade e dessa insegurana. O

    homem finito, inconcluso, busca fora de si o desconhecido, o mistrio: transcende.41

    Percebe-se na vida cotidiana que o ser humano, no obstante diversas atividades e

    desejos, se abre para o ser transcendente. H sempre uma tendncia para o transcendente.

    Apesar de o homem ocupar-se com tantas atividades e preocupar-se com tantas questes, isso

    no suficiente para sua realizao. A existncia humana reclama um sentido para alm de si.

    A existncia no o fundamento ltimo em que todas as coisas se sustentam. H uma lacuna

    que ela prpria no consegue preencher. O homem, sentindo-se infundado em si, vive no seu

    40BENINC, 1997, p. 33.41FONAPER. Parmetros Curriculares Nacionais do Ensino Religioso. So Paulo: Ed. Ave Maria, 1997. p.26.

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    ser mais ntimo uma inquietao atormentada. Desse tormento interior busca incessantemente

    um fundamento seguro.

    Assim, o ser humano soube buscar, de forma criativa, em todos os tempos, maneiras

    de superar suas limitaes recorrendo ao sagrado. A experincia religiosa humana e sua

    relao com o sagrado essencial. O desejo essencial do homem religioso passar do

    fragmentrio ao totalizador; do finito ao duradouro e sem limites; e da falta de sentido de

    muitas coisas para a esperana.

    Do abismo do ser que irrompe o carter religioso do homem como possibilidade de

    buscar sentido sua existncia. Assim, na religio que busca um sentido para sua vida, pois

    as coisas mundanas e humanas nem sempre o satisfazem. O homem tende, com suas foras e

    desejos, para a posse da felicidade duradoura, mas sente-se miservel, abatido por foras

    estranhas e fraquezas que o impedem de alcanar essa felicidade estvel. Desse estado se abre

    ao Absoluto, ao Transcendente42.

    Ontologicamente falando, o homem possui uma dimenso religiosa, que compe a

    estrutura do ser humano. Isto significa acreditar que o homem radicalmente religioso, no

    sentido de raiz e fundamento. Segundo Elli Beninc, em seu textoA dimenso religiosa como

    base para o pleno desenvolvimento da pessoa humana, ele coloca que: A dimenso religiosa

    seria, ento, um fundamento da estrutura do ser humano e, ao mesmo tempo, uma busca, uma

    tentativa de compreenso dos fenmenos religiosos.43

    42 Nesse momento importante termos bem claro o significado dos seguintes termos: transcender,Transcendente, transcendncia e transcender-se. O termo transcender significa (trans = ultrapassar + cender =alm), isto quer dizer ultrapassar para o alm. Quando mencionamos a palavra Transcendente, referimo-nos aDeus. Transcendncia no sentido de busca, significando assim que nenhum ser humano ou povo querdesaparecer definitivamente. Transcender-se ultrapassar o limite que temos hoje. Essa idia de transcender-se

    permanente. ultrapassar-se at o infinito.43 BENINC, Elli. A dimenso religiosa como base para o pleno desenvolvimento da pessoa humana. In:OLIVEIRA, Avelino & OLIVEIRA, Neiva A. (orgs). Fides et Ratio: Festschrift em homenagem a CludioNeutzling. Pelotas: Educat, 2003. p. 307.

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    2.2 Presena do sagrado e sua importncia concreta na vida cotidiana

    Ocorreu, nas ltimas dcadas, a aceitao da pluralidade de saberes. Isso fez com que

    os cientistas admitissem que no s com a cincia que se pode resolver os problemas

    realmente humanos. Problemas da dor, da alegria, da esperana, dos sonhos, etc. Nesse

    sentido, abre-se uma brecha ao sagrado. Hoje, h uma volta ao sagrado. A modernidade foi,na viso de alguns autores, um projeto falido, no qual o progresso est destruindo a natureza e

    excluindo milhes de seres humanos atravs do neo-liberalismo. Esse um dos motivos pelos

    quais a religio volta a ser tema nos ltimos tempos no s de telogos, mas tambm de

    cientistas.

    Com isso, aborda-se nesse momento uma das categorias do fenmeno religioso: o

    sagrado. Num primeiro momento, enfoca-se a investigao fenomenolgica, que serve

    como caminho que conduz compreenso do tema da dimenso religiosa do ser humano, e

    como a fenomenologia chega concluso de que o sagrado deve ser o objeto de estudo para

    compreender-se a religio. Para isso, utiliza-se as idias de alguns pesquisadores que, nas

    ltimas dcadas do sculo passado, dedicaram seus esforos nas investigaes das mais

    variadas manifestaes religiosas. Um desses investigadores foi Rudolf Otto, porm, sua

    investigao se d em torno de uma viso judaico-crist, em contraponto a essa viso veremos

    se tem presente s idias de Bruno Birck44. Tambm se traz a hierofania de Mircea Eliade.

    Conforme os autores Filoramo e Prandi, na obraAs Cincias das Religies45, o sculo

    XIX, que passou por profundas transformaes, contribuiu para o surgimento de uma

    44BIRCK, Bruno Odlio. O sagrado em Rudolf Otto.Porto Alegre; EDIPUCRS, 1993.45 FILORAMO, Giovanni; PRANDI, Carlo. As cincias das religies.Trad. por Jos Maria de Almeida. SoPaulo: Paulus, 1999.

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    disciplina chamada Histria das Religies que se prope ao estudo comparado das

    diferentes tradies religiosas da humanidade. Alm disso, foram afirmando estudos e

    interpretaes dos fatos religiosos, visando integrao e ao aprofundamento dos

    conhecimentos histricos. Aos poucos, foi-se exigindo uma cincia da religio capaz de

    reunificar as contribuies que as diferentes disciplinas - como a Lingstica, a Antropologia,

    a Psicologia e a Sociologia vinham oferecendo.

    No incio, a Cincia das Religies dedicou-se pesquisar e encontrar no a essncia da

    religio, mas a sua no-essencialidade. Essa viso surgiu no perodo positivista. Somente no

    final do sculo XIX, com a crise do Positivismo, que os pressupostos epistemolgicos dessa

    concepo de Cincia da Religio foram questionados. Por conseqncia, surgiu, no incio do

    sculo XX, o problema epistemolgico bsico das Cincias das Religies, constitudo pela

    alternativa de explicar ou compreender a religio. Para o modelo da explicao,

    considerado vlido o campo dos fenmenos naturais, que dizem que a religio uma

    manifestao antropolgica e histrica que pode e deve se sujeitar aos mtodos da pesquisa

    crtica e, assim sendo, possuindo uma estrutura prpria. Em oposio a esse modelo temos o

    da compreenso, que vlido no campo dos fenmenos religiosos e que se prope a captar

    aquela experincia livre e criadora que estaria na base das produes espirituais e culturais.

    Aplicado ao mundo dos fenmenos religiosos, esse modelo traduziu-se numa verdadeira

    corrente, a fenomenologia. O trao essencial desse paradigma a autonomia absoluta da

    religio. Segundo Otto, a religio comea por si mesma. Esse a si mesma a experincia

    religiosa vivida. Sobre esse autor e sobre a experincia religiosa veremos mais profundamente

    no decorrer do trabalho. Mas, antes, necessrio saber como foi o processo histrico para se

    chegar s idias de Otto.

    Ainda na obra A Cincia das Religies, os autores afirmam que a expresso

    fenomenologia da religio foi criada pelo holands P. D. Chantepie de La Saussaye, titular da

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    cadeira de Histria das Religies na Universidade de Amsterd, a partir de 1878. Ele retomou

    o mtodo comparativo. A finalidade dessa comparao era evidenciar a analogia de crenas e

    ritos entre as mais variadas religies, pois todas as religies tm suas particularidades, mas

    cada uma tem tambm analogias numerosas com as outras.

    A busca dos elementos fundamentais da vida religiosa foi motivo de reflexo para o

    filsofo Hegel. Na sua Fenomenologa del Esprutu46, ele faz uma pesquisa sistemtica sobre

    a relao existente entre os aspectos conceituais e os momentos empricos da religio.

    Depois da fenomenologia de Chantepie, que era herdeira do Positivismo evolucionista,

    aparece outro holands, Gerardus van der Leeuw, que ser a filha da reao ao Positivismo.

    Na sua obra Phnomenologie der Religion (1933), que passou a ser considerada como o

    manifesto da corrente da filosofia da religio compreensiva, diversos componentes convergem

    para o esforo de Leeuw em construir um mtodo especial de Filosofia das Religies. O

    primeiro est ligado fenomenologia filosfica de Husserl, retomando dois conceitos

    fundamentais: a epoch, que indica a suspenso do juzo que o fenomenlogo deve operar

    se quiser captar a essncia do fenmeno estudado, e a viso eidtica, que indica que o

    objetivo da pesquisa entender os elementos essenciais do fenmeno em questo. Esses dois

    elementos, ento, fazem parte da metodologia de muitos fenomenlogos da religio. uma

    atitude fundamental quando se quer partir dos fatos religiosos em sua funo existencial e no

    da interpretao de quem os estuda. claro que impossvel no interpretar, mas o primordial

    a experincia de quem se expressa religiosamente. O fenomenlogo precisa ter conscincia

    disso.

    O segundo componente para a construo de um mtodo especial da Filosofia da

    Religio o do tipo psicolgico, no qual a centralidade da experincia religiosa diz que a

    religio , antes de tudo, experincia vivida. H ainda um terceiro componente, o

    46 HEGEL, Georq Wilhelm Friedrich. Fenomenologa del esprutu. Mxico: Fondo de Cultura Econmica,1987.

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    hermenutico. Nesse, o fenomenlogo, para atingir a sua meta da sua pesquisa, deve captar a

    essncia da religio. O quarto componente o teolgico, atravs do qual o homem busca

    entender e intuir as verdades religiosas.

    Esses componentes do mtodo fenomenolgico de Leeuw articulam em cinco partes a

    sua obra-prima: a) examinar o objeto da religio; b) dedicado ao sujeito da religio

    (examinando o homem sagrado); c) os estudos das relaes entre sujeito e objeto da religio

    (ritos, cultos); d) o mundo; e) as figuras. tambm nessa obra que se encontra o conceito de

    fenmeno47:

    O fenmeno (do grego to phainomenon) , literalmente, aquilo que aparece, quese mostra. Essa primeira constatao comporta uma trplice conseqncia: 1) existealguma coisa; 2) ela se mostra; 3) ela um fenmeno justamente pelo fato de semostrar. Em outros termos, o fenmeno, contrariamente s coisas (o objeto fetichistado positivismo), no , para van der Leeuw, nem simplesmente um objeto (ou, piorainda, o objeto e, portanto, a realidade) nem algo puramente subjetivo, mas oproduto do encontro entre sujeito e objeto; ou, usando as palavras do prprio van derLeeuw, o fenmeno ao mesmo tempo um objeto que se refere a um sujeito e umsujeito em relao com o objeto. Segue-se que toda a sua essncia consiste emmostrar-se, em mostrar-se a algum. Por isso, to logo algum comea a falar de

    algo que se mostra, j se d a fenomenologia. A fenomenologia , pois, a discussosistemtica do que aparece.48

    Assim, a Filosofia da Religio de Leeuw tem como pressuposto a autonomia absoluta

    da religio, baseada numa definio, a priori, que Leeuw toma emprestado de Rudolf Otto.

    Com a evoluo da cincia, a religio poderia desaparecer. Surge, ento, a questo: a religio

    tem autonomia absoluta?

    Para Leeuw alcanar o objetivo de colocar o problema da autonomia da religio, ele

    recorreu s correntes culturais alems. Uma delas foi a de Otto, e a essa fenomenologia que

    voltaremos agora nossa ateno.

    O fundador da escola de Marburgo Rudolf Otto que com o seu livro O Sagrado

    ofereceu um modelo excelente de anlise fenomenolgica com chave hermenutica da

    47Sobre esse conceito e as colocaes sobre a Filosofia da Religio de Leeuw, encontramos no livroAs Cinciasdas Religies, de Giovanni Filoramo e Carlo Prandi.48FILORAMO, 1999, p. 35.

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    experincia religiosa. O livro, que favoreceu o surgimento de uma Filosofia da Religio, no

    uma obra fenomenolgica. Fenomenlogos foram os estudiosos, os alunos, os amigos e os

    sucessores de Otto.

    O representante mais significativo dessa escola foi Heiler, aluno e amigo do fundador,

    envolvido no dilogo inter-religioso. Exps, atravs da sua monografia, os princpios do seu

    mtodo fenomenolgico. De Otto, toma a categoria do sagrado, que designa ao mesmo tempo

    o objeto da experincia religiosa e a disposio do sujeito a capt-lo. E afirma que a essncia

    da religio a experincia do encontro com o Sagrado.

    Em sntese, a fenomenologia da religio, segundo Croatto: No estuda os fatos em si

    mesmos (o que tarefa da histria das religies), mas sua intencionalidade (seu eidos) ou

    essncia.49Ainda sobre a atitude do fenomenlogo afirma que: O transcendente, ncleo da

    experincia, no captado pelo fenomenlogo, mas pelo homo religiosus.50

    Elli Beninc, em seu texto O Ensino Religioso e a fenomenologia religiosa51procura

    esclarecer o conceito de fenmeno afirmando que o sentido da expresso religio pode ser

    descoberto na fala, nos rituais e em outras manifestaes, principalmente artsticas. A

    impreciso do significado do termo religio dificulta a investigao e a comunicao, j que

    a palavra religio vem agregada de vrios sentidos. Para coletivizar a comunicao do

    contedo religioso necessitamos de conceitos que delimitem com exatido o significado dos

    termos. Essa preocupao com a definio dos termos no atinge a busca do sentido da

    religio, pois esse se vincula s respostas existenciais que se procura. No processo de

    investigao, a preocupao situa-se no campo dos sentidos, ou seja, a forma como as pessoas

    sentem, expressam e vivem o fenmeno religioso. Trata-se, pois, de encontrar um mtodo

    de investigao que viabilize o estudo dos fenmenos da religio. A opo pela

    49CROATTO, 2001, p. 25.50CROATTO, 2001, p. 27.51BENINC, Elli. O Ensino Religioso e a fenomenologia religiosa. In KLEIN, Rem et.al. O Ensino Religiosoe o Pastorado Escolar. So Leopoldo: IEPG, 2001.

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    fenomenologia religiosa nos possibilita, metodicamente, identificar a religio nas suas

    manifestaes coletivas e individuais, s quais chamamos de fenmenos religiosos, e pela

    anlise desses fenmenos perceber os elementos fundantes da religio. Fenomenologia a

    cincia dos fenmenos. Trata-se, por isso, de um mtodo de investigao, ou seja, a forma de

    mostrar aquilo que no est suficientemente transparente. O fenmeno aquilo que se mostra,

    aquilo que aparece. Teremos de observ-lo de forma metdica para perceber onde ele se

    apia. O fenmeno, ao se manifestar, mostra-se a si mesmo, mas no diz tudo de si. Aponta

    para outra realidade que se esconde.

    2.3 O sagrado em Rudolf Otto: o mistrio tremendo e o fascinante

    A vivncia do sagrado constituda de uma experincia religiosa (sobrenatural), mas

    que pode ser permeada por elementos da vida natural. Para descrever esses elementos da

    experincia religiosa, Bruno Birk utiliza o estudo O sagrado de Rudolf Otto o qual faz uma

    minuciosa descrio do elemento religioso, denominado numinoso.

    Bruno Birck, estudioso da Filosofia da Religio, em sua obra O Sagrado em Rudolf

    Ottofaz uma anlise filosfica da possibilidade de relao do no-racional com o racional na

    idia de sagrado, como descreve Rudolf Otto, e procura demonstrar que o no-racional de

    Otto deve ser entendido como o pr-refletido de Husserl. Birck pretende demonstrar que Otto

    aplica incorretamente a teoria do esquematismo de Kant na relao do no-racional e do

    racional e que Otto utiliza o mtodo da descrio fenomenolgica. Em Kant, impossvel

    compreender uma categoria numinosa, absolutamente no-racional. Para esse, as categorias

    tm uma funo lgica (intelectual) de subsumir num conceito a experincia, a percepo.

    Para possibilitar a aplicao das categorias (intelectuais) experincia (emprica) necessrioum termo intermedirio. Esse termo o esquema das categorias. Portanto, o esquema um

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    termo intermedirio que possibilita a aplicao das categorias experincia. Tal uso do

    esquema chama-se esquematismo. Para Kant, o esquematismo a ligao da categoria, um

    elemento racional, experincia, que o elemento no-racional. Para Otto, a categoria

    numinosa, esquematizada por um elemento da experincia natural, o elemento racional. O que

    para Kant o racional, para Otto o no-racional e vice-versa. Assim, possvel dar uma

    soluo, na fenomenologia de Husserl, para a r