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    M I R I A M C R I S T I N A . R A B E L O

    I N T R O D U OA importncia dos cultos religiosos na interpretao e tratamento da doena tem sidoamplamente reconhecida na literatura antropolgica. Mais do que isso, os antroplogos tmfrisado peculiaridades e aspectos positivos do tratamento religioso quando comparado aosservios oferecidos pela medicina of ic ial . Ao invs das explicaes reducionistas da

    medicina, os sistemas religiosos de cura oferecem uma explicao doena que a insere nocontexto sociocultural ma is am plo do sofredor (Comaroff, 19 80 ,19 85 ). M ais do que atribuirum a causa objetiva a estados confusos e desorde nado s, a interpretao religiosa organiza taises tados em um todo coerente (Lvi -St rauss , 1967) . Enquanto o t ra tamento mdicodespersonaliza o doente (Taussig, 1980), o tratamento religioso visa agir sobre o indivduocom o um tod o, re inserindo-lhe como sujeito, em u m nov o contexto de relacionamen tos.Ass im, com o vr ios es tudiosos tm ressa l tado, a passag em da doen a sade p odevi r a cor responder a uma reor ientao mais comple ta do compor tamento do doente , name dida em q ue t ransforma a perspec t iva pe la qua l es te percebe seu m un do e re lac iona-se

    com out ros . Fundamenta l nessa abordagem ident i f ica r os meios pe los qua is as te rapiasrel igiosas efetuam tal t ransformao. Neste sent ido, no toa que tantos estudos tm sevol tado para uma com preens o do r itua l enqu anto espao por exce lnc ia , em que os doentesso conduzidos a uma reorganizao da sua exper inc ia no mundo.Os estudos sobre ritual tm contribudo significativamente para uma compreenso daespecificidade do tratamento religioso. Neste captulo, reviso duas destas contribuies maisrecentes, procu rando m ostrar em q ue medid a pod em esclarecer importantes aspectos dos serviosreligiosos de cura oferecidos no contexto brasileiro. Argumento, entretanto, que ao centrarexclusivam ente a anlise dos tratamentos religiosos no con texto do culto e, m ais especificamente,

    do ritual, questes significativas relacionadas utilizao desses servio s s o deix ada s d e lado .Con cluo o captulo apontando p ara algumas l inhas complementares de anl ise.

    *Trabalho apresentado no I Encontro Nacional de Antropologia Mdica, Salvador (BA), trs a seis denovembro, 1993.

    RELIGIO, RITUAL CURA*

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    O R I T U A L E N Q U A N T O P R T I C A T R A N S F O R M A T T V AA o se voltar par a um estu do do r itual, vr ios antrop log os tm enfat izado seu pap elt ransformat ivo: manipulando s mbolos em um contexto ext racot id iano, ca r regado deemoo, o r i tual induz seus par t ic ipantes a perceberem de forma nova o universo c i rcundan te e sua pos io par t icular nesse universo (Geer tz , 1 973 ; Turn er , 196 7; Ta m bia h, 1979;Kapferer , 1979) . Geer tz (197 3) explorou e ssa idia ao suger ir qu e a br iga de gaios ba l inesaorganiza exper inc ias e sensaes do cot id iano dos ba l ineses em um " todo" ordenado,const i tuindo para estes uma espcie de "educao sent imental" . Par t indo de um ponto devista semelhante , Turner (1967, 1969, 1974, 1975) escreveu extensamente sobre como os

    r i tuais operam de modo a conduzir os indivduos a determinados estados e a t i tudes f renteao m un do : o i solamen to de objetos e imag ens de seu contexto ordinr io e sua recom binaoem no vos contextos , a foca lizao em de te rminadas unidad es s imbl icas , a com binao defor tes est mulos sensor ials e intelectuais .De fundamental importncia nessa perspect iva de anl ise do r i tual identif icar ecom pree nd er os proc esso s especf icos atravs do s qua is o ri tual pro du z um a transfo rma oda exper incia de seus par t ic ipantes. Em sua discusso sobre o papel das metforas nacultura , James Fernandez oferece pistas interessantes nesse sent ido. Fernandez (1986)def ine metfora como uma predicao es t ra tgica sobre um pronome incoa to que faz ummovimento e conduz performance. As metforas es tendem a exper inc ia informe dosujei to a domnios mais concretos e reconhecveis . Atravs da atr ibuio de predicaesme ta f r i ca s sobr e s i mesmos e os ou t r os , os i nd iv duos p r ocur am se s i t ua r ma i sfavorave lmente em um de te rminado contexto re lac iona i .Segundo Fernandez (1977, 1986) , os r i tuais pem em ao determinadas predicaes metafr icas so bre suje itos que necess i tam de mov imen to. Es tabe lecen do u m e lo ent rediferentes domnios, as metforas provem imagens em relao s quais pode se dar umareorganizao do comportamento. A encenao de metforas em um contexto r i tual ,a travs do discurso, do canto e/ou da dana, constri uma for te analogia entre o domnioencenado e o domnio da exper inc ia cot id iana dos par t ic ipantes , de modo que a ordemdas coisas neste l t imo passa a ser percebida como semelhante ordem das coisas nopr ime i ro . C om o resul tado, os indivduos so i r res is t ive lmente co nduz idos a organizar seum un do - e sua pr t ica - de acordo com os novos cenr ios ass im const rudos .Fernandez par te de analogia entre cul tura e texto, teor izando sobre as estratgiastextuais a travs das quais o r i tual capaz de ( re)or ientar a a t i tude dos seus par t ic ipantes.Bu scan do com preend er com o tal e fei to " t ransformat ivo" de fa to se prod uz nos indivduos ,Kapferer (1979a) argumenta que anal isar r i tual antes de mais nada examinar comosignif icados, s mbolos e metforas so manipulados em um contexto de ao, i . e . , porpessoas si tuadas diferencialmente em um espao f s ico concreto e fazendo uso (ou sendoexpostas) a diferentes meios de comunicao. "O r i tual der iva sua ef iccia e poder de suaperformance e na performance que o t rabalho de t ransformao se real iza" (1979a:6) .Para Kapferer (1979) , dois e lementos chaves da performance devem ser levadosem co nta no estudo do s r i tuais . O pr im eiro diz respe i to ao arranjo do esp ao e o rgan izaodos par t ic ipan tes e audincia no local da performance. Durante a performance de um r i tualos indivduos podem passar de uma si tuao de meros espectadores a par t ic ipantes diretos

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    do dram a encen ado, responde ndo di fe renc ia lmente aos vrios es t mulos v isua is , audi tivose olfat ivos que lhes so lana do s. "O m ov im ento daq ueles reunid os em um a ocas io r itual,a t ravs dos pap is de par t ic ipante e audinc ia , impor tante para um e ntendim ento d e co moo r i tual pro m ov e expe r incia e potencial para os indivd uos ref le t i rem sob re essa exper incia" (197 9a:8) . Tota lme nte envolv idos na ao , enq uan to par t ic ipantes, os indiv duospo dem objet i ficar sua exper incia para si e para os outros . A m edid a que a performance osdistancia do quadro da ao, tornando-os audincia para ao, permite sua ref lexo sobreessa mesma exper inc ia .Outro elemento importante na anl ise do r i tual enquanto performance diz respei toao uso dos meios - canto, dana, discurso formal , comdia, e tc - a travs dos quais a ao desenvolvida . A ut i l izao de de te rminados meios durante a per formance fac i l i ta aconstruo de cer tos cenr ios, contr ibuindo para persuadir os indivduos a reor ientaremsua ao em funo d os novos contextos co ns t rudos .Voltemos questo da cura no contexto rel igioso e , mais especif icamente, nocontexto r i tua l . Kapfere r (1979b) a rgumenta que o r i tua l produz cura na medida em quepermi te uma mudana na perspec t iva subje t iva pe la qua l o pac iente e comunidade percebem o contexto da a f l io. Segundo Csordas (1983) , a cura re l ig iosa pode se r entendidacom o dinmica de persuaso que envolve a cons t ruo de um nov o m un do fenomeno lgicopara o doente . No r i tual de cura o doente persuadido a redirecionar sua ateno a novosaspectos de sua exper incia ou a perceber esta exper incia segundo nova t ica . A curaconsist i r ia , assim, no no retorno ao estado inicial , anter ior doena, mas na insero dodoente em um novo contexto de exper inc ia . Fernand ez e Kapfere r sem dvida cont r ibuemsignif icat ivamente para o entendimento das estratgias r i tuais mediante as quais ta linsero lograda.

    R I T U A L C U R A N O C O N T E X T O B R A S I L E I R ONo Bras i l h uma plural idade de cul tos re l igiosos que oferecem servios de cura.Cada qual conta com um r ico reper tr io de imagens e smbolos que expressam dist intasvises de mundo e oferecem aos seus par t ic ipantes posies e/ou papis especf icos nestemundo. Cada qual visa , a travs de seus r i tuais , reconst i tuir a exper incia dos indivduosde modo a conform-la a estes papis . A cura que prometem a seus cl ientes e seguidores, via de regra, par te deste projeto mais abrange nte . Aqui pro po nh o anal isar os projetos decura e prt icas r i tuais de alguns destes cul tos luz das contr ibuies discut idas acima.Co m eo pe lo ja r , uma var iante de cand om bl de caboc lo , encon t rada na Cha pada

    Diam ant ina , r egio se tent r iona l da Bahia . Nas zon as de agr icul tura da Chapa da Diam ant inao ja r cons t i tu i um cul to de pequenos lavradores vol tado, em grande medida , para ainterpretao e t ra tamento d a af l io (Ra belo, 1990) . N o j a r , ta is a t ividade s so real izadaspelos caboclos, ent idades que os par t ic ipantes do cul to associam gener icamente aos ndiose que vem c om o esp ri tos se lvagens , poderosos e mat re i ros . possu do por um d os seus caboc los que o curador procede revis ta , encont ro como cl iente no qual deve reconst i tuir a cadeia de eventos que levaram este l t imo af l io.

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    Na revista , o curador procura organizar fa tos e sent imentos em uma narrat iva coerente eordena da que eviden c ie causas e aponte na di reo do t ra tamento e da cura . Ne ste sent ido,o t rabalho ( r i tual de cura) representa a resoluo pblica de uma histr ia construda nocontexto pr ivad o da revis ta.O trabalho const i tui , de fato, uma etapa bem del imitada do r i tual do jar . apenasdepois de ce lebrada a desc ida de toda um a srie de caboc los - que vm de Arua nda paravadiar no terreiro, apossando-se temporar iamente do curador e dos seus f i lhos de santo -que se iniciam as a t ividades de cura prop r iam ente di tas. N o raro, o curado r tem que fazerum esforo para interromper a br incadeira dos caboclos e conduzir o r i tual em direo aot raba lho.

    Durante o t rabalho se produz uma reordenao do espao e ao r i tual : se por umlado todos perma necem em c rculo , j no h mais dana ou possess o ent re os par t ic ipantes ; apenas o curador permanece incorpo rado por seu caboc lo , assum indo con t role sobre aao que se desenrola . Tam bm e le j no dana ; condu z cantos e rezas que formula maisou menos l ivremente . Os demais presentes assumem uma pos io de observadores ,chamados a cont r ibui r com os cnt icos in t roduz idos pe lo curador ; no ra ro decresce seuenvolvimento no r i tual . Os doentes e , por vezes, a lguns de seus famil iares, so colocadosno inter ior de um crculo de plvora t raado pelo curador , s ento tornando-se o foco daa teno. Vest idos de branco, j foram banhad os nos fundos da casa em ba nho s de e rvas .O trabalho se inicia com cantos a Exu, para que conceda sua l icena a t ividade decura e comprometa-se a guardar as encruz i lhadas , por te i ras e cance las que conduzem aoterreiro. Mais tarde, oferendas so fei tas a Exu e deposi tadas em sua casa nos fundos dote r re i ro . O tem a da expulso d e agentes causadores da doen a ganha exp resso duran te a

    performance que se segue : o curador in t roduz uma sr ie de cnt icos em que nomeiadis t in tos poderes responsve is pe la doena (exus , sombras de mor to) , chamando-os ade ixar o corpo do doente . Mudanas no compor tamento do doente durante es te processoa t raem grandemente a a teno da audinc ia na medida em que conf i rmam a rea l idadeconstruda pelo curador . Um novelo de l desfei to, s imbolizando o desfazer do fei t io.Trs panos de cor preta , vermelha e branca so esfregados, em seqncia , no corpo dodoente , representando graus crescentes de pur if icao. Ao f inal do trabalho, o c rculo deplvora queimado e os restos so varr idos para fora da casa. Delimita , durante o r i tual ,um campo onde foras per igosas circulam antes de serem def ini t ivamente expulsas docorpo, cons t i tu indo uma arena de mediao que deve se r d issolvida na conc luso dot raba lho.

    Ent re tanto , o curador no cura s implesmente forando o mal para fora . Buscareconst i tuir o corp o, for ta lecendo s uas extrem idade s e f ronteiras enfraqu ecidas e encerrando-o gradua lmente em um c rculo de proteo. Durante o t raba lho, o curador permaneceno in te r ior do c rculo , junto ao doente , concent rando a ao sobre seu corpo. Envolve-oem c antos , admoestaes e per fume, ba lanando u m a lata de incenso em sua vol ta . Executaoperao sem elhante com a corda de So Franc isco, que m ovim enta para c ima e para ba ixo ,na f rente e nas costas do doente , desenhando com ela a si lhueta do corpo e tocando-a nosbraos es tendidos , mos , ps e cabea . Ta is ges tos se repe tem durante longo tempo, emme io a rezas e cantos , cons t ruindo um a image m de gradua l res taurao da in tegr idade docorpo, ameaada pe la doena .

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    Ao f inal do trabalho, quando o crculo de plvora desfei to e os restos varr idosporta afora , sol tam-se fogos e re inicia-se a festa dos caboclos, que se prolonga at oamanhecer . Os doentes so conduzidos camar inha , onde permanecero por um per odode mais ou menos sete dias sob os cuidados do curador . o incio do resguardo, duranteo qual devem ser evi tados al imentos e prt icas que tm o efei to de "abr ir o corpo" e ,por tanto, de desfazer o t rabalho do curador . Embora a maior ia das restr ies seja suspensacom o tempo, a lgumas devem ser seguidas para sempre .As metforas corpo aber to versus corpo fechado, de fato, ordenam as concepesde sad e , doen a e cura no j a r . Na viso do ja r o indivduo es t cont inuam ente in te ragindocom pessoas , esp r i tos e coisas que no pode cont rola r e dos qua is sabe mui to pouco. Omundo uma rea l idade f ragmentada em re laes cambiantes que invar iave lmente produzem af l io; fa l ta- lhe um a ordem ab rangen te . Fruto de relacio nam ento s, a do ena se produ zem uma si tuao de vulnerabi l idade (corpo aber to) do indivduo frente ao meio. A curabusca redef inir o contexto relacionai gerador da doena, agindo sobre um dos par t ic ipantesda re lao. Consis te fundamenta lmente em uma tenta t iva de for ta lecer o indivduo,fechand o seu corpo , de mo do qu e ele esteja em* um a po sio m ais vantajosa ou m eno svulnervel para relacionar-se com outros e , assim, real izar seus objet ivos no mundo.

    Essa idia ganha fora atravs da performance e da forma especf ica pela qual estaconst ri de te rminados cenr ios , movendo os indivduos no espao r i tua l e segundodist intos papis . Pr imeiro preciso observar que de sua insero no quadro maisabrangente da festa dos caboclos que o t rabalho der iva sua fora e real ismo para cl ientes eaudinc ia : a cura se e fe tiva em um cam po de poder previamen te cons t rudo pe lo drama d aentrada dos espr i tos nos corpos dos par t ic ipantes. Tal cenr io, entretanto, longe deobedecer a uma ordem a pr ior i , revela-se plural e repleto de incer tezas: os caboclos tantopodem curar a doena como caus- la .

    Inser ida em tal contexto a cura s se efet iva se o curador souber l idar com oscaboclos e desta maneira suceder em drenar seu poder ambguo para a real izao dos f inspr ivados do seu c l iente . A subs t i tu io da dana pe lo canto e d iscurso enquan to mo dos decomunicao marca um movimento em di reo ao cont role da ao pe lo curador . At ransformao def ini t iva dos par t ic ipantes em audinc ia durante o t raba lho produz umaredef inio d o contexto que tam bm aponta nessa di reo. Parece , a lm disso , expressar aidia de que enqu anto a festa do s cabo clos a t ividad e colet iva, despro vida d e f im aparente(que no o prpr io desejo de vadiar dos caboclos) , o t rabalho a t ividade explic i tamentevol tada para a rea l izao de f ins pr ivados . Ass im que ao envolvimento marcado dospar t ic ipantes na ce lebrao dos caboc los sucede-se um cer to a lheamento durante o t raba lho.A o redef inir o foco da ao para a a t ividade de cura, o curad or bu sca dar um a d ireounificada a um dra m a que at ento se desenrolara enqua nto desfile de mltiplas perso nag ense vontades no espao r i tual . Entretanto, se para curar deve controlar o f luxo de poder nocampo r i tual , ta l controle exige necessar iamente negociao. p r ec iso p rime i r o de ixa r queos caboclos se sat isfaam danando no terreiro. preciso tambm pedir l icena a Exu,garan t indo atravs de oferendas sua coope rao na gua rda dos l imites e entrad as do terreiro.A performance do trabalho permite ao doente redef inir a perspect iva subjet iva sob a qualaval ia sua posio em determinado contexto relacionai : de um estado de f ragi l idade para

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    um de fora e proteo renovadas. Com ela o doente aprende a necessidade de contnuasa l ianas pessoa is para garanti r um a pos io meno s vulnerve l no m und o.Bastan te dist intas so as con cep es de doen a e cura encenad as no r i to penteco stal . a e las que agora reme to. Nas igrejas qu e prat icam a cura divina, co m o a Igreja Universaldo Reino de Deus, a sesso de cura const i tui momento central do r i tual , para o qualconvergem todas as a tenes e expectat ivas. Muitas vezes, ao chegarem ao templo, aspessoas j encontram at ividades de cura em andamento, sob a assistncia das obreiras.Podem ser chamadas a colocar suas mos sob uma mesa untada em leo, para em meio atantas outras mo s e af l ies pes soais , se benef iciarem do pod er pur ificador d o leo. Po demser rezadas individualmente pelas obreiras, em cujos olhos atentos dif ic i lmente escapaalgum sem ser a tendido. , entretanto, com a entrada do pastor que se inicia o cul to e acura divina propr iamente di ta .

    No cul to pentecostal a cura encenada como uma batalha na qual o pastor , suasobreiras e os dem ais f iis oram jun tos para exp ulsar as ent idade s do mal que esto alojadasno corpo do doente . Muitas vezes o pastor chama doentes e af l i tos f rente para que possaproce der orao de cura, pedin do-lhe s que coloqu em a m o sob a par te enferm a do co rpo.Reza em tom de comando enquanto emissr io do poder de Jesus Cr is to sobre o mal .Colocando suas mos sobre o local indicado pelo doente , ordena para que Satans e seuscomparsas mani fes tem-se e curvem-se perante o poder de Cr is to . A mesma orao profer ida vr ias vezes, subst i tuindo-se apenas o nome da ent idade malf ica; na IgrejaUn iversal , estas so vr ios exus (da feit iar ia , do vcio, e tc) , qu and o no os prpr ios or ixs.A voz r spida e desaf iadora d o pastor gradat ivam ente se mistura s vozes das obreiras, querepetem operaes semelhantes em outros doentes, e dos demais par t ic ipantes, cada qualenunciando sua prpr ia orao. A atmosfera tensa e parece caminhar para um cl maxfinal . Em meio profuso de vozes e oraes pode-se dist inguir , em intervalos var iveis ,gr i tos de "Sai , sai , sa i" , que m arcam o final de cada orao, qu and o o pastor e /ou obreirasre t i ram bruscamente a mo que vinham compr imindo sobre o doente . Ta l movimento,marcando o cessar repentino de uma presso sobre o corpo, refora a imagem da curaenquanto expulso de a lgo que compr ime e pesa sobre o mesmo.M udan as no com por tam ento do doente durante o r itual - choro, tr emor , perda decons cincia , a taques - so esperadas enqu anto sinais de que a ent ida de nom ead a na oraof inalmente se manifestou. Algumas vezes o pastor se envolve em dilogo direto com taisent idades manifestadas no doente procurando f irmar sua autor idade e poder f rente a e las.A presena das mos sobre o doente t ranstornado caracter iza sua interveno durante opr ocesso .A m etfora da luta permeia todo r i tual : a cura m arca a vi tria do bem sobre o m al .Assim, ao invs de const i tuir -se exclusivamente em assunto pr ivado - busca de melhor iapessoal neste mundo - faz par te do projeto colet ivo do cul to - construo de um subuni-verso de ordem em me io ao caos circundan te . Esse projeto est refle t ido na prp r ia p osiodos par t ic ipantes durante o r i tual : longe de desviar sua ateno do processo de cura,demonstram envolvimento acentuado na batalha que se t rava contra Satans, orandofervorosamente pela expulso f inal das ent idades malf icas do corpo do doente . A perfor-mance , de fato, constri para seus par t ic ipantes o papel de guerreiros aux il iares, co-resp ons v e i s p e l o d e s f e c h o d a l u t a e n c e n a d a a o r e d o r d o c o r p o d o d o e n t e . A c o n ce n

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    t rao da performance no discurso (orao) e o r i tmo crescente em que este profer idoconduzem a representao de um conf l i to que caminha para uma pronta resoluo. Amis tura de vozes descompassadas c r ia um c l ima de tenso cujo car te r ext raordinr ioaponta para a cons t ruo de uma arena espec ia l onde o poder sagrado c i rcula . Nestecontexto o doente to ta lmente envolvido na ba ta lha que se t r ava ao redor do seu corpo,enquanto alvo imediato das palavras e gestos profer idos, no raro objet i f icando atravs demudanas de compor tamento o prpr io desenrola r do drama.A viso de mundo pentecos ta l se assenta em uma oposio r g ida ent re o bem e omal; t ra ta-se , em l t ima instncia , de planos descontnuos e i r reconcil iveis (Brando,1980; Fernandes , 1982) . A doena , enquanto s ina l de desordem, ca tegor ia per tencenteao segundo plano; interpret- la forar a ent idade causadora a se manifestar durante or i tual e , por tanto, conformar a af l io pessoal ao modelo dicotmico do cul to. Nestesent ido, a d im enso in te rpre tat iva no consti tu i processo e laborad o e nem tam pou co requerum enc ontro pr iv ado entre doe nte e o pastor . En cen and o um a batalha con tra o m al , o r itualde cura divina visa conduzir o doente a perceber que foi efet ivamente movido de umuniverso de caos e doen a para um m un do orden ado, o nico que pode garant i r - lhe vi triacontnua contra a enfermidade. Ensina ao doente a necessidade de reor ientar seu comportamento segundo as exignc ias mora is des te novo mundo, f i rmando com e le um compromisso mi l i tante .No quadro do r i tual espr i ta h pouco espao para metforas guerreiras e para aencenao pblica de batalhas contra o mal . No espir i t ismo, boa par te das enfermidades f ruto da ao de esp r i tos obsessores , ent idades menos desenvolvidas que provocam adoena porque de fato ignoram a maneira correta de agir (Greenf ield, 1992; Droogers,1989; Warren, 1984) . No r i tual espr i ta , as ent idades causadoras da doena so tra tadascom gent i leza , como se fossem cr ianas que prec isam ser ens inadas a se compor ta r demaneira apropr iada e motivadas a subst i tuir a ao destrut iva, causadora da doena, poruma ao construt iva e benf ica. Assim, ao curar o doente , os terapeutas espr i tas estotambm cont r ibuindo para o progresso mora l das ent idades responsve is pe la doena . Ametfora da batalha qu e or ienta a cura no cul to pentecostal e que just i f ica a a t i tude agressivado pastor f rente aos espr i tos subst i tuda pela imagem do ensinamento dedicado: a cura essenc ia lmente ta refa pedagg ica pe la qua l espr i tos men os desenv olvidos so cond uzi dos a estgios super iores de existncia .O ens inam ento no espi r it i smo se d em d ois n ve is pr inc ipa is . No p r imei ro , d oentese famil iares se renem para ouvir as pregaes do presidente do centro: l ivretos contendoos pr inc ipa is ens inam entos do cul to so tamb m d is t r ibudos . No segun do nve l , a ao dir igida aos espr i tos responsveis pela doena. Em tais ocasies, o doente e seus acompa

    nhantes so conduzidos a um encont ro mais pr ivado com mdiuns do cent ro .A sesso se inicia quando um dos mdiuns manifestado do espr i to que se a lojano corpo do doente; ento, passa a desenrolar-se um dilogo entre especial is tas re l igiosose o esp ri to , cujo c onted o c la ramen te pedag gico: o esp r i to deve se r persuad ido a m udarde conduta, de modo a permit ir que o doente em cujo corpo se a loja possa recuperar seubem-es ta r . Nes te sent ido, d i fe rentemente do penteco s ta l i smo, ond e o pac iente con duzidoa vivenciar de maneira cr t ica a manifestao do outro em seu corpo, no espir i t ismo ele

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    torna-se um esp ectad or passiv o de um d ilogo entre seu duplo e o terapeuta . A performancedistancia o doente da ao, potencial izando sua capacidade de ref le t i r sobre a ao.A conversa informal cons t i tu i - se no modo de comunicao pr ivi legiado para acon struo d o cenr io da cura. A m ud an a gradual na at itude do espr i to durante as sess es(que podem ser vr ias) , de recusa aber ta ao dilogo a uma crescente sensibi l izao spa lavras do te rapeuta , r edefine o contexto da doena . Emb ora as exor taes do s m diunssejam dir igid as ao espr i to que visam instruir, o r itual busc a atravs dess e pro ces so instruiro doente e m em bros do seu c rculo de apoio a reor ienta rem seu com por tam ento d e acordocom as mudanas que observam se ver if icar no cenr io que constri ( i . e . , na at i tude dosespr i tos em funo da qual def inido ta l cenr io) .

    C O N S I D E R A E S F I N A I SOs centros espr i tas, as igrejas pentecostais e os terreiros de jar constroem, na

    performance r i tual , dist intos projetos de cura. Estudar estes r ituais - e os m eios especf icospe los qua is desmo ntam d e te rminado s cenr ios e c r iam out ros - , em grande med ida , podercompreender como di fe rentes modelos re l ig iosos de cura so t ransformados em imagense prt icas que possibi l i tam u m a ressignif cao da exper inc ia do doen te . Lim itar a anl isedo tra tamento e cura ao contexto do r i tual , entretanto, t raz alguns problemas para oentendimento do papel da rel igio na soluo das doenas e af l ies cot idianas de seusc l ientes .

    Em grande medida i sso se deve a l imi taes nos mesmos modelos ut i l izados paraanal isar o r i tual . Em l inhas gerais , estes se assentam sob duas suposies problemticas.A pr imeira refere-se idia de que a cura consiste em um processo pelo qual o terapeutaconfere ordem exper incia cat ica do doente ( i . e . , t ransforma uma exper incia que insuportvel para o doente , pois desprovida de sent ido em uma exper incia que lhe acei tvel e com a qual pode f inalmente l idar porque reconstruda enquanto total idadesignif icat iva) . A segunda suposio, bastante l igada a esta pr imeira , diz respei to a umaviso do r i tua l enquanto campo homogneo, i . e . , onde os indivduos compar t i lham eacei tam de forma no-diferenciada os signif icados apresentados pelo especial is ta de cura.Sob esta perspect iva, o cul to e mais especif icamente o r i tual passam a ser tomados comocampos fechados , que absorvem do meio soc ia l mais amplo indivduos com exper inc iasinformes e incomunicve is e que aps organizar es tas exper inc ias , devolvem-nos , curados , ao me io .Esta abordagem tem s ido duramente c r i t icada por Tauss ig (1992) , para quem aexp er incia da deso rdem po de vir a ser o prod uto f inal da sucesso de imag ens e gestos nor i tual . A qu esto qu e gostar ia de levantar aqui , entretanto, diz respei to m en os ao s cen r iosque o r i tual apresenta aos seus par t ic ipantes do que aquilo que estes t razem, expressam enegociam no contexto do r i tual . A interpretao que confere ao r i tual funo ordenadorapor exce lnc ia pressupe que os indivduos a l i ingressam desprovidos de modelos paracomunicar e l idar com a af l io, sujei tando-se aos signif icados construdos atravs daperformance. Entre tanto, qu o catica de fato a exp er incia d o doen te antes de entrar no

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    culto e ser submetido ao r i tual ? At que ponto as metforas ut i l izadas na interpretao dor i tual no apresentam uma imagem por demais objet i f icada e passiva dos indivduos -"mo vidos" seg und o dinm ica que parece se r inerente prpr ia performance?Falar de cura como real idade construda social e cul turalmente signif ica , em largam edid a, explorar a perspect iva do s atores na anl ise do process o terapu tico, i . e . , dar con tade pr t icas que envolvem planos , in tenes e or ientaes mtuas . No que toca o es tudodos r i tuais de cura recuperar a perspect iva dos atores, no apenas repensar o modelo deanl ise do r i tual , mas de fato ampliar o foco do estudo para alm do campo especf ico daperformance e busc ar a sua ar t iculao com conte xtos m ais abrange ntes de relaes soc iais .Sem que es ta a r ticulao seja e fe t ivamente explorada - i . e . , enquan to a an l i se perm anecerrestr i ta aos smb olos e prt icas r ituais - dif ic i lmente se po der com pree nd er o qu e garanteo sucesso da ordenao imposta pelo r i tual . Isso, porque o sucesso de um projeto de curadepende em larga medida da existncia de redes de relaes sociais que o sustentemenquanto discurso dotado de autor idade .O tema da produo de signif icados - que or ienta grande par te dos estudos sobrer i tual - aparece, assim, indissoluvelmente l igado questo da manuteno de signif icados,i . e . , de discurso s legi t imad os no curso de determ inada s interae s sociais , tanto ao interiordo domnio do r i tua l como tambm fora de le . Es ta ques to espec ia lmente re levante nocontexto po pular urbano, onde um a ampla gam a de se rvios re l ig iosos de cura d isponve le e fe t ivamente ut i l izada pe los indivduos durante um m esm o episdio de doena . A , longede ser resul tad o direto de m edid as r i tuais , a cura aparece co m o real idade, por veze s bastan tef rgil , que prec isa se r cont inuam ente conf i rmada no cot id iano do doente e mem bros d o seuc rculo de apo io .Inquir ir sobre os t ra tamentos rel igiosos , assim, no apenas compreender a dinmica in te rna do r i tua l , como tambm explorar o contexto mais amplo sobre o qua l sedesenvolve a exper incia da doena e da cura. Por um lado, isso implica invest igar ospr ocessos de in t e r ao ( r edes soc i a i s ) que sus t en t am de te r minadas in t e r p r e t aes ,c o n f e r i n d o - l h e s l e g i t i m i d a d e . P o r o u t r o , i m p l i c a a n a l i s a r a r e l a o e n t r e o s s m bo los e p r t i c a s r i tua i s e o p r pr io cur so da doen a , v i s to aqu i co m o r ea l idade cu l tu r ale b io lg ica .

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