Soromenho-Marques - Hermínio Martins

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  • VIRIATO SOROMENHO-MARQUES

    Hermnio Martins,pensador da crise contempornea

    Anlise Social, 203, xlvii (2.), 2012issn online 2182-2999

    edio e propriedadeInstituto de Cincias Sociais da Universidade de Lisboa. Av. Professor Anbal de Bettencourt, 9

    1600-189 Lisboa Portugal [email protected]

  • C OM E N T R IO

    VIRIATO SOROMENHO-MARQUES

    Hermnio Martins,pensador da crise contempornea1

    A recente publicao da obra de Hermnio Martins, Experimentum Humanum. Condio Tecnolgica e Condio Humana (Relgio Dgua, 2011), um acontecimento literrio cujo significado suscita um breve comentrio, que contribua para enquadrar num horizonte mais vasto essa obra de inegvel importncia. As reflexes que se seguem so encorajadas pela constatao de que estamos a falar de um grande pensador portugus, ainda insuficientemente conhecido do grande pblico, e mesmo ainda muito distante da familiaridade desejvel por parte dos meios acadmicos nacionais.

    D O I M P R IO PA R A O E X L IO NO M U N D O M A I S VASTO

    Atrevo-me a um reparo de natureza pessoal, pois parece-me poder contribuir para iluminar o significado do autor e do livro em apreo. Deparei-me com a obra de Hermnio Martins apenas na dcada de 90. Tive ensejo de falar, quase por acaso, com o filsofo Fernando Gil, sobre a grande impresso que o con-tacto com essa obra me causara. Para minha surpresa, ele disse-me que s se

    1 Uma outra verso deste comentrio foi publicada no Jornal de Letras, Artes e Ideias, n. 1064, de 13 a 26 de Julho de 2011, pp. 28-29.

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    havia dedicado Filosofia pela forte influncia provocada na sua juventude por um colega liceal, trs anos mais velho: Hermnio Martins! Com efeito, ambos pertenceram a uma brilhante gerao de intelectuais nascidos em Moambique (Martins, nasceu em 1934, Gil, em 1937) que se destacaria, desde tenra idade, pelas atividades culturais associativas, numa altura em que estas poderiam ser consideradas como uma ameaa segurana do Estado Novo. Foi, alis, a interveno repressiva da polcia poltica contra jovens que apenas pretendiam aumentar a sua formao cultural, que levaria Hermnio Martins, ainda na dcada de 50, a enveredar pelo exlio, tornando-se num estrangei-rado do nosso tempo.

    No s a sua formao acadmica, como depois o seu trabalho enquanto professor e investigador se efetuaram numa atmosfera dominada pela lngua inglesa, e pela diversidade das tonalidades da cultura anglo-saxnica. O seu percurso passou pelas Universidades de Leeds e de Essex, ambas no Reino Unido, Lecionou tambm nos eua, nas Universidades da Pensilvnia e de Harvard. Mas o essencial do seu labor universitrio decorreu, entre 1971 e 2001, no St. Anthonys College, da Universidade de Oxford. Em Portugal, a sua atividade centrou-se no Instituto de Cincias Sociais, da Universidade de Lisboa.

    UM S O C IL O G O DE M AT R I Z F I L O S F IC A

    O livro que agora chega ao leitor portugus rene nove escritos de Hermnio Martins produzidos ao longo de quase duas dcadas. Alguns deles foram escri-tos e publicados originalmente em lngua inglesa. Todos eles foram objeto de reviso e atualizao por parte do seu autor. semelhana de Hegel, Texas e Outros Ensaios de Teoria Social (Lisboa, Sculo xxi, 1996), a obra antolgica, que lanou o nome de Martins como notvel pensador junto do pblico portu-gus, este novo livro ilustra bem a correo da assero comum de que o todo sempre maior do que as partes. Mesmo para quem esteja familiarizado com o modo e o mtodo de reflexo que caracteriza a escrita de Hermnio Martins, este livro exibe, com uma veemncia que nenhum dos seus captulos por si s permitiria, a profunda unidade e maturidade do olhar de Martins sobre os fundamentos e o desenho interno da civilizao contempornea.

    As preocupaes de Martins so pluridisciplinares. A sua vontade de saber de natureza enciclopdica, estendendo-se pelos domnios mais diversos do conhecimento. Mas qual o centro unificador destes textos, caracterizados por uma escrita to fluida como slida, que exibe uma procura de transpa-rncia e rigor, sem deixar de oferecer aos leitores o impressionante suporte de uma exuberante erudio? O fulcro unificador da obra de Martins, evidente de

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    modo especial neste livro, no me parece poder ser considerado de mbito cla-ramente sociolgico, embora a sociologia, em mltiplas das suas abordagens, se encontre bem presente.

    Trata-se, na verdade, de uma obra profundamente filosfica sobre a voca-o e o destino tecnolgicos da civilizao contempornea. Uma obra inova-dora e surpreendente, pois ousa pensar uma ampla variedade de experincias e fenmenos da contemporaneidade luz de um conjunto coerente e clarifi-cador de categorias operatrias. Tradicionalmente, a vocao da filosofia o estudo e a compreenso do todo. Mas sabemos como depois de Kant, e sobre-tudo de Hegel, a filosofia estabeleceu uma relao progressivamente inquieta com a produo de vises do mundo (Weltanschauungen). Com a diviso da ideia de saber em totalidade, em dois continentes progressivamente afastados e independentes (as cincias do esprito e as cincias da natureza, para usar apenas uma das mais comuns caracterizaes dessa ciso), a filosofia foi per-dendo coragem e ousadia, refugiando-se ora na explorao analtica do rigor discursivo, ora na reconstruo e releitura hermenutica dos grandes sistemas e idades da tradio especulativa do Ocidente.

    A revitalizao da filosofia tem vindo das suas margens. Lembremo-nos de Nietzsche (um fillogo de formao), de Husserl (um matemtico), de Wittgenstein (um engenheiro), ou de Leopold (um silvicultor). De certo modo, Hermnio Martins segue esta senda da fecundao da filosofia a partir do seu percurso prprio pela sociologia da cincia (onde se deve destacar a sua medi-tao sobre Thomas S. Kuhn), entre outros interesses que incluem o estudo das ideias federais em Portugal, ou os trabalhos sobre o regime do Estado Novo, que foram coligidos no livro Classe, Status e Poder e Outros Ensaios sobre o Portugal Contemporneo (Lisboa, ics, 1998).

    C R I SE DA NAT U R E Z A , C R I SE DA H UM A N I DA DE

    Sem querer subestimar as imensas e ricas mediaes do seu pensamento, a tese central da reflexo de Hermnio Martins sobre a tecnologia poderia ser resumida na ideia de que aquela nunca poder ser lida como um mero instru-mento, como uma panplia de utenslios revestidos de uma certa neutralidade axiolgica. Ao lado de autores como Hannah Arendt, tambm Martins perspe-tiva a tecnologia por dentro do ncleo do projeto mais profundo, onrico e per-turbante da modernidade. A tecnologia, ou melhor, a unidade profunda entre tcnica e cincia, nunca foi um puro processo de emancipao da humanidade em relao a uma submisso incondicional aos determinismos da Natureza, na linha dos pensadores que se ergueram sob o signo de Prometeu, como foi o caso de Comte ou de Marx. Ou, em certa medida, e numa expresso de elevada

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    espiritualidade, a riqussima e pioneira meditao de Jacques Ellul sobre tc-nica, condio humana e sentido da histria. A tecnologia trazia, sob o entu-siasmo prometeico, as sombras de um pesadelo fustico, de um impulso cego de domnio puro, de afirmao de um poder que no tinha outra agenda seno o seu prprio incremento e exerccio indefinidos, como claramente evocado nas obras de um Spengler ou de um Jnger, bem como sugerido no importante ensaio de Heidegger Die Frage nach der Technik (1958). Vocao fustica levada ao nvel de uma quase grosseira caricatura na provocadora conferncia de Peter Sloterdijk, proferida em 1999: Regeln fr den Menschenpark.

    Nessa medida, Hermnio Martins pode ser considerado como um dos pensadores mais profundos da crise ambiental. Tal como Ulrich Beck (1986), Martins surpreende a inevitabilidade da sociedade de risco, contida nas pro-messas do processo tecno-industrial que constituem a matriz da nossa moder-nidade. Contudo, Martins vai mais longe do que Beck na compreenso da lgica interna, potencialmente demencial, que anima a modernidade. Com efeito, a tecnologia transformou-se numa espcie de estrutura transcenden-tal da modernidade, um a priori do operar terico-prtico moderno. A crise ambiental seria o efeito visvel de uma produtividade tecnolgica percorrida pelo princpio da plenitude. Pelo sonho, no apenas de modificar a natu-reza, mas de a reconstruir radicalmente. O delrio de ultrapassar a barreira da Natura naturata em direo a uma Natura naturans. A reduo do Outro natural a uma variante antropognica de um Eu, mais do que humano.

    Nesse rumo, apenas possvel de identificar por dentro do projeto tecnol-gico da modernidade, esconde-se a fora crescente das biotecnologias. Martins desde h muito um pioneiro no estudo da arqueologia onrica e fantstica onde mergulham as razes da biotecnologia hodierna. Ningum melhor do que ele soube resgatar a grandeza filosfica em autores, aparentemente margi-nais, como J. D. Bernal ou J. B. S. Haldane. Tambm aqui, a condio humana, como a conhecemos, no entendida como um limite, mas como um alvo, como matria-prima em direo a uma ps-humanidade, visando o processo de uma nova hominizao de base tecnolgica. Se um dia a Natureza, como a conhecemos, perecer completamente, talvez lhe sobreviva o ps-humano, o trans-humano. Como caricatura e pesadelo, deixados a ttulo de herana pela breve passagem da aventura humana por este planeta.

    Viriato Soromenho-Marques [email protected] Faculdade de Letras,Universidade de Lisboa.

    soromenho-marques, V. (2012), Comentrio Hermnio Martins, pensador da crise contempornea.Anlise Social, 203, xlvii (2.), pp. 479-482.