Stela Guedes Caputo - Sobre Entrevistas.pdf
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COLEO ENSINAR JORNALISMO
Stela Guedes Caputo
SOBRE ENTREVISTAS Teoria, prtica e experincias
http://groups.google.com.br/group/digitalsource
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O que normalmente se chama de "discurso pblico" o conjunto das
formas pelas quais a sociedade "conversa" sobre poltica, comrcio, religio,
cultura e vida social. O jornalismo constitui, claro, uma dessas formas. Mas no
interior da prpria forma existem formatos editoriais em que a conversa
tecnicamente privilegiada.
este o caso da entrevista, um gnero que, apesar de todas as
transformaes das tcnicas de comunicao, continua marcando poca na
mdia contempornea. Em jornal impresso, rdio, televiso ou mesmo na
Internet, pode-se colar ao desafio da boa entrevista a palavra "arte".
da entrevista que trata este livro de Stela Guedes Caputo. Aqui se
torna bem claro que esse gnero sintetiza elementos dos princpios
fundamentais de elaborao do texto jornalstico, que so a humanizao, a
vulgarizao e a autoridade. A primeira, de natureza francamente afetiva, pode
apelar para a dramatizao, por meio dos detalhes psicolgicos da entrevista,
com o objetivo de fazer o leitor compreender (simpatizando, emocionando-se)
os aspectos no imediatamente evidentes de um acontecimento; a segunda diz
respeito s possibilidades de se manter no nvel da linguagem comum de uma
interlocuo, graas a exemplos, metforas, parbolas, etc; a terceira suscita o
reconhecimento dos argumentos de autoridade, na medida em que prestigia a
palavra do entrevistado, mas tambm o prprio discurso do jornal.
Stela empreende um levantamento das diferentes maneiras de se
conduzir uma entrevista.
Seguindo sua prpria experincia profissional, complementados por
dilogos com agentes diversificados. Seu trabalho se coloca a meio caminho
entre a esfera da prtica jornalstica e a reflexo terica, inclusive com
momentos de interesse abertamente miditico, a exemplo da entrevista que
ousa fazer com um participante de grupos de extermnio do submundo carioca.
Tudo isso confere a este livro um interesse pedaggico irrecusvel para
estudantes ou profissionais de jornalismo, mas tambm ao pblico que busque
ampliar conhecimentos sobre os bastidores da prtica informativa.
Muniz Sodr
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COLEO ENSINAR JORNALISMO
Coordenador: Clvis de Barros Filho
Sobre entrevistas: teoria, prtica e experincias Stela Guedes Caputo
Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)
(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Guedes Caputo, Stela
Sobre entrevistas : teoria, prtica e experincias / Stela Guedes. Petrpolis, RJ : Vozes,
2006.
ISBN 85.326.3306-4
Bibliografia.
1. Entrevistas I. Ttulo.
06-1080
CDD-080
ndices para catlogo sistemtico:
1. Entrevistas : Teoria, prtica e experincias 080
Stela Guedes Caputo
Sobre entrevistas
Teoria, prtica e experincias
A EDITORA VOZES
Petrpolis
(c) 2006, Editora Vozes Ltda. Rua Frei Lus, 100 25689-900 Petrpolis, RJ Internet:
http://www.vozes.com.br Brasil
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poder ser reproduzida ou
transmitida por qualquer forma
e/ou quaisquer meios (eletrnico ou mecnico, incluindo fotocpia e gravao) ou arquivada
em qualquer sistema ou banco de dados sem permisso escrita da Editora.
Editorao: Maria da Conceio Borba de Sousa Projeto grfico e capa: AG.SR Desenv.
Grfico
ISBN 85.326.3306-4
Este livro foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltda.
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Agradecimentos
Escrever um livro, por pequeno e simples que seja, claro, um processo.
Uma experincia que no comea quando nos sentamos para escrev-lo e no
se limita a este livro. Comea antes, bem antes e segue conosco para alm do
que publicamos. Muitas pessoas partilham desse espao aberto no tempo e
colaboram com nosso ofcio mesmo sem saber e de incontveis formas. Sem
elas, nada seria possvel. Por isso, tenho tanto a agradecer. minha amada
me, Dulce Caputo Gomes (in memoriam), companheira e amiga para sempre.
Aos meus amados avs Maria Caputo e Ary Gomes (in memoriam). Aos meus
filhos pelo companheirismo e amor. Ao meu ex-marido, Nelson Guedes, pai de
meus filhos, pelo que vivemos e pelo apoio de uma vida inteira. sua esposa,
Alba. A meu pai, Expedito Saraiva, a meus irmos e irm, por nossa vida.
Palmira de Ians, minha querida, sempre. A Maristela Possadas, pela amizade,
pelo amor, entusiasmo, pacientes leituras e correes. Ao Camillo e ao Dida,
pelo exemplo de coragem de viver sonhando e lutando. Aos amigos, Leonardo
Boff, Francisco Moras, Volney Berkenbrock, Eduardo Coutinho, Augusto Csar,
Andr Prfiro e Andr Dias pelas sugestes e apoio.
Agradeo ao Professor Pedro Rodolfo Bod que h muito, muito tempo
me sugeriu caminhos preciosos e de quem nunca esqueci o entusiasmo e a
paixo pelo que se faz. querida amiga Snia Norberto por sua amizade e
dedicao educao.
Agradeo aos amigos que trabalham na Associao de Docentes da UFF
(Aduff): Alitane, Luiza, Paulinho, Mnica, Nildomar e Sheila. Vocs tornam a
minha vida muito melhor, todo dia. Aos diretores dessa entidade e professores
que lutam junto com ela para mudar esse pas e em defesa da educao
pblica. Particularmente pelo apoio de: Paulo Cresciulo, Marcelo Badar,
Jacira, Ktia Lima, Hel, Srgio Aboud, Juarez, Marina Barbosa, Andr Feitosa,
Elaine, Snia Lucio, Marcos Barreto, Waldyr, Wilma, Adriana, Maria Lcia,
Raphael, Jairo Paes e Ktia Maria. Aos amigos Iara e Ademir pela luz. A Flor,
minha amiga, parceira e uma das melhores jornalistas que conheo. A Coaracy
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Guimares, meu amigo querido e companheiro de lutas que no cessam. A
Manuela, Schuch e Ndia pela amizade absurda. A Ana Lcia, Karina, Darlene,
Michele, Carlinhos, Janeci, Katinha, Isabel, Nelson Freitas, Cludia Santiago e
Vito Giannotti, pela amizade e torcida. Ao Antnio, da Livraria da Travessa
(Ouvidor), pelo carinho, imensa ajuda e por sempre me dizer que tudo dar
certo, "nem que seja l no final".
A Vera Lcia Fagundes de Souza, amiga de todos os dias, para o que der e
vier. A Vera Lcia Andrade de Melo pela f, pelo amor, pela confiana e a Victor
pelo incentivo e fora. A Vincius, pelas crticas constantes e incessantes. A Beth
e a Vera Gonalves por nossas mos sempre juntas, nas tristezas e alegrias. A
Gisele, por nossas conversas que amenizam momentos difceis. A Mrio e
Edson, meus amigos muito, muito amados. A Max Rocha. A Odilon Horta pelo
apoio durante o tempo em que trabalhamos juntos, perodo em que a maioria
dessas entrevistas foi realizada. Agradeo a Thelma pela amizade e por tantas
conversas incentivadoras. Ao jornalista Paulo Oliveira com quem aprendi
muito. A Erick Felinto, pelo apoio. Ao Frido, amigo, ainda que longe, bem longe,
mas sempre presente.
A Carlos Alberto, do Sindipetro-RJ, pela colaborao fundamental a este
trabalho, e ao fotgrafo e sempre parceiro Samuel Tosta, pelas fotos. As
muitssimo amadas, respeitadas e admiradas amigas do Grupo de Estudos
sobre Cotidiano, Educao e Culturas (Gecec) da PUC-Rio, em particular,
Professora Vera Candau pelo incentivo. uma honra estudar, duvidar, discutir,
escrever e partilhar sonhos com vocs. Aos professores do Departamento de
Educao da PUC-Rio, principalmente s professoras Zaia Brando, Roslia
Duarte, Snia Kramer e Isabel Lelis, pelo entusiasmo e incentivo. Agradeo
ainda ao meu adorado amigo e professor Leandro Konder. Agradeo aos
assessores de alguns entrevistados cuja colaborao foi fundamental para as
autorizaes das publicaes das entrevistas neste livro. Aos entrevistados que
dividiram comigo seu tempo, seus pensamentos e histrias. Agradeo
especialmente aos alunos dos olhos apaixonados que duvidam, criticam,
sugerem e tentam descobrir porque realmente querem escrever. Por fim,
agradeo imensamente ao jornalista Eugnio Bucci pelas sugestes e
conselhos. E, sem dvida, agradeo ao Hari, evidentemente.
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Para meus filhos Gabriela e Gregrio, com um amor sem centro, sem
bordas e infinito como o universo.
Para Nelson Guedes, pai de meus filhos e companheiro para sempre.
Para meu amado amigo Camillo, porque caminhamos sonhando.
"Escrever encontrar o movimento certo, a velocidade certa, uma
maneira de danar."
"Escrever a vida inteira o que nos ensina a escrever."
"No conseguimos escrever sem a fora do corpo. algo que
provavelmente tem a ver com amor." (Do filme Aquele amor, 2001)
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Sumrio
Apresentao Leandro Konder
Prefcio Eugnio Bucci
1. Antes das entrevistas
1.1. O sentido de nossa escrita
1.2. A entrevista (aproximaes e conceitos)
1.3. A construo receptiva da entrevista
1.4. A construo ativa da entrevista
1.5. O tempo e o texto (ou de jornalistas, abelhas, papagaios e flores)
1.6. Jornalismo e pesquisa
1.7. A procura do bom texto (Tiros em Columbine)
1.7.1. Dos acertos e dos erros
1.8. O texto do jornalista, o texto do pesquisador e o demnio da
perversidade
1.9. Sobre a palavra-flor que triste e sobre uma confisso
1.10. Das entrevistas que seguem
2. Notas gerais sobre entrevistas (ou 15 coisas que no podemos esquecer
quando entrevistamos)
1. Pergunte primeiro se pode...
2. Esteja informado sobre o entrevistado
3. Faa um roteiro
4. 1, 2, 3, testando...
5. Na dvida, senhor ou senhora
6. Oua de verdade
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7. No dispute com o entrevistado
8. No roube a idia de ningum
9. Reconhea o limite
10. Desconfie da memria
11. No invente ningum
12. Tenha paixo
13. Pergunte por ltimo...
14. Solte o fio
15. Escolha os temas e edite
15.1. Organize os eixos
15.2. Eleja o ttulo e olhos
15.3. Revise e publique
3. Entrevistas com...
Boaventura de Souza Santos (jan./2003)
Nota: O complexo de Patolino
Csar Benjamin (fev./2004)
Nota: A entrevista longa
Dilma Roussef e Jos Eduardo Dutra (jan./2003)
Nota: A entrevista coletiva
Diolinda Alves (mar./2004)
Nota: Planejar, perguntar e fotografar
Eduardo Moreira e Ins Peixoto (set./2003)
Nota: Entrevistar a quem amamos
Eugnio Bucci (nov./2002)
Nota: Pessoalmente ou por correio eletrnico?
Helosa Helena (fev./2004)
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Nota: Entrevistas por telefone
Joo Pedro Stdile (jan./2003)
Nota: Aprender com os erros
Leandro Konder (jan./2003)
Nota: Para concordar ou criticar
Leonardo Boff (1) (ago./1997)
Leonardo Boff(2)-(jan./2003)
Nota: Pautas diferentes para o mesmo entrevistado
Marcelo Gleiser (ago./2002)
Nota: Entrevista s vezes barro (porque s vezes vira outra coisa)
Marina Barbosa (nov./2005)
Nota: Quem so as fontes?
Muniz Sodr (set./2002
Nota: Pensar sobre a prpria prtica O papel da universidade
MV Bill (jul./2002)
Nota: Aceitamos todas as condies?
Nega Giza (mar./2004)
Nota: O complexo de pernalonga
Vito Giannotti (ago./2002)
Nota: Jornais sindicais e outros especficos Fazer sempre da melhor
maneira em qualquer veculo
Entrevista com M.A. (membro de grupo de extermnio)
Nota: O complexo de coiote
Metaentrevista com Muniz Sodr (set./2002)
Ultima nota: Perguntar como a criana pergunta pingue-pongue infinito
Referncias bibliogrficas
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Apresentao
A histria da nossa amizade comeou com o ingresso de Stela no curso
de mestrado em educao da PUC-Rio. Ela acompanhava as aulas e eu
acompanhava sua trajetria de crescimento.
Na hora do cafezinho, o papo corria solto, a gente trocava idias sobre o
Brasil, sobre o mundo e sobre os problemas da nossa frgil condio humana.
Foi a que eu comecei a me dar conta da fora da Stela, uma mulher que
cuidava da casa, dos filhos e, apesar das dificuldades "matando um leo por
dia" , a teimosa criatura conseguia cumprir as tarefas da ps-graduao. De
onde ela tirava a energia para as sucessivas batalhas acadmicas? difcil dizer.
Mas as metas foram alcanadas.
Fui defesa de tese, concluso do doutorado. Stela tinha investigado
como crianas pequenas viviam a participao nos rituais de candombl. E,
com a delicadeza que lhe peculiar, trouxe para o auditrio da PUC as famlias
humildes que a tinham ajudado durante a pesquisa. Acho que nunca o
auditrio Padre Anchieta ficou to simpaticamente colorido!
Paralelamente aos estudos universitrios, Stela trabalhava na esfera
sindical como jornalista e ainda como professora de jornalismo. As condies
da atividade profissional lhe permitiam participar sempre apaixonadamente
da vida poltica, fiel sua revolta contra as injustias sociais. E lhe
permitiam, tambm, dedicar-se ao ensino.
Para ser a excelente entrevistadora que ela , e para poder dar aos
estudantes as dicas que se encontram neste livro, Stela no perde contato com
a cultura, especialmente com a literatura e as artes. Para ensinar melhor, est
sempre aprendendo, lendo os seus escritores preferidos, tentando entender
melhor a realidade atual.
Parece que a minha querida amiga arranjou um jeito de reunir e cultivar
suas grandes paixes: a luta poltica, a educao, o jornalismo, a literatura e as
artes. O livro Sobre entrevistas revela isso.
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No sei o que pensam sobre Stela as pessoas que ela entrevistou.
Desconfio, porm, que no sou o nico entrevistado a dizer: a discreta e
competente entrevistadora deveria trocar de lugar comigo. Tive a impresso de
que me sentei do lado errado da mesa. Stela uma das pessoas mais
interessantes que conheo. Eu que devia entrevist-la.
Leandro Konder
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Prefcio
Do dever ao prazer
Tem a ver com treino, tem a ver com formao, tem a ver com a nossa
convico. O jornalismo, sendo uma funo social, um servio ao pblico,
sociedade, ao cidado, requer de seus praticantes que, antes de escrever,
pautar, editar, apurar ou veicular um texto jornalstico, pensem nos direitos,
nas necessidades e no interesse do leitor, do ouvinte, do telespectador, do
internauta, o nico destinatrio da notcia. As perguntas que a tudo precedem
dizem respeito ao cidado:
1) Ele tem o direito de receber esses dados, de tomar conhecimento de todos eles?
2) Ele precisa disso, mas precisa de fato, ou seja, a que necessidades relevantes desse
consumidor legtimo de notcias esse texto corresponde?
3) Ele vai querer ouvir, ver ou ler a reportagem, quer dizer, ele est devidamente
alertado para o fato de que precisa dessa reportagem e, portanto, vai formar a sua
vontade de conhec-la?
4) Ele tem conscincia da urgncia com que ele precisa tomar conhecimento do texto?
5) Ele vai desejar tomar (e no apenas querer) conhecimento dessa reportagem?
Essas perguntas merecem comentrios sucintos. Cada uma delas
sintetiza um crivo para separar a notcia relevante da notcia suprflua (a no-
notcia), ou o texto jornalstico que faz diferena daquele que poderia ser
deixado pra l. O bom texto jornalstico : 1) subordinado ao direito
informao; 2) necessrio; 3) percebido e reconhecido como necessrio; 4)
urgente; 5) dialoga de perto com o desejo daquele a quem se destina.
Vamos pensar um pouco mais sobre essas cinco perguntas. Comeando
pela primeira: "Por que o cidado tem o direito de receber os dados que a
reportagem vai tornar pblicos?" uma interrogao crucial. Se os dados que
so apresentados se baseiam em coleta ilegal de informao, como escutas
clandestinas, ou se eles resultam de uma invaso deliberada de privacidade,
ou, ainda, se eles resultam da leitura de documentos roubados, o pblico no
tem o direito de conhec-los. No tem, a no ser em situaes excepcionais e,
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destas, no o caso de tratar aqui. Antes de tudo, aquilo que se publica precisa
obrigatoriamente corresponder ao direito informao.
Este d o piso e o teto da informao publicada. A instituio da
imprensa tem o dever de buscar tudo aquilo que o pblico tem o direito de
saber e, no teto, no est autorizada a ir alm disso.
A segunda pergunta se refere, alm do direito, necessidade do leitor,
do ouvinte, do telespectador, do internauta. Um texto jornalstico que esteja
dentro do direito informao mas que seja absolutamente dispensvel para
aqueles a quem se destina, convenhamos, no merece ser publicado. O
jornalista um soldado das necessidades do seu pblico e a elas deve estar
atento a cada linha, a cada vrgula, a cada silncio. Exatamente disso decorre a
terceira interrogao: "Por que o pblico, seja ele um pblico amplo ou um
pblico especializado ou segmentado, vai formar a sua vontade na direo de
gastar o seu tempo e dedicar alguns minutos para entender a notcia que a ele
oferecida?" De nada adianta uma reportagem importantssima,
relevantssima, utilssima se desses superlativos todos o pblico no estiver
avisado. Ela ser ignoradssima. Uma boa matria capaz de proclamar, com a
devida clareza, a sua prpria relevncia. o seu senso de urgncia implcito.
O que nos conduz quarta interrogao: "Por que o pblico vai
entender que tomar conhecimento dessa reportagem uma necessidade
urgente?" Ou, em outros termos, como que o veculo que publica a
reportagem ou a entrevista saber deixar claro para o seu pblico que aquela
leitura no pode ser adiada por um segundo sequer?
O senso de urgncia, em jornalismo, tudo. Se voc escreve no jornal,
ou no site, ou no seu blog um contedo supostamente jornalstico e o seu
pblico conclui rapidamente que, bem, aquilo at que interessante, mas
poder esperar para ser lido mais tarde, mau sinal. Voc estar abastecendo o
criado mudo do seu cliente, ou estar contribuindo para o acervo de alguma
biblioteca, isso na melhor das hipteses, mas no estar oferecendo jornalismo
de verdade para a sociedade. O jornalismo ganha do tempo, vence a luta
contra o relgio, e isso tanto na hora da pauta como na hora da apurao, da
redao, da edio, da veiculao e da recepo. Se o seu pblico sente que a
sua entrevista pode ser lida depois, das duas uma: ou voc no foi competente
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para deixar ntida a urgncia daquela informao ou ela, de fato, poderia ter
sido publicada um pouco depois, com ganho de qualidade.
Por fim, o desejo. Ou, antes de tudo, o desejo. Explico-me: o desejo,
claro, vem antes do resto mas, aqui, para o mtodo dessa tal de profisso a que
se chamou jornalismo, ele o quinto critrio. No menor que os anteriores,
mas subordinado aos outros. Isto dito, vamos a ele. Uma grande pea
jornalstica desperta na sua audincia no apenas o convencimento racional
acerca de sua relevncia, de sua pertinncia, de sua urgncia, mas tambm
aciona o desejo da audincia. O desejo, como se sabe, diferente da vontade,
que passa pelos crivos da razo, do clculo, dos prs e contras. O desejo, no:
responde a demandas menos mediadas, mais profundas ou menos adestradas.
Quando o jornalismo alcana essa proeza ele consegue flertar com a dimenso
esttica que prpria da arte. Mas, bom que fique claro, em matria de
jornalismo, s o desejo no adianta nada.
O entretenimento, por exemplo, consegue dialogar com o desejo, dada a
sua natureza de arte industrializada, e nem por isso relevante, nem por isso
corresponde necessariamente ao direito informao, nem por isso urgente
e nem por isso conta com o convencimento racional do pblico sobre as suas
utilidades intrnsecas.
E o termo utilidade vem a calhar: ao contrrio da arte, o jornalismo tem
o dever de ser til; aquilo que ele diz precisa ser aplicvel vida prtica, da
culinria poltica.
S depois disso que o jornalista, ou a pessoa do jornalista, entra em
questo se que ele deve entrar em questo quando se trata de servir o
pblico. comum que um iniciante se pergunte, secretamente, achando que
ningum mais vai perceber: "Ser que com esse meu lead eu vou parecer
assim, avassaladoramente inteligente?"
Ou: "Esse texto aqui, ser que ele firma o meu estilo e vai me tornar mais
conhecido?" Tudo isso so armadilhas no caminho, armadilhas da vaidade que
mais atrapalham do que ajudam. Claro que a vaidade indissocivel dessa
profisso, mas ela deve ser enraizada no nos truques de estilo e sim naquilo
que essencial e urgente para o cidado. O jornalista vale menos pelo
penteado e vale mais pelo valor da informao que oferece. Talento
indispensvel, trabalho indispensvel, estilo ajuda quando natural; no
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jornalismo, a linguagem est a servio da rapidez, da clareza, do pblico. O
jornalismo pode ser um discurso e, de fato, um discurso mas no uma
arte, ainda que com ela possa abrir fronteiras.
Portanto, depois de assegurar-se que presta um servio para o pblico
que a personalidade, o iderio, as convices pessoais de cada um podem
entrar em cena.
fundamental, por certo, que o profissional no falseie a sua condio
pessoal, no permita que ela contamine a informao que, no custa repetir,
no pertence a ele mas ao pblico e que, portanto, deve chegar ao pblico sem
distores deliberadas ou involuntrias e no permita tambm que essa
condio, quando tiver alguma relao com o objeto da notcia, seja sonegada
ao pblico. Mais ainda, fundamental que ele atue com alma, com uma
dedicao apaixonada, ou no produzir nada que valha a pena. O dficit de
entusiasmo acabar deteriorando a qualidade do que se produz. E a que
entra, e entra muito bem, este livro da jornalista e professora Stela Guedes
Caputo. Ela ensina, com brilho, com fibra e fundamentao terica e prtica,
como o jornalista iniciante deve comear a longa trilha dessa modalidade vasta
e to rica que a entrevista.
Stela comea por uma pergunta: "Por que estou escrevendo isto?" O que
ela diz em seguida vital: "Quando encontro a resposta, recupero o sentido de
minha escrita".
Assim, deixo com ela a palavra a partir de agora. Stela comea onde eu
termino. Tratei, neste breve prefcio, de elencar as perguntas relativas aos
deveres do jornalista. Creio que eles podem servir como uma introduo a este
livro sobretudo porque Stela tratar bastante da realizao existencial do
jornalista, dos prazeres que a profisso pode reservar, da maneira como cada
um pode se jogar inteiro no que faz. O que ela discute, as suas proposies
polmicas e as suas confisses corajosas sabero conduzir o leitor, sobretudo o
estudante e o jovem profissional, por um caminho cheio de encantos e de
lies valiosas. Eu aprendi bastante com a leitura deste livro. Desejo o mesmo a
todos os que vierem depois de mim.
Eugnio Bucci
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Antes das entrevistas
Tenho lecionado a disciplina Tcnicas de Entrevista em cursos de
Jornalismo. Essa experincia vem sendo rica por vrios aspectos. Um deles
poder vivenciar a angstia dos alunos interessados em construir um bom texto.
Na verdade, digo a eles, esta angstia no nos abandona quando terminamos o
curso. Ela prpria deste ofcio e nos acompanhar durante toda profisso.
Mas, nessa angstia vivenciada em sala de aula que tento pensar em como
responder aos olhos inquietos de meus alunos.
Para o bem ou para o mal as frmulas podem at ajudar, mas no
resolvem. Sei apenas, e tambm digo a eles, que muitas pessoas (jornalistas,
pesquisadores e quem quer que resolva passar a vida escrevendo) o faro
como quem quebra pedras, arrancando as palavras de sua existncia e
cimentando-as como tijolos em paredes. Escrevero muros e no textos.
Escrevemos quando sentimos que passamos por uma experincia. A
construo de um texto uma experincia singular. Ao viv-la, escorre por
nossas mos o lugar de onde somos e o modo como olhamos o lugar em que
estamos. Deixamos no tecido do texto as fibras das nossas mos e de outras
que por nossas mos passaram.
Ao mesmo tempo, ao finalizarmos nosso trabalho e levantarmos os olhos
das telas de nossos micros, j no vemos o mundo como antes. porque
tambm somos transformados pela experincia de escrever, quando ela, de
fato, acontece.
Muniz Sodr define narrativa como "todo e qualquer discurso capaz de
evocar um mundo concebido como real, material e espiritual, situado em um
espao determinado" (Sodr, 1986, p. 11). O romance, diz este autor, o conto,
s vezes mesmo o poema, constituem formas diferentes de narrativa. Mas
Sodr tambm afirma que a narrativa no privilgio da arte ficcional, j que,
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para ele, quando o jornal dirio noticia um fato qualquer, como um
atropelamento, j traz a, em germe, uma narrativa.
Assim, Sodr entende a reportagem como um dos gneros jornalsticos e
como a forma-narrativa do veculo impresso. E essa forma narrativa do
veculo impresso que nos desafia cotidianamente. Os olhos dos alunos
interrogam e esperam ansiosos, papel na mo, por uma frmula.
E frmulas, repito, no resolvem porque no do conta do labirinto. Por
entender assim a narrativa que sempre inicio o curso de Tcnicas de
Entrevistas com a lenda grega de Teseu e o Minotauro. Foi principalmente para
estudantes de jornalismo que escrevi o que segue, mas escrevo tambm para
os que se aproximam da pesquisa e faro das entrevistas instrumentos para
seus trabalhos.
1.1. O sentido de nossa escrita
Esta narrativa recorda uma poca na qual a Grcia era dominada pela
ilha de Creta, e Atenas ainda no era uma poderosa Cidade-Estado. Diz a lenda
que os atenienses tremiam diante da simples meno de Creta e no era sem
motivo. A cada nove anos, o Rei Minos de Creta exigia dos atenienses um
imenso sacrifcio: sete jovens homens e sete jovens mulheres eram enviados
ilha para servir de alimento ao assustador Minotauro que habitava o centro de
um labirinto. Num determinado ano, o jovem Teseu est entre os que sero
sacrificados.
No banquete oferecido s vtimas, Teseu conhece Ariadne, filha do Rei
Minos, que fica encantada com aquele jovem corajoso. Ariadne quem fala a
Teseu sobre o complicado labirinto e de seus inmeros caminhos que
confundem os olhos e a mente da vtima que, desesperada, jamais encontra a
sada. Apaixonada, Ariadne d ao jovem um novelo de linha e, como se sabe,
graas a ele que Teseu consegue entrar no labirinto, se localizar dentro dele,
perceber os caminhos errados, matar o Minotauro e encontrar a sada.
Olhando a tela em branco de nossos micros, podemos nos sentir, alunos
e profissionais (por mais experientes), diante de um complicado labirinto. Pior,
o texto, em geral, vira um monstro pavoroso que ameaa nos devorar. Muitas
vezes sabemos como comear e terminar, mas o meio um tormento. Por
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outras, temos o meio na cabea, mas falta um bom "gancho" para iniciar e um
bom final para concluir. Para penetrar no labirinto de nosso texto e encontrar a
sada precisamos do precioso fio de Ariadne. Acredito que todo profissional
que trabalha com a escrita tenha seu prprio fio de Ariadne. O meu tem sido a
pergunta: "Por que estou escrevendo isto?"
Quando encontro a resposta, recupero o sentido de minha escrita.
Quando no encontro, me perco e sucumbo diante do Minotauro, ainda que
termine o texto. Ao fornecer o novelo a Teseu, Ariadne garantiu a este um
sentido, a direo para ir e vir. Acredito que saber por que escrevemos j
meio labirinto andado, mas no adianta saber por que escrevemos se, na
verdade, no conseguimos escrever. Alm de saber por que escrevemos
importa saber como escrevemos. Por fim, gostaria de ressaltar que Ariadne
salva Teseu porque estava apaixonada por ele. A paixo pode promover em ns
grandes movimentos. A paixo nos move, nos lana aos desafios, vida. E por
ser completamente apaixonada pelos temas dos quais falo aqui que entrevistei
estas pessoas. Na metaentrevista que fiz com o Professor Muniz Sodr,
publicada ao final desse livro, ele alerta que o fascnio pelo entrevistado pode
atrapalhar o entrevistador. O alerta vlido. H que se encontrar (ou pelo
menos tentar encontrar) serenidade e equilbrio para que nossas paixes no
embacem nosso olhar, nos paralisem ou nos destrambelhem. Isso para
qualquer tipo de paixo. Apesar disso, reafirmo: a paixo pelos temas e pelas
pessoas me move e me salva, como Teseu foi salvo do labirinto.
1.2. A entrevista (aproximaes e conceitos)
Uma das dvidas mais recorrentes de alunos sobre entrevistas.
Angustiam-se com sua organizao, com a abordagem do entrevistado, com o
momento da entrevista em si, com sua edio. A preocupao se justifica.
Tenho tentado entender o que a entrevista. Reuni algumas definies, mas
ainda assim no consigo reter seu significado. Isso terrvel porque sabemos
que os textos acadmicos trabalham com conceitos. Para no passar a
equivocada impresso de que desprezo os conceitos, selecionei algumas
tentativas de definio elaboradas por jornalistas e pesquisadores para nos
aproximarmos um pouco do que se tenta designar de "conceito" de entrevista.
Adianto que concordo com todos esses autores. Todos, de alguma forma,
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tentaram "cercar" o conceito, mas a palavra escapa. Por isso, sou levada a
acreditar que algumas palavras no se do aos cercados e fogem, escapando
fixao. Para Cremilda de Arajo Medina:
A entrevista, nas suas diferentes aplicaes, uma tcnica de interao social, de interpretao informativa, quebrando assim isolamentos grupais, individuais, sociais; pode tambm servir pluralizao de vozes e distribuio democrtica da informao. Em todos estes ou outros usos das Cincias Humanas, constitui sempre um meio cujo fim o inter-relacionamento humano (Medina, 2002, p. 8).
Se for considerada apenas uma tcnica eficiente para obter respostas
pr-pautadas por um questionrio, a entrevista no promover a comunicao
entre pessoas.
Esta, para Medina, s ser alcanada se a entrevista possibilitar o
dilogo. Esta autora acredita que quando o dilogo autntico acontece,
entrevistado e entrevistador saem alterados do encontro. Outra tentativa de
definio apresentada pelo jornalista Nilson Lage. Para ele:
A entrevista o procedimento clssico de apurao de informaes em
jornalismo. uma expanso da consulta, objetivando, geralmente, a coleta de interpretaes e a reconstituio de fatos (Lage, 2003, p. 73).
Lage considera a palavra entrevista ambgua significando, de acordo com
ele: a) qualquer procedimento de apurao junto a uma fonte capaz de
dilogo; b) uma conversa de durao varivel com personagem notvel ou
portador de conhecimentos ou informaes de interesses para o pblico; c) a
matria publicada com as informaes colhidas em (b).
Quando se refere a perfil, o jornalista Muniz Sodr acaba cercando um
pouco do que percebe como entrevista:
Em jornalismo, perfil significa enfoque na pessoa seja uma celebridade, seja um tipo popular, mas sempre o focalizado o protagonista de uma histria: sua prpria vida. Diante desse heri (ou anti-heri), o reprter tem, via de regra, dois tipos de comportamento: ou mantm-se distante, deixando que o focalizado se pronuncie, ou compartilha com ele um determinado momento e passa ao leitor essa experincia (Sodr, 1986, p. 126).
-
Sodr define o primeiro caso descrito como entrevista clssica, que no
exige necessariamente o contato pessoal. Pode ser feita, diz Sodr, por
telefone ou por escrito. Sobre o resultado obtido neste contato diz o autor:
O texto consiste numa apresentao sumria, feita de dados referenciais,
seguida de perguntas e respostas. Na maioria dos casos, termina com a palavra
do entrevistado. s vezes, porm, h um pequeno fecho, ligeiramente
pronunciante, mas de um modo geral distanciado (Sodr, 1986, p. 126).
Em uma palestra proferida em novembro de 2000, durante um dos
cursos de Imprensa Sindical promovido pelo Ncleo Piratininga de
Comunicao, o jornalista Ricardo Kotscho disse no saber se a entrevista
uma tcnica ou uma arte. Sei, disse ele, "que a entrevista apenas um
instrumento bsico de trabalho, que, alis, utilizo com muita dificuldade.
Sempre tive pavor de conversar com estranhos e, mais ainda, de parecer
xereta, inoportuno, inconveniente. Quer dizer, poderia ser tudo na vida, menos
reprter", brincou Kotscho.
Tcnica, procedimento, instrumento, arte, dilogo? Podemos refletir
sobre as breves anlises aqui apresentadas. Sem dvida, essas tentativas de
aproximaes so importantes e fazem com que ns jornalistas ao menos nos
questionemos sobre o significado de uma prtica que nos cotidiana.
Quanto a mim, penso que a entrevista uma aproximao que o
jornalista, o pesquisador (ou outro profissional) faz, em uma dada realidade, a
partir de um determinado assunto e tambm a partir de seu prprio olhar,
utilizando como instrumento perguntas dirigidas a um ou mais indivduos. Mas
s isso? Talvez no. Ento aqui, outra vez, a palavra escapa, no consigo
aprision-la em um conceito. Fico feliz por isso. Palavras fogem porque se do
liberdade. O que sinto, e apenas sinto, que, quando o jornalista realiza bem
essa aproximao, a entrevista se torna uma experincia. Uma experincia de
olhar o mundo e ouvir o outro.
por isso que a entrevista, pelo menos para mim, o que existe de
melhor no jornalismo e na pesquisa. Ouvindo o que Alfredo Bosi diz sobre o
olhar refleti sobre duas formas de construir essa aproximao. Mas ouamos
primeiro o que sugere esse autor sobre o olhar-conhecimento. De acordo com
ele, os gregos e os romanos pensaram em duas dimenses axiais do olhar: o
olhar receptivo e o olhar ativo. Bosi diz que o olho, fronteira mvel e aberta
-
entre o mundo externo e o sujeito, tanto recebe estmulos luminosos, logo
pode ver, ainda que involuntariamente, quanto se move procura de alguma
coisa, que o sujeito ir distinguir, conhecer ou reconhecer, recortar do contnuo
das imagens, medir, caracterizar, interpretar, em suma, pensar.
H um ver-por-ver, sem o ato intencional do olhar; e h um ver como
resultado obtido a partir de um olhar ativo. No primeiro caso, o cego, curado
de sua doena, poder dizer: "Estou vendo!" No segundo, a pessoa dotada de
viso, depois de olhar atentamente para o cu, exclamar: "Finalmente
consegui ver a constelao do Cruzeiro" (Bosi, in Novaes, 1988, p. 66).
Se, como nos diz Bosi, podemos distinguir duas maneiras de olhar, um
olhar receptivo e um olhar ativo, podemos nos relacionar com o ofcio de
entrevistar tambm de duas maneiras: uma receptiva e outra ativa.
1.3. A construo receptiva da entrevista
Como jornalistas, durante toda nossa vida profissional, recebemos e
sugerimos inmeras pautas e comearei conversando sobre as pautas que
recebemos. Na verdade, esse um dos aspectos fascinantes da profisso. Ou
seja, chegar ao jornal ou revista em que se trabalha sem a menor idia do que
o chefe de reportagem tem para voc e fazer, no mesmo dia, duas ou trs
pautas completamente diferentes. esta situao que chamo de construo
receptiva das entrevistas e, conseqentemente, das matrias que escrevemos.
A pauta vem para o jornalista e ela acontece sempre de segunda mo. Assunto,
fontes, pesquisas so sugeridas pelo editor, pelo chefe de reportagem, por
colegas de redao.
Ouvimos ou lemos atentamente a pauta e seguimos em busca de nossas
matrias. Mas, se quiser fazer boas entrevistas e reportagens, o jornalista, to
logo receba sua pauta, deve sair imediatamente da construo receptiva e
assumir a construo ativa. Do contrrio, estar tomando o cmodo caminho
da passividade. Falo ento aqui de uma construo ativa assumida a partir da
construo receptiva. Vou dar um exemplo. Certa vez, o jornalista Paulo
Oliveira, editor do jornal em que trabalhava, me deu a seguinte pauta:
fazer um levantamento dos terreiros de candombl ou umbanda na Baixada
Fluminense. Eu deveria levantar nomes, casas, etc. Ao chegar no primeiro
-
terreiro indicado por uma fonte me deparei com crianas que exerciam
diversas funes neste ritual e se preparavam para receber orixs.
Evidentemente toda pauta mudou e a matria foi publicada com o
ttulo: "Os netos de santo". O que fiz nesse exemplo foi sair da construo
receptiva para a construo ativa. Fazemos isso estando atentos s mudanas
que a realidade nos sugere ou nos impe. No tenho nada contra a construo
receptiva das entrevistas e matrias, muito pelo contrrio, e falarei de sua
importncia daqui a pouco. Um jornal no sobrevive sem isso. Afinal, em tese,
todo jornalista deve ser capaz de receber uma pauta e dar conta dela. Mas o
que chamo de construo ativa da entrevista e da matria que penso que todo
jornalista deve buscar.
1.4. A construo ativa da entrevista
A construo ativa de uma grande entrevista ou de pequenas entrevistas
para a elaborao de uma matria, parte do jornalista. Ele pega o fio de
Ariadne: "Por que estou escrevendo isso?" do qual falei anteriormente ,
mas j se perguntou antes: "Sobre o que julgo importante escrever?" Pergunta
sempre: "O que me incomoda na realidade que vejo?" "O que me
desassossega?" Somente dessa forma o jornalista conseguir distinguir o modo
como percebe a realidade: entre olh-la simplesmente e, portanto, apenas
receb-la e v-la ativamente e, portanto, busc-la.
Essa atitude do jornalista no surge do alm. Ela no brota
espontaneamente porque tambm uma construo. E como construmos
esse olhar, essa aproximao? Construmos socialmente. O jornalista uma
pessoa com opes ideolgicas que vo sendo construdas aos poucos e isso,
claro, no acontece apenas com jornalistas. Um advogado, por exemplo. Sua
vida profissional est construda a partir de suas escolhas ideolgicas. o modo
como o advogado percebe a realidade que definir se num caso de uma
ocupao de terras ele ficar do lado do proprietrio ou do lado dos ocupantes.
Da mesma forma, so as construes ideolgicas do jornalista que
atravessaro ou conduziro sua abordagem na matria sobre essa mesma
ocupao. preciso reconhecer essa construo ideolgica para que no se
-
caia na hipocrisia da neutralidade. Porque neutralidade no h. O que existe
a sociedade com todas as suas contradies.
Algumas contradies se conciliam, outras so irreconciliveis. So
tenses permanentes, de classe, culturais, sociais. Ao escrever nos colocamos
sempre de um lado ou de outro, ainda que neguemos. sobre essa sociedade
que escrevemos a partir do ponto de vista que construmos.
Deixemos que a revista Veja nos fale um pouco sobre o que estou
discutindo. A capa da edio 1648, de 10 de maio de 2000, traz uma bandeira
do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e a seguinte
manchete: "A Ttica da Baderna O MST usa o pretexto da reforma agrria
para pregar a revoluo socialista". Na p. 42, Veja abre a matria com o
seguinte ttulo: "Sem terra e sem lei". Na p. 44 lemos o seguinte trecho: "Numa
palavra, o MST no quer mais terra. O movimento quer toda terra, quer tomar
o poder no pas por meio da revoluo e, feito isso, implantar por aqui um
socialismo tardio, onze anos depois da queda do Muro de Berlim, num
momento em que Cuba e Coria do Norte so praticamente o que resta de
modelos a imitar nessa rea". A matria refere-se s ocupaes de prdios
pblicos promovidas pelo MST nessa poca. Vrias manifestaes foram
promovidas em todo Brasil e, no Paran, o sem-terra Antnio Pereira foi
assassinado.
Um jornalista assina a matria e, ao final, indica que seu texto foi
produzido com reportagem de mais seis jornalistas. O que podemos com toda
certeza garantir que nenhum, absolutamente nenhum desses sete
profissionais foi neutro ou isento ou imparcial. O texto inegavelmente ataca o
MST. Um jornalista com convices distintas escreveria uma reportagem
completamente oposta a esta. Diferente da revista Veja e outros veculos, h
jornalistas que respeitam o MST quando o movimento diz que "ocupa" terras e
prdios pblicos, j que "ocupar" e "invadir" so conceitos polticos
absolutamente distintos. Esse jornalista acredita nisso e ficar indignado com a
morte de Antnio Pereira, o sem-terra assassinado. Cada letra que digitar
nascer dessa indignao e espiar comprometida com ela. Mas no s isso.
O jornalista tambm se confronta com as opes fechadas pela estratgia
poltica do veculo em que trabalha, com o conjunto de opes que o veculo
faz sobre seu prprio discurso e com a paisagem mais geral ideolgica em que
-
os debates se movem. So tenses com as quais o jornalista lida diariamente e
que podem comprometer sim a objetividade de uma matria.
Se quiserem procurar ser o mais objetivos possvel, os jornalistas (neste
caso, tanto os que so favorveis ou contrrios ao MST) podem, como
recomenda Bucci, buscar o equilbrio.
[...] No se pode pretender que todos os que cubram assuntos religiosos sejam indiferentes s manifestaes da f. No faz sentido. Como seria o jornalismo se todos os que falassem de futebol no apreciassem a arte dos craques, se todos os que cobrissem a rea poltica defendessem a absteno sistemtica em todas as eleies, se todos os que fotografassem moda considerassem todos os desfiles uma celebrao de futilidade e se todos os que escrevessem sobre religio fossem ateus resolutos? O ideal tico para superar esses dilemas de conscincia requer a derrubada da impostura da neutralidade e, em lugar dela, a busca de um equilbrio, de uma pacificao entre as convices e crenas pessoais do jornalista e o nvel de objetividade requerido pelo pblico. Do encontro desse equilbrio depende a condio de dilogo do jornalista (e do veculo) com seu pblico. Em outras palavras, a legitimidade do jornalista como narrador dos fatos sociais depende tambm do encontro desse equilbrio (Bucci, 2002, p. 101).
Trata-se de uma recomendao que deve ser constantemente lembrada.
Contudo, acredito que para as grandes questes (chamo de grandes questes
todo e qualquer tema que envolva grandes conflitos de interesses entre classes
e culturas), o equilbrio, por mais que o jornalista o busque, tomba. E tomba
para o lado do poder com o qual estiver afinado o veculo em que o jornalista
estiver trabalhando.
Deixando por aqui a discusso sobre as duas maneiras ou caminhos para
se construir nossas entrevistas, gostaria de dizer ainda o seguinte: para
construir ativamente nossa prtica jornalstica temos de aprender primeiro a
construir nossa recepo. Sem a construo receptiva, a construo ativa no
existe. Se no soubermos receber o que a vida nos mostra, se no nos
impregnarmos de vida enquanto vivemos/escrevemos, matamos nossa escrita
e nosso corpo torna-se apenas uma casca, um invlucro para nosso texto
morto.
-
1.5. O tempo e o texto (ou de jornalistas, abelhas, papagaios e
flores)
Dizia Marx que uma aranha executa operaes semelhantes s do
tecelo, e a abelha envergonha mais de um arquiteto humano com a
construo dos favos de suas colmias. Contudo, para este filsofo, algo
fundamental distinguia o pior arquiteto da melhor abelha. "[...] que ele [o
arquiteto] construiu o favo em sua cabea, antes de constru-lo em cera. No fim
do processo de trabalho obtm-se um resultado que j no incio deste exigiu a
imaginao do trabalhador" (Marx, Karl. O capital. Vol. 1, p. 149 e 150). A casa
imaginada percorre o corpo do arquiteto at constituir-se na casa real.
Podemos perguntar com Marx o seguinte: "Qual a diferena entre o pior
jornalista e o melhor dos papagaios?" Tambm o jornalista imagina seu
trabalho, sua ao, sua escrita e sua fala, rompendo assim com o no-texto. Se
no quiser ser apenas um repetidor (escrevendo ou falando), um tagarela sem
sentido algum para si mesmo, o jornalista precisa deixar de ser um papagaio,
por melhor performance que o papagaio consiga atingir e, por isso, agradar.
O jornalista sempre corre contra o relgio. O tempo acaba sendo um dos
nossos grandes inimigos. Pressionados, perdemos o que no podemos perder,
perdemos a relao com o texto. Ele nasce simultaneamente na nossa cabea e
na ponta de nossos dedos e, mal nasce, j morre, porque o esmagamos contra
o teclado. O no-texto comea assim, quando somos abelhas construindo
mecanicamente uma colmia ou meros papagaios repetindo sem pensar.
Se tivermos um pouco mais de tempo para conviver com o texto que
ainda est em ns, a sim recuperamos no s o sentido, mas tambm o prazer
da escrita que no acontece s no teclado. A escrita acontece o tempo todo e
no cessa de acontecer. Em alguns momentos, o assunto se impe to
fortemente que tudo parece ficar em cmera lenta e o tempo se torna
diferente aos nossos olhos. Fotografamos, sem a mquina fotogrfica, imagens
que se sobrepem ao longo de um dia. Se piscarmos lentamente a imagem
gravada e essa escrita de luz fotogrfica vai acontecendo em nosso corpo onde
quer que estejamos.
O texto segue ento conosco e excelente companhia. Atravessando a
rua, conversando com os amigos, no cinema ou participando de uma reunio,
sentimos uma palavra estalar na boca, colhemos uma inteno. H temas que
KelAceito
-
nos plantam perguntas que crescem em nosso corpo e espalham-se como
galhos floridos de manac abrindo flores brancas e lilases perfumadas por
nossa pele. So palavras-flor alegres. Contudo, dependendo do assunto, podem
nos crescer por dentro palavras-flor tristes sobre as quais falarei mais tarde.
1.6. Jornalismo e pesquisa
Alm de jornalista, sou pesquisadora. Portanto, convivo com entrevistas,
tanto no jornalismo como nos tipos de pesquisas que venho desenvolvendo.
Jornalistas e pesquisadores realizam entrevistas da mesma forma? No. No
realizam. So funes diferentes para objetivos distintos. Acredito, porm, que
um ofcio pode contribuir muito com o outro se olhados criticamente. Vejamos
ento como o socilogo francs Pierre Bourdieu critica nossa profisso:
Os jornalistas, submetidos s exigncias que as presses ou as censuras de poderes internos e externos fazem pesar sobre eles, e, sobretudo a concorrncia, portanto a urgncia, que jamais favoreceu a reflexo, propem muitas vezes, sobre os problemas mais candentes, descries e anlises apressadas, e amide imprudentes; e o efeito que produzem, tanto no universo intelectual como no universo poltico, ainda mais pernicioso, s vezes, porque esto em condio de se fazer valer mutuamente e de controlar a circulao dos discursos concorrentes, como os da cincia social (Bourdieu, 1997, p. 733).
A obsesso com o furo, a tendncia a privilegiar sem discusso a
informao mais recente so outras das inmeras crticas que Bourdieu faz aos
jornalistas. Concordar com elas uma forma de nos autocriticarmos e de
melhorar nossa atuao. Gostaria de discutir um exemplo atravs de uma
fotografia publicada no jornal O Dia em 1993. Sugiro imaginarmos a postura de
um jornalista e de um pesquisador diante da mesma imagem.
A foto mostra um grupo de garotos em torno de um corpo tambm de
um menino, morto no cho. Os meninos riem. O jornalista, pressionado pela
urgncia e pela obsesso com o furo (do qual nos fala Bourdieu), percebe o real
com extrema rapidez e publica a foto no dia seguinte. Seu texto apressado
certamente enfatizar a banalizao da violncia. O pesquisador, se estiver
preocupado com as tenses do real, e avisado das interferncias que, por
exemplo, a mquina do fotgrafo pode provocar no real observado, se
-
perguntar: "As crianas riem do corpo morto no cho ou para a mquina do
fotgrafo?"
Bourdieu chama de violncia simblica1 tudo que pode afetar e distorcer
as respostas em uma entrevista. O gravador pode mudar o comportamento do
entrevistado que pode, por exemplo, omitir informaes fundamentais pelo
fato de saber que o que diz est sendo gravado. Por outro lado, existem
pessoas que s falam na "presena" do gravador. Certa vez perdi uma
entrevista importante com uma atriz porque estava sem gravador. Disse-me
ela: "Vocs j distorcem tudo o que falamos quando gravam o que dizemos,
imagina se no gravarem". Isso mostra o quanto de credibilidade tem nossa
profisso.
Tanto a mquina fotogrfica como o gravador podem causar timidez em
uns, exibicionismo em outros. Bourdieu tambm nos chama a ateno para os
sinais de feedback que pesquisadores fornecem ao entrevistado aprovando
suas respostas. Alerta o socilogo que essas trocas chegam ao ponto de
qualquer distrao do olhar do entrevistador ser suficiente para causar
embarao no entrevistado. Por outro lado, sinais de desaprovao emitidos
tambm pelo entrevistador podem mudar o rumo das respostas de nossos
interlocutores. Este autor tambm enfatiza que o pesquisador deve esforar-se
ao mximo para "dominar os efeitos (sem pretender anul-los); quer dizer,
mais precisamente, para reduzir ao mximo a violncia simblica que se pode
exercer atravs deles" (1997, p. 695).
Assim, me permito interpretar bastante livremente essa fala de
Bourdieu. Ao dizer que o pesquisador deve esforar-se ao mximo para
"dominar os efeitos da violncia simblica sem, no entanto, pretender anul-
los", Bourdieu sinaliza que tambm o pesquisador por mais prevenido, por
mais consciente, por mais isento que procure ser, no consegue deixar, muitas
vezes, de agir como um laboratorista que revela uma foto. Tambm o
pesquisador lana luz no que julga por bem iluminar e deixa no escuro o que
no pretende expor.
Bourdieu critica os jornalistas no porque despreza nossa profisso, pelo
contrrio, ele sabe do papel que temos na sociedade e por isso nos adverte
1 O conceito de violncia simblica um conceito muito mais amplo e complexo. Estou utilizando-o aqui dentro de alguns limites apenas para nos ajudar a fazer a discusso pretendida.
-
tanto. Uma de suas crticas mais severas refere-se ao que chama de viso des-
historicizada e des-historicizante, atomizada e atomizante do jornalista. Ou
seja, ao fazer uma matria sobre uma ocupao de terras, pouco interessa
maioria dos jornalistas a histria da formao dos grandes latifndios em nosso
pas. O jornalista costuma arrancar o fato da histria e tom-lo como apenas
um fragmento. Ocupaes, violncia, aumento da criminalidade, corrupo
descolados da histria so escritos e lidos como fenmenos naturais como
furaces, terremotos ou maremotos. Em geral os manuais de redao se
baseiam na legislao vigente para definir, por exemplo, como iro se referir a
acontecimentos que envolvam propriedades de terra. No podemos esquecer,
contudo, a histria da construo das prprias legislaes. O que legal nem
sempre justo em nossa sociedade.
Para Bourdieu, justamente os socilogos podem fornecer aos jornalistas,
lcidos e crticos, "os instrumentos de conhecimento e de compreenso,
eventualmente at de ao, que lhes permitiriam trabalhar com alguma
eficcia para controlar as foras econmicas e sociais que pesam sobre eles
prprios" (1998, p. 108 e 109). Bourdieu se referiu aos socilogos
especificamente, mas acredito que sua insistncia sinalizava para a necessidade
do jornalista aprender com a pesquisa, em diversas reas do conhecimento, a
no mutilar o fato observado de seu contexto, de sua histria. Outros
profissionais lcidos e crticos podem nos ensinar essa importante lio. Alguns
cineastas, por exemplo.
1.7. A procura do bom texto (Tiros em Columbine)
Na verdade, ao escrever essa reflexo me dou conta do seguinte:
afirmar que para escrever nossos textos no precisamos sofrer, no significa
dizer que escrever no seja um ato complexo. Muito pelo contrrio, sim,
principalmente se, como vimos, precisamos ter ateno em tantas coisas. E
tanto esforo para qu? Para conseguirmos um bom texto, nele deixarmos
nosso sentido e informar a sociedade.
Julguei que talvez fosse interessante trazer um exemplo do que
considero um bom texto para que perguntemos juntos: Por que este um bom
texto? Pensei em alguns excelentes exemplos. Felizmente h vrios jornalistas
-
e pesquisadores escrevendo muito bem. Mas o que eu queria mesmo era
poder mostrar a construo dessa escrita ainda que refletssemos sobre um
texto que no estivesse impresso em jornal, revista ou livro, ainda que
falssemos de um texto escrito com entrevistas e imagens para a tela grande
do cinema.
Cheguei ento ao documentrio escrito, dirigido e produzido pelo
cineasta americano Michael Moore, Tiros em Columbine (2002). Convido a
todos agora para uma discusso um pouco mais demorada sobre essa obra, um
exemplo para verificarmos que combinar jornalismo e pesquisa d muito
trabalho. Mas j adianto: tambm acho que Moore erra e muito, e
justamente por isso que o discutiremos aqui.
O fato: no dia 20 de abril de 1999, os adolescentes americanos Eric
Harris e Dylan Klebold mataram 12 colegas e um professor da Escola
Columbine, localizada em Littleton, Colorado, nos EUA. A tragdia aconteceu
na prpria escola onde os adolescentes tambm estudavam. Eric e Dylan se
suicidaram aps a chacina. Evidentemente os jornais tiveram um prato cheio
para muitas reportagens durante um bom tempo. O que fez Michael Moore?
Simplesmente no des-historicizou Columbine. Ou seja, no tratou a tragdia
como um acontecimento natural. No descolou Columbine de sua totalidade.
Isso bem diferente das anorxicas pesquisas freqentemente realizadas por
jornalistas.
Mais que mostrar a tragdia (perguntando apenas O que ?" Ou "O que
foi?"), Tiros em Columbine se pergunta: "Por que a tragdia aconteceu?" E
"Como continua acontecendo?"
bvio que o cineasta aponta a responsabilidade para a sociedade
americana, mas tambm no faz s isso. Ele quer realmente saber: "por que a
culpa da sociedade?"
Como ele faz isso a verdadeira preciosidade do filme. Moore
simplesmente nos mostra que para se fazer o bom jornalismo (e at bons
filmes e programas de TV), alm de boa pesquisa, preciso ter verdadeiras
questes. Um fato, ao acontecer, est impregnado de questes e levantar suas
camadas para pouco a pouco descobrir novas tenses e contradies o que
garante a relevncia dos nossos ofcios de jornalistas e pesquisadores, de
-
cineastas e dramaturgos, enfim, de quem trabalha com textos nas mais
diferenciadas reas com os mais diferentes objetivos.
A impresso que fica que Moore cercou o fato por todos os lados e
trabalhou incansavelmente para obter uma resposta. No entanto, cada dado
obtido era confrontado com novos problemas e novas entrevistas. Impressiona
a honestidade de suas perguntas. A Lockheed Martin a maior fabricante de
armamentos do mundo, tem fbricas perto ou dentro de Littleton, onde
aconteceu a tragdia e emprega muitos de seus habitantes. Moore perguntou
ao relaes pblicas da fbrica: "Ento no acha que as crianas vendo seus
pais indo todo dia para o trabalho no pensam: Poxa meu pai constri msseis,
que so armas de destruio em massa. Qual a diferena entre essas armas de
destruio em massa e as que fizeram o massacre em Columbine?"
Obviamente o relaes pblicas no v relao alguma.
Vejamos outras questes levantadas pelo cineasta. Ser que tragdias
como essa acontecem porque os americanos vem muitos filmes violentos? Ou
porque jogam videogames violentos? Ou ser a ruptura da famlia? Ou ainda
porque a histria dos EUA uma histria violenta? Ser talvez porque os
americanos amam as armas e esto armados at os dentes? Ser a pobreza?
Podemos nos agarrar a qualquer uma dessas hipteses, mas se quisermos
problematizar de verdade iremos confront-las: o cineasta revela, por exemplo,
que h mais lares desfeitos e divrcios na Gr-Bretanha do que nos EUA. No
Canad, os adolescentes esperam ansiosamente por todo lanamento de
qualquer filme americano violento. Da mesma forma, jogam games escabrosos
e sanguinolentos e o nmero de desempregados no Canad duas vezes maior
que nos EUA.
Pases com histria de violncia so apontados por Moore: a Alemanha
exterminou 12 milhes de pessoas, a ocupao japonesa na China, o massacre
francs em Argel, o massacre ingls na ndia. E o amor pelas armas? O povo do
Canad tambm apaixonado por armas. De acordo com o documentrio, o
Canad possui uma populao de aproximadamente 30 milhes de pessoas,
com cerca de 10 milhes de famlias que possuem sete milhes de armas.
Apesar de tudo isso, quantos so assassinados em um ano? Na Alemanha, 381;
na Frana, 255; no Canad, 165; no Reino Unido, 68; na Austrlia, 65; no Japo,
39; e, nos EUA, 11.127 pessoas.
-
O que h de to diferente nos americanos? Em um certo momento de
seu documentrio, Moore faz essa pergunta conjuntamente com o pai de uma
das vtimas de Columbine.
O pai honestamente se questiona: "Somos homicidas por natureza?
Vimos que no Canad crianas e jovens vem filmes violentos e tambm no
rezam nas escolas". A resposta encontrada por Moore a seguinte: s nos EUA
a populao cotidianamente estimulada pelo governo e pela mdia a ter
medo uns dos outros. Moore menciona o programa sensacionalista Cops e
telejornais tradicionais; nesses, h sempre algo "ameaando" a Amrica, desde
terroristas at abelhas assassinas. Ao conversar com o produtor de Cops, Dick
Heran, o documentarista pergunta por que Heran no produz um programa
sobre as causas da violncia, em vez de retratar apenas os criminosos (quase
sempre negros). A resposta bvia e triste: a audincia no seria to boa. Mas
ser que isso uma verdade eterna?
Moore verificou pessoalmente que os canadenses, embora armados,
no trancam as portas de suas casas porque, revelam as entrevistas, "no
querem se sentir presos" e, diferente dos americanos, "no sentem medo dos
vizinhos". A diferena entre a populao armada do Canad e a populao
armada dos EUA que a primeira est apenas armada e a segunda, armada e
assustada. Os americanos vivem em uma cultura regida pelo medo e ergueram
uma sociedade assustada e paranica.
Enquanto o cineasta americano constri seu filme, outra tragdia
acontece. Na Escola Buell, em Flint, Michigan, um menino de seis anos mata
sua colega de turma, Kayla Rolland, tambm de 6 anos. De novo, os jornalistas
chegam rapidamente. Propositadamente Moore os filma preocupados com o
penteado pouco antes de iniciarem a gravao de suas transmisses onde
aparecero abalados e tristes. Em seguida, encerrada a transmisso, falaro de
laque e cabelos mais uma vez e iro embora. Moore critica os jornalistas
dizendo que se tivessem um pouco de interesse andariam mais duas quadras e
chegariam at a General Motors, maior indstria do mundo abrigada por
aquela cidade. Apesar disso, a regio de Flint est ignorada e destruda, com
87% dos alunos vivendo abaixo do nvel oficial de pobreza. Flint, portanto, no
se encaixa na imagem propagada pela mdia da invencvel economia
americana. Da mesma forma, no basta chegar at Tamarla Owens, me do
-
menino que matou a menina. Importa saber como sua histria nos ajuda a
entender o que aconteceu.
O documentrio revela que, para alimentar os filhos, Tamarla era
obrigada a trabalhar para o Programa Social do Estado. Moore afirma que esse
programa foi to eficiente em livrar a Previdncia dos pobres que seu criador,
Gerald Miller, foi contratado pela maior firma do pas, a responsvel pela
privatizao das estatais.
E que firma era essa? A Lockheed Martin, lembram? A maior fabricante
mundial de armamentos. Sem a guerra-fria e sem inimigos para apavorar, diz
Moore, a tal fbrica encontrou um meio de lucrar com o medo das pessoas
usando um inimigo mais prximo: mes negras e pobres como Tamarla Owens
que, apesar de ter dois empregos e trabalhar 70 horas por semana, no
conseguia pagar aluguel e, por isso, foi despejada. Por ter sido despejada, ela
deixa o filho na casa de um irmo e desta casa que o garoto pega a arma que
matou a colega.
Tamarla viaja uma hora e meia at o shopping onde trabalha. Um de
seus empregos no restaurante do cone americano Dirk Clark, apresentador
do programa American Band-stand. O restaurante de Dirk pediu deduo de
impostos por empregar pessoas do programa social, como Tamarla, que no
viu o filho pegar a arma porque estava em um nibus do Estado indo servir
drinques e vender doces para ricos. Moore tenta entrevistar Dirk Clark e
pergunta a ele como se sente com essa situao. O astro o ignora e o deixa
falando sozinho.
Por fim, o cineasta entrevista outra estrela hollywoodiana, Charlton
Heston, que tambm presidente da Associao Nacional de Rifles (ANR).
Ressalto, mais uma vez, a honestidade das perguntas de Moore. Heston esteve
tanto em Littleton como em Flint logo depois dos crimes para promover a
posse de armas entre os moradores daquelas localidades. Moore pergunta a
Heston se ele tem armas em casa. O ator responde que sim, possui armas
carregadas em casa. Moore pergunta: Por qu? Heston diz que para se
proteger. O cineasta pergunta se seu entrevistado j fora vtima de algum
crime. Ele diz que no. Moore insiste: "Nunca foi agredido? Nunca sofreu
violncia?" Heston responde que no. "Por que ento precisa se proteger?",
pergunta Moore. Heston diz que no precisa. Moore revela a Heston alguns
-
dados de assassinatos em outros pases, como o Canad. Heston vai ficando
visivelmente constrangido, esfrega as mos, ameaa levantar, deixa escapar
uma face tensa, muito tensa.
Heston deixa ainda transparecer seu racismo em duas respostas. Uma
delas quando diz que apenas segue o exemplo dos nobres brancos que
fundaram seu pas e, em uma outra, usa como justificativa para a violncia
americana "questes tnicas". Finalmente Moore pergunta por que Heston
esteve em Littleton e em Flint logo depois das tragdias e sugere que ele se
desculpe com os moradores daquelas cidades. o limite para Heston que
abandona o local da entrevista e tambm deixa Moore falando sozinho. O
ltimo gesto do cineasta pedir que Heston olhe para a foto de Kayla, a
menina assassinada em Flint. Heston ignora e Moore deixa a foto de Kayla em
uma pilastra da manso do ator.
Moore nos ensina de incontveis maneiras. Um detalhe importante: o
cineasta americano nos mostrou tambm que para construir um bom texto
preciso banir a preguia. Assistindo ao filme nos perguntamos se houve algum
que ele deixou de ouvir, algum lugar onde precisasse ir e no foi, alguma coisa
que precisasse fazer e no fez. A resposta no. O filme no deixa a histria de
lado e a resgata atravs da animao Uma breve histria da Amrica , a
formao dos EUA passando pela escravido, pela Ku-Klux-Klan at chegar ao
medo que sempre dominou e continua dominando aquele pas.
Moore apresenta ainda uma montagem com vrios crimes cometidos
pelo governo americano. A lista comea com o ano de 1953 quando os EUA
derrubam o primeiro-ministro do Ir e colocam em seu lugar Shah, como
ditador, passa pelo 11 de setembro de 1973, quando os EUA armam o golpe de
Estado no Chile e o assassinato do Presidente Salvador Allende. O ditador
Augusto Pinochet assume e 5 mil chilenos so assassinados. Outra data
mencionada o ano de 1980 quando os EUA treinam Bin Laden e terroristas
para matar soviticos. A CIA d a eles US$ 3 bilhes. A relao longa e
termina com o 11 de setembro de 2001, quando Osama Bin Laden mata trs
mil pessoas nos EUA com tcnicas da CIA.
Vimos que podemos fazer textos todos os dias, mas para fazer um bom
texto preciso sim muito trabalho e dedicao. Se tivermos xito,
conseguiremos mais que informar a sociedade, conseguiremos fazer com que
-
toda sociedade se questione junto conosco. Isso sim fundamental. Se para
isso for necessrio construir um outro tipo de jornalismo, que faamos um
novo.
1.7.1. Dos acertos e dos erros
O documentrio sobre o qual falei mais pausadamente nos ajuda a
refletir em vrios aspectos. Alm de todos j apontados anteriormente,
podemos dizer ainda que o documentrio uma linguagem que vem
conquistando cada vez mais novos profissionais e pblico. Assim, o
documentrio tambm se constitui como uma boa opo para ampliar o
alcance de questes que julgamos por bem discutir, tanto no jornalismo como
na pesquisa. Para ambos mostra como trabalhar e apresentar assuntos
combinando o rigor e criatividade, atingindo, por isso, a pblicos mais
diferenciados.
No que se refere mais especificamente ao assunto deste livro
entrevistas , ao assistirem Tiros em Columbine, reparem como o jornalista
no se furta a comentar as respostas dos entrevistados, a refletir junto com
eles. Ele mantm a distncia necessria, mas solidrio quando a professora
de Kayla que estava com ela no momento em que foi morta, chora no meio da
entrevista. Outro detalhe importante que o entrevistador est
completamente disponvel para seus entrevistados. Eles podem ter tempo para
a entrevista acabar, Moore no tem. Ele est completamente entregue quele
momento, tem todo tempo do mundo. No olhou para o relgio nenhuma vez
em qualquer entrevista. No apressou ningum, era completamente ouvidos e
reflexo. Moore demonstrou uma caracterstica fundamental para qualquer
jornalista e qualquer pesquisador: sabia realmente ouvir.
Tiros em Columbine nos ajuda a pensar at quando se equivoca. Li trs
tipos de crticas ao documentrio. Algumas se referiam aos dados sobre a
violncia dos EUA contra diversos pases apresentados por Moore. Esses
crticos questionavam a veracidade de alguns nmeros. Acho que podemos
dispensar logo esse primeiro grupo j que as estatsticas de Moore so mais
que conhecidas e j foram divulgadas por diversas fontes. Outro grupo de
crticos atacou as montagens realizadas pelo cineasta em seu filme. Ora,
qualquer filme montado e editado e um documentrio no diferente e nem
-
por isso perde a credibilidade. Entrevistas, matrias jornalsticas e at mesmo
as pesquisas acadmicas tambm so editadas e sempre a partir do ponto de
vista de quem as realiza. Um terceiro grupo criticou os "aspectos ideolgicos"
erros em Columbine argumentando que sendo um documentrio uma
aproximao isenta da realidade no poderia ser ideolgico. Discordo da crtica
porque ela diz o que um documentrio no : isento. Disse que um
documentrio (assim como filmes, pesquisas e matrias) so escritos,
montados e editados a partir do ponto de vista de seu realizador; todas essas
atividades, portanto, sempre sero ideolgicas.
O bom de Tiros em Columbine justamente isso: sabemos que Moore
quer criticar sim a sociedade americana, mas vemos bem transparentemente
como ele vai construindo essa crtica. ideolgico, mas no panfletrio. Ou
seja, informa o espectador, mas no mostra s um lado da questo. Alis, este
cineasta fez o que todo jornalista deveria fazer com suas matrias: pluralizar ao
mximo as vises sobre o assunto em pauta, ainda que no possa se
desvencilhar de seu prprio ponto de vista.
Ento, onde que eu acho que Moore errou? Em um nico momento,
quase no finalzinho do documentrio. Moore erra quando, para conseguir a
entrevista com o ator Charlton Heston, diz que membro da ANR. Moore no
garante os direitos de sua fonte e fora sua prpria tese. Isso, alm de errado,
era completamente desnecessrio.
J que estou falando sobre entrevistas em jornalismo e em pesquisas
acadmicas, as regras, pelo menos para mim, para os dois casos, so essas:
devemos sempre nos identificar. Temos a obrigao de explicar os motivos da
matria ou da pesquisa e informar se os dados revelados sero ou no
publicados e em que tipo de publicao.
Da mesma forma, perguntar ao entrevistado se ele prefere que seu
nome seja divulgado. E mais: caso o entrevistado no saiba as conseqncias
que poder sofrer por conta da divulgao de sua imagem e nome, jamais
poderemos nos aproveitar disso, ao contrrio, devemos nos obrigar a esclarecer
tudo isso ao entrevistado. S depois dessa negociao e depois de estarmos
seguros de que o entrevistado gostaria de falar conosco que ligamos o
gravador, alis, o entrevistado que autoriza ou no se a entrevista ser
gravada. Mais uma vez: as regras valem para jornalismo e pesquisa.
-
H excees? Para o jornalismo sim, para a pesquisa acadmica nunca.
Embora reconhea que existam excees, adianto que essas regras que citei
valeram para mim, mesmo quando entrevistei membros de grupos de
extermnio. Nenhum deles jamais aceitou gravar entrevistas, mas permitiam
que eu utilizasse o bloco de papel para minhas anotaes. Quando realizo uma
entrevista trato da mesma forma tanto algum que cometeu um crime como
Cione (de quem falarei mais adiante), como o telogo Leonardo Boff ou a
Ministra Dilma Roussef. Aos trs pergunto se poderiam conceder uma
entrevista e aos trs agradeo a disposio e o tempo emprestados. claro que
despertam em mim sentimentos e questes diferentes, mas o tratamento dado
a todos deve ser o mesmo no momento em que exercemos nosso trabalho.
No posso dizer como aprendi, nem quem me ensinou a agir dessa
maneira. Na faculdade, apesar de existir esta disciplina, fala-se muito pouco em
tica, estudada como regras engessadas em manuais. No artigo 14 do Cdigo
de tica do Jornalismo, a letra b, por exemplo, recomenda tratar com respeito
a todas as pessoas mencionadas nas informaes que divulgar. pouco. Como
especificar isso em nossas aes cotidianas de trabalho? Talvez aqui caiba o
que disse a rapariga de culos escuros, personagem do livro Ensaio sobre a
cegueira: "Dentro de ns h uma coisa que no tem nome, essa coisa o que
somos" (Saramago, 2001, p. 262). Permito-me apenas, com todo respeito do
mundo, uma pequena adequao frase de meu muito querido escritor
portugus e digo: Dentro de ns h uma coisa que no tem nome, essa coisa
o que vamos sendo.
Alguns no acharo errado o fato de Moore ter mentido. No entanto,
acredito, esse tipo de recurso deve ser a exceo da exceo e no a regra
(insisto: exceo da exceo que, ainda assim, vale apenas para o jornalismo e
jamais para pesquisas acadmicas). Um poltico ou empresrio corrupto jamais
assumir que corrupto para um jornalista.
Nenhuma pessoa que explora sexualmente crianas brasileiras assumir
sorrindo seu crime diante de uma cmera. Da as gravaes telefnicas, os
gravadores escondidos, a identidade do jornalista ocultada, o disfarce muitas
vezes montado para se obter uma informao e denunciar. Cada veculo de
informao tem suas regras de conduta especficas a respeito de
procedimentos como esses. No era o caso de Moore e Heston. O ator assume
-
publicamente suas posies reacionrias e j havia feito isso no prprio
documentrio. Disse que Moore fazia suas perguntas de forma honesta,
lembram-se? A mesma honestidade tambm deve ser garantida no mtodo
utilizado para se conseguir uma entrevista. Caso Heston se recusasse a falar
com ele, pacincia, Tiros em Columbine j valia at ali.
1.8. O texto do jornalista, o texto do pesquisador e o demnio da
perversidade
Vimos ento que jornalismo e pesquisa no s podem dialogar como
precisam dialogar. Jornalistas tm a aprender com pesquisadores, mas o
inverso tambm positivo.
Do contrrio, eu estaria em constante surto esquizofrnico com meu
lado jornalista apontando para uma direo e meu lado de pesquisadora
apontando para outra. justamente ouvindo o que um e outro tm a dizer que
organizo este dilogo interna e praticamente. No incio do mestrado, confesso,
o surto do qual falei aconteceu.
A escrita acadmica bem diferente da escrita jornalstica. Se por um
lado, precisei incorporar todas as exigncias de um texto acadmico, por outro,
me recusei a dispensar o que existe de positivo no texto jornalstico. O dilogo
comeou a surgir.
Muitos alunos de ps-graduao tm dificuldades em escrever. Ensaios,
resenhas, produzir a dissertao do mestrado e a tese para o doutorado
costumam ser sofrimentos terrveis. Nisso o jornalista tambm leva vantagem.
No porque melhor ou mais capaz. O motivo simples: jornalista escreve
todo dia. Claro que, como vimos, justamente a pressa que pode nos levar
superficialidade e negligncia, mas j estamos advertidos desse perigo.
Assim, todos os dias entrevistamos e editamos, apuramos e sistematizamos,
muitas vezes, como disse, sobre dois ou trs assuntos diferentes. Acredito que
uma das grandes contribuies que jornalistas podem dar aos pesquisadores
ajud-los a exorcizar o demnio da perversidade. E que demnio esse?
Em geral, os pesquisadores acreditam que os textos acadmicos
precisam ser complicados. E, quanto mais incompreensveis, mais intelectuais
parecero. Reconheamos: a maior parte da produo acadmica chata,
-
muito chata. Somente depois de me lembrar do conto O demnio da
perversidade, do escritor americano Edgar Allan Poe, encontrei a explicao
para este estranho fenmeno.
Poe acredita que o ser humano acometido por esse tal demnio em
algumas situaes. Vejamos uma delas:
No h homem que, em algum momento, no tenha sido atormentado, por exemplo, por um agudo desejo de torturar um ouvinte por meio de circunlquios. Sabe que desagrada.
Tem toda a inteno de desagradar. Em geral conciso, preciso, claro. Luta em sua lngua por expressar-se a mais lacnica e luminosa linguagem. S com dificuldade consegue evitar que ela desborde. Teme e conjura a clera daquele a quem se dirige. Contudo, assalta-o o pensamento de que essa clera pode ser produzida por meio de certas tricas e parntesis. Basta esta idia. O impulso converte-se em desejo, o desejo em vontade, a vontade numa nsia incontrolvel, e a nsia (para profundo remorso e mortificao de quem fala e num desafio a todas as conseqncias) satisfeita (Poe, 1965, p. 346).
Perceberam a explicao? Esse demnio da perversidade vive a
atormentar a vida dos intelectuais que, possudos por ele, escrevem um texto
tortuoso e, da mesma forma, falam uma lngua tortuosa. Poe assegura que o
perverso demnio tambm age quando:
Temos diante de ns uma tarefa que deve ser rapidamente executada. Sabemos que retard-la ser ruinoso. A mais importante crise de nossa vida requer, imperiosamente, energia imediata e ao. Inflamamo-nos, consumimo-nos na avidez de comear o trabalho, abrasando-se toda a nossa alma na antecipao de seu glorioso resultado. foroso, urgente que ele seja executado hoje e, contudo, adiamo-lo para amanh. Por que isso? No h resposta, seno a de que sentimos a perversidade do ato. Chega o dia seguinte e com ele a mais impaciente ansiedade de cumprir nosso dever, mas com todo esse aumento de ansiedade chega tambm um indefinvel e positivamente terrvel, embora insondvel, anseio extremo de adiamento. E quanto mais o tempo foge, mais fora vai tomando esse anseio. A ltima hora para agir est iminente. Trememos violncia do conflito que se trava dentro de ns, entre o definido e o indefinido, entre a substncia e a sombra. Mas se a contenda se prolonga a este ponto, a sombra que prevalece. Foi v a nossa luta. O relgio bate e o dobre de finados de nossa felicidade. Ao mesmo tempo a clarinada matinal para o fantasma que por tanto tempo nos intimidou. Ele voa. Desaparece. Estamos livres. Volta a antiga energia. Trabalharemos agora. Ai de ns, porm, tarde demais! (Poe, 1965, p. 346 e 347).
-
Reconhecemos a situao descrita por Poe? Sabemos agora por que
agimos assim? Por que sofremos o tormento de deixar as coisas para a ltima
hora? Aquele ensaio para uma disciplina, a monografia da graduao, os textos
do mestrado, do doutorado, a tese. Tudo para a ltima hora. Talvez
continuemos assim mesmo depois de concluirmos o doutorado. Seremos assim
com artigos e livros que publicaremos. Identificada a origem desse problema
to srio, quem quiser que relaxe por poder colocar a culpa no demnio
catalogado por Poe. O jornalista, mesmo que quisesse, no poderia, ele
obrigado a exorcizar esse demnio. Nada pode ficar para amanh. a questo
do tempo da qual j falamos. Se por um lado o tempo age contra ns nos
levando quase sempre superficialidade, por outro, colabora conosco porque
nos faz escrever todo dia. quando temos conscincia dessa contradio e
tenso constantes que podemos conquistar o equilbrio necessrio entre a
urgncia e a cautela, entre a pressa e a responsabilidade. Assim, jovens
pesquisadores podem desenvolver o precioso hbito de transcreverem suas
entrevistas to logo as faam. Podem ir sistematizando os dados que forem
sendo recolhidos pelo caminho. Podem, como os jornalistas, escrever todos os
dias.
O texto acadmico no precisa e no deve recusar o rigor, mas rigor no
tem nada a ver com chatice. Pelo menos no deveria ter. A escrita acadmica
no precisa torturar nem seu autor nem o leitor e ambos podem encontrar
prazer neste ofcio. O texto jornalstico pode contribuir para isso porque mais
objetivo, se constri com perodos mais curtos e, muitas vezes, recorre
literatura, ao cinema, ao teatro, toma emprestadas imagens de vrias reas.
Nada disso pecado se for feito de maneira responsvel e sria.
Outra contribuio fundamental do jornalismo justamente o privilgio
do qual j falei. Todos os dias temos pautas diferentes. E o que podem
representar essas pautas se construmos nossas entrevistas e matrias de
forma ativa? Temas para importantes pesquisas. S para citar um exemplo,
tanto minha dissertao de mestrado como minha tese de doutorado vieram
da minha prtica como jornalista. A primeira surgiu de tanto conviver com o
assunto violncia. Depois que participei da equipe que publicou a srie sobre
grupos de extermnio, pensei em aprofundar o tema e acabei desenvolvendo a
dissertao "Violncia, escola e dilogo". Na segunda, ao fazer a matria
-
"Netos de santo", tambm resolvi aprofundar a questo e constru a tese
"Educao nos terreiros".
Por fim, escrever todo dia tambm faz com que o jornalista se arrisque
mais. certo que o jornalista afoito e se apressa a emitir opinies sem a
cautela e o distanciamento histrico necessrios a uma anlise de um fato
social. Por outro lado, muitas vezes, o pesquisador se esconde atrs dessa
cautela e fica l a vida inteira. No d a cara ao tapa e se omitir tambm uma
forma de errar.
1.9. Sobre a palavra-flor que triste e sobre uma confisso
Preferi deixar para falar sobre a palavra-flor que me nasce triste j perto
do final desta introduo. Quando escrevia sobre violncia minha escrita saa
machucada, ferida. A palavra-flor que me crescia dentro era aquela de nome
onze-horas. No eram as onze-horas felizes e ensolaradas como as vemos
nessa hora do dia pela qual lhe deram o nome. Eram onze-horas murchinhas
que de tanto fazer doer esqueciam que eram flores e s lembravam de ser
arame farpado que perfuravam minha pele deixando minha escrita muito
dolorida.
Era assim quando fazia, ouvia e transcrevia as entrevistas de criminosos,
vtimas sobreviventes, famlias de vtimas assassinadas, testemunhas
"protegidas pela polcia", policiais e moradores da Baixada Fluminense, regio
onde morei e trabalhei como reprter durante muito tempo. Entrevistas, por
exemplo, que realizei com integrantes de grupos de extermnio para a srie de
reportagem publicada no jornal O Dia, em julho de 1993. Foi assim com o
menino Cione, de 17 anos, que, em fevereiro de 1992, depois de discutir e
brigar com o comparsa de extermnio, o soldado conhecido como Luiz da Moto,
no Jardim Redentor, em Belford Roxo, convidou-o para um churrasco. Na festa,
Cione embebedou Luiz e chamou-o para uma execuo. A vtima, no entanto,
era o prprio Luiz que foi executado pelo menino com um tiro na boca e outros
trs pelo corpo. Teve, como ele prprio fazia com suas vtimas, sua cabea, ps
e mos decepados e o resto do corpo incendiado.
Cione aparou com um copo o sangue que escorria do cadver, misturou
com cachaa e bebeu. Passou a ser "vampirinho". Ao entrevistar Cione, preso
-
na delegacia de Belford Roxo, descobri que o jornalista tambm faz perguntas
que no conseguem sair pela boca. Eu queria saber se em algum lugar de
"vampirinho" existia algum vestgio de Cione.
Nem todas as perguntas que fazemos, tanto para uma matria como
para uma pesquisa acadmica, garantem respostas. So perguntas que o
entrevistador faz a si mesmo e acumulam dentro de ns palavras feitas de
flores que morreram sufocadas.
Infelizmente vivi outras situaes parecidas. No mesmo ano cobri o
desaparecimento de um beb em Mag. A me chegou delegacia chorando
porque seu filho havia sumido. O delegado, frio, interrogava a mulher. Foi a
primeira vez que pensei sobre as diferenas cruciais entre entrevistar e
interrogar. Conversei com a mulher e ouvi sua histria. Disse-me que deixara o
filho com o marido e que estava desesperada porque ele no voltara com o
beb. Registrei os fatos importantes e voltei para o jornal para escrever a
matria. Antes de sair da delegacia o delegado me disse que casos assim
costumam revelar absurdas circunstncias. Mal cheguei redao e o delegado
ligou me chamando de volta. Ele estava certo e gabava-se disso. Na verdade, a
mulher jogara o prprio filho no bueiro, desses que so cheios de gua.
Matou o filho para se vingar do marido que a havia abandonado. Quando
retornei delegacia reencontrei o delegado interrogando a mulher. Dessa vez
como criminosa e j no como vtima. O que eu queria saber mesmo era onde
estava a me que amara o filho? Onde estava a me que matara o filho? Outra
vez na boca o gosto de palavra-flor esmagada por dentro. Deixei o delegado
fazer seu interrogatrio. Pelo menos esse sabia como fazer seu trabalho,
pensei.
O primeiro contato com um integrante de grupo de extermnio (nesse
caso para a srie publicada) aconteceu numa madrugada, em 1993, no alto de
um morro, em So Joo de Meriti. Depois de me explicar a diferena entre
quem mata por dinheiro e quem mata porque se v como justiceiro, esse
entrevistado colocou um "cartucho de 12" na palma da minha mo, beijou meu
rosto e disse: "cuidado com o que vai escrever". Outro, em Banco de Areia,
Mesquita, perguntou se eu e o fotgrafo que me acompanhava gostaramos de
ver uma execuo, uma mulher "marcada" para aquela noite. "Hoje vamos
-
fazer uma loura", disse-me ele. Costumo dizer que recusei prontamente o
convite.
E sim, eu e o fotgrafo recusamos. Mas, anos depois, ao escrever para
estudantes de jornalismo e pesquisadores que iniciam suas vidas acadmicas,
sinto-me na obrigao de confessar o que jamais pensei revelar e que demorei
muito a assumir para mim mesma. Por um segundo, por um msero, absurdo e
assustador segundo, pensei em aceitar.
difcil dizer "pensei" porque sei que o que aconteceu no foi um
pensamento inteiro. Foi um quase pensamento, um tempo sem tempo, um
soluo de borboleta. O fotgrafo tambm quase pensou. Sei disso porque olhei
no olho dele e porque olhou no meu tambm, de mim ele sabe. Mas nunca
falamos sobre aquilo. Quando dentro de ns tudo fica escuro como um
pntano as flores que nos habitam podem enlouquecer. Mais uma vez a
rapariga de culos do Saramago sussurra em meu ouvido: "Dentro de ns h
uma coisa que no tem nome, essa coisa o que ns somos". E o que vamos
sendo, insisto. Falei sobre isso para dizer que para um jornalista, repito, sim
um privilgio trabalhar todos os dias com assuntos to diferenciados. Por outro
lado, todo dia tambm enfrentamos desafios e conflitos que testam mais que
nossa tica, testam nossa humanidade. Existem confrontos, mais ou menos
dramticos que esse, vivenciados em diversas reas do jornalismo. Retir-los
do nvel individual e al-los a uma discusso coletiva sobre princpios e valores
ajudaria, e muito, a toda equipe de um jornal a fazer um jornalismo, de fato,
tico. Esses desafios tambm os enfrentam os pesquisadores acadmicos. Para
ambos, de nada vale fingir que o pntano no existe. No se vence um conflito
sem reconhec-lo e enfrent-lo.
Dessas tristes experincias, particularmente tenho dificuldades para
esquecer o rosto de Cione, o medo nos olhos das testemunhas e sobreviventes,
o cartucho frio de 12 na mo, o corpo do menino afogado no bueiro, o beijo do
matador que ainda estala em minha face, aquele segundo em que tudo em
mim foi pntano e escurido.
S uma coisa consegue ser ainda pior. Cada vez que entrvamos em uma
c