Stalin de Leon Trotsky Prologo de Osvaldo Coggiola

113
1 TROTSKY, STALIN, E A BUROCRACIA DA URSS Osvaldo Coggiola Pouco mais de setenta anos depois de sua redação, o Stalin de Leon Trotsky poderia ser considerado só um documento histórico, portanto datado. Seria, em nossa opinião, uma consideração estreita. Leon Trotsky não tinha concluido sua biografia de Stalin, cujo manuscrito se encontrava na sua mesa de trabalho, quando um agente deste, Ramón Mercader del Rio, assassinou-o. O atentado foi cometido no dia 20 de agosto de 1940, Trotsky faleceu no dia 21. “Jacson Mornard” (o falso nome que o agente usava  junto a Trotsky e seus companheiros) era, na verdade, o braço executor de um grupo especial da NKVD (sucessora da GPU, polícia política stalinista), grupo encabeçado no México pelo general soviético Leonid Eitingon, montado e dirigido desde a URSS por Pável Sudoplátov sob órdens e supervisão direta de Stalin. O grupo tinha como tarefa assassinar Trotsky, refugiado no México desde 1936. Em maio, um atentado precedente (fracassado), com bombas e metralhadoras, fora realizado por um grupo chefiado pelo pintor muralista David Alfaro Siqueiros, membro do Partido Comunista do México. A tradução inglesa (para os EUA) dessa obra inacabada havia sido revisada pelo próprio Trotsky, com exeção do último capítulo, e estava pronta em 1941, quando os EUA entraram na Segunda Guerra Mundial, e se transformaram em aliados bélicos da URSS (ou seja, de Stalin): a Harper & Brothers  adiou então sua publicação (“para época posterior à finalização da guerra”), que só aconteceria em março de 1946. Nos EUA, na década de 1930, havia crescido a influência política de Trotsky nos meios intelectuais de esquerda, desiludidos com a política do PC norte-americano e com os expurgos comandados por Stalin na URSS. Durante o atentado, partes do manuscrito do Stalin ficaram manchadas de sangue devido à luta travada por Trotsky com o assassino em seu escritório, outras foram destruídas. Nunca saberemos, portanto, qual seria a feição definitiva do texto de Trotsky. A edição inglesa procurou recuperar o máximo possível do texto, introduzindo palavras e pequenos fragmentos para dar coerência e legibilidade às partes que Trotsky deixara inacabadas (e indicando, no texto publicado, essas palavras e fragmentos, assim como também é feito nesta edição). A primeira edição portuguesa foi publicada em 1947, pelo Instituto Editorial Progresso, de São Paulo, com tradução do militante trotskista brasileiro Victor de Azevedo. A tradução espanhola foi publicada por Plaza & Janés (de Barcelona). Em anos posteriores, na América Latina, teve boa divulgação a edição mexicana, de Juan Pablos Editora. Em 1981 trabalhamos, na Editora Cidade do Homem (de São Paulo) em uma nova edição brasileira, dividida em três volumes, dos quais só dois foram publicados. Graças aos cuidados da Editora Livraria da Física (dirigida por um antigo editor da Cidade do Homem) temos agora a segunda edição brasileira completa desta obra. Foi preservada a tradução realizada por Victor de Azevedo, compulsada com a versão original inglesa, e com as edições em língua espanhola. Trata-se de uma “biografia vingativa” de Stalin, responsável pela exclusão (do partido e da URSS) e perseguição internacional de Trotsky, como sustenta, por exemplo, o cubano Leonardo Padura (em El Hombre que Amaba los Perros, ficção histórica recente)? Trotsky já tinha analisado detalhadamente a ascensão da burocracia stalinista na URSS, o usufruto em seu próprio benefício das conquistas da Revolução de Outubro de 1917 (expropriação da aristocracia fundiária e da burguesia capitalista, nacionalização e planejamento centralizado da economia, monopólio do comércio externo) e o indispensável papel ditatorial exercido (inclusive sobre a própria burocracia) por Stalin, assim como seu papel histórico e internacional. A Revolução Traída, publicada em 1936, foi o trabalho mais completo de Trotsky nesse sentido, mas não o único. O Stalin “biográfico” era seu complemento necessário?

Transcript of Stalin de Leon Trotsky Prologo de Osvaldo Coggiola

  • 1

    TROTSKY, STALIN, E A BUROCRACIA DA URSS Osvaldo Coggiola

    Pouco mais de setenta anos depois de sua redao, o Stalin de Leon Trotsky poderia ser considerado s um documento histrico, portanto datado. Seria, em nossa opinio, uma considerao estreita. Leon Trotsky no tinha concluido sua biografia de Stalin, cujo manuscrito se encontrava na sua mesa de trabalho, quando um agente deste, Ramn Mercader del Rio, assassinou-o. O atentado foi cometido no dia 20 de agosto de 1940, Trotsky faleceu no dia 21. Jacson Mornard (o falso nome que o agente usava junto a Trotsky e seus companheiros) era, na verdade, o brao executor de um grupo especial da NKVD (sucessora da GPU, polcia poltica stalinista), grupo encabeado no Mxico pelo general sovitico Leonid Eitingon, montado e dirigido desde a URSS por Pvel Sudopltov sob rdens e superviso direta de Stalin. O grupo tinha como tarefa assassinar Trotsky, refugiado no Mxico desde 1936. Em maio, um atentado precedente (fracassado), com bombas e metralhadoras, fora realizado por um grupo chefiado pelo pintor muralista David Alfaro Siqueiros, membro do Partido Comunista do Mxico.

    A traduo inglesa (para os EUA) dessa obra inacabada havia sido revisada pelo prprio Trotsky, com exeo do ltimo captulo, e estava pronta em 1941, quando os EUA entraram na Segunda Guerra Mundial, e se transformaram em aliados blicos da URSS (ou seja, de Stalin): a Harper & Brothers adiou ento sua publicao (para poca posterior finalizao da guerra), que s aconteceria em maro de 1946. Nos EUA, na dcada de 1930, havia crescido a influncia poltica de Trotsky nos meios intelectuais de esquerda, desiludidos com a poltica do PC norte-americano e com os expurgos comandados por Stalin na URSS. Durante o atentado, partes do manuscrito do Stalin ficaram manchadas de sangue devido luta travada por Trotsky com o assassino em seu escritrio, outras foram destrudas. Nunca saberemos, portanto, qual seria a feio definitiva do texto de Trotsky. A edio inglesa procurou recuperar o mximo possvel do texto, introduzindo palavras e pequenos fragmentos para dar coerncia e legibilidade s partes que Trotsky deixara inacabadas (e indicando, no texto publicado, essas palavras e fragmentos, assim como tambm feito nesta edio). A primeira edio portuguesa foi publicada em 1947, pelo Instituto Editorial Progresso, de So Paulo, com traduo do militante trotskista brasileiro Victor de Azevedo. A traduo espanhola foi publicada por Plaza & Jans (de Barcelona). Em anos posteriores, na Amrica Latina, teve boa divulgao a edio mexicana, de Juan Pablos Editora. Em 1981 trabalhamos, na Editora Cidade do Homem (de So Paulo) em uma nova edio brasileira, dividida em trs volumes, dos quais s dois foram publicados. Graas aos cuidados da Editora Livraria da Fsica (dirigida por um antigo editor da Cidade do Homem) temos agora a segunda edio brasileira completa desta obra. Foi preservada a traduo realizada por Victor de Azevedo, compulsada com a verso original inglesa, e com as edies em lngua espanhola.

    Trata-se de uma biografia vingativa de Stalin, responsvel pela excluso (do partido e da URSS) e perseguio internacional de Trotsky, como sustenta, por exemplo, o cubano Leonardo Padura (em El Hombre que Amaba los Perros, fico histrica recente)? Trotsky j tinha analisado detalhadamente a ascenso da burocracia stalinista na URSS, o usufruto em seu prprio benefcio das conquistas da Revoluo de Outubro de 1917 (expropriao da aristocracia fundiria e da burguesia capitalista, nacionalizao e planejamento centralizado da economia, monoplio do comrcio externo) e o indispensvel papel ditatorial exercido (inclusive sobre a prpria burocracia) por Stalin, assim como seu papel histrico e internacional. A Revoluo Trada, publicada em 1936, foi o trabalho mais completo de Trotsky nesse sentido, mas no o nico. O Stalin biogrfico era seu complemento necessrio?

  • 2

    comum considerar este trabalho de Trotsky inferior ao conjunto da sua obra. Para Trotsky, a burocratizao da URSS no foi um fenmeno natural, mas o produto de lutas polticas em que, depois da revoluo, surgira uma nova camada social dominante, que no era uma simples excrescncia a ser eliminada pelo desenvolvimento histrico.1 Isso exigia esclarecer o fundo histrico (ideolgico, social e cultural) em que surgira, e vencera, a burocracia stalinista, originada nas fileiras da revoluo e do bolchevismo, no sendo, porm, sua continuidade, mas, ao contrrio, sua negao, ao ponto de t-lo exterminado fisicamente. As qualidades especficas de Stalin ganhavam, nesse contexto, importncia histrica: mestre da dissimulao, definiu-o Richard Overy, para explicar sua ascenso no aparelho, sobrevivendo aos momentos mais difceis de sua carreira; mestre da dosagem, chamou-o Trotsky, conhecedor pessoal dessa carreira. Se tratava, atravs da biografia de Stalin, de pr em evidncia as razes da degenerao da revoluo sovitica, e as bases do stalinismo como corrente poltica.

    Leon Trotsky poca da Revoluo de 1905

    As prpias singularidades da trajetria de Trotsky s se compreendem plenamente como resumo do percurso de uma gerao revolucionria, no fim da Belle poque e na virada para o sculo XX, luz das comoes mundiais provocadas pela Primeira Guerra Mundial. Diversamente de Stalin, em todas as fases da revoluo russa, Trotsky (codinome de Lev Davidovitch Bronstein) ocupou o centro do palco poltico, exercendo diversas responsabilidades: presidente do soviet (conselho operrio) de Petrogrado (nas revolues de 1905 e 1917), responsvel pela organizao da insurreio de outubro de 1917 (como dirigente do Comit Militar Revolucionrio do soviet), responsvel pela poltica externa da Rssia sovitica nos primeiros meses do novo poder, responsvel pela direo do Exrcito Vermelho durante a guerra civil e a interveno externa, responsvel pela reconstruo do sistema de transportes e comunicaes e, finalmente, principal opositor a Stalin no partido e na URSS. O partido em que ingressou s em agosto de 1917 (o partido bolchevique, depois rebatizado como Partido Comunista), na vspera da Revoluo de Outubro, ficou conhecido como o partido de Lnin e Trotsky, um fato menos surpreendente do que parece, se considerarmos que o bolchevismo, at pouco antes, era uma das fraes da social-democracia russa, que o prprio bolchevismo possuia diversas fraes, e que, em 1917, foi o canal principal em que convergiram diversas correntes e militantes revolucionrios (social-democratas) de longa trajetria, ou seja, que a adeso tardia de Trotsky esteve longe de ser a nica: Uritski, Lozovsky, Antonov-Ovseenko, Manuilski, Vladimirov, Angelica Balabanova, Chudnovski, Lunacharski, Rizanov, Pokrovski, Radek, Ioffe, todos eles depois conhecidos

    1 Claude Lefort afirmou que, para Trotsky, a burocracia no era mais que uma simples casta, parasitria e

    transitria, superposta a uma infraestrutura socialista, o que no corresponde verdade. Trotsky insistiu em que a URSS era uma sociedade intermediria entre o capitalismo e o socialismo. Qualificar de intermedirio ou transitrio o regime sovitico, significa afastar categorias sociais acabadas, como capitalismo (includo o capitalismo de estado) ou socialismo (A Revoluo Trada). Lefort viu no terror staliniano uma circunscrio da alteridade, onde se articularam harmoniosamente planejamento (econmico), coletivizao, industrializao e campos de concentrao.

  • 3

    dirigentes bolcheviques, tiveram trajetria semelhante. Stalin, velho bolchevique, por outro lado, esteve longe de ser um personagem secundrio na histria precedente.

    Depois da morte de Lnin (1924) Trotsky ridicularizou a tentativa de construir um leninismo artificial contraposto no s ao chamado trotskysmo, mas tambm apresentado como superao do prprio marxismo de Marx (o leninismo o marxismo da era das revolues proletrias, escreveu Stalin). A noo de leninismo surgiu em 1924, atravs de uma srie de proposies simples e repetidas, configurando uma espcie de catecismo, apoiadas em citaes de Lnin tiradas do seu contexto (Lenin escrevendo sobre a vitria do socialismo na Rssia virou, por exemplo, partidrio do socialismo num s pas). Em alguns anos, o leninismo transformou-se no leninismo-stalinismo. As suas idias-fora eram: o partido deve ser monoltico (de ao, de uma pea s, em tenso permanente). No haveria mais divergncias internas, mas desvios, introduzidos do exterior, que traduziriam a ideologia do inimigo de classe. Toda tolerncia com eles seria liberalismo (o prprio Stalin tinha acusado Lnin de liberalismo nacional, durante a crise suscitada pela questo georgiana). A discusso interna foi susbstituda pela prtica da crtica e da autocrtica, sendo esta ltima uma arma nas mos da direo partidria, possuidora da linha justa geral. E, diversamente do sustentado por Lnin em O Estado e Revoluo, o Estado no se extinguiria, mas se reforaria, devido ao agravamento da luta de classes, resistncia dos resduos das classes inimigas, etc. Ficava assim estabelecida a base terica para o ataque contra qualquer oposio, que passou a ser realizado atravs da polcia poltica do Estado e da violncia fsica. E tambm para a defesa de um novo objetivo: a construo do socialismo, agora possvel em um s pas. Para isso, reforou-se o messianismo nacional russo: enfatizaram-se encomisticamente as caractersticas peculiares da nao e do povo russos, a originalidade do seu desenvolvimento histrico (o historiador bolchevique M. N. Pokrovski negou-se a cumprir essa tarefa historiogrfica).2 A Internacional Comunista, criada em 1919, passou a ser um instrumento de defesa da ptria socialista, ou seja, um instrumento da poltica exterior da URSS, cuja conduta internacional no deveria trazer ameaas s conquistas obtidas nessa ptria.

    Mikhail Nikolayevitch Pokrovski

    2 Mikhail Nikolayevich Pokrovski (1868-1932) graduou-se na Universidade de Moscou em 1891. Bolchevique desde

    1905, publicou livros sobre a histria da Rssia baseados no materialismo histrico em 1910-1913. Sua Breve Histria da Rssia, publicada em 1920, foi muito apreciada por Lnin, que a prefaciou. Pokrovski chefiou o Instituto de Professores Vermelhos entre 1921 e 1931. Em 1929, foi eleito para a Academia Sovitica de Cincias. Foi responsvel pela excluso de historiadores do antigo regime da academia sovitica, junto aos quais no gozava de prestgio. Foi o historiador mais importante do primeiro perodo da Rssia sovitica. Caiu no ostracismo depois, acusado de "sociologismo vulgar". Seus livros foram banidos: sua oposio a considerar o papel central das grandes personalidades na histria chocou-se com o incio do culto personalidade (de Stalin) que, durante a Segunda Guerra Mundial, foi extendido, na historiografia oficial (e at no cinema, vide os filmes de Eisenstein Iv, o Terrvel ou A Conspirao dos Boyardos) aos mais importantes czares, dos quais Stalin proclamou-se implicitamente continuador: Pokrovski era um inimigo declarado do nacionalismo russo. Depois da morte de Stalin, sua obra foi reconsiderada na URSS, sem voltar a ter, no entanto, grande influncia. Sua morte, em 1932, poupou-lhe certamente um destino final nos campos stalinistas.

  • 4

    Joseph Stalin (codinome de Ioseb Besarionis Dze Djughashvili) tinha nascido na Gorgia, oficialmente, a 21 de dezembro de 1879 (as fontes atuais situam seu nascimento em 1878), quase contemporaneamente ao nascimento de Trotsky, em um lar muito pobre. Depois dos estudos bsicos, cursou um seminrio da Igreja Ortodoxa (esses seminrios eram um instrumento da poltica de russificao do Imprio Czarista), onde aprendeu russo (que sempre falou com marcado sotaque georgiano), e do qual acabou expulso. Em 1898, vinculou-se a um grupo social-democrata (do POSDR, Partido Operrio Social-Democrata da Rssia). Em 1901 participou da criao do peridico clandestino A Luta. Seu apelido juvenil de Sosso, virou Koba. Membro do comit social-democrata clandestino de Tbilisi, em 1902 foi preso e deportado para a Sibria, de onde fugiu em 1904. Em 1905 participou da organizao uma greve geral em Baku; e tambm encontrou Lnin no congresso partidrio (bolchevique) realizado em Finlndia. Com a derrota da Revoluo de 1905, Stalin foi preso e deportado vrias vezes (em tempos recentes, devido s suas sucessivas liberaes, levantou-se a hiptese de que fora, nesse perodo, confidente da polcia poltica czarista, a Okhrana).3 Preso novamente em 1908, foi banido para Vologda, de onde fugiu novamente, dirigindo-se em junho para So Petersburgo. Eleito para o Comit Central da frao bolchevique, foi preso mais uma vez em 1910, fugindo em meados do ano seguinte. Durante um breve exlio em ocidente, trabalhou com Lnin sobre a questo nacional, do que resultaria um texto que credenciou Stalin como terico na matria: devido a Stalin pertencer a uma minora tnica era da Osstia, uma sub-regio da Gergia Lnin encarregou-o de elaborar um documento que contestasse as teses do austro-marxista Otto Bauer sobre a questo das nacionalidades, importante para os socialistas austracos e russos, visto que tanto o imprio dos Habsburgo como o dos Romanovs compunham-se de um conglomerado de distintas nacionalidades, etnias e religies. Novamente preso em 1913, Stalin foi exilado para o crculo polar rtico, de onde seria libertado, em maro de 1917, pelo governo Kerenski. Em 1913, tambm, adotou o codinome pelo qual ficaria conhecido: Stalin (ao). Segundo Trotsky, Lnin prezava sua tenacidade, sua audcia, sua obstinao e, at certo ponto, sua hipocrisia, como atributos importantes para a luta.

    Em 1917, j editor do jornal do partido, Pravda, Stalin foi reconduzido ao Comit Central do partido bolchevique. Depois da insurreio de outubro ingressou no governo sovitico (Sovnarkom), ocupando o cargo de presidente do Comissariado das Nacionalidades. Os trs anos seguintes foram marcados pela guerra civil (em que teve vrios enfrentamentos com o principal comandante militar sovitico, o prprio Trotsky, que lhe geraram fortes rancores) depois da qual Stalin, embora pouco conhecido das massas, ascendeu dentro da mquina partidria. Em 1919, entrou no recm criado Politburo (Bur Poltico) do Comit Central, sendo designado um dos quatro lderes do partido (junto com Lnin, Trotsky e Sverdlov, que faleceria logo depois). Nesse ano foi reorganizada a estrutura partidria (at ento bastante catica), com a criao (no CC) do Politburo e do Bur de Organizao, o que significava, de fato, a reorganizao poltica do Estado, pois o funcionamento dos soviets se esvaziara durante a guerra civil, e o PC(b) passara a ser, de fato (no declaradamente) partido nico, depois da dissoluo, em maio de 1918, dos socialistas revolucionrios (SR) de esquerda, aliados iniciais dos bolcheviques no Sovnarkom. No mesmo ano de 1919, Stalin passou o acupar um posto chave para sua ascenso: responsvel pela Inspeo Operria e Camponesa (Rabkrin), encarregada do controle do Estado, cujas ramificaes passou a conhecer melhor que qualquer outro dirigente sovitico. Em abril de 1922 foi designado secretrio geral do partido. Este cargo (no incio, restrito organizao da agenda e pauta do Politburo) deu uma nova dimenso de poder a Stalin. A burocratizao do poder sovitico, nessa altura, no era s um

    3 Cf. Edvard Radzinsky. Joseph Staline. Paris, Le Cherche Midi, 2011.

  • 5

    processo objetivo, mas tambm poltico e consciente, impulsionado por uma frao partidria no declarada, chefiada pelo prprio Stalin.4

    Na fase final de sua vida, Lnin tinha diagnosticado e se insurgido contra o fenmeno burocrtico, defendendo a renovao peridica dos dirigentes, a volta ao campo ou s fbricas, a substituio da nomeao pela eleio, propostas em um texto pstumo dirigido ao partido. Mas Lnin morreu em janeiro de 1924 sem conseguir reverter, ou sequer frear, o processo. O Testamento de Lnin, redigido pouco antes de sua agonia, foi lido, a 18 de maio desse ano, para os membros do Comit Central (CC), nos dias prvios reunio do XIII Congresso do PC(b). Nele, lia-se: O camarada Stalin, aps tornar-se secretrio geral concentrou em suas mos poderes ilimitados, e no estou convencido de que sempre conseguir usar esse poder com suficiente cuidado. Em um adendo ao documento, redigido depois de uma agresso fsica de Ordjonikidz (prximo de Stalin) aos dirigentes bolcheviques georgianos, Lnin reclamou simplesmente a remoo de Stalin dessa responsabilidade. O CC no deu seqncia ao pedido de Lnin, por solicitao de Zinoviev e Kamenev (logo depois, sabendo que no seria aceita, Stalin ofereceu ao CC sua renncia, uma atitude de falsa humildade que foi, para seus bigrafos, um exemplo de seu maquiavelismo). No se deve exagerar a importncia desse episdio: um eventual recuo ttico de Stalin no aparelho (Lnin no propunha sua excluso da direo ou do partido) no poderia, nessa altura, deter um processo imparvel; provavelmente s teria mudado alguma de suas formas polticas. O partido essencialmente operrio (com uma frao importante de intelectuais na sua direo) de 1917 j tinha se aberto largamente ao campesinato (origem de 30% dos seus 700 mil membros em 1921) e, sobretudo, ao recrutamento massivo, sem estgio probatrio, que comeou com a promoo Lnin, de 1924, realizada sob responsabilidade de Stalin, consecutiva ao falecimento do lder: 200 mil novos membros foram incorporados nessa promoo, inexperientes, mas j elegveis para cargos de responsabilidade.

    Vladimir Ilitch Ulianov, Lnin

    Dos novos militantes, 30% apenas sabiam ler, e no mais do que 10% eram capazes de manter um debate poltico srio. Em cima e no controle deles existia um aparelho enorme e piramidal, em cujo vrtice encontrava-se Stalin, secretrio-geral do Politburo e membro do Bur de Organizao, o Orgburo (o nico dirigente que pertencia aos dois corpos). Sob sua direo se encontravam os departamentos do secretariado, com amplos poderes de nomeao, revogao e deslocamento. E, sobretudo, a seo especial (ou secreta) do CC, dirigida a partir de 1929 por Poskrebyschev,5 encarregada das relaes com a polcia poltica (a GPU,

    4 Cf. Aleksandr Podtchekoldin. 1922: o nascimento da partidocracia na URSS. In: Osvaldo Coggiola.Trotsky Hoje. So

    Paulo, Ensaio, 1992. 5 Alexandre Nikolaevitch Poskrebyschev (1891-1965) foi secretrio particular de Stalin desde 1929, ficando no

    posto at a morte deste (1953). Ingressou no partido bolchevique em 1917. Foi comissrio poltico no Exrcito Vermelho no Turquesto. Formou-se, depois (1927), em Direito. Em 1937 foi nomeado membro suplente do Comit Central do PCUS, e titular em 1939. Dirigiu a seo secreta (chamada Seo Especial a partir de 1934) do Comit Central, se ocupando da correspondncia secreta do secretrio geral e de sua agenda. Em 1938, redigiu uma Breve

  • 6

    sucessora da Tcheka) e diretamente acompanhada por outro secretrio de Stalin, Malenkov,6 futuro fugaz premi da URSS. O sistema (burs, comits) se organizava sob o princpio da nomeao, e era chamado de nomenklatura (listas de nomeao). Qual era a composio dos apparatchiki (homens do aparelho) na dcada de 1920? Entre os dirigentes, 22% de velhos bolcheviques; 18% de aderentes poca da guerra civil; o restante eram recrutas posteriores a 1924. A desmoralizao poltica dos velhos quadros se fazia evidente com a supresso do mximo comunista dos salrios e com a institucionalizao de privilgios: carros funcionais, envelopes (prmios, ou verbas de representao) e, sobretudo, verbas em rublos-ouro (os nicos conversveis em divisas externas) para tratamentos de sade no exterior (quer eles fossem realizados ou no). Os valores da concorrncia (acumulao) individual comearam a voltar com fora.

    Em 1921, com o pas arrasado pelas guerras, cercado pelas potncias ocidentais, e com a classe operria desarticulada, ps-se em andamento a Nova Poltica Econmica (NEP), ampliando a margem dos mecanismos de mercado, e buscando incrementar, sobretudo, a produo agrria. A essa altura, a concepo de Lnin, de um partido enxuto de revolucionrios empenhados na igualdade e no combate opresso, parecia um anacronismo. Em 1920, 53% dos membros do partido trabalhavam em instituies estatais, e 27% estavam no Exrcito Vermelho. J era claro que a entrada no partido proporcionava certos privilgios. O aparelho do partido passou, progressivamente, a identificar-se com o aparelho do Estado.

    Poskrebyschev e suas filhas em 1940. A me delas j estava detida

    Histria do PCUS (Partido Comunista da Unio Sovitica). Sua segunda mulher, Bronislava Poskrebyscheva, foi detida em 1939 pela NKVD, ficando Poskrebyschev em situao semelhante de Molotov (com um cargo dirigente, mas com a esposa detida, de fato refm). Bronislava foi fuzilada em 1941. Burocrata extremamente eficiente, preparou a documentao da URSS para as conferncias de Yalta e Potsdam, no fim da Segunda Guerra Mundial. Ocupou-se tambm da sade de Stalin. Em 1952, chegou ao posto de secretrio do Presidium do Comit Central, fugazmente. Foi brevemente detido depois da morte de Stalin, em 1953, depois libertado e aposentado, vivendo at sua morte nos arredores de Moscou. 6 Gueorgi Maksimilinovitch Malenkov (1902-1988) nasceu em Orenburg, em uma famlia de oficiais militares.

    Entrou para o Exrcito Vermelho em 1919 e para o PC(b) em abril de 1920. Aps dar baixa do exrcito em 1921, estudou na Escola Tcnica Superior de Moscou. Formou-se em 1925 e se tornou um dos confidentes de Stalin. Ajudou Stalin durante os expurgos e os massacres de 1936-1938. Foi indicado para o Politburo, no qual s entraria em 1946, preterido por seus adversrios Andre Jdanov (cultura) e Laurentiy Beria (segurana), mas voltou s graas de Stalin aps a derrocada de Jdanov. Uniu ento foras com Beria para que aliados de Jdanov fossem excludos e enviados para campos de trabalho. Em 1952, tornou-se membro do secretariado do partido. Com a morte de Stalin, no ano seguinte, chegou a ser nomeado premi e primeiro-secretrio do partido, mas foi forado a renunciar liderana do partido em 13 de maro, sendo sucedido por Nikita Khruschev, criando uma espcie de duunvirato, pois Malenkov continuou como premi por dois anos. Nesse perodo, defendeu a reorientao da economia sovitica para a produo de bens de consumo em detrimento da indstria pesada. Foi destitudo de seu cargo em fevereiro de 1955, atacado por suas ligaes com Beria (executado em 1953) e pelo ritmo lento das reformas, particularmente quanto reabilitao de presos polticos, mas permaneceu no Presidium do CC. Em 1957 foi forado a renunciar em virtude de sua suposta participao numa tentativa de depor Khruschev, da qual tambm teriam participado Nikolai Bulganin, Viatcheslav Molotov e Lazar Kaganovitch. Em 1961, foi expulso do PCUS e exilado internamente: virou gerente de uma usina hidreltrica no Cazaquisto at morrer.

  • 7

    O regime sovitico conseguira alguma estabilidade externa, graas s vitrias militares em quase todas as frentes da guerra civil, mas sua situao interna se tornava cada vez mais complicada, com greves em Petrogrado e, sobretudo, com o levantamento da fortaleza martima de Kronstadt. Coube a Trotsky chefiar a represso rebelio de Kronstadt, como responsvel militar do Estado. A represso foi votada pelo X Congresso do PC(b), includa a Oposio Operria, chefiada por Chliapnikov e Alexandra Kollontai, oposio s vezes apresentada (deturpadamente) como expresso (conjuntamente com o levantamento de Kronstadt) da luta pela democracia operria contra a ditadura bolchevique. Anos depois, Trotsky situou e justificou a represso de Kronstadt, no quadro dos mesmos problemas que puseram a revoluo a perigo naquele momento: O exrcito russo se encontrou tambm sob a influncia do campo. Durante os anos da guerra civil foi necessrio, mais de uma vez, desarmar regimentos descontentes. A introduo da Nova Poltica Econmica (NEP) atenuou a tenso, mas no a eliminou. Pelo contrrio, preparou o caminho para o renascimento dos kulaki (camponeses ricos) e levou, no incio dessa dcada, renovao da guerra civil na aldeia. O levantamento de Kronstadt foi somente um episdio na histria das relaes da cidade proletria e a aldeia pequeno-burguesa. S possvel compreender esse episdio em relao com o curso geral do desenvolvimento da luta de classes durante a revoluo.7

    Gueorgi Malenkov

    Pouco antes da insurreio de Kronstadt, Karl Radek tinha resumido brutalmente a situao do governo bolchevique:8 O partido a vanguarda consciente da classe operria. Chegou o momento em que o grosso das massas operrias est cansado, receoso de seguir uma

    7 Leon Trotsky. Escritos. Vol. XI (1937-1938), Bogot, Pluma, 1974, p. 201.

    8 Karl Radek (1885-1939) nasceu Karol Sobelsohn, numa famlia de judeus poloneses, em Lemberg (atualmente

    Lvov, na Ucrnia, na poca parte da Polnia sob o Imprio Austro-Hngaro). Entrou na social-democracia russa em 1898, participando da Revoluo de 1905 em Varsvia. Exilado na Alemanha, entrou para a social-democracia alem, da qual foi expulso em 1913. Internacionalista durante a Primeira Guerra Mundial, quando viveu na Sua, vinculado Esquerda de Bremen, e a Lnin e o movimento de Zimmerwald, foi, com Alexander Parvus e Ikov Ganetski, mediador entre Lnin e as autoridades alems para a autorizao da passagem do lder bolchevique pela Alemanha, em 1917, sob promessa de retirar a Rssia da guerra. Voltou para Rssia depois de fevereiro de 1917, indo logo para Estocolmo, onde publicou as revistas Russische Korrespondez-Pravda e Bote der Russischen Revolution, divulgando as posies bolcheviques em alemo. Entrou para o partido bolchevique tambm em 1917. Jornalista brilhante e poliglota, escreveu o opsculo As Foras Motoras da Revoluo Russa, amplamente divulgado na Europa. Esteve na Alemanha entre 1918 e 1920 para ajudar a organizar o Partido Comunista Alemo (KPD), com Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, chegando a ser preso, e a desempenhar funes consulares do governo sovitico na cela da priso. Em 1920, voltou para a Rssia e entrou para a direo da Komintern (Internacional Comunista). Pioneiro da revoluo sexual, sua campanha contra a moral burguesa e pelo amor livre impregnaram a propaganda revolucionria na Rssia sovitica ao ponto de uma gerao de filhos de mes solteiras ficar conhecida como a prole de Karl Radek. Com Dmitri Manuilsky, foi enviado pela Komintern Alemanha, para participar da frustrada insurreio de novembro de 1923. Em 1924, perdeu seu posto no Comit Central bolchevique, e em 1927 foi expulso do partido. Elizabeth Poretski lhe atribuiu diversas piadas polticas sobre Stalin, que circulavam em Moscou nessa poca. Depois recuou, foi readmitido no partido em 1930, e ajudou a escrever a Constituio sovitica de 1936. Durante o expurgo do ano seguinte, no entanto, foi acusado de traio e confessou no Processo dos Dezessete, em 1937, sendo condenado a dez anos de trabalhos forados. Morreu executado em um campo de trabalho, em 1939, por ordem direta de Beria, chefe da NKVD.

  • 8

    vanguarda que continua arrastando-as pelo caminho das lutas e dos sacrifcios. Devemos ceder a trabalhadores no limite de suas foras fsicas e da sua pacincia, menos esclarecidos do que ns sobre seus prprios interesses gerais? Seu estado de esprito se torna por momentos claramente reacionrio. O partido estima que no pode ceder, que deve impor sua vontade de vencer aos trabalhadores cansados, dispostos a ceder. Conceitualmente, isto no pode ser confundido com a transformao do partido em um ente supra-histrico, dirigido por um gua genial, embora indique o solo em que essa concepo floresceu.

    A represso da rebelio de Kronstadt (1921)

    Uma adoo mais rpida da nova poltica econmica teria evitado a rebelio de Kronstadt? A NEP foi adotada como medida temporria, em 1921, para substituir a poltica do comunismo de guerra, baseada nas requisies foradas, que prevaleceu durante a guerra civil. Permitiu um crescimento do comrcio livre e das concesses estrangeiras junto aos setores econmicos nacionalizados e controlados pelo Estado. Estimulou o crescimento de uma classe de camponeses ricos, de uma burguesia comercial (os nepmen), e de concesses para o comrcio e o cultivo privados. Para Edward H. Carr, a NEP no s foi decisiva para os rumos futuros do Estado sovitico na Rssia, mas tambm a viga mestra da sua poltica internacional: O advento da NEP, que teve a conseqncia imprevista de fortalecer a autoridade central do partido, estimulou tambm as foras centralizadoras que j atuavam na formao do Estado sovitico. O entusiasmo da massa de 1917 com a destruio do poder estatal havia desaparecido no mundo dos sonhos no realizados. Estes continuaram a perseguir as lembranas de muitos membros do partido. Mas desde [o Tratado de] Brest-Litovsk e o fim da guerra civil, a necessidade de criar um poder estatal suficientemente forte para enfrentar essas emergncias havia sido forosamente aceita. Era, agora, reforada pela necessidade de construir a economia nacional, devastada e despedaada. O perodo da NEP no s modelou o que viria a ser a estrutura constitucional permanente da URSS, como tambm determinou as linhas a serem seguidas durante muitos anos em suas relaes com os pases estrangeiros.9

    Houve, portanto, uma NEP da poltica externa, que incluiu o III Congresso da Internacional Comunista (IC), que adotou a poltica da frente nica operria? A realidade parece mais complexa. Em 1921 apareceram os sintomas de uma estabilizao, no s do capitalismo, mas tambm da situao poltica mundial criada pelo surgimento da Rssia sovitica: no III Congresso da IC, Trotsky indicou que a revoluo mundial no era mais questo de semanas ou de meses, mas de anos. Havia uma espcie de empate histrico: a revoluo no fora derrotada pela presso e interveno militar externa, mas ela estava contida nos limites da Rssia sovitica. Lnin referiu-se revoluo russa como sendo, por esse motivo, semi-vitoriosa e semi-derrotada. A guerra provocara enormes destruies na Rssia, o retrocesso quase completo das trocas comerciais e do abastecimento: as cidades haviam perdido 30% dos seus habitantes, as linhas de transporte no funcionavam, a populao sofria fome e frio (7,5 milhes de russos foram vtimas da fome e das epidemias). A classe operria vivia um processo de decomposio, ao mesmo tempo em que se operava uma rigorosa centralizao militar de

    9 Edward H. Carr. A Revoluo Russa de Lenin e Stalin (1917-1929). Rio de Janeiro, Zahar, 1980, p. 43.

  • 9

    recursos (o comunismo de guerra). O endurecimento do regime, o surgimento da Tcheka (polcia poltica), a passagem dos outros partidos polticos (inclusive de esquerda) para o campo contra-revolucionrio na guerra civil, implicara na extino da democracia sovitica e do pluri-partidarismo. A indstria produzia a 20% do seu nvel pr-1914; a agricultura, a 50%. A classe operria ficara reduzida a menos da metade de seu efetivo anterior Grande Guerra, os camponeses recusavam o abastecimento das cidades. A velha vanguarda operria se transformara em uma camada de governadores de operrios (o conflito sobre a militarizao dos sindicatos, medida defendida por Trotsky, ilustrou essa situao). Nesse quadro explodiram as greves de Petrogrado e, sobretudo, a insurreio de Kronstadt; mas tambm a agitao no campo (em Tambov) vencida menos pela represso do que pela seca e pela fome.

    A NEP, adotada em maro de 1921 (tarde demais para Lnin) consistia basicamente na substituio das requisies foradas por um imposto em espcie, o que deixava um excedente livremente negocivel para o campons; na liberdade econmica para o pequeno comrcio e o artesanato; na oferta de concesses ao capital estrangeiro (os investimentos deste foram importantes no setor petroleiro, em Baku; Hammer, investidor norte-americano, amigo de Lnin, foi chamado de capitalista vermelho em seu pas). Para os bolcheviques estava claro que se tratava de um encorajamento das tendncias capitalistas, e de um recuo poltico em virtude do adiamento da revoluo europia. A partir de 1922, a produo agrcola se recuperou em 75%, a industrial em 25%, o comrcio renasceu. Mas tambm nascia uma nova burguesia: o kulak (campons abastado, que explorava os meeiros), os nepmen (comerciantes), os spetsy (especialistas). A democracia sovitica, em troca, se extinguia (os bolcheviques poderiam ser derrotados em eleies gerais livres, como j tinha acontecido nas eleies constituintes de 1918). No partido, comeava a imperar o sistema de nomeaes por cima, o reino dos apparatchiki, e a hierarquia de secretrios que comeava a control-lo: os Molotov, Kaganovitch e, sobretudo, Stalin. No fim desse ano, Lnin rompeu relaes com Stalin, em virtude de sua rudeza pessoal (da qual fora vtima at a mulher de Lnin, Nadeja Krupskaa, pedagoga) e do tratamento burocrtico dado questo georgiana, um dos ns da questo nacional, que deu origem ao Tratado da Unio (base, por sua vez, da existncia da Unio de Repblicas Socialistas Soviticas, URSS, a partir de 1922). Internacionalmente, a IC impulsionava a conquista das massas com a poltica da frente nica operria, dirigida principalmente social-democracia europia, ainda majoritria no movimento operrio da Europa ocidental.

    O fracasso das tentativas revolucionrias no exterior levou utilizao crescente das contradies interimperialistas como meio para superar o isolamento internacional: o Tratado de Rapallo, com a Alemanha, em 1922; o tratado com a Turquia, onde, no entanto, o novo chefe de estado, Mustaf Kemal Atatrk fazia assassinar os dirigentes do PC turco (o Subhi), o que evidenciava os problemas de uma diplomacia que entrava em contradio com a solidariedade comunista. Os bolcheviques tentaram distinguir a poltica da URSS daquela da Internacional Comunista. A situao interna estava muito condicionada pela situao mundial, os avanos revolucionrios no exterior provocavam entusiasmo. Mas, na vspera do outubro alemo de 1923, se produziu a primeira grave crise pblica do partido. Isto se conjugou com o recuo social e poltico do proletariado russo, desprovido de seus elementos mais combativos (mortos na guerra civil, ou aspirados pelo aparelho de Estado) e com a necessidade de reconstruir uma economia esgotada: o aparelho burgus do Estado Operrio (que Lnin definia como um Estado burgus sem burguesia)10 elevava-se sobre este, nascia uma burocracia, gerente da penria material.

    10

    A definio fazia referncia implcita a Marx (Crtica do Programa de Gotha): O direito igual, portanto burgus seria mantido (na primeira fase da sociedade sem classes), no que diz respeito s normas de consumo, porque este

  • 10

    Trotsky, Lnin e Kamenev

    Desde 1923-24, quando a prosperidade dos pases capitalistas se tornou evidente, boa parte dos novos dirigentes soviticos comeou a propor aspiraes razoveis (contra as perspectivas de 1917-23, qualificadas de sonhos trotskistas): a construo do socialismo em um s pas.11 Mas o proletariado se beneficiava da NEP s na qualidade de consumidor; uma nova crise econmica irrompeu em 1923, com a crise das tesouras: os produtos industriais no encontravam mercado devido estagnao dos preos (e, portanto, do poder adquisitivo) agrcolas. Sua principal conseqncia foi o desemprego industrial: 500 mil desempregados no outono de 1922, 1,25 milhes em 1923. O desemprego diminui nos trs anos posteriores, quando o nmero de operrios atingiu dois milhes, e o dos desempregados se estabilizou em um milho. A maioria dos novos operrios, porm, era de origem rural recente, e procurava o pagamento em espcie nas indstrias, essencial em momentos de penria, uma massa amorfa, totalmente ignorante dos acontecimentos polticos (Pierre Sorlin). Os melhores elementos eram absorvidos pelas Rabfak (universidades para operrios): o rendimento geral do trabalho era menos que medocre. Os kulaki somavam entre quatro e cinco milhes de camponeses, proprietrios de mais de 10 hectares, que enriqueceram na grande fome de 1921-1922: um kulak vendia tanto quanto quatro camponeses mdios; 2% dos camponeses (os mais ricos) detinham 60% do mercado, 50% das terras teis, 60% do capital agrcola. Empregavam 1,5 milhes de jornaleiros (com salrios inferiores aos de 1914), alugavam utenslio agrcola para 40 milhes de camponeses, emprestavam dinheiro a juros s outras camadas camponesas, tornavam-se senhores do campo: exigiam o fim do divrcio e dos direitos da mulher, establecidos em 1918, assim como a pena de morte para os ladres de cavalos...

    Os kulaki comeavam a pesar sobre a economia, que reduzia seus investimentos industriais, e se faziam ouvir tambm no partido, onde Nikolai Bukharin era,12 de fato, seu porta-voz: o

    (o consumo) seria equivalente ao trabalho realizado (De cada um segundo sua capacidade, a cada um segundo seu trabalho): A igualdade consiste aqui no uso de uma medida comum, em condies em que os indivduos so desiguais, no pelas distines de classe (que desapareceram), mas porque um indivduo superior fsica ou moralmente [intelectualmente] a outro, realizando mais trabalho no mesmo tempo, ou trabalhando mais tempo. Esse direito igual , pela sua natureza, fundamentado na desigualdade, como todo direito, escreveu Marx. Para Lnin (O Estado e a Revoluo): O direito burgus no que diz respeito distribuio dos objetos de consumo, supe necessariamente um Estado burgus, porque o direito nada sem um aparelho de coero capaz de obrigar observncia das normas: o Estado socialista, na medida em que sobrevive um Estado depois da desapario da sociedade de classes, , por isso, um Estado burgus sem burguesia. 11

    Domenico Losurdo lembra que Stalin foi o primeiro dirigente sovitico a afirmar que por um longo perodo histrico a humanidade continuaria dividida no somente em diferentes sistemas sociais, mas tambm em diferentes identidades lingusticas, culturais e nacionais, uma aparente prova de sua excepcional inteligncia... 12

    Nikolai Ivanovich Bukharin (1888-1938) nasceu em Moscou, filho de professores do ensino bsico. Estudou economia na Universidade de Moscou, onde tambm iniciou sua vida poltica no movimento estudantil, durante a Revoluo de 1905. Ingressou no POSDR (Partido Operrio Social-Democrata Russo) em 1906, na sua frao bolchevique, tornando-se colaborador prximo de Lnin a partir de 1912, depois de uma deportao para Onega no Arkangelsk, seguida de uma fuga para Hannover, na Alemanha. Desde ento foi uma das figuras dirigentes dos bolcheviques. Exilou-se na Europa ocidental, na Sucia e nos EUA. Em Viena, em 1913, ajudou Stalin a redigir seu opsculo sobre a questo nacional. Durante esses anos, Bukharin redigiu uma importante crtica de A Acumulao de Capital, de Rosa Luxemburgo; e o clssico A Economia Mundial e o Imperialismo (existe verso brasileira, na srie

  • 11

    principal terico do partido (como Lnin o chamou no Testamento) defendia uma industrializao a passo de tartaruga e a conservao a qualquer preo da aliana com o campesinato (devemos avanar com passos pequenos, arrastando nossa enorme carroa camponesa) relanando a palavra de ordem de Guizot: enriquecei-vos. Os nepmen, por sua vez, igualaram em 1926 o faturamento do comrcio cooperativo, organizado pelo Estado. Os spetsy aumentaram seus salrios e cresceram em nmero (no eram precisas grandes qualificaes para ser spetsy: 60% dos membros do partido no sabiam ler...). Para Pierre Sorlin: Em 1925, quatro anos depois da guerra civil, uma camada de aproveitadores parecia tirar os melhores benefcios da revoluo.

    O emigrado branco Ustrialov escrevia, em 1925, acerca do povo renovado, fatigado pela tempestade, com vontade de paz, de trabalho, de submisso. Para ele, a NEP era um alento ao crescimento, ao individualismo, como o campo trabalhador, inevitvel como a vida, imperioso como a histria. Expressava assim a esperana de uma restaurao capitalista, no necessariamente monrquica. A penria econmica conseguiria o que no conseguira a agresso e o cerco militares contra a Rssia sovitica? Essa era a nova aposta da contra-revoluo. Os novos privilegiados do Estado, por sua vez, estavam convencidos da justia da sua condio social. A burocracia surgia, na revoluo, com base nos privilgios que outorgava a condio de distribuidor num contexto de penria e misria. A necessidade de uma organizao da produo e da distribuio (de uma administrao estatal) se transformava em fim em si mesmo, fonte de privilgios e, finalmente, de arbtrio. Em 1871, a Comuna de Paris adotara medidas visando eliminao da burocracia estatal (mximo dos salrios, elegibilidade e revogabilidade de todos os cargos, unicameralidade), por isso foi chamado de um Estado que j no era, tendencialmente, um Estado: sem burocracia, o Estado extingue-se, tal fora a principal concluso de Marx a respeito.

    Nikolai Bukharin

    Os Economistas da Editora Abril). Aps o exlio, regressou em 1917 Rssia e, durante a Revoluo de Outubro, organizou a insurreio em Moscou. Formulou teoricamente os princpios da economia sovitica (Economia do Perodo de Transio, de 1920), co-redigiu, com Probrazhenski, o manual ABC do Comunismo, e tambm o mais elaborado Teoria do Materialismo Histrico, que foi criticado por militantes marxistas ocidentais, como Lukcs e Gramsci. Passou a ser considerado o terico oficial do bolchevismo. Ocupou importantes cargos polticos no partido (1917-1934, membro do Comit Central; 1918-1929, redator-chefe do Pravda; 1924-1929, membro do Politburo; 1926-1929, presidente do Comit Executivo da Komintern). Liderou a ala dos comunistas de esquerda na primeira metade da dcada de 1920, ala partidria de uma guerra revolucionria para a extenso da revoluo no ocidente. Depois de uma reviravolta, virou entusiasta e terico da NEP. Com a morte de Lnin, aliou-se a Stalin contra Trotsky e a Oposio de Esquerda. A partir de 1928 foi lder da chamada Oposio de Direita, sendo afastado de cargos dirigentes a partir de 1929, quando a NEP foi abruptamente abandonada. Depois de uma autocrtica, foi nomeado redator-chefe do Izvestia, em 1934. Em 1935, foi o principal redator da Constituio da URSS (dita constituio stalinista). Apesar disso, em 1937 foi preso e, em 1938, condenado morte no terceiro Processo de Moscou, sendo executado (em que pesem os apelos internacionais de clemncia, como o do romancista francs Romain Rolland) nesse mesmo ano, com 50 anos de idade. Em 1988, durante a era de Mikhail Gorbachev, foi reabilitado jurdica e politicamente na URSS.

  • 12

    A burocracia, de modo geral, indispensvel a todo Estado que se organiza para impor e defender uma dominao de classe ou de casta. Para Max Weber (o Marx da burguesia, na definio de Julien Freund), a burocracia (o poder do bureau) uma forma de organizao que se baseia na racionalidade, isto , na adequao dos meios aos objetivos pretendidos, a fim de garantir a mxima eficincia possvel no alcance destes. Weber identificou trs fatores principais como base da moderna burocracia: 1) O desenvolvimento de uma economia monetria: a moeda assume o lugar da remunerao em espcie para os funcionrios, permitindo a centralizao da autoridade e o fortalecimento da administrao; 2) O crescimento quantitativo e qualitativo das tarefas administrativas do Estado Moderno; 3) A superioridade tcnica em eficincia do tipo burocrtico de administrao, que agiu historicamente como uma fora autnoma para se impor, a par da imposio da racionalidade e da tcnica na produo capitalista: O Estado moderno, do ponto de vista sociolgico, uma empresa, como uma fbrica, isto justamente o que tem de historicamente especfico. As relaes de domnio, em ambos casos, esto submetidas ao mesmo tipo de condies. Para Weber, a racionalidade (organizao racional do trabalho; clculo e previso) est ligada burocracia e empresa capitalista, e implica na adequao dos meios aos fins. No contexto burocrtico, isto significa eficincia. Ora, a sociedade capitalista no se organiza como uma empresa: o Estado moderno baseia-se na igualdade jurdica (de direitos) dos indivduos (que oculta, ou melhor, inverte, sua desigualdade real), justificando (legitimando) assim sua dominao. A abordagem weberiana , portanto, unilateral (deturpada), assim como sua categoria de racionalidade, o que questiona seu conceito de burocracia.

    A concepo de Weber acerca da burocracia em geral (e da burocracia estatal em particular) era uma polmica implcita (e certamente consciente) com a crtica marxista da burocracia estatal, j presente na crtica de Marx filosofa jurdica de Hegel (da qual Weber foi tributrio). Para Hegel, a burocracia liga sociedade civil ao Estado, que seu esprito idealizado (a incarnao da idia moral) a burocracia emanciparia o Estado dos interesses particulares presentes na sociedade civil, ela o ponto de encontro entre os interesses particularistas que percorrem a sociedade e o interesse universal. Para Marx (que chegou a qualificar essa concepo hegeliana como nojenta) a burocracia estatal encobre a oposio entre sociedade e Estado, entre interesse geral e interesse particular, configurando-se como expresso da alienao da vida pblica. A burocracia estatal no um esprito: uma corporo, a sociedade civil do Estado; no um ser universal, mas particular, que representa corporativamente seus interesses particulares, e os transforma em fins do Estado, pretensa (e ideolgica)mente universais. A sua existncia real destina-se a manter a sociedade civil num estado de letargia amorfa (O esprito geral da burocracia o segredo, o mistrio, conservado no interior da burocracia pela hierarquia, e no exterior dela pelo seu carter de corporao fechada. Toda manifestao pblica do esprito poltico, do esprito cvico, aparece para a burocracia como traio ao seu mistrio. A autoridade o princpio de seu saber, e o culto autoridade sua maneira de pensar); dissimulando a separao entre Estado e sociedade, a burocracia um instrumento contra a sociedade civil (em benefcio dos interesses de classe, isto , das formas histricas de propriedade dominantes, acrescentaria Marx posteriormente).

    Com o desenvolvimento progressivo do Estado moderno (capitalista), popularmente, a burocracia passou a ser vista como uma empresa, repartio ou organizao onde o papelrio se multiplica e avoluma, impedindo solues rpidas e eficientes. Na percepo popular, a burocracia identifica-se com o apego dos funcionrios aos regulamentos e rotinas, causando ineficincia organizao. A eficincia gera, assim, a ineficincia. medida que aperfeioa sua burocracia, o Estado se manifesta, nas palavras de Marx (referidas ao Estado bonapartista) como uma jibia que esmaga sociedade, o aborto sobrenatural da sociedade esse mesmo Estado que a burocracia considera como sua propriedade privada. Da o sentido

  • 13

    revolucionrio de livrar o Estado de sua burocracia (um Estado simples e barato) que significa a tendncia objetiva para a extino do Estado. Essa tendncia, porm, pressupe um alto nvel de desenvolvimento econmico, caso contrrio, nas palavras textuais de Marx (em carta a Engels), mesmo depois da expropriao das classes possuidoras, voltaria a velha merda (a dominao de classe e a alienao poltica).

    Em um breve texto poltico da dcada de 1930, Trotsky chegou a comparar a burocracia no Estado operrio ao policial que, cassetete em mo, pe ordem na fila da padaria, em condies de racionamento do po (previamente, o policial garante para si uma rao superior media). A luta de Trotsky contra a burocratizao foi uma continuidade de seu combate poltico geral face aos problemas do Estado sovitico na dcada de 1920. Um ano antes da revolta de Kronstadt (1921), que foi o deflagrador do movimento em direo NEP, Trotsky isolado, na ocasio, no Politburo props renunciar s requisies foradas dos excedentes agrrios do comunismo de guerra, motivadas pela necessidade de abastecimento do exrcito. Trotsky afirmou que era preciso substituir o sistema de apropriao do excedente por uma taxa progressiva in natura.13 Um ano depois da adoo da NEP, em novembro de 1922, Lnin escreveu: Eu remeto queles que no compreenderam suficientemente nossa NEP ao discurso do camarada Trotsky e ao meu sobre essa questo no IV Congresso da Internacional Comunista. Dez dias mais tarde, Lnin se dirigia a Trotsky: Eu li suas teses sobre a NEP e considero-as de modo geral muito boas; algumas formulaes so muito bem elaboradas, alguns poucos pontos me parecem discutveis. Minha vontade, agora, seria public-las nos jornais e depois rapidamente reimprimi-las em brochura. Essa brochura nunca foi publicada. Em 1923, no XII Congresso do partido, Trotsky apresentou um relatrio (Sobre a Indstria) que, de acordo com a transcrio estenogrfica, foi acolhido pelos delegados com aplausos ardentes e longos. Ele apresentava uma perspectiva para o desenvolvimento da indstria nos anos subseqentes, coincidente com a tese-resoluo do Congresso: S pode ser vitoriosa uma indstria que oferea mais do que consome. A indstria que vive s custas do oramento, ou seja da agricultura, no poderia criar o apoio estvel e duradouro necessrio ditadura do proletariado.

    Nadeja Krupskaa, esposa de Lnin

    A luta contra a burocratizao do Estado e do partido foi, tambm, o ltimo [e fracassado] combate de Lnin,14 que tencionou lev-lo adiante baseado numa aliana com Trotsky. O reproche feito a este de no ter tornado pblica essa aliana, e no ter sido conseqente com ela, na crise provocada pela questo nacional georgiana (contra a poltica o chauvinista

    13

    Robert Service nega que as propostas formuladas por Trotsky em 1920 fossem precursoras da NEP (de 1921), pois elas se limitavam a propugnar a substituio das requisies agrrias por prmios aos camponeses mais produtivos, a descentralizao econmica (no marco do planejamento estatal) e a transformao das unidades desmobilizadas do Exrcito Vermelho em exrcitos do trabalho, para reativar a combalida indstria russa. Ou seja, no significavam (como a NEP) um retorno a mecanismos de economia de mercado: a NEP no consertava, mas punha fim, ao comunismo de guerra. 14

    Moshe Lewin. Le Dernier Combat de Lnine. Paris, Minuit, 1980.

  • 14

    gr-russa da nascente burocracia, e de Stalin em especial, ele prprio georgiano) e na revelao e implementao do Testamento de Lnin (que propunha, como vimos, a destituio de Stalin do posto de secretrio-geral). Historiadores soviticos posteriores propuseram que Trotsky no s aceitou o bloco com Lnin, como tambm foi politicamente conseqente com ele (o que no significava que esse bloco tivesse garantida a sua vitria por antecipado, pelo peso do prestgio de ambos dirigentes).15 Trotsky disse, na sua autobiografia: A idia de formar um bloco Lnin-Trotsky contra a burocracia, somente Lnin e eu a conhecamos. Os outros membros do Bur Poltico tinham apenas vagas suspeitas. Ningum sabia nada a respeito das cartas de Lnin sobre a questo nacional nem do Testamento. Se eu tivesse comeado a agir, poderiam dizer que iniciava a luta pessoal para ocupar o lugar de Lnin. Eu no podia pensar nisso sem arrepios. Pensava que, mesmo saindo vencedor, o resultado final seria para mim uma tamanha desmoralizao que me custaria muito caro. Em todos os clculos entrava um elemento de incerteza: o prprio Lnin e seu estado de sade. Poder ele manifestar sua opinio? Sobrar-lhe- tempo para tanto? Entender o partido que Lnin e Trotsky lutam pelo futuro da revoluo, e no que Trotsky luta pelo posto de Lnin enfermo? A situao provisria continuava. Mas a protelao favorecia os usurpadores, pois Stalin, como secretrio-geral, dirigia naturalmente no perodo do interregno toda a mquina estatal.

    Flix Dzerzhinski, fundador da Tcheka, em 1919

    Lnin tornou pblica sua ruptura com Stalin nos ltimos dias de 1922, pouco antes de ficar afastado da poltica pela doena, por uma srie de fatores. Como Comissrio das Nacionalidades, Stalin tinha imposto um governo submisso Gergia manu militari, invadindo-a em fevereiro de 1921 e destitundo o goberno independente menchevique encabeado por Noah Jordnia, no s contra a vontade da maioria da populao, mas tambm dos bolcheviques georgianos. Dois deles (Mdivani e Macaradze) protestaram publicamente. Lnin manifestou-se numa Carta ao Congresso: Penso que, neste episdio, a impacincia de Stalin e seu gosto pela coero administrativa, bem como o seu dio contra o famoso chauvinismo social, exerceram uma influncia fatal. A influncia do dio na poltica em geral extremamente funesta. O nosso caso, o de nossas relaes com o Estado da Gergia, constitui um exemplo tpico da necessidade de usarmos o mximo de prudncia e mostrarmos um esprito conciliador e tolerante, se quisermos resolver a questo de modo autenticamente proletrio. E, referindo-se diretamente a Stalin: O georgiano que se mostra desdenhoso quanto a esse aspecto do problema, que descaradamente lana acusaes de social-nacionalismo (quando ele mesmo um autntico social-nacionalista e tambm um vulgar carrasco gr-russo), esse georgiano, com efeito, viola os interesses da solidariedade proletria

    15

    V. V. Juravlev e N. A. Nenakorov. Trotsky et laffaire gorgienne. Cahiers Lon Trotsky n 41, Paris, maro 1990.

  • 15

    de classe. Stalin e [Felix] Dzerzhinski [criador e chefe da Tcheka]16 devem ser apontados politicamente como os responsveis por essa campanha.

    Lnin morreu em janeiro de 1924, depois de um ano de complicaes crescentes de sade - em parte derivadas do atentado contra a sua vida em 1919, realizado por uma ativista SR (social-revolucionrios) - e de quase total afastamento da poltica ativa. Nos ltimos meses de sua vida, suas preocupaes, registradas no Testamento, provocaram constragimento quando lidas ao Comit Central; a reunio s vsperas do XIII Congresso que resolveu pelo no afastamento de Stalin resolveu tambm divulgar o documento apenas a alguns delegados, o que contou com a anuncia de Trotsky. Seguiram-se, no entanto, e logo depois, uma srie de provocaes e insultos contra Trotsky, tendendo a polarizar o cenrio poltico: descobriu-se uma carta esquecida, escrita por ele em 1913, dirigindo palavras duras contra Lnin. O objetivo, com sua publicao, era mostrar a incompatibilidade entre leninismo e trotskismo. Com a morte de Lnin, Stalin passou, de maneira rpida, a apresentar-se como o legtimo herdeiro do leninismo, definido como um grupo de doutrinas, definidas de maneira vaga, mas infalveis, que distinguiriam a linha oficial do partido das heresias de seus crticos. Trotsky comunicou secretamente o Testamento ao seu simpatizante norte-americano Max Eastman, quem o publicou nos EUA, sendo ento desmentido pelo prprio Trotsky. As queixas posteriores sobre o comportamento poltico de Trotsky, com base em esse e outros fatos, apontaram a torn-lo co-responsvel, por omisso, pela ascenso poltica de Stalin, o que foi objeto de uma observao de Ernest Mandel: Em geral, os que fazem esse gnero de anlise querem simultaneamente provar duas coisas contraditrias: por um lado, que Trotsky cometeu muitos erros tticos; por outro lado, que a vitria de Stalin era inevitvel, porque correspondia s condies objetivas da Rssia dessa poca. Isto particularmente ntido em Isaac Deutscher, onde essas duas teses se entrecruzam continuamente.17

    Impulsionando o anti-trotskismo, em dezembro de 1924, Bukharin escreveu um artigo sobre a teoria da revoluo permanente, defendida por (e identificada com) Trotsky desde 1905, procurando expor a discordncia entre Lnin e Trotsky. Stalin, dias depois, publicou outro artigo ( A revoluo permanente de Trotsky a negao da teoria da revoluo proletria de Lnin) que pavimentou a estrada para a elaborao da teoria do socialismo em um s pas, oferecendo uma meta definvel, por acabar com as expectativas de ajuda do exterior, e por massagear o orgulho nacional, definindo a Revoluo do Outubro como fruto do esprito de vanguarda do povo russo. Desde os incios da Internacional Comunista (1919) o PC russo cumpria um papel central, no s pela sua autoridade poltica, mas tambm pela ajuda financeira aos outros PCs. Esse papel foi se transformando em direito de tutela. Assim, partidos comunistas que mal tinham se emancipado do modelo social-democrata se viram s voltas com uma bolchevizao que lhes impunha um modelo monoltico, baseado num aparelho rigorosamente centralizado. O aparelho internacional da IC foi sendo criado com

    16

    Flix Edmundovich Dzerzhinski (1877-1926) nasceu em uma rica famlia aristocrtica polonesa, perto de Minsk. Em 1895 ingressou no POSDR da Litunia. Em 1896 foi expulso da escola em Vilno, por distribuir propaganda socialista e "falar polons". Passou grande parte de sua vida na priso. Deportado na Sibria entre 1897 e 1900, exilou-se em Berlim em 1901, unido-se ao bolchevismo em 1903, quando da diviso em fraes do POSDR. Participou da Revoluo de 1905, sendo preso pela Okhrana (polcia poltica do Estado czarista) at 1912, quando compartilhou o exlio siberiano com Trotsky. Por pouco tempo livre, voltou a ser preso, ficando na priso at fevereiro de 1917. Na Revoluo de Outubro foi membro do Comit Militar Revolucionario do soviet. Organizou e dirigiu a Tcheka (contra-espionagem e polcia poltica), com mo de ferro, durante a guerra civil (1918-1921); foi responsvel pelo "Terror Vermelho". Depois da guerra promouveu a construo de casas para os rfos da guerra civil. Morreu de infarte, pronunciando um discurso, em 1926. Idealista a toda prova e cavalheiro impecvel, assim o definiu Victor Serge. Depois de 1991, durante o governo de Bris Ieltsin, seu monumento em Moscou foi derrubado; depois, o governo Putin reps sua esttua no Ministrio do Interior; o governo da Bielo-Rssia ergeu-lhe outro monumento. 17

    Ernest Germain. A Burocracia nos Estados Operrios. Lisboa, Fronteira, 1975, p. 93.

  • 16

    base no financiamento da URSS e tambm na cooptao baseada na docilidade e no posicionamento dos dirigentes estrangeiros em relao s lutas internas do PC russo.

    A partir de 1924, em todos os PCs se constituiu uma frao da IC que, no final da dcada, se solidificaria como aparelho internacional do stalinismo. A sua construo exigiu a eliminao dos pioneiros do comunismo em diversos pases: Alfred Rosmer e Pierre Monatte na Frana, Heinrich Brandler e os antigos partidrios de Rosa Luxemburgo na Alemanha. Era o incio das carreiras de Palmiro Togliatti na Itlia, Maurice Thorez e Jacques Doriot na Frana, Ernest Thlmann e Walter Ulbricht na Alemanha. A nova poltica da IC na China foi explicada oficialmente pelo ex-menchevique Martinov, velho adversrio de Lnin (que o criticou duramente no Que fazer?). Martinov reivindicou para a China a revoluo por etapas (primeiro, burguesa, dirigida pela burguesia; s depois, proletria). A evoluo do PC russo precedeu essa transformao. Os kremlinlogos, em geral, apresentaram a histria do PC russo ps-Lnin como uma luta pela sucesso: trata-se, no mnimo, de uma simplificao. A crise poltica j tinha se feito presente no XII Congresso do partido, em 1923, quando Trotsky e Bukharin defenderam contra Stalin a posio de Lnin a respeito do problema das nacionalidades. Simultaneamente, diante da crise das tesouras, Trotsky defendeu a ajuda estatal indstria, para poder baixar seus preos. O contexto social russo de 1923 era o de uma nova onda de greves, com a formao de grupos operrios de oposio. O contexto mundial, porm, era o da esperana no outubro alemo, ou seja, uma virada favorvel da revoluo mundial, vinda do ocidente. A insurreio alem, no entanto, fracassou em finais daquele ano.18

    Grigorii Zinoviev

    No quadro da derrota alem, depois do fracasso da tentativa insurrecional de novembro de 1923, Trotsky enviou uma carta ao Buro Poltico criticando o regime interno do partido, apoiada por uma declarao de 46 velhos bolcheviques: nascia a Oposio de Esquerda, contra a qual engajou a luta o grupo dirigente, composto por Stalin, Zinoviev19 e Kamenev. A

    18

    Depois de marcar at a data (7 de novembro de 1923) e o horrio, os comunistas alemes adiaram a insurreio. Para Trotsky: O PC no foi suficientemente firme, clarividente, resoluto e combativo para garantir a interveno no momento necessrio, e a vitria. S os comunistas de Hamburgo cumpriram a ordem insurrecional, enquanto, na URSS, a troika dirigente (Stalin-Zinoviev-Kamenev), empenhada no combate contra Trotsky, prestava pouca ateno aos acontecimentos alemes. A revoluo alem foi adiada sine die: ela no voltaria a se apresentar nas prximas dcadas. A deciso da direo do KPD (Partido Comunista Alemo) de adiar a revoluo foi endossada pela comisso alem da Internacional Comunista Radek, Piatakov, Ounschlicht que se encontrava, no mesmo momento, em territrio alemo. 19

    Grigorii Zinoviev, nascido Ovsei-Gershon Aarnovich Apfelbaum na Ucrnia, em 1883, em uma famlia judia de pecuaristas produtores de leite, fez seus primeiros estudos em casa. Filiou-se ao POSDR em 1901 e foi membro da faco bolchevique desde sua criao, em 1903, fazendo parte da sua direo. Principal dirigente bolchevique depois de Lnin, notabilizou-se pela sua oratria encendida. Em 10 de outubro de 1917, no entanto, ele e Lev Kamenev foram os nicos membros do Comit Central bolchevique que votaram contra a proposta de Lnin de deflagrar imediatamente a insurreio, chegando a critic-la publicamente (Lnin chamou-os por isso de fura-greves e pediu sua expulso do partido). Em 29 de outubro do mesmo ano, aps a tomada de poder pelos bolcheviques, a direo do sindicato nacional dos ferrovirios exigiu que o novo governo compartilhasse o poder

  • 17

    deciso de lanar publicamente a oposio foi tomada depois de percorrer todas as vias polticas prvias, levou em conta a situao da URSS e tambm a internacional. A revoluo alem foi um momento-chave na luta interna do partido bolchevique: as vacilaes de Zinoviev (principal dirigente da IC) foram um fator decisivo na sua derrota. Mas elas tinham origem clara nas presses exercidas por Stalin ( necessrio frear os alemes, no empurr-los). A derrota alem condenou claramente URSS a um perodo indefinido de isolamento, encerrando as esperanas na revoluo europia que seguiram Revoluo de Outubro. A oposio liderada por Trotsky foi condenada na XII Conferncia do PC, em janeiro de 1924. Quando Lnin morreu, nesse mesmo ms, Trotsky, doente, no compareceu aos funerais (aparentemente ludibriado quanto data por Stalin, encarregado das questes organizativas e protocolares no Politburo). Depois da morte de Lnin, a relao, at ento fluida, entre Trotsky e a imprensa sovitica, esmoreceu rapidamente. A 23 de fevereiro de 1924, no sexto aniversrio da criao do Exrcito Vermelho, o quadro poltico geral estava visivelmente mudado: Trotsky, fundador do Exrcito Vermelho, era ainda celebrado pelo Izvestia, mas o Pravda, rgo oficial do partido, j comeara a esquec-lo: Caro Camarada Lev Davidovitch - escrevia o Izvestia - no sexto aniversrio de nosso glorioso Exrcito Vermelho, a assemblia geral do Soviet de Moscou envia uma calorosa saudao quele que o organizou e guiou. O jornal publicava tambm um boletim mdico, explicando que Trotsky vira-se forado a descansar no sul. O Pravda, ao contrrio, deu cobertura a todas as celebraes do Exrcito Vermelho, sem citar o nome de Trotsky, e afirmando que s Lnin fora seu chefe e organizador. A mensagem do Izvestia apareceu num canto, distante das notcias sobre as comemoraes.

    Ainda assim, o Politburo determinou, pressionado pela situao de crise do partido, um novo curso: o problema, porm, era como interpret-lo. Em seu texto O Novo Curso, Trotsky atacou a burocratizao, a hierarquia dos secretrios, evocando o perigo de degenerao da revoluo. A troika o acusou de promover a luta de geraes, defendendo os velhos bolcheviques (depois exterminados pelo stalinismo). A Oposio foi alijada da imprensa e posta em minoria com mtodos burocrticos (deslocamentos de opositores, votos de cabresto nas clulas e comits). O passado menchevique de Trotsky foi atacado na imprensa: Stalin o chamou de patriarca dos burocratas. A XII Conferncia do PC condenou o fracionismo da Oposio e ps em prtica a promoo Lnin. Em outubro de 1924, Trotsky contra-atacou publicando Lies de Outubro onde, discutindo questes de estratgia revolucionria, atacou a passada hostilidade de Zinoviev e Kamenev insurreio de outubro de 1917, episdio repetido na Alemanha, novamente com Zinoviev (chefe da Internacional

    com outros partidos socialistas, ameaando com uma greve nacional. Durante essa crise, Zinoviev e Lnin ficaram, mais uma vez, em lados opostos. Depois que a questo se resolveu, Zinoviev e Kamenev se demitiram do CC; Lnin chamou-os agora de "desertores". Trotsky passou a ser, graas a isso, o n 2 na direo bolchevique. Zinoviev voltou ao CC no VII Congresso do Partido, em 1918, tornando-se responsvel pela defesa de So Petersburgo durante os ataques dos contra-revolucionrios brancos. Membro do Politburo (1919 a 1926), indicou Stlin para a secretaria geral do partido em 1922, no XI Congresso. Escreveu, nesse perodo uma Breve Histria do Bolchevismo. Presidente da Internacional Comunista desde sua fundao em 1919, em 1926 foi substitudo nessa funo por Bukharin. Depois da morte de Lnin (1924), uniu-se a Stlin e Kamenev contra Trotsky. Esse triunvirato (troika) manipulou os debates internos, obtendo uma maioria de delegados no congresso do partido, mas, logo depois houve ruptura entre seus membros. Em dezembro de 1925, durante o XIV Congresso, Stalin conseguiu que Zinoviev e Kamenev fossem nomeados para cargos menores, tirando-lhes o controle do partido em Leningrado (antiga So Petersburgo). Zinoviev e Kamenev fizeram ento uma efmera aliana com Trotsky (Oposio Unificada). Zinoviev acabou sendo expulso do Comit Central, em 1927, e do prprio partido, em 1928. Trotsky permaneceu na oposio; Zinoviev e Kamenev capitularam e escreveram textos reconhecendo seus erros. Foram readmitidos depois de condenados a um perodo de reflexo de seis meses. Permaneceram inativos at 1932, quando foram expulsos novamente, sendo readmitidos em 1933, realizando discursos humilhantes no XVII Congresso. No assassinato de Krov (1934), Zinoviev foi forado a admitir sua "cumplicidade moral", recebendo uma pena de dez anos de priso. Em 1936 foi novamente julgado, no primeiro Processo de Moscou, condenado e executado a 25 de agosto de 1936. Foi formalmente absolvido das acusaes em 1988, durante a perestroika.

  • 18

    Comunista) como protagonista. Trotsky traou um paralelo entre a vitria do Outubro russo e a derrota do Outubro alemo, sublinhando que os erros de Zinoviev e Kamenev20 no eram devidos ao acaso, mas a uma poltica sistematicamente vacilante. A reao no se fez esperar e, a 2 de novembro, o Pravda deu o sinal da campanha oficial anti-trotskista: O livro do camarada Trotsky est rapidamente se tornando a ltima moda. Isso no surpreende, pois o seu objetivo principal o de causar sensao no seio do partido. A introduo (chave da obra) est escrita em linguagem enigmtica. As aluses e insinuaes de que est cheia no podem ser facilmente percebidas pelo leitor profano. Por isso necessrio desvendar os mistrios deste linguajar oculto (to do agrado de Trotsky, apesar de suas exigncias de clareza na crtica). O autor assume a responsabilidade de intervir contra a linha poltica adotada pelo partido e pela Internacional Comunista. Essa interveno no tem carter puramente terico, mas ao contrrio se assemelha a um programa poltico destinado a anular as decises dos congressos.

    A troika se solidificou contra o debate literrio promovido por Trotsky, demissionrio do Comissariado de Guerra a partir de 1925. Outra frao (dita de direita, embora ela jamais assumisse esse nome) se desenhou em torno das teses de Bukharin, de defesa e aprofundamento da NEP, dirigida contra as teses econmicas da Oposio de Esquerda (que Probrazhenski teorizara em A Nova Econmica). A viva de Lnin, Nadeja Krupskaa, tomou a palavra no Pravda, a 16 de dezembro de 1924: No sei se o camarada Trotsky realmente culpado por todos os pecados mortais de que acusado, no sem intenes polmicas. Mas o camarada Trotsky no se deve lamentar por isso. No nasceu ontem e por conseguinte deve saber que um texto escrito no tom de As Lies de Outubro s pode suscitar a polmica. Mas no esse o piv da questo. O fato que ao nos convidar meditao das lies do outubro vermelho, ele nos prope enfoc-las precisamente sob o ngulo errado. Nos anos decisivos da

    20

    Lev Borisovich Kamenev, de sobrenome original Rosenfeld, nasceu em Moscou, filho de um operrio ferrovirio judeu e de uma me russa ortodoxa. Depois do ginsio em Tiflis (Tbilisi) frequentou a Universidade de Moscou, at ser preso por atividades polticas em 1902. Incorporou-se jovem ao POSDR e ao bolchevismo, depois de exilado no final daquele ano. Voltou Russia em 1905; organizou greves nas ferrovias em Tiflis e So Petersburgo. Casou-se, nessa poca, com Olga, irm de Trotsky, com a qual teve dois filhos. Depois da ruptura de Lnin com Alexander Bogdnov, transformou-se, com Zinoviev, no principal colaborador de Lnin. Voltou ao exlio depois da derrota da Revoluo de 1905. Adotou, com Zinoviev, uma posio ambgua na tentativa de reunificao bolchevique-menchevique ( qual Lnin se opunha) impulsionada por Bogdnov, que possuia partidrios bolcheviques, como Victor Nogin, chamados de conciliadores (ou bolcheviques de partido). Foi editor do Pravda, editado em Viena por Trotsky, com fundos do POSDR (ainda no formalmente dividido). Em 1912, porm, apoiou Lnin e Zinoviev, no congresso bolchevique de Praga, a proclamar a ruptura com o menchevismo. No entanto, depois da Revoluo de Fevereiro de 1917, advogou, com Stalin e Muranov, pelo apio condicional ao governo provisrio e pela reunificao com os mencheviques, posies que foram combatidas por Lnin ao seu retorno do exlio. Oposto, com Zinoviev, insurreio de outubro, participou dela depois de deflagrada. Em dezembro de 1918 foi enviado pelo partido para expor em Londres a orientao do governo sovitico, sendo deportado para a Finlndia, onde ficou preso at janeiro de 1919, quando foi trocado por finlandeses prisioneiros na Rssia. Em seu retorno Rssia foi eleito presidente do Soviet de Moscou e do Congresso Pan-Russo dos Soviets (uma espcie de chefe de estado) e passou a integrar o Politburo do CC. Aliado de Stalin depois da morte de Lnin, denunciou os erros de Trotsky na conduo da guerra civil, uma campanha que concluiu com a renncia deste ao seu cargo de Comissrio de Guerra. Compartilhou, depois, com Zinoviev (em uma trajetria quase paralela) a aliana fugaz com Trotsky (foi o portavoz da Oposio no XV Congresso do partido, em dezembro de 1927), as suas expulses, recuos e reintegraes ao partido, j hegemonizado por Stalin. Sua re-expulso, em 1932, foi motivada por sua omisso em informar seus contatos com a oposio de Riutin. Em 1935 foi preso sob a acusao de envolvimento no assassinato de Kirov (ele negou as acusaes), sendo condenado, como Zinoviev, a 10 anos de priso. Julgado no primeiro Processo de Moscou, em 1936, foi acusado de tramar o assassinato de Stalin e de outros lderes do governo, sendo condenado e executado em 25 de agosto de 1936, junto com Zinoviev e outros 14 velhos bolcheviques. A famlia de Kamenev tambm foi executada: seu segundo filho, Yuri, foi executado a 30 de janeiro de 1938, com 17 anos de idade; seu primognito, o oficial da fora area A.L. Kamenev, foi executado a 15 de julho de 1939, com 33 anos. Olga Kameneva, sua primeira mulher, foi fuzilada a 11 de setembro de 1941, em Oryol (Sibria), junto a Christian Rakovsky e Maria Spiridonova, ex-membro, pelos SR de esquerda, do primeiro governo sovitico - s um de seus filhos, Vladimir Glebov, sobreviveu aos expurgos stalinistas. Foi, como Zinoviev!, reabilitado na URSS em 1988.

  • 19

    revoluo, o camarada Trotsky dedicou todas as suas foras luta pelo poder sovitico. Desincumbiu-se corajosamente de uma difcil tarefa. Isso o partido jamais esquece. Mas a luta iniciada em outubro (de 1917) ainda no est terminada. preciso batalhar com denodo at conquistar as metas almejadas pela Revoluo de Outubro. A essa altura, seria mortal afastar-se do caminho leninista. E quando um camarada como Trotsky se desvia, talvez inconscientemente, para o caminho da reviso do leninismo, o partido tem o dever de intervir (grifo nosso). A viva aportava sua contribuio construo do mito (poucos anos depois diria que se Lnin fosse ainda vivo, estaria preso...).

    Olga Kameneva, irm de Trotsky, esposa de Kamenev

    A polmica literria de 1924 teve um grande vencedor: Stalin, que se beneficiou do desgaste mtuo a que se submeteram Trotsky e Zinoviev-Kamenev, como constatou Pierre Brou: A maioria dos membros do partido, para quem a revoluo de 1917, na melhor das hipteses, no passava de uma gloriosa lenda, talvez admitisse com certa amargura o papel de mau desempenhado por Trotsky, sem acreditar realmente nos mritos do bom Zinoviev. Na troika, o discreto Stalin era o menos atingido, uma vez que sua posio de segundo plano em 1917 lhe permitia fugir ao descrdito que abalava os velhos detentores dos primeiros postos. Stalin aproveitou a situao para tentar subordinar o aparelho do partido em Leningrado, base poltico-organizativa de Zinoviev e Kamenev, o que levou estes ltimos, numa virada, a buscar uma aliana com Trotsky, a princpio resistida pelos membros da Oposio de Esquerda (os militantes oposicionistas de Leningrado, que viam em Zinoviev seu principal adversrio, preferiam at uma aliana com Kirov, o homem de Stalin na regio).

    Ivar Smilga

    A reviravolta dos dirigentes de Leningrado se produziu em finais de 1925: Zinoviev e Kamenev atacaram a poltica oficial, qualificando-a de pr-kulak, e retomaram as teses de Trotsky sobre a democracia partidria (em privado, lhe revelaram os mtodos burocrticos e provocadores contra ele usados em 1923-24). Mas o peso do aparelho levou novamente vantagem: no XIV Congresso do partido, a oposio Zinoviev-Kamenev foi esmagada pela aliana Stalin-Bukharin, que impuseram, agora sim, Serguei Kirov como chefe do partido em Leningrado. Zinoviev e Kamenev, com Trotsky, constituiram em 1926 a Oposio Unificada, que reunia uns oito mil

  • 20

    militantes, com numerosos velhos bolcheviques. A aliana foi concluda graas interveno do prprio Trotsky. Trs dos cinco dirigentes histricos indiscutidos do partido eram opositores (Zinoviev, Kamenev e Trotsky): a Oposio parecia uma aliana dos velhos bolcheviques contra Stalin e Bukharin. Com o apoio dado por Nadeja Krupskaa, a Oposio parecia o grupo dos companheiros da vida inteira de Lnin. Uma aliana dos revolucionrios contra os administradores, da qual faziam parte tambm boa parte dos comissrios do Exrcito Vermelho. Tambm estava na Oposio Ivar Smilga,21 que teve srios conflitos com Trotsky na guerra civil (referidas reciclagem de 60 mil ex-oficiais do Imprio no exrcito revolucionrio, impulsionada vitoriosamente por Trotsky); Muralov, o heri dos combates de Moscou em 1917, Mrachkovsky (nascido na priso czarista), Ivan Smirnov, operrio chamado a conscincia do partido.

    O combate da Oposio Unificada se estendeu at 1927, e foi fortemente condicionado pela situao internacional, sobretudo pelo destino da revoluo chinesa, que apareceu, depois da derrota alem, como a grande esperana de tirar a URSS do isolamento. O centro poltico do debate se deslocou para a Internacional Comunista, onde Trotsky enfrentou a aliana Stalin-Bukharin; seu centro terico foi posto novamente na questo da revoluo permanente.22 Depois de algum sucesso inicial dos oposicionistas, os mtodos burocrticos de 1923 voltaram a ser usados contra eles, em escala e profundidade bem maiores, incluindo provocaes policiais (como o suposto uso pela Oposio Unificada da grfica de um ex-oficial de Wrangel, o chefe da contra-revoluo branca: o ex-oficial era um agente da GPU, continuadora da Tcheka). A Oposio ficou, assim, amordaada. Ainda acreditava que fosse possvel recuperar o partido, especialmente sobre a base da revoluo internacional, mas era acusada de fomentar e organizar uma contra-revoluo, o que ia tornar-se dogma durante o reinado de Stalin. A Oposio, no momento, porm, estava ganhando foras. Mais de vinte mil militantes compareciam s suas reunies em Moscou e Leningrado. Zinoviev acreditava que a oposio conjunta venceria facilmente: teria bastado Trotsky e Zinoviev aparecerem juntos no palanque para unir o partido. Mas este estava crescentemente entulhado por elementos anteriormente apolticos; seus comits estavam apinhados de funcionrios do Estado.

    Lev Kamenev

    Apesar do novo surto oposicionista de 1927, quando as esperanas na revoluo chinesa, primeiro, e a crtica poltica suicida imposta por Stlin-Bukharin na China, depois, ampliaram

    21

    Ivar Tenisovitch Smilga (1892-1938) foi social-democrata desde 1907, integrando o comit de Kronstadt do POSDR (frao bolchevique). Aps a Revoluo de Fevereiro presidiu o Comit Regional do Exrcito e da Armada dos Operrios da Finlndia e o Comit Executivo dos Sovietes da Regio Norte. Dirigente do Exrcito Vermelho na frente sul, teve graves divergncias (junto a Stalin) com Trotsky, na guerra civil. Foi, no entanto, partidrio de Trotsky na discusso sobre os sindicatos (1920-21). Foi expulso do partido em 1927, como membro da Oposio de Esquerda; capitulador, foi readmitido no partido em 1930. Em janeiro de 1935 foi condenado a dez anos de priso, mas foi novamente julgado em 1938, no terceiro Processo de Moscou, e condenado a fuzilamento por atividades anti-soviticas. 22

    Cf. Pierre Brou. La Question Chinoise dans lInternationale Communiste. Paris, EDI, 1976; e Grigori Zinoviev et al. El Gran Debate. Crdoba, Pasado y Presente, 1972.

  • 21

    as bases polticas da Oposio, esta foi finalmente esmagada, suas teses seriam derrotadas de modo acachapante no congresso partidrio e postas fora de circulao. Comearam as

    excluses do partido e as detenes. Em novembro de 1927, no X aniversrio da revoluo de 1917, a Oposio se manifestou em pblico pela ltima vez, com faixas prprias no desfile de rua (abaixo os nepmen, Voltemos nossas armas contra a direita - o kulak, o nepman, o burocrata e Realizemos a vontade de Lnin): "Isto aconteceu a 7 de novembro de 1927, em ocasio do gigantesco desfile pelo X aniversrio da Revoluo de Outubro. Um membro do Comit Central, cujas simpatias se inclinavam por Trotsky, havia decorado o balco de sua casa com retratos de Lnin, Trotsky e Zinoviev. O desfile passaria sob aquele balco, na esquina das ruas Moskovaia e Tverkaia. Ali se reuniram os membros da oposio para aclamar Trotsky. O balco foi ento ocupado pela GPU e a polcia, os retratos arrancados e os opositores encarcerados.23

    As agresses fsicas comearam: o carro de Trotsky foi ameaado com armas de fogo; sua mulher, Natlia Sedova, foi fisicamente agredida. No dia seguinte, Trotsky pronunciou seu ltimo discurso pblico na URSS, no enterro do oposicionista Abraham Ioffe (ex-dirigente da poltica externa da URSS, que tinha se suicidado na vspera), antes de ser detido e deportado para Alma-Ata (no Cazaquisto). Trotsky foi excludo do partido, junto com Kamenev e Zinoviev, sem que os militantes ou o pas fossem informados das causas da medida, nem das propostas da Oposio (democracia interna, industrializao baseada no planejamento centralizado e na taxao dos kulaki, abandono da estratgia internacional da revoluo por etapas). No XV Congresso do partido, em dezembro de 1927, foi exigida a capitulao dos opositores: a maioria destes cedeu, com Zinoviev e Kamenev buscando (e conseguindo temporariamente) sua reintegrao no partido. Trotsky, isolado, no cedeu: exilado em Alma-Ata (Cazaquisto) reorganizou seus partidrios da Oposio para continuar um combate que se desenvolveria em condies cada vez mais precrias.

    Ivan Smirnov

    A teoria do socialismo em um s pas, aborto terico sem precedentes surgido do casamento entre a reao interna e a derrota internacional, surgira em completa contradio com qualquer idia antecedente do movimento socialista, desde suas origens organizadas. Stalin tinha escrito em fevereiro de 1924: Pode-se conseguir a vitria final do socialismo em um s pas, sem os esforos conjuntos do proletariado de vrios pases avanados? No, isto impossvel. O mesmo Stalin escreveu, porm, em novembro do mesmo ano: O Partido assumiu como ponto de partida a vitria do socialismo neste pas, e essa tarefa pode ser realizada com as foras de um s pas. Em 1918, Lnin no estava exprimindo uma idia pessoal, mas a convico (e, principalmene, a esperana) de todo o partido, ao afirmar: Nossa revoluo o prlogo da revoluo socialista mundial, um passo em direo a ela. O proletariado russo no pode, pelas suas prprias foras, concluir vitoriosamente a revoluo socialista. Mas pode dar sua revoluo uma extenso que crie melhores condies para a

    23

    Margarete Buber-Neumann. Historia del Komintern. A revoluo mundial. Barcelona, Picazo, 1975, p. 181.

  • 22

    revoluo socialista, e at certo ponto come-la. Pode tornar a situao mais favorvel para a entrada em cena, nas batalhas decisivas, de seu colaborador principal e mais seguro, o proletariado socialista europeu e norte-americano. A luta dos povos orientais ainda no estava no foco bolchevique (que ignorava tudo tambm, como constatou in situ John Reed, da contempornea Revoluo Mexicana). Verdade seja dita, Trotsky foi o primeiro a advogar em favor de uma orientao asitica, depois das derrotas comunistas em Alemanha e Hungria (em 1919), sem abandonar a perspectiva da revoluo mundial: O caminho para Paris e Londres passa pelas cidades e aldias do Afeganisto, do Punjab e de Bengala, declarou em 1920, propondo fosse preparado um forte e numeroso contingente de expertos para traduzir documentos e proclamas revolucionrias, nas lnguas usadas na ndia e na China.

    O abandono da perspectiva internacionalista vinculou-se ao retrocesso, isolamento e burocratizao do Estado emergente da revoluo. Dois fatores foram, sem dvida, decisivos: 1) O fracasso da revoluo europia, devido principalmente ao freio imposto pela social-democracia (aliada burguesia e aos Estados-maiores europeus) e inexperincia dos jovens ncleos revolucionrios (comunistas); 2) O esgotamento, desmoralizao e at dizimao da classe operria russa, aps anos de sacrifcios, guerra civil e intervenes estrangeiras. Nesse palco aconteceu o processo de burocratizao. O partido, que tinha poucos militantes remunerados em 1917, possua 15 mil funcionrios em 1922 (dos quais 800 no centro) at atingir 25 mil em 1926. Em 1928, o PC(b) j contava 1.300.000 membros, dos quais 540.000 recrutados depois de 1924 (isto , sete anos depois da revoluo e trs anos depois do fim da guerra civil). O inchao do aparelho de Estado, comeado provavelmente como paliativo contra o desemprego ps-guerra civil (conseqncia da desarticulao econmica e da desmobilizao do exrcito) atingiu propores descabidas: o Estado czarista (famoso pela sua burocracia obtusa, satirizada pela crtica russa do sculo XIX) possua 600 mil funcionrios em 1910; o Estado sovitico possua, em 1928, 2.000.000 de funcionrios, um nmero equivalente ao de operrios industriais. O histrico demnio russo tinha sado novamente da garrafa, em verso quantitativamente piorada. Uma pesada losa passou a esmagar um poder que, segundo Edward H. Carr, em seus dez primeiros anos de vigncia elegeu 8,7 milhes de delegados nos soviets camponeses, e 800 mil nos soviets urbanos; com 9 milhes de delegados eleitos para congressos soviticos regionais e 700 mil para congressos nacionais, configurando uma experincia sem paralelos mundiais precedentes (nem ulteriores) de participao poltica (com exeo da fugaz e limitada experincia da Comuna parisiense de 1871): mais de 60% desses delegados exerceram sua funo s por um mandato, favorecendo uma constante rotao na representao poltica.

    O socialismo num s pas representou, sobretudo, o abandono do internacionalismo proletrio, que era, para o bolchevismo, a precondio da perspectiva socialista para a Rssia. Na tradio marxista e socialista, qualquer pas isoladamente no dispunha dos recursos necessrios para a construo de uma forma mais elevada de sociedade. Os instrumentos exigidos para uma economia que superasse a capitalista, os avanos tcnicos e culturais, requeriam uma associao e planificao mundiais dos recursos acumulados pela sociedade. Coube a Trotsky defender essa idia, que obviamente no lhe pertencia, mas que embasava o conceito (teoria) de revoluo permanente. Tendo assumido o poder, inclusive num pas atrasado, a classe operria no podia deter-se no estagio capitalista, mas teria de avanar em direo a empreendimentos socialistas. Para essa meta, todavia, era necessrio no parar nas fronteiras nacionais. O socialismo no podia ser construdo em um s pas, e muito menos em um pas atrasado. A idia contrria fora, no entanto, adotada por acasalar-se com os interesses da nascente burocracia da URSS, em um contexto de penria material que tornava importantes seus inicialmente pequenos privilgios. Valendo-se da exausto das massas, portanto, Stalin argumentava vitoriosamente que o socialismo podia ser construdo na Rssia, enquanto a classe operria dos pases capitalistas evitasse que suas classes dirigentes

  • 23

    lanassem ataques militares contra a URSS. De rgos de luta revolucionria, os partidos comunistas dos outros pases deveriam tornar-se os partidos dos amigos da Unio Sovitica, guarda-fronteiras da URSS. No demorou muito para que essa doutrina fosse submetida a teste na revoluo chinesa de 1925-27.

    Antes da tragdia poltica da China, a idia foi posta prova pelo chamado Comit Anglo-Russo, em 1925. Concebido para atrair os dirigentes sindicais britnicos de esquerda para a influncia dos sindicatos soviticos, o Comit rapidamente foi apoiado por lderes trade-unionistas de direita como Purcell ou Thomas, que ficariam marcados pela traio greve geral de 1926, a mais importante da histria do movimento operrio ingls. Trotsky solicitou que se dissolvesse esse bloco. Zinoviev inicialmente vacilou, mas finalmente apoiou o ponto de vista de Trotsky. Mesmo quando Purcell e outros recuaram de sua aliana com os soviticos, Stalin apegou-se a eles. Quando esses lderes sindicais apoiaram o ataque imperialista britnico de Nanquim, em 1927, o PC ingls ainda no rompeu com eles. Pelo contrrio, foram os lderes sindicais britnicos que abandonaram seus amigos soviticos quando no os precisaram mais, passados os efeitos da radicalizao grevista. Desta forma, a greve geral de 1926 no foi apenas um acontecimento marcante na histria britnica, mas tambm na vida do PC da URSS. Os escritos de Trotsky a respeito (Para Onde vai Inglaterra? e Lies da Greve Geral) viraram uma leitura de referncia, em Ocidente, sobre o porvir da revoluo europia.

    A derrota da revoluo chinesa, em 1927, foi uma catstrofe poltica que ps em crise Internacional Comunista. A poltica impulsionada por Stalin, Bukharin, e a liderana da Komintern, reproduziu a poltica menchevique de 1917. Iniciou com a idia de que sob o jugo imperialista todas as classes do pas sofriam por igual. A burguesia estava, supostamente, conduzindo uma guerra revolucionaria contra esta opresso; todas as classes oprimidas deveriam apoi-la, um bloco revolucionrio anti-imperialista teria de ser formado por quatro classes: a burguesia, a pequena burguesia, o proletariado e os camponeses. A liderana dessa luta pertenceria burguesia e seu partido, o Kuomintang. Stalin chegou a propor a admisso do Kuomintang na Internacional Comunista, na qualidade de partido simpatizante, com Trotsky votando contra (sozinho) no Politburo. Esses simpatizantes da IC, quando finalmente conseguiram conquistar Xangai, em 1927 (chefiados pelo generalissimo Chiang Kai-shek, presidente de honra da Internacional Comunista) afogaram os trabalhadores chineses em seu prprio sangue (como relatado por Andr Malraux em A Condio Humana), deflagrando uma implacvel persegio aos comunistas. Para a IC, a luta de classes na China tinha de ser subordinada unidade (de toda a nao) na luta antiimperialista. Disto resultou a vitria da contra-revoluo e o massacre da vanguarda do proletariado chins, realizado pelos seus supostos aliados.

    Chen Tu-Xiu, fundador e primeiro secretrio geral do PC chins

    Para Trotsky e a Oposio de Esquerda, ao contrrio, a luta contra o imperialismo era um elemento importante da revoluo democrtica na China, mas no o nico. A soluo da questo da terra no seria possvel sob a liderana da burguesia. Os latifundirios, os agentes