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Sola Scriptura e o Princípio Regulador do Culto 1ª Edição Março de 2001 ?.000 exemplares Traduzido do original em inglês: Sola Scriptura and the Regulative Principle of Worship de Brian M. Schwertley Editado originalmente por Stephen Pribble e publicado por Southfield, MI: Reformed Witness, s.d. Salvo indicação em contrário, as citações bíblicas foram extraídas da versão Revista e Atualizada (2 a . edição, 1993) de João Ferreira de Almeida. © Sociedade Bíblica do Brasil. É proibida a reprodução total ou parcial desta publicação, sem autorização por escrito dos editores, exceto citações em resenhas. Tradução: Marcos Vasconcelos Revisão: Rev. Franklin Ferreira Editora: Os Puritanos Telefax: (+11) 6957-3148 [email protected] Impressão: Facioli Gráfica e Editora Ltda Rua Canguaretama, 181 - São Paulo - SP

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Sola Scriptura e o Princípio Regulador do Culto

1ª Edição — Março de 2001

?.000 exemplares

Traduzido do original em inglês:

Sola Scriptura and the Regulative Principle of Worship

de Brian M. Schwertley

Editado originalmente por Stephen Pribble e publicado por Southfield, MI: Reformed

Witness, s.d.

Salvo indicação em contrário, as citações bíblicas foram extraídas da versão Revista e

Atualizada (2a. edição, 1993) de João Ferreira de Almeida. © Sociedade Bíblica do Brasil.

É proibida a reprodução total ou parcial desta publicação, sem autorização por escrito dos

editores, exceto citações em resenhas.

Tradução:

Marcos Vasconcelos

Revisão:

Rev. Franklin Ferreira

Editora:

Os Puritanos

Telefax: (+11) 6957-3148

[email protected]

Impressão:

Facioli Gráfica e Editora Ltda

Rua Canguaretama, 181 - São Paulo - SP

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Í N D I C E

Prefácio

Introdução

I. Sola Scriptura — O Que é?

1. Sola Scriptura — O Entendimento Confessional Reformado

2. Esclarecimentos

II. Sola Scriptura — Aspectos

1. A Autoridade da Escritura

2. A Suficiência e Perfeição da Escritura

3. A Completude e Finalidade da Escritura

III. Sola Scriptura — A Rejeição de Judeus e Católicos

IV. Inconsistências Protestantes

1. O Episcopalismo

2. O Luteranismo

3. O Evangelicalismo

4. O Declínio Reformado

V. Sola Scriptura — Alguma Objeções Contemporâneas no Âmbito do Culto

Consideradas e Refutadas

1. O Argumento da ―Falsa Compreensão da Ética e da Adiaforia‖

2. O Argumento de que ―Tudo na Vida é Culto‖

3. O Argumento de que ―O Princípio Regulador do Culto Aplica-se Apenas ao

Templo‖

4. O Argumento das ―Circunstâncias do Culto‖

5. O Argumento de que ―Jesus Aceitou e Participou de Tradições Humanas‖

6. O Argumento da ―Festa do Purim‖

7. O Argumento da ―Distorção do Princípio Regulador‖

Resumo e Conclusões

Apêndice A — João Calvino e o Princípio Regulador

Apêndice B — Uma Análise Bíblica do Livro de John Frame “Adoração em Espírito e

Verdade”

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O cerceamento da liberdade dos discípulos de Cristo, pela

imposição de coisas que Ele não determinou, nem se fizeram

necessárias pelas circunstâncias que as antecederam, são claras

usurpações das suas consciências, destrutivas à liberdade que Ele

lhes adquiriu, às quais — se o dever deles é andar conforme a

ordenança do evangelho — submeter-se é pecaminoso.

John Owen

Foto de John Owen

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Prefácio

―Ministros entram na onda para seduzir jovens, ligando a mensagem nos que se

desligaram do velho estilo de culto‖, anuncia a manchete de um dos principais jornais numa

grande cidade americana sobre a história dos recentes esforços para atrair as pessoas,

transformando a igreja numa boate. Bandas de rock, fachos de luz e vídeos que mostram

uma jovem falando de Deus estão entre os métodos experimentados pelos pastores

avançadinhos, com aparente sucesso.

Mas se o propósito da igreja é atrair multidões, por que não?

―É um lugar mais ajustado à nossa geração‖, disse uma jovem. ―O estilo do culto e

das pessoas é tudo que importa para mim‖.

Mas qual é o propósito da igreja? É atrair multidões a qualquer custo? Ou é

glorificar a Deus oferecendo-Lhe o culto que agrada o Seu coração?

O nosso Senhor afirmou: ―Mas vem a hora e já chegou, em que os verdadeiros

adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade; porque são estes que o Pai procura

para seus adoradores‖ (Jo. 4:23). Não é o propósito da Igreja cultuar o nosso Trino Deus

em espírito e em verdade? Será que podemos realmente dizer que as palavras de nosso

Senhor tornaram-se obsoletas, de alguma maneira? O nosso Salvador não descreveu o

propósito da igreja para cada era? Tem os ministros de Cristo o direito de substituir os

elementos do culto espiritual apontados pelo próprio Deus, por elementos mais apelativos à

concupiscência da carne?

É triste dizer, mas se o culto centrado em Deus não apelar ao homem não-

regenerado, alguns sequer hesitam em centralizar o culto no homem.

Tem sido privilégio meu editar vários dos livros de Brian M. Schwertley, mas

nenhum deles é tão importante ou necessário hoje quanto os que tratam do culto — assunto

tão querido ao coração de Deus. Conquanto eu defenda algumas diferenças na aplicação (ao

crer que temos aprovação bíblica para o uso de hinos não-inspirados e acompanhamento

instrumental), estou completamente de acordo com o princípio básico de que a igreja só

pode adorar a Deus utilizando os elementos que Ele próprio assinalou: confissão de fé;

oração; leitura e pregação da Palavra de Deus; apresentação de dízimos e ofertas; cântico de

salmos, hinos e cânticos espirituais; e a observância do batismo e da Ceia do Senhor. Como

demonstra claramente Schwertley, o sola scriptura está tão diretamente relacionada com o

culto da igreja quanto com a sua teologia.

O papel da igreja não é ser inovadora, mas ser fiel, guardando o depósito da

verdade que lhe foi confiado pelo seu Senhor. Que esse livro possa gozar de ampla

publicação, contribuindo para a renovação do culto em nossos dias.

Pastor Stephen A Pribble.

Igreja Presbiteriana Ortodoxa da Graça.

Holt, Michigan, E.U.A.

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Introdução

Sola scriptura é um dos princípios fundamentais da Reforma Protestante. Alguém

poderia até dizer que outras grandes doutrinas da Reforma (tais como sola gratia e sola

fide) são logicamente dependentes do sola scriptura. Ao fazer da Bíblia o único padrão e

autoridade para a fé e para a vida, os protestantes tornaram-se capazes de refutar todas as

doutrinas e práticas papistas originadas pela tradição humana. Os reformadores calvinistas

alcançaram uma reforma maior e mais completa na igreja porque aplicaram o sola scriptura

mais consistente, lógica e efetivamente à doutrina, governo da igreja e culto que os seus

congêneres anglicanos e luteranos.

A doutrina da sola scriptura, com seu ensinamento concernente à autoridade,

exatidão, perfeição e suficiência das Escrituras, precisa ser ensinada hoje com renovado

zelo e urgência. As razões para esse zelo renovado não se devem meramente a atual

popularidade do catolicismo, da ortodoxia oriental, do modernismo, da neo-ortodoxia, das

seitas, do movimento carismático e do movimento de crescimento de igrejas. A razão

principal é a decadência hoje em curso entre as denominações conservadoras reformadas e

presbiterianas, particularmente na área do culto. Muitas igrejas reformadas e presbiterianas

não estão só permitindo inovações humanas no culto, mas o princípio regulador da

Escritura — e a doutrina correlata à suficiência da Bíblia para todos os assuntos de fé,

inclusive do culto — é rejeitado francamente por muitos pastores e presbíteros. O princípio

regulador do culto (que é o sola scriptura aplicada à adoração praticada pela igreja) é uma

das maiores conquistas da reforma calvinista. E para firmarmos o alicerce do culto

Reformado precisamos retornar à doutrina do sola scriptura. Oramos para que este estudo

seja utilizado para a reforma da igreja.

Os crentes reformados de hoje precisam compreender o relacionamento teológico

que existe entre o sola scriptura e o princípio regulador do culto. São múltiplas as razões

pelas quais tal compreensão é necessária. Em primeiro lugar, o princípio regulador do culto

está diretamente relacionado às doutrinas do sola scriptura tais como a infalibilidade, a

autoridade absoluta, a suficiência e perfeição da Escritura. Os reformadores calvinistas e as

confissões Reformadas citavam com freqüência passagens referentes ao sola scriptura

(e.g., Dt. 4:2, Pv. 30:6) como textos de prova para o princípio regulador do culto. Quando o

sola scriptura é aplicado ao culto, com consistência, o resultado é um culto puritano e

reformado. Em segundo lugar, é comum os oponentes do princípio regulador contra-

argumentarem, tendo por base a similaridade entre os textos que provam o sola scriptura e

os que provam o princípio regulador. Este tipo de argumentação segue normalmente uma

ou duas linhas de pensamento. Alguns dizem que os textos de prova citados a favor do

princípio regulador (e.g., Dt. 12:32) estão realmente ensinando apenas o sola scriptura. Em

outras palavras, é exegeticamente ilegítimo usar tais passagens para a regulação rigorosa do

culto. Outros dizem que a natureza similar e até mesmo idêntica entre as passagens do sola

scriptura e do princípio regulador não provam uma regulamentação rigorosa do culto, mas,

na verdade, provam o contrário. Tal argumento baseia-se no seguinte silogismo. O sola

scriptura ensina que a Bíblia regula a vida em sua totalidade. Entretanto, a vida em sua

totalidade possui muitas atividades que não são estritamente reguladas (em outras palavras,

a Bíblia dá ao homem uma grande liberdade no trato das coisas indiferentes [adiaforia]).

Portanto, segue-se que o princípio regulador ou o sola scriptura no que concerne a

adoração dá ao homem uma grande liberdade na esfera do culto. Neste estudo

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examinaremos o relacionamento entre o sola scriptura e o princípio regulador com o

objetivo de provar que o sola scriptura, entendida apropriadamente, conduz ao princípio

regulador. Iremos, então, refutar muitos dos argumentos populares usados hoje contra o

princípio regulador, incluindo o argumento baseado na similaridade entre os textos de

prova do sola scriptura e do princípio regulador.1

1 Muitos cristãos professos consideram hoje os assuntos teológicos como de pouca ou nenhuma importância.

Alguns até mesmo consideram o debate teológico e a refutação de falsos ensinos como desamor arrogante e

insultuoso aos irmãos de denominações teológicas diferentes. Alguns crentes fazem comentários como: ―será

que não deveríamos estar construindo pontes em vez de erigindo muralhas e fortalezas?‖ Conquanto seja

inquestionável que o debate teológico e a refutação têm de ser conduzidos em espírito de amor cristão e zelo

pelos cristãos professos de opiniões teológicas diferentes, a idéia de que a precisão teológica, o debate e a

refutação são de algum modo más ou de nenhum valor em nossos dias é clamorosamente contrária à Bíblia

por uma série de razões. Primeiro, todo crente, e especialmente todo ministro, tem a obrigação moral de

defender a verdade, de contender fervorosamente pela fé que uma vez foi dada aos santos (Judas 3) e de

convencer aos que contradizem (Tt. 1:9). Em um mundo cheio de heresia, apostasia e de lobos em pele de

ovelhas, a falta de precisão doutrinária e, da parte do ministro, a indisposição para defender a verdade é

atitude antipastoral e indesculpável. Segundo, uma das grandes lições da história da igreja é que Deus tem

utilizado a heresia e a controvérsia teológica para santificar corporativamente a Sua igreja. Inimigos da

verdade, heréticos e deturpadores teológicos têm se levantado e assaltado a igreja de dentro para fora. Deus,

entretanto, em Sua infinita bondade e sabedoria tem usado tais ocasiões para fazer avançar a Sua própria

causa e reino. Muitas doutrinas cruciais foram esclarecidas e purificadas nas chamas da controvérsia e da

perseguição. Deveríamos acaso esperar que fosse diferente em nossos dias? James Begg escreve (1875):

―Nossa própria era tem fornecido abundantes ilustrações da verdade geral, por assim dizer, embora o pior

esteja provavelmente por vir. O ponto de ataque varia de tempos em tempos, mas a luta incessante não

míngua. Quando os homens e mulheres cristãos têm, de algum modo, se acostumado a defender uma posição

verdadeira, o assalto é direcionado a outra posição, e talvez a partir de um novo local. Embora não devamos

nos arriscar a despojar a importância relativa de grandes princípios, pode-se afirmar seguramente que nada é

mais importante do que as questões associadas com o culto aceitável a Deus‖ (Anarchy in Worship

[Edinburgh: Lyon and Gemmel, 1875], 4). Em terceiro lugar, o único método e a única base para o verdadeiro

ecumenismo bíblico não é ignorar a verdade ou a teologia, mas estudá-la vigorosamente, abraçá-la, protegê-la

e defendê-la. Qualquer tipo de união ou cooperação ―cristã‖ que ignora, minimiza ou altera a verdade é

destrutiva à fé. Tal união surge não da rocha firme da Escritura, mas da areia movediça de burocratas

desviados e apóstatas.

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1. O Que é Sola Scriptura?

Antes de considerarmos a relação que há entre sola scriptura e o princípio

regulador precisamos, primeiro, definir o que é sola scriptura. Após ser dada uma breve

definição desta doutrina voltaremos nossa atenção para as declarações confessionais

protestantes.

Dito resumidamente, a doutrina protestante de sola scriptura ensina que a Bíblia

(os 66 livros do Velho e do Novo Testamento) é a divina Palavra inspirada de Deus, e,

portanto, infalível e absolutamente autoritativa para todos os assuntos referentes à fé e à

vida. Como palavra escrita de Deus contém tudo o que existe da revelação sobrenatural de

Deus, e porque cessaram todas as formas de revelação direta (com a morte dos apóstolos e

o fechamento do cânon), apenas e somente a Bíblia é a autoridade da igreja. Por que a

Escritura é clara (i.é, todo ensino necessário à salvação, fé e vida, são facilmente

compreendidos pelas pessoas comuns) não há necessidade de quaisquer fontes adicionais

de autoridade para interpretar a Bíblia infalivelmente para a igreja. A igreja (sejam ou não

papas, cardeais, bispos, pais da igreja, concílios eclesiásticos, sínodos ou congregações) não

tem autoridade sobre a Bíblia, mas a Escritura auto-autenticada tem autoridade absoluta

sobre a igreja e sobre todos os homens. Por ser o que a Bíblia é (como já visto), o mister da

igreja é puramente ministerial e proclamador. Todos os homens são proibidos de

acrescentar ou subtrair algo das Sagradas Escrituras, seja pelas tradições humanas, ou pelas

assim chamadas novas revelações do Espírito, ou pelos decretos de concílios e sínodos. A

Bíblia é suficiente e perfeita e não necessita de quaisquer acréscimos humanos. Além do

que, apenas aquilo que é ensinado na Escritura pode ser usado para tornar cativas as

consciências dos homens.

1. O Entendimento Confessional Reformado do Sola Scriptura

As confissões Reformadas estão em total concordância quanto ao sola scriptura ou

ao princípio regulador da Escritura.

Primeira Confissão Helvética (1536)

Artigo 1. A Escritura. A Escritura Canônica, sendo a Palavra de Deus, concedida

pelo Espírito Santo, e proclamada ao mundo pelos profetas e apóstolos, sendo de

todas as outras a mais perfeita e antiga filosofia, contém perfeitamente toda a

piedade e boa ordenação da vida.2

Confissão Francesa (1559)

Artigo 5. Cremos que a palavra, contida nesses livros, procede de Deus; de quem

somente, e não de homens, depende portanto a autoridade. E vendo que é a suma

de toda a verdade, contendo tudo aquilo que se requer para a adoração a Deus e

nossa salvação, afirmamos que não é lícito ao homem, não, nem mesmo aos anjos,

acrescentar ou subtrair qualquer coisa a ou desta palavra, ou alterar nela o mínimo

que seja.3

2 Traduzido do latim por Peter Hall, The Harmony of Protestant Confessions (Edmonton, Canada: Still Waters

Revival Books, 1992 [1842]), 4. 3 Ibid., 8.

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Confissão Belga (1561)

Artigo 7. A Suficiência das Sagradas Escrituras para Serem a Única Regra de Fé

Cremos que as Sagradas Escrituras contêm totalmente a vontade Deus, e que tudo

quanto o homem deve crer para a salvação é suficientemente ensinado nela.

Porquanto todo modo de adoração que Deus requer de nós está nela amplamente

escrito, é ilícito a quem quer que seja, mesmo um apóstolo, ensinar outra coisa

além do que agora somos ensinados nas Sagradas Escrituras: nem um anjo vindo

do céu, como disse o apóstolo Paulo. Pois desde que é proibido acrescentar ou

subtrair qualquer coisa da Palavra de Deus, fica, portanto, assim evidente, que a

sua doutrina é a mais perfeita e completa em todos os aspectos. Nem consideramos

de valor equivalente às divinas Escrituras qualquer escritura de homens, por mais

santos que tenha sido; nem devemos considerar costume, ou grande multidão, ou

antiguidade, ou sucessão de eras e pessoas, ou concílios, decretos, ou estatutos,

como de igual valor à verdade de Deus, pois a verdade está acima de tudo; porque

todos os homens são, em si mesmos, mentirosos e mais vãos que a própria

vaidade. Portanto rejeitamos de todo coração tudo que discordar dessa infalível

regra que nos foi ensinada pelos apóstolos, dizendo, provai os espíritos se

procedem de Deus. E, de semelhante modo, se alguém vem ter convosco e não traz

esta doutrina, não o recebais em casa, nem lhe deis as boas-vindas. 4

Segunda Confissão Helvética (1566)

I. Das Sagradas Escrituras Sendo a Verdadeira Palavra de Deus...

2. E nesta Santa Escritura, a Igreja universal de Cristo tem todas as coisas

referentes à fé salvadora plenamente expostas, e também os moldes de uma vida

aceitável a Deus; e quanto a isso é expressamente ordenado por Deus que nada

seja acrescentado ou retirado dela (Dt. 4:2; Ap. 22:18-19).

3. Julgamos, portanto, que deve-se derivar destas Escrituras a verdadeira sabedoria

e a piedade, a reforma e o governo das igrejas; como também a instrução para

todos os deveres de piedade; e, para ser breve, a confirmação de doutrinas e a

refutação de todos os erros, com todas as exortações; de acordo com as palavras do

apóstolo: ―Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a

repreensão...‖, etc. (2Tm. 3:16-17). Novamente, ―Escrevo-te estas cousas‖, diz o

apóstolo a Timóteo, ―... para que (...) fiques ciente de como se deve proceder na

casa de Deus‖, etc. (1Tm. 3:14-15).5

II. Da interpretação das Sagradas Escrituras; e dos Pais da igreja, Concílios e Tradições...

4. ... Portanto, nas controvérsias da religião ou de assuntos relativos à fé, não

podemos admitir nenhum outro juízo senão o de Deus mesmo, declarando pelas

Sagradas Escrituras o que é verdadeiro, o que é falso, o que deve ser seguido, ou o

que [deve] ser evitado. Por isso só nos apoiamos no juízo de homens espirituais,

tomados da Palavra de Deus. Certamente que Jeremias e outros profetas

condenaram com veemência as assembléias de sacerdotes reunidos contra a lei de

Deus e diligentemente advertiram-nos de antemão que não deveríamos dar ouvidos

4 Joel R. Beek e Sinclair B. Ferguson, eds., Reformed Confessions Harmonized (Grand Rapids: Baker, 1999),

14, 16. 5 Ibid., 10, 12.

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nem andar nos caminhos dos antepassados que, seguindo a suas próprias

invencionices, apartaram-se da lei de Deus.

5. Semelhantemente rejeitamos as tradições humanas que, embora recebam títulos

piedosos como se fossem divinas e apostólicas, e dadas à igreja pela vívida voz

dos apóstolos; como se fossem dadas pelas mãos de homens apostólicos por meio

da sucessão de bispos, mas que comparadas às Escrituras discordam delas; e que

nessa discordância traem-se como não sendo, de modo nenhum, apostólicas. Como

os apóstolos não se contradisseram entre si quanto à doutrina, assim os homens

apostólicos não ensinaram nada contrário aos apóstolos. Não, pois seria blasfemo

asseverar que os apóstolos, de viva voz, proclamaram coisas antagônicas aos seus

escritos. Paulo afirma expressamente que ensinava a mesma coisa em todas as

igrejas (1Co. 4:17). E, novamente, diz ele: ―porque nenhuma outra coisa vos

escrevemos, além das que ledes e bem compreendeis‖ (2Co. 1:13). Também,

noutro lugar, testifica que ele mesmo e seus discípulos — isto é, homens

apostólicos — andavam do mesmo modo, e que juntamente pelo mesmo Espírito

faziam todas as coisas (2Co. 12:18). Os judeus também, no passado, tinham a

tradição de seus anciãos, mas tais tradições foram repudiadas severamente pelo

Senhor, ao demonstrar que guardá-las é um estorvo à lei de Deus, e de que assim

Deus é adorado em vão (Mt. 15:8-9; Mc. 7:6-7).6

Os Padrões de Westminster (1646-1648)

Breve Catecismo

P. 2. Que regra Deus nos deu para nos dirigir na maneira de O glorificar e

gozar?

R. A Palavra de Deus, que se acha nas Escrituras do Velho e do Novo Testamento,

é a única regra para nos dirigir na maneira de O glorificar e gozar.7

Catecismo Maior

P. 3. O que é a Palavra de Deus?

R. As Escrituras Sagradas – o Velho e o Novo Testamento – são a Palavra de

Deus, a única regra de fé e de obediência.

Confissão de Fé

I.II. Sob o nome de Escritura Sagrada, ou Palavra de Deus escrita, incluem-se

agora todos os livros do Velho e do Novo Testamento, que são os seguintes, todos

dados por inspiração de Deus para serem a regra de fé e de prática...

I.VI. Todo o conselho de Deus concernente a todas as coisas necessárias para a

glória dEle e para a salvação, fé e vida do homem, ou é expressamente declarado

na Escritura ou pode ser lógica e claramente deduzido dela. À Escritura nada se

acrescentará em tempo algum, nem por novas revelações do Espírito, nem por

6 Ibid., 14, 16.

7 A Confissão de Fé, O Catecismo Maior, O Breve Catecismo (São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1991).

Neste livro, todas citações da Confissão de Fé Westminster, Catecismo Maior e Breve Catecismo são retiradas

da referida edição. No texto original o autor fez uso da The Westminster Confession of Faith (Glasgow,

Scotland: Free Presbyterian Publications, 1976).

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tradições dos homens; reconhecemos, entretanto, ser necessária a íntima

iluminação do Espírito de Deus para a salvadora compreensão das coisas reveladas

na Palavra, e que há algumas circunstâncias, quanto ao culto de Deus e ao governo

da Igreja, comuns às ações e sociedades humanas, as quais têm de ser ordenadas

pela luz da natureza e pela prudência cristã, segundo as regras da Palavra, que

sempre devem ser observadas.

2. Esclarecimentos

Conforme as declarações confessionais reformadas, a Bíblia é uma regra de fé e de

vida completa e suficiente. Agora que o cânon está fechado e a revelação direta cessou, as

Escrituras inspiradas são a única regra de doutrina e prática. Embora a Bíblia seja a única

regra que Deus nos deu para nos conduzir na maneira de O adorar e gozar, há uma série de

questões que precisam ser esclarecidas antes de continuarmos.

Primeiro, a doutrina de sola scriptura não é a negação da revelação natural. A

Bíblia mesmo ensina que existem coisas que o homem pode aprender sobre Deus e sobre si

mesmo a partir da natureza (cf. Sl. 19; Rm. 1:20ss.). Precisamos, entretanto, observar que:

(1) A revelação natural não tem por objetivo ser usada independentemente da revelação

direta. Antes da queda Deus falou diretamente com Adão quanto à árvore da ciência do

bem e do mal. (2) Quando a humanidade caiu em Adão, tanto a terra quanto a raça humana

foram afetadas pela pecado. Por causa do pecado e da maldição a revelação natural tornou-

se uma forma não confiável de fonte de ética. (3) A Escritura ensina que embora a

revelação natural seja bastante para tornar a raça humana culpada e inescusável (Rm. 1:18),

ela não é suficiente para ensinar o homem quanto a salvação, a Cristo e a muitas outras

doutrinas cruciais. (4) Além disso, quaisquer doutrinas ou comportamento que pudessem

ser deduzidas da revelação natural não poderiam contradizer as Sagradas Escrituras — que

são claras e suficientes — mas seriam por elas julgadas.

Em segundo lugar, a doutrina de sola scriptura não é a negação da natureza

progressiva e dos diversos meios de revelação divina antes do fechamento do cânon. Um

ensino fundamental do princípio regulador da Escritura é que o homem nada pode

acrescentar ou subtrair da Palavra de Deus (Dt. 4:2). Conquanto anterior à conclusão da

Escritura, este mandamento não impedia o próprio Deus de acrescentar Seus pensamentos

àqueles que Seu povo já possuía. Proibia, entretanto, quem quer que fosse, de acrescentar

ou subtrair da revelação divina que tinham, fosse por falsa profecia, augúrio, tradição

humana ou negligência aos mandamentos de Deus. Além disso, como cristãos atentamos

para uma revelação completa e escrita. (Nos tempos antigos os homens recebiam visões,

sonhos e comunicações verbais de Deus, mas nem toda revelação era para ser escrita).

Observe que, se quisesse, Deus poderia ter preservado a revelação divina de maneira

sobrenatural que não fosse a forma escrita. Entretanto, em Seu bel-prazer e infinita

sabedoria, Deus consignou tudo que a Igreja e o mundo precisam na revelação escrita. Uma

vez que a revelação natural é insuficiente, cessou a revelação direta à igreja, e Deus

declarou-nos a Sua vontade ao ―fazê-la escrever toda‖, as Escrituras são nosso único padrão

para fé e para vida.

Terceiro, a doutrina do sola scriptura, ao afirmar que ―todo o conselho de Deus

concernente a todas as coisas necessárias para a glória dEle e para a salvação, fé e vida do

homem, ou é expressamente declarado na Escritura ou pode ser lógica e claramente

deduzido dela‖, não é uma negação de que existiam muitas revelações e eventos históricos

que não foram incluídos no cânon. A Escritura completa, que Deus deu à Igreja, é

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exatamente aquela que Ele queria que nós tivéssemos. Ele poderia ter dado ao Seu povo

uma centena de volumes que contivessem mais casos relativos à lei, mais histórias

detalhadas dos patriarcas, Moisés, Israel, Jesus Cristo e os atos da Igreja Apostólica. Mas

Jeová deu-nos apenas os 66 livros, e este cânon completo e perfeito é totalmente suficiente

para alcançar o seu propósito. Deus tem muitas coisas ocultas que pertencem a Ele e à Sua

perfeição divina que são infinitas e jamais poderiam ser-nos reveladas total e

adequadamente, mesmo que existissem um milhão de volumes inspirados. Mas, em Sua

misericórdia, tudo o que precisamos saber para amá-Lo e servi-Lo foi-nos dado nas

Escrituras.

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II. Sola Scriptura – Aspectos

1. A Autoridade da Escritura

O princípio regulador da Escritura alicerça-se no fato de que a Bíblia é única.

Somente a Bíblia é a Palavra de Deus. A Confissão de Westminster declara que ―a

autoridade da Escritura Sagrada, razão pela qual deve ser crida e obedecida, não depende

do testemunho de qualquer homem ou igreja, mas depende somente de Deus (a mesma

verdade) que é o seu Autor; tem, portanto, de ser recebida, porque é a Palavra de Deus‖

(i.iv). A Escritura é inspirada por Deus. É, portanto, a verdade, e tem a autoridade do

próprio Deus. Somente ela, entre todos os livros, possui absoluta autoridade.

Só há um Deus — a Trindade ontológica que é transcendente, que criou todas as

coisas e que dá sentido à realidade. Do mesmo modo, só existe hoje uma única direção

verbal ou fonte escrita da revelação divina. Só existe um único livro que nos declara a

mente e a vontade de Deus. Por ser inspirada pelo próprio Deus, a Escritura é auto-

autenticada e absoluta. A sua autoridade não depende da igreja, nem de provas empíricas ou

de filosofia humana. À igreja, e a todos os homens, exige-se que a ela se submetam sem

quaisquer reservas ou evasivas, pois ela é a própria voz do Onipotente.

Por ser a Palavra de Deus, a Escritura é a autoridade final e definitiva para todos

os assuntos de fé e de vida. A Bíblia é o único padrão absoluto e objetivo, pelo qual a ética,

a doutrina, o governo da igreja e a adoração devem ser julgados. A Confissão de

Westminster afirma que ―o Juiz Supremo, pelo qual todas as controvérsias religiosas têm de

ser determinadas, e por quem serão examinados todos os decretos de concílios, todas as

opiniões dos antigos escritores, todas as doutrinas de homens e opiniões particulares, o Juiz

Supremo, em cuja sentença nos devemos firmar, não pode ser outro senão o Espírito Santo

falando na Escritura‖ (i.x). Homens pecadores e falíveis podem e recebem autoridade

delegada por Deus, mas somente Deus, que é o Soberano absoluto e Criador de todas as

coisas, tem o direito à sujeição da fé e da obediência dos homens.

2. A Suficiência e Perfeição da Escritura

A compreensão da suficiência, perfeição ou completude da Escritura (que é um

dos principais aspectos do entendimento reformado de sola scriptura) nos conduzirá a um

entendimento mais profundo da conexão inseparável que existe entre o princípio regulador

da Escritura e o princípio regulador do culto. Por perfeição da Escritura queremos dizer que

a Bíblia é completamente suficiente para aquilo que foi por Deus designada. ―Toda a

Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para

a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente

habilitado para toda boa obra‖ (2Tm. 3:16-17). Robert Shaw escreveu: ―A Escritura é

apresentada como perfeita, apropriada para atender a toda necessidade, Sl. 19:8, 9; é

suficiente para que ‗o homem de Deus seja perfeito‘, e pode tornar o crente ‗sábio para a

salvação pela fé em Cristo Jesus‘ (2Tm. 3:15-17). Tão completa é a Escritura que o seu

Autor proíbe peremptoriamente que a ela se acrescente ou se diminua qualquer coisa (Dt.

4:2; Ap. 22:18, 19)‖.8 A. A. Hodge escreveu: ―a Escritura ensina de fato um perfeito

sistema de doutrina e todos os princípios necessários à regulamentação prática das vidas

dos indivíduos, das comunidades, e das igrejas. Quanto mais diligentes forem os homens no

estudo da Bíblia, e mais freqüentemente puserem em pratica as suas instruções, tanto

8 Robert Shaw, Exposition of the Confession of Faith (Edmonton: Still Waters Revival Books, 1845), 16.

Page 13: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

menos lhes será possível crerem que, qualquer item da regra perfeita, é incompleta quanto

àquilo que o homem deve crer a respeito de Deus, e dos deveres todos que Deus requer do

homem‖.9

Quando discutimos a Escritura como a revelação inspirada e final de Deus, que é

suficiente e completa para a salvação, servir a Deus, fé e prática, não queremos dizer que

não existam verdades que possam ser apreendidas fora dela. Dissemos anteriormente que

certas coisas sobre Deus e sobre nós mesmos são entendidas através da revelação natural.

Além disso, a Bíblia não é necessária para a prática da lógica elementar, da matemática

simples e de observações básicas e superficiais. As conquistas de cientistas, engenheiros,

artistas, arquitetos, médicos e de outros incrédulos no mundo são a prova disso. Entretanto,

até mesmo nestas áreas da vida chamadas de ―seculares‖, os não-crentes, para fazerem

alguma coisa, têm de conduzir os seus assuntos em conformidade com as pressuposições

bíblicas. Noutras palavras, a Bíblia não apenas nos ensina sobre Deus, sobre nós mesmos,

redenção e ética, ela é também o fundamento de todo o entendimento. Sem a revelação

divina o homem não pode realmente entender nem dar a explicação de nada. Van Til

escreveu: ―Assim, pois, a Bíblia, como a inspirada e infalível revelação de Deus ao homem

pecaminoso, está diante de nós como a luz em torno da qual todos os fatos do universo

criado precisam ser interpretados. Tudo relativo a existência finita, natural e redentiva,

funciona conforme um plano todo-inclusivo que está na mente de Deus. Nesse âmbito da

atividade de Deus, seja qual for a percepção que o homem venha a alcançar, ele só a obterá

observando todos os seus objetos de pesquisa à luz da Escritura. Para irradiarmos a

verdadeira religião precisaremos ter como nosso princípio que é necessário começar com o

ensinamento celestial e que é impossível ao homem obter a mínima porção que seja da justa

e sã doutrina sem ser um discípulo da Escritura‖.10

Alem disso não existe no universo uma

área de neutralidade ética. Até mesmo nas áreas que a Bíblia não trata diretamente, tal

como engenharia estrutural e construção de foguetes, ela fala indiretamente. Tudo o que há

na vida deve ser vivido para a glória de Deus, até mesmo as mais terrenas atividades devem

ser conduzidas de acordo com os princípios gerais da Palavra de Deus.

Por ―perfeição e suficiência‖ da Escritura as confissões reformadas querem dizer

que, para o homem, a Bíblia é um guia tão completo e perfeito quanto a tudo o que Deus

requer que creiamos (salvação, doutrina, estatutos, etc.) e façamos (ética, santificação,

ordenanças do culto, governo da igreja, etc.) que ela não precisa de nenhuma

complementação da parte do homem. As confissões reformadas enfatizam que a Bíblia não

é uma regra entre tantas nem a melhor ou principal delas. Ela é a única regra de fé e de

prática. A Primeira Confissão Helvética diz: ―A Escritura Canônica (...) contém

perfeitamente toda a piedade e boa ordenação da vida (Art. 1).11

A Confissão Belga afirma:

―Cremos que as Sagradas Escrituras contêm totalmente a vontade Deus (...) todo modo de

adoração que Deus requer de nós está nela amplamente escrito...‖ (Art. 7).12

A Segunda

Confissão Helvética declara: ―E nesta Santa Escritura, a Igreja universal de Cristo tem

todas as coisas referentes à fé salvadora plenamente expostas, e também os moldes de uma

vida aceitável a Deus…‖ (1:2). O Breve Catecismo de Westminster afirma: ―A Palavra de

9 A. A. Hodge, The Defense of the Faith (Philadelphia: Presbyterian and Reformed, 1955), 124.

10 Cornelius Van Til, The Defense of the Faith (Philadelphia: Presbyterian and Reformed, 1955), 124. Van Til

cita as Institutas I.VI.2, de João Calvino. 11

Harmony of Protestant Confessions, 4. 12

Reformed Confessions Harmonized, 14.

Page 14: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

Deus, que se acha nas Escrituras do Velho e do Novo Testamento, é a única regra para nos

dirigir na maneira de O glorificar e gozar‖ (R. da P. 2). O Catecismo Maior ensina: ―As

Escrituras Sagradas – o Velho e o Novo Testamento – são a Palavra de Deus, a única regra

de fé e de obediência‖ (R. de P. 3). A Confissão de Fé diz: ―Todo o conselho de Deus

concernente a todas as coisas necessárias para a glória dEle e para a salvação, fé e vida do

homem, ou é expressamente declarado na Escritura ou pode ser lógica e claramente

deduzido dela...‖ (i.vi, ênfase acrescentada).

Falando positivamente, a Bíblia é a única regra de fé e obediência. Falando

negativamente, é expressamente proibido aos homens, em qualquer hipótese, acrescentarem

as suas próprias idéias, doutrinas e/ou preceitos à Escritura. A Confissão Francesa diz: ―E

vendo que é a suma de toda a verdade, contendo tudo aquilo que se requer para a adoração

a Deus e nossa salvação, afirmamos que não é lícito ao homem, não, nem mesmo aos anjos,

acrescentar ou subtrair qualquer coisa a ou desta palavra, ou alterar nela o mínimo que seja‖

(Art. 5).13

A Confissão Belga afirma: ―é ilícito a quem quer que seja, mesmo um apóstolo,

ensinar outra coisa além do que agora somos ensinados nas Sagradas Escrituras: nem um

anjo vindo do céu, como disse o apóstolo Paulo. Pois desde que é proibido acrescentar ou

subtrair qualquer coisa da Palavra de Deus, fica, portanto, assim evidente que a sua

doutrina é a mais perfeita e completa em todos os aspectos. Nem consideramos de valor

equivalente às divinas Escrituras qualquer escritura de homens, por mais santos que tenha

sido; nem devemos considerar costume, ou grande multidão, ou antiguidade, ou sucessão

de eras e pessoas, ou concílios, decretos, ou estatutos, como de igual valor à verdade de

Deus, pois a verdade está acima de tudo; porque todos os homens são, em si mesmos,

mentirosos e mais vãos que a própria vaidade. Portanto rejeitamos de todo coração tudo que

discordar dessa infalível regra que nos foi ensinada pelos apóstolos...‖ (Art. 7).14

A

Segunda Confissão Helvética assevera: ―e quanto a isso é expressamente ordenado por

Deus que nada seja acrescentado ou retirado dela [i.é, das Sagradas Escrituras] (Dt. 4:2, Ap.

22:18-19)‖.15

A Confissão de Fé de Westminster diz: ―À Escritura nada se acrescentará em

tempo algum, nem por novas revelações do Espírito, nem por tradições dos homens‖ (i.vi).

O fato de a Bíblia ser suficiente, perfeita e completa torna em anti-bíblica e tola

todas as tentativas de complementar seus ensinamentos, quanto a fé e à ética, com idéias e

regras da mente do homem. Contra os entusiastas do espiritualismo, os carismáticos, os

adivinhos e todos os falsos profetas, a Confissão de Fé de Westminster declara que ―à

Escritura nada se acrescentará em tempo algum, nem por novas revelações do Espírito‖.

Contra os papistas e todos os que intrometem tradições humanas nos preceitos, nas

ordenanças, no culto ou governo da igreja, as confissões reformadas condenam o acréscimo

―por tradições dos homens‖ à Palavra de Deus. A doutrina da perfeição e suficiência das

Escrituras protege os crentes da tirania das exigências humanas. A ninguém (seja bispo, pai

da igreja, sínodo ou concílio) é permitido subjugar a consciência dos homens com qualquer

doutrina ou exigência. Tudo deve estar embasado na Escritura, seja por um mandamento

direto, ou por boa e necessária inferência. Por isso a Confissão de Fé de Westminster

declara que ―só Deus é Senhor da consciência, e a deixou livre das doutrinas e

mandamentos humanos que, em qualquer coisa, sejam contrários à Sua Palavra, ou que, em

matéria de fé ou de culto, estejam fora dela. Assim, crer em tais doutrinas ou obedecer a

13

Harmony of Protestant Confessions, 8. 14

Reformed Confessions Harmonized, 14, 16. 15

Ibid., 10.

Page 15: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

tais mandamentos, por motivo de consciência, é trair a verdadeira liberdade de

consciência...‖ (xx.ii). Quanto às boas obras, a Confissão diz: ―As boas obras são somente

aquelas que Deus ordena em sua santa Palavra, não as que, sem a autoridade dela, são

aconselhadas pelos homens movidos de um zelo cego, ou sob qualquer outro pretexto de

boa intenção‖ (xvi.i). Quanto ao culto, diz a Confissão, ―mas, o modo aceitável de adorar o

verdadeiro Deus é instituído por Ele mesmo, e é tão limitado pela Sua vontade revelada,

que Ele não pode ser adorado segundo as imaginações e invenções dos homens, ou

sugestões de Satanás, nem sob qualquer representação visível, ou de qualquer outro modo

não prescrito nas Escrituras‖ (xxi.i).

3. A Completude e Finalidade da Escritura

Quando as confissões reformadas afirmam a perfeição e suficiência da Escritura, e

a Confissão de Westminster fala contra as ―novas revelações do Espírito‖, elas estão

ensinando a completude e fechamento da Escritura. Por Escritura queremos dizer o cânon

completo (os 66 livros do Velho e do Novo Testamento), a Palavra de Deus escrita. No

ponto atual da história da salvação (após a obra redentiva de Cristo ter sido concluída, após

a pessoa e obra de Cristo ter sido explicada pelos profetas e apóstolos do Novo Testamento

e o governo, culto e doutrina da igreja da nova aliança terem sido completamente definidos

pelo Espírito Santo na Escritura) o processo revelacional cessou. A Escritura não poderia

estar completa senão após Jesus ter concluído a Sua obra na terra. Tudo na Escritura está,

de algum modo, relacionado à pessoa e obra de Jesus Cristo. Ele é descrito como o ápice e

a conclusão de Deus falando ao homem (Hb. 1:1-2).

Nosso Senhor disse aos Seus discípulos que lhes seria conveniente que Ele fosse,

porque após a Sua ascensão Ele enviaria o Espírito Santo para guiá-los a toda verdade (Jo.

16:7, 13-15). Inspirados pelo Espírito Santo, os apóstolos e profetas do Novo Testamento

deram-nos o fundamento (o cânon do NT) sobre o qual construir as igrejas da nova aliança

(Ef. 2:20-21). Paulo disse que quando viesse o que era perfeito (i.é, o Novo Testamento

concluído), a profecia e os outros modos de revelação cessariam (1 Co.13:8-12). É fato

histórico que a revelação divina cessou com a morte do último apóstolo. Ao longo da

história, aqueles que afirmaram ter revelações diretas de Deus (por ex., os Montanistas, os

profetas de Zwickau,* os Irvingitas,

* os modernos carismáticos, etc.) foram sempre falsos

profetas. Cristo e os apóstolos predisseram o surgimento dos falsos profetas e advertiram-

nos para não seguirmos às suas revelações mentirosas (cf. Mt. 7:15-23; 24:11; 2Pd. 1ss;

2Ts. 2:9-11; etc).

O fato de que a revelação cessou e de que a Escritura foi criada por Deus como

totalmente suficiente às nossas necessidades (2Tm. 3:16-17) significa que se quisermos

conhecer a mente e a vontade de Deus, a nossa única fonte de conhecimento será a Bíblia.

* Grupo anabatista liderado por Thomas Müntzer, cujo objetivo era uma revolução social, assim como uma

revolução espiritual. Além de serem revolucionários eram ―espiritualistas‖, isto é, reivindicavam a inspiração

direta do Espírito Santo, em lugar de se submeterem à autoridade final das Escrituras. Estabeleceram-se na

Saxônia e depois mudaram-se para Wittenberg, onde se opuseram amargamente a Martinho Lutero. Em 1525,

Müntzer participou de um fracassado levante de camponeses, na Turíngia, ao fim do qual foi executado

(N.E.). * Seguidores do ministro presbiteriano escocês Edward Irving (1792-1834), fundador da Igreja Católica

Apostólica, que foi o precursor do movimento carismático na Igreja Reformada. Recentemente, certos

estudiosos têm entendido ser Irving um dos principais responsáveis pela crise que dividiu e enfraqueceu o

evangelicalismo inglês (N.E.).

Page 16: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

John Murray escreveu:

Para nós a Escritura tem um lugar e uma função exclusivos como o único

modo de revelação que permanece existindo. Os que estão

particularmente envolvidos nessa discussão tem por certo que a Escritura

não continua a ser escrita, que ela é um cânon fechado. Admitindo-se isto,

precisamos então considerar aquilo que os nossos oponentes não estão

dispostos a admitir, isto é, que este é o conceito de Escritura ensinado e

pré-suposto por nosso Senhor e Seus apóstolos, e insistir que é essa

concepção que deve ser aplicada ao cânon da Escritura como um todo.

Como não temos mais profetas, nem o nosso Senhor está presente

conosco como com os discípulos, nem temos meios de revelação como

nos dias apostólicos, a Escritura em sua totalidade é, segundo o conceito

de nosso Senhor e Seus apóstolos, a única revelação da mente e da

vontade de Deus a nós disponível. É isso que significa o encerramento da

Escritura para nós; ela é a única Palavra revelacional de Deus que ainda

vigora.16

16

John Murray, ―The Finality and Sufficiency of Scripture‖ in Collected Writings (Carlisle, PA: Banner of

Truth, 1976), 1:19. As seitas (por ex. swedenborgianismo, mormonismo, Testemunhas de Jeová, Igreja da

Unificação, etc) são notórias por estabelecerem uma nova (falsa) revelação que é usada, então, como padrão

superior e absoluto para julgar e reinterpretar a Bíblia. Infalibilidade, autoridade absoluta e suficiência são

transferidas da Bíblia para a nova revelação. Isso dá ao líder, ou líderes, da seita poder absoluto sobre os seus

iludidos seguidores. O movimento carismático não-cessacionista crê na revelação direta e contínua de Deus.

Entretanto, línguas, palavra de conhecimento e profecia estão dando, inconsistentemente, à Bíblia uma

posição secundária. Não há (da parte dos carismáticos) tentativas para se acrescentar novas revelações ao

cânon da Escritura. Alguns intelectuais carismáticos até desenvolveram a idéia de que a profecia agora é

diferente da profecia do Velho Testamento — que imprecisões e erros são aceitáveis na profecia pós-

apostólica da nova aliança. Todos esses ensinamentos indicam a aceitação implícita da posição cessacionista e

do sola scriptura. Quando pregadores pentecostais insistem para que as suas ―profecias‖ sejam escritas e

tratadas mesmo como palavra de Deus, eles têm, não raro, se tornado líderes de seitas. Os carismáticos

modernos insistem que têm uma revelação direta de Deus, entretanto, na prática, tratam tais supostas

revelações como aquilo que realmente são: palavras de homem.

Page 17: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

Foto de George Gillespie

Mas entre tais coisas — que têm sido os amaldiçoados instrumentos

da desolação da igreja, os quais para alguns de vocês talvez não

pareçam nada ferir nem causar o mínimo malefício — estão as

cerimônias de ajoelhar-se no ato de receber a Ceia do Senhor,

benzer ao batizar, episcopalianismo, dias santos, etc. que são

infligidas sob o nome de coisas indiferentes; entretanto se se

analisar cuidadosamente suas graves e variadas perturbações, ter-se-

á um pensamento bem ao contrário. As vãs aparências e sombras

dessas cerimônias têm escondido e obscurecido a substância da

religião; a verdadeira vida de piedade é extinguida e anulada pelo

fardo dessas invenções humanas; por causa disso muitos que são

tanto fiéis a Cristo quanto leais ao rei, sofrem ofensa, zombaria,

vergonha, ameaça, perturbação...

George Gillespie

Page 18: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

III. Sola scriptura — A Rejeição de Judeus e Católicos

A Bíblia e todas as confissões Reformadas condenam o acréscimo de tradições

humanas à Palavra de Deus. Infelizmente o princípio do sola scriptura tem sido violado ao

longo da história da igreja. Dois exemplos básicos de acréscimo de tradições à Palavra de

Deus são o judaísmo rabínico e o catolicismo romano.

O judaísmo rabínico ensina que Moisés ao receber a lei escrita no monte Sinai

recebeu também uma longa revelação não-escrita (oral). Tal revelação, então, foi

supostamente passada para Josué, os setenta anciãos, os profetas e os grandes mestres

rabínicos, geração após geração até ser finalmente lavrada no Talmude. Conquanto não haja

dúvidas que Deus instruiu a igreja antes dos dias de Moisés com palavras não-escritas, nem

que a profecia continuou até o fechamento do cânon, a idéia da continuação de uma

tradição divina não-escrita após o fechamento do cânon é claramente não-bíblica. Até

mesmo a idéia dos fariseus de uma tradição não-escrita funcionando ao mesmo nível da

autoridade da revelação escrita, enquanto o cânon permanecia aberto, é condenada pela

Escritura de várias formas. Em primeiro lugar, quando os judeus são repetidamente

advertidos para nada acrescentarem nem retirarem da Palavra de Deus escrita (Dt. 4:2; Pv.

30:5-6; Js. 1:7-8), não há qualquer advertência nem observação quanto a uma tradição

revelacional não escrita. Em segundo lugar, mandamentos e advertências quanto à

obediência, quer fossem encontrados na lei (e.g., Ex. 19:7-8; Dt. 31:9, 12, 46-47) ou nos

profetas (Jr. 36:2,32) referiam-se ao que já estava escrito ou ao que tornou-se profecia

escrita. Não há, no Velho Testamento, a menor comprovação de uma tradição autoritativa.

O ensino bíblico comprova que não existe uma fonte independente de comunicação oral

que continue lado a lado com a revelação escrita. Em terceiro lugar, Jesus condenou os

judeus repetidas vezes por acrescentarem tradições e doutrinas humanas à palavra de Deus

(e.g., Mt. 15:1-3). Em quarto lugar, o Talmude (que na tradução inglesa chega a 34 grandes

volumes) é cheio de contradições, ensinamentos não-éticos e frívola blasfêmia, além de

contradizer muitos dos principais ensinamentos da Bíblia. O judaísmo moderno não é uma

religião do Velho Testamento, mas uma religião fundamentada na tradição humana. À

semelhança de várias seitas o judaísmo transferiu a infalibilidade, a autoridade absoluta e

suficiência da Escritura para uma coletânea de escritos humanos.

Quanto ao item autoridade, a Igreja Católica Romana é muito semelhante ao

judaísmo. Os romanistas ensinam que a interpretação da Igreja, quanto à Bíblia e a tradição,

é a palavra final e autoritativa em termos de religião. O Concílio de Trento declara: ―Vendo

claramente que esta verdade e disciplina estão contidas nos livros escritos e na tradição

não-escrita‖ (4ª Sessão; 1546).17

O Segundo Concílio Vaticano afirma:

Esta tradição que vem dos apóstolos desenvolve-se na igreja com o auxílio do

Espírito Santo. Porque há um crescimento na compreensão das realidades e das

palavras que têm sido dadas (...) Pois assim como os séculos se sucedem uns ao

outros, a Igreja move-se constantemente para a plenitude da verdade divina até que

as palavras de Deus se completem perfeitamente nela (Dei Verbum, 8; 1962-

1965).18

O Catecismo da Igreja Católica diz que a igreja ―não deriva a sua certeza a respeito de tudo

17

―The Canons and Decrees of the Council of Trent‖ in Phillip Schaff, ed., The Creeds of Christendom

(Grand Rapids: Baker, 1983 [1876, 1931]), 2:80. 18

Walter M. Abbot, ed., The Documents of Vatican II (New York: Herden and Herden, 1966), 116.

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o que foi revelado somente da Sagrada Escritura. Por isso, Escritura e Tradição devem ser

aceitas e honradas com igual sentimento de piedade e reverência‖.19

A Igreja Católica

Romana ensina que a hierarquia (i.é., os Bispos e o Sumo Pontífice), com o auxílio do

Espírito Santo, seleciona, autoriza e acrescenta a sua própria tradição autoritativa à forma

escrita de revelação. Os romanistas não crêem que a hierarquia da igreja está produzindo

doutrina, mas que está simplesmente promulgando os ensinamentos orais de Jesus e dos

apóstolos que nunca foram postos em forma escrita. Tais ensinamentos foram dados aos

bispos como uma fonte paralela de autoridade.

O ensino romanista sobre a autoridade da tradição dá à hierarquia da igreja

autoridade acima da palavra de Deus escrita. Cristo condenou enfaticamente o uso da

tradição como fonte de autoridade (cf. Mc. 7:5-13), pois a tradição, sempre que é

equiparada à Escritura, termina colocada acima dela e é, por fim, usada para interpretá-la. A

tradição humana foi o motivo maior pelo qual tanto a nação de Israel nos dias de Cristo,

quanto a Igreja Católica Romana na Idade Média tornaram-se apóstatas. No decurso de sua

história, a igreja papal multiplicou as tradições até que o evangelho e o culto apostólico

foram soterrados sob o monturo da pretensa religiosidade e da falsa doutrina.

Por que não seria bíblica a doutrina católica de uma tradição não-escrita (de igual

autoridade com a Escritura e que tem sido, de algum modo, mantida pura pela hierarquia da

igreja e passada aos leigos no curso da história)? Muitas são as razões pelas quais a

doutrina católico-romana da tradição autoritativa tem de ser rejeitada. Primeiro, a doutrina

da perfeição, completude e suficiência da Escritura torna desnecessária uma tradição

autoritativa, ou revelações posteriores da parte de Deus. Segundo, a Palavra que Deus fez

escrever proíbe que ao cânon se acrescente ou se retire alguma coisa. Terceiro, muitas das

doutrinas católicas que foram acrescentadas como doutrinas e práticas autoritativas

contradizem explicitamente o claro ensino da Bíblia. Quarto, muitas tradições católico-

romanas são contraditórias entre si. Quinto, a maior parte das tradições da igreja papal

tiveram as suas origens muito depois da morte dos apóstolos. Sexto, a tradição humana

depende de homens pecadores e falíveis e por isso é obscura, carente de provas e

indefinida.20

A tradição humana ―autoritativa‖ exige fé nas instáveis opiniões pecaminosas

19

Cathecism of the Catholic Church (New York: Doubleday, 1994), 31. Na presente tradução usa-se o

Catecismo da Igreja Católica (São Paulo: Vozes & Loyola, 1993), 35. 20

Charles Hodge escreve: ―Sabe-se, é claro, que Cristo e os Seus discípulos disseram e fizeram muito mais do

que o que foi registrado nas Escrituras; e admite-se que, além disso, se conhecêssemos quaisquer dessas

instruções não registradas, elas teriam a mesma autoridade daquilo que está exarado nas Escrituras. Os

protestantes afirmam, entretanto, que elas não tinham por objetivo integrar-se permanentemente à regra de fé

da igreja. Elas se destinavam aos homens daquela geração. As torrentes derramadas mil anos atrás aguaram a

terra e fizeram-na frutífera para os homens que, na época, nela viviam. Elas agora não podem ser ajuntadas e

colocadas ao nosso dispor. Não constituíam uma reserva para o suprimento das gerações futuras. De

semelhante modo os ensinamentos de Cristo e Seus apóstolos fizeram a sua obra. Eles não se destinavam à

nossa instrução. É tão impossível entender o que eram quanto o é recolher as folhas que ornavam e

enriqueciam a terra quando Cristo andava pelo jardim do Getsêmani. Tal impossibilidade decorre das

limitações da nossa natureza, como também da corrupção decorrente da sua queda. O homem não tem a

clareza de percepção, a retenção de memória, ou o poder de preservação, que o capacite (sem auxílio

sobrenatural) a fazer um relato confiável de um discurso ouvido uma única vez há alguns anos, ou mesmo

meses, após pronunciado. E isso ser feito repetidamente de boca em boca por milhares de anos é uma

impossibilidade. Se a isso se acrescentar a dificuldade do meio de transmissão oral que procede da cegueira

dos homens para as coisas do Espírito e os impede de entende aquilo que ouvem, e da disposição de

perverterem e distorcerem a verdade para ajustá-la a seus próprios preconceitos e propósitos, é preciso admitir

que a tradição não pode ser uma fonte confiável de conhecimento da verdadeira religião. Isso é

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dos homens. Só podemos direcionar a nossa fé à Escritura que é perfeita, completa,

suficiente e perspícua, pois é a palavra do próprio Cristo e dá-nos certeza absoluta. Sétimo,

a Bíblia mesma condena todas as doutrinas e práticas de culto que não são derivadas da

Escritura. ―E em vão me adoram, ensinando doutrinas que são preceitos de homens‖ (Mt.

15:9; Is. 29:13). Turrentin escreve:

Tampouco, pode-se argumentar que as tradições farisaicas, não-apostólicas, não

são rejeitadas. Todas as doutrinas ensinadas por homens que não estejam contidas

nas Escrituras são rejeitadas e é vão supor que exista qualquer tradição apostólica

fora da Escritura. Os crentes são chamados à lei e ao testemunho (Is. 8:20) e

aqueles que não falam de acordo com isso são claramente condenados. As

tradições também não podem ser justificadas pelo testemunho porque Deus as

rejeita em toda parte. Ou a própria lei (freqüentemente chamada de ―o

testemunho‖) é destinada para ser um testemunho de Deus, ou os escritos dos

profetas que foram acrescentados à lei.21

Os apologistas católico-romanos tentam justificar a sua doutrina da tradição

autoritativa apelando para certas passagens da Escritura. É preciso analisar brevemente

algumas dessas passagens para revelar seus verdadeiros sentidos. À medida que

considerarmos tais passagens precisamos ter em mente que os apóstolos eram detentores de

uma única e singular autoridade. O ensino oral dos apóstolos era autoritativo e não

facultativo. Por isso, aqueles homens e igrejas que se colocavam debaixo do ensino dos

apóstolos eram obrigados a obedecer às suas instruções inspiradas pelo Espírito como a

verdadeira palavra de Deus, a regra de fé e de prática. Entretanto o fato de que os apóstolos

podiam ensinar oralmente a verdade inspirada e autoritativa enquanto vivos (e que as

igrejas estavam moralmente obrigadas a obedecer seus ensinamentos) não prova que exista,

entre a hierarquia romanista, uma tradição oral autoritativa preservada, de alguma maneira,

ao longo da história. Somente a Escritura é que pode definir a frase ―tradição apostólica‖.

Além disso, por que iria o Deus de infinita sabedoria fazer escrever parcialmente a Sua

revelação deixando o resto para a tradição oral? Enquanto a revelação escrita é facilmente

preservada da corrupção, a tradição oral é facilmente corrompida e perdida. Também

quando um bispo ou papa surge com um novo ensinamento da (ou através da) suposta

tradição apostólica não-escrita, como poderemos determinar se ele simplesmente tirou ou

não tal doutrina da sua própria imaginação? Espera-se que simplesmente aceitemos a sua

própria palavra? Não seria isso uma fé cega nas palavras dos homens? O fundamento

romanista de uma tradição autoritativa firma-se na sua doutrina da autoridade especial da

igreja (i.é, a hierarquia sacerdotal). Esta é, em si mesma, uma doutrina totalmente contrária

à Bíblia. A única maneira de podermos saber com absoluta certeza o que os apóstolos

ensinaram é ler o que eles escreveram.

Em 1Coríntios 11:2 Paulo diz: ―De fato, eu vos louvo porque, em tudo, vos

lembrais de mim e retendes as tradições assim como vo-las entreguei‖. Será que nesse texto

Paulo está concordando com a doutrina papal referente a um conjunto de tradições não-

escritas transmitidas pela sucessão de bispos de geração em geração? Não, de modo

universalmente reconhecido e adotado, exceto pelos romanistas. Ninguém tem a pretensão de determinar o

que Lutero, Calvino, Latimer e Cranmer ensinaram, exceto a partir dos registros escritos à sua época. Muito

menos qualquer homem em são juízo pretender saber o que Moisés e os profetas ensinaram, exceto a partir de

seus próprios escritos‖ (Systematic Theology [Grand Rapids: Eerdmans, 1989], 1:21). 21

Frances Turrentin, Institues of Elenctic Theology, 1:139.

Page 21: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

nenhum. Paulo está simplesmente instruindo os crentes corintianos a obedecerem à doutrina

e exortações que lhes deu quando estava pessoalmente entre eles. A palavra paradosis

traduzida como ―tradição‖ ou ―ordenança‖ (Bíblia inglesa versão do Rei Tiago) quando

usada em referência à regra de fé no Novo Testamento sempre refere-se à instrução

imediata de homens inspirados. ―Quando usada no sentido moderno da palavra tradição,

refere-se sempre àquilo que é humano e indigno de confiança (Gl. 1,14; Cl. 2,8) e nos

evangelhos refere-se amiúde às tradições dos presbíteros‖.22

Um dos textos de prova preferidos dos apologistas romanistas é 2Ts. 2:15: ―Assim,

pois, irmãos, permanecei firmes e guardai as tradições que vos foram ensinadas, seja por

palavra, seja por epístola nossa‖. Observe que Paulo refere-se tanto à doutrina oral ou

falada quanto ao ensino escrito. Será que esta passagem não cabe perfeitamente dentro da

doutrina papal de uma dúplice revelação: escrita e oral? Não, absolutamente não! Mais uma

vez Paulo está se referindo ao ensino inspirado dado pessoalmente. Esta passagem não dá

sustentação à idéia de um ensinamento secreto passado através dos séculos pelos bispos.

―Paulo não está encorajando os tessalonicenses a receberem alguma tradição que lhes foi

passada via uma segunda ou terceira mão. Antes, pelo contrário, lhes ordena que recebam

como verdade infalível apenas aquilo que ouviram diretamente de seus próprios lábios‖.23

Para demonstrar o absurdo da posição romanista, levemos em conta mais um

aspecto. Consideremos, por um momento, que a posição católico-romana seja verdadeira, e

que um grande depósito de doutrina apostólica foi dado oralmente à igreja para a sua

própria santificação. Consideremos que esta doutrina oralmente concedida é inspirada,

autoritativa e que, portanto, exige-se que todo crente a obedeça sem reservas. Se a igreja

recebeu tal depósito de ensino apostólico por que não exará-lo todo por escrito de modo a

que todos possam beneficiar-se imediatamente da sua divina sabedoria? Se este ensino é

autoritativo e obrigatório, por que então atirar as suas migalhas ao longo de um período de

quase dois mil anos? Por que não expô-lo todo abertamente para que todos possam se

beneficiar imediatamente dele? Por que foi que a igreja teve que esperar até 1089 para

aprender que Deus exigia o celibato do clero? Por que esperar até 1854 para aprender sobre

a imaculada conceição de Maria? É óbvio, pela comprovação tanto bíblica quanto histórica,

que a doutrina papal a respeito da tradição autoritativa é apenas uma astuta tentativa

humana de justificar os séculos de doutrinas e práticas criadas pelo homem. A doutrina

romanista da tradição autoritativa é uma mera invenção humana usada para transplantar a

autoridade da Bíblia para a hierarquia da igreja. A razão para que o papa e os bispos

ficassem atirando, aqui e ali, no decurso da história, as migalhas de uma suposta tradição

oral apostólica é que isso lhes concede um poder incrível. Quando se precisa de qualquer

doutrina ou prática para controlar o povo leigo e aumentar o poder da hierarquia, algum

burocrata da igreja simplesmente forja ou descobre uma nova doutrina e a impõe sobre o

laicato. Isso dá à hierarquia católico-romana poder, semelhante ao das seitas, sobre o seu

rebanho. O fato de que muitos bispos e papas católico-romanos podem ter sido sinceros em

suas crenças não minimiza a realidade de que a doutrina da tradição autoritativa é uma

doutrina de demônios. Acautelai-vos dos falsos profetas. A doutrina deles pode vos devorar

(cf. Mt. 7:15).

Como resultado de tal ensinamento quanto a autoridade, a Igreja Católica Romana

22

Charles Hodge, 1 and 2 Corinthians (Carlisle, PA: Banner of Truth, 1958 [1857]), 206. 23

John MacArthur, ―The Sufficiency of the Written Word‖ in Don Kistler, ed., Sola scriptura (Morgan, PA:

Soli Deo Gloria, 1995), 177.

Page 22: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

tem mais em comum com as seitas pagãs do que com o cristianismo apostólico. Turrentin

escreve:

Veja que [a Igreja Católica Romana] é apóstata e herética, tendo se apartado da fé

que uma vez foi dada aos santos ensinando várias heresias mortais, forçando a

crença nelas sob a pena de maldição. Tais são as doutrinas concernentes à

justificação por obras meritórias, satisfações humanas e indulgências,

transubstanciação, o sacrifício da missa, pecado e livre arbítrio, graça suficiente, a

possibilidade do cumprimento da lei, o pontífice ecumênico e a primazia do papa...

Ela é ao mesmo tempo idólatra e supersticiosa quanto ao objeto de sua adoração e

quanto à maneira que cultua. Quanto ao objeto, considerando que além de Deus

(que como único onisciente, onipotente e supremo deve ser o exclusivo objeto de

adoração e invocação) ela também venera e adora a criaturas que por natureza não

são deuses (Gl. 4:8): como a bendita virgem, os anjos, os santos defuntos, a hóstia

consagrada, os sacramentos, a cruz, o papa, as relíquias de Cristo e dos santos.

Quanto ao modo, na feitura, culto e adoração de efígies e imagens, tão

solenemente proibidas pela Lei de Deus. E tais coisas não surgem da opinião

particular de mestres, mas das sanções públicas e das práticas constantes.24

Se for para limpar a igreja papal das suas heresias malditas e da idolatria gritante e

blasfema, ela tem obrigatoriamente que retornar ao sola scriptura. É preciso curar em

primeiro lugar a raiz antes que o fruto doente e venenoso seja substituído.

24

Frances Turrentin, Institutes of Elenctic Theology, 3:123-125.

Page 23: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

Foto de John Knox

A missa é idolatria. Toda adoração, veneração, ou culto inventado

pela mente humana na religião de Deus sem a Sua ordem expressa é

idolatria. A missa é inventada pelo cérebro do homem sem qualquer

mandamento expresso de Deus, portanto é idolatria.

John Knox

Page 24: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

IV. Inconsistências Protestantes

Não obstante alguns protestantes, felizmente, afirmarem o sola scriptura, muitos

outros ensinam e praticam coisas que contradizem a doutrina de que a Escritura é o único

padrão para a fé e para a vida. A negação implícita do sola scriptura, seja pelo ensino ou

prática, pode ser encontrada em igrejas luteranas, episcopais, evangélicas e até mesmo

reformadas. Um breve exame de algumas dessas inconsistências nos auxiliará a entender

esse ensino crucial.

A doutrina do sola scriptura é ao mesmo tempo afirmada e implicitamente negada

nas declarações de fé da Igreja da Inglaterra (os Trinta e Nove Artigos da Religião [1563,

Revisão Americana de 1801) e dos luteranos (A Confissão de Augsburgo [1530] e a

Fórmula de Concórdia [1576, 1584]). O sexto artigo dos Trinta e Nove Artigos contém uma

boa declaração quanto à Bíblia. ―A Sagrada Escritura contém tudo o que é necessário à

salvação: portanto aquilo que não pode ser lido nela, nem por isso mesmo comprovado, não

pode ser exigido de qualquer homem como artigo de fé a ser crido, nem ensinado como

requisito necessário à salvação‖.25

A confissão luterana também contém uma forte afirmação do sola scriptura.

I. Nós cremos, confessamos, e ensinamos que a única regra e norma,

segundo a qual todos os dogmas e doutores devem ser considerados e julgados,

não é nenhuma outra senão as escrituras proféticas e apostólicas do Velho e do

Novo Testamento, como está escrito: ―Lâmpada para os meus pés é a tua palavra e

luz, para os meus caminhos‖ (Sl. 119:105). E disse São Paulo: ―ainda que nós ou

mesmo um anjo vindo do céu vos pregue evangelho que vá além do que vos temos

pregado, seja anátema‖ (Gl. 1:8).

Dessa forma faz-se uma clara distinção entre as Sagradas Escrituras do

Velho e do Novo Testamento, e todos os outros escritos; e somente a Sagrada

Escritura é reconhecida como [único] juiz, norma e regra, segundo a qual, como

[única] pedra de toque, todas as doutrinas devem ser examinadas e julgadas,

quanto a se são piedosas ou ímpias, verdadeiras ou falsas.26

1. O Episcopalismo

Infelizmente, os símbolos luterano e episcopal contradizem o sola scriptura ao

discutirem sobre as cerimônias eclesiásticas, autoridade da igreja e tradição. Os Trinta e

Nove Artigos dão à igreja uma autoridade que é claramente incompatível com sola

scriptura. No Artigo 20 (Da Autoridade da Igreja), lê-se:

A Igreja tem o poder de decretar ritos ou cerimônias, e de autoridade em

controvérsias de fé; não lhe é legítimo, entretanto, ordenar qualquer coisa que seja

contrária à Palavra de Deus escrita, nem interpretar contraditoriamente uma parte

da Escritura em oposição a outra. Embora a Igreja seja testemunha e guardiã do

Texto Sagrado, nada pode ela decretar contrário à Escritura, nem nada impor além

dela como crença necessária à salvação.27

O Artigo 34 (Das Tradições da Igreja), declara:

25

Creeds of Christendom, 3:489. Todas as citações são da revisão americana de 1801. 26

Ibid., 3:93-94, 96. 27

Ibid., 3:500.

Page 25: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

Não é necessário que as tradições e cerimônias sejam as mesmas em todos os

lugares, ou exatamente iguais; porque têm sido sempre diversificadas e podem ser

modificadas conforme a variedade de países, épocas, e modos dos homens,

contanto que nada seja contrário à Palavra de Deus.

Qualquer um que, pelo seu entendimento particular, voluntária e

intencionalmente, violar abertamente as tradições e cerimônias da Igreja que não

sejam conflitantes com a Palavra de Deus e ordenadas e aprovadas pela autoridade

comum, deve ser repreendido abertamente (para que os outros temam fazer o

mesmo) por ter ofendido a ordem comum da Igreja e ferido a autoridade do

Magistrado e as consciências dos irmãos mais fracos.

Toda Igreja, em particular ou nacional, tem autoridade para ordenar,

modificar e abolir cerimônias e rituais seus, apenas ordenados pela autoridade

humana, contanto que tudo seja feito para a edificação.28

Os Trinta e Nove Artigos dão à igreja um poder independente da Escritura. Os

líderes eclesiásticos não podem somente determinar ou abolir rituais ou cerimônias ao bel-

prazer da sua própria autoridade sem o consentimento da Escritura, eles também reservam

para si mesmos o poder de disciplinar o fiel que ―violar abertamente as Tradições e

Cerimônias da Igreja‖. Embora o seu próprio credo afirme que a igreja não pode ordenar

―qualquer coisa que seja contrária à Palavra de Deus escrita‖, ele, não obstante, dá à

hierarquia da igreja um poder que não depende da Escritura. Assim, ao passo que o sexto

artigo afirma a sola scriptura na teoria, os artigos 20 e 34 a negam na prática. Estes últimos

não dão à igreja apenas o poder de determinar ou abolir rituais ou cerimônias como lhe

aprouver, sem qualquer sanção da Escritura, dão também à igreja a autoridade de

disciplinar o crente que ―violar abertamente as tradições e cerimônias da Igreja‖. O artigo

20 declara que à igreja ―não... é legítimo... ordenar qualquer coisa que seja contrária à

Palavra de Deus escrita‖. Esta declaração (que segue a das confissões luteranas), entretanto,

pouco consolo deveria dar aos puritanos e pactuantes* que foram disciplinados e

perseguidos por se recusarem a se submeter aos rituais e cerimônias ordenadas pela igreja.

A posição episcopal quanto à autoridade da igreja e à tradição humana deriva de:

(1) uma visão deficiente da perfeição e suficiência da Escritura; (2) de uma falsa

compreensão quanto ao papel da razão humana em determinar as ordenanças da igreja;

(3) de um conceito falacioso sobre os régios direitos do Cristo ressurreto.

Quando o assunto é governo e culto da igreja, os teólogos e apologistas episcopais

admitem abertamente que a Escritura não é uma regra perfeita para a igreja, mas apenas

uma regra parcial. Os anglicanos (pelo menos nas áreas de culto e governo) vêm a Bíblia

como incompleta, vaga e genérica. Para eles a Bíblia é como um mapa defeituoso que

mostra algumas grandes estradas, mas sem os seus detalhes. Para que o mapa se faça

realmente útil é preciso que a liderança eclesiástica preencha as lacunas. A que detalhes se

precisa chegar? Os bispos usarão a inteligência para recolherem alguma coisa dentre as

tradições largadas no caminho pela igreja antiga, e acrescentarão mais algumas adoráveis

tradições inventadas por eles mesmos. Ignora-se o fato de Deus deixar mais do que claro o

seu desprezo pelas invenções humanas em termos de ética e de culto (cf. Gn. 4:3-5; Lv.

10:1-2; Dt. 4:2 e 12:32; Nm. 15:39-40; 2 Sm. 6:3-7; 1Cr. 15:13-15; 1Rs. 12:32-33; Jr.

28

Ibid., 3:508-509. * Em inglês, covenanters. Movimento presbiteriano escocês, que se reuniu na Aliança Nacional de 1683, e,

depois, na Liga e Pacto Solene de 1643, contrários às imposições eclesiásticas dos anglicanos ingleses (N.E.).

Page 26: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

7:24,31; Is. 29:13; Cl. 2:20-23).

Há um grande contraste entre o entendimento anglicano e reformado de sola

scriptura e suficiência da Escritura. As confissões reformadas consideram que a perfeição e

suficiência da Bíblia é extensiva não apenas à doutrina, mas também ao culto e ao governo

da igreja. Se o culto e o governo que Deus instituiu na Sua Palavra forem suficientes, é

óbvio, então, que não é necessária qualquer suplementação. Davies diz que: ―o princípio

mais importante da autoridade absoluta da palavra de Deus nas Escrituras quanto a fé, ética,

e culto foi expresso pelos puritanos. Apartar-se disso é a maior das impertinências e

pretensões humanas, pois implica em conhecer a vontade de Deus mais do que o próprio

Deus, ou, que a fraqueza herdada do pecado original não cega o juízo humano por causa do

egocentrismo‖.29

O conceito episcopal quanto à autoridade da igreja e à tradição também se origina

do uso errôneo da razão humana. Os apologistas anglicanos do século dezesseis, na

tentativa de refutarem o que eles achavam um biblicismo dogmático dos puritanos, deram à

razão um papel autônomo da Escritura, ao determinar o culto e o governo da igreja. Os

puritanos não eram contra o uso da razão. Para eles, entretanto, a razão deveria se submeter

sempre à Escritura e ser utilizada para deduzir a doutrina e a prática da própria Bíblia. Não

deveria ser usada independentemente da Escritura. Os teólogos de Westminster referem-se

aos patentes ensinamentos da Escritura e aos logicamente deduzidos dela (i.vi). Os

apologistas anglicanos (especialmente Richard Hooker) usaram a razão para liberarem as

autoridades da igreja dos rígidos parâmetros da palavra a fim de justificar as suas tradições

humanas (a maioria delas era a continuação de práticas medievais católico-romanas).

Quanto a Richard Hooker (o maior dos apologistas anglicanos), disse Cook:

Na defesa do anglicanismo, publicada em oito livros entre 1594 e 1600, Hooker

identifica a natureza da igreja como o verdadeiro ponto de controvérsia entre

puritanos e anglicanos. Ele procura repudiar a posição de Cartwright de que a

Escritura provê um protótipo permanente para o governo da igreja. Esforçando-se

sobremaneira para deslocar o argumento para fora da Escritura, Hooker defende

que o princípio da razão natural tem a mesma validade que o princípio da

revelação divina. Ele segue numa abordagem essencialmente não-reformada sobre

a verdade, ensinando que algumas leis espirituais são conhecidas pela razão à parte

da Escritura. Aqui temos a mente católica em funcionamento, buscando a sua força

em Aquino, ela opera muito a vontade dentro da Igreja Inglesa de onde jamais fora

banida, criando, na verdade, a característica mentalidade anglicana que tem

controlado, desde então, a prática da Igreja da Inglaterra... Nada há de sola

scriptura na argumentação de Hooker que apele ao Novo Testamento, pois a

Constituição da igreja diz, com efeito, que ―Deus, ao entregar a Escritura à Sua

Igreja, deveria ter ab-rogado claramente entre eles a lei da natureza; a qual é um

saber infalível impresso nas mentes de todos os filhos dos homens‖ (Ecclesiastical

Polity, Livro II, capítulo 8, 6). Dá-se à razão a mesma validade da Escritura

―considerando que, assim como a lei está acima da razão, citar a razão serve tanto

quanto citar a Escritura; pois tudo aquilo que é razoável é da lei, seja quem for o

seu autor‖.30

29

Horton Davies, ―Worship and Theology‖ in England from Cranmer to Baxter and Fox, 1534-1690 (Grand

Rapids: Eerdmans, 1996 [1970]), 1:258. 30

Paul E. G. Cook, ―The Church‖ in Puritan and Anglican Thinking (Nothamptonshire, England: The

Page 27: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

A errônea compreensão anglicana quanto ao pecado original segue passo a passo o

uso impróprio da razão humana. Davies escreve que: ―os Anglicanos entendem que o

homem é deficiente na sua capacidade espiritual; as suas outras capacidades foram

enfraquecidas, mas não desesperadamente feridas e carecendo de transfusões de sangue

redentor, como argumentavam os puritanos. Para os Anglicanos a razão do homem era

inigualável; ela possuía a capacidade de distinguir, numa ordem moral, entre o bem e o mal.

Cranmer defendia, por exemplo, que os homens poderiam escolher o bem sem o auxílio da

graça santificadora. Jewel afirmava que ‗a razão natural, mantida em seus limites, não é o

inimigo, mas a filha da verdade de Deus‘. Donne asseverava que a razão tinha de ser

empregada quando o sentido da Escritura não fosse claro, mas que, ‗embora a nossa

suprema corte... de apelação final seja a Fé, a Razão é o seu delegado‘‖.31

Como

conseqüência do entendimento falho quanto aos efeitos da queda, os Anglicanos não

entendem o perigo de permitirem que homens pecaminosos e caídos tenham o direito de

determinar os rituais e as cerimônias da igreja. Os puritanos reconheciam que a corrupção

do coração humano tornou o homem incapaz de estabelecer formas aceitáveis de culto ao

santo Deus trino. Não se pode confiar nem mesmo na mente regenerada para instituir

autonomamente ordenanças de culto, pois ela permanece em luta contra os efeitos

remanescentes da queda. A única coisa segura a ser feita sob tais circunstâncias é estudar e

seguir o que Deus diz. ―Confia no SENHOR de todo o teu coração e não te estribes no teu

próprio entendimento‖ (Pv. 3:5). Bushell escreveu:

Portanto, de modo particular, o princípio regulador pode ser visto como uma

inferência natural da doutrina da depravação total. Uma está ligada à outra, como,

por exemplo, em Êxodo 20:25: ―Se me levantares um altar de pedras, não o farás

de pedras lavradas; pois, se sobre ele manejares a tua ferramenta, profaná-lo-ás‖.

Qualquer obra das mãos do próprio homem, que ele presume oferecer a Deus em

adoração, é poluída pelo pecado e é, por essa razão, totalmente inaceitável.32

Não há dúvida que os pais da igreja e os teólogos da era medieval, que

acrescentaram muitas tradições humanas ao culto a Deus, pensavam que estavam

inventando coisas que beneficiariam e edificariam a igreja. O resultado, entretanto, foi a

prostituta romanista, a igreja do Anticristo. É por isso que as Escrituras advertem

repetidamente ao povo da aliança para nada adicionarem nem subtraírem das leis, estatutos

e ordenanças que Jeová prescreveu. ―Quando o SENHOR, teu Deus, eliminar de diante de ti

as nações, para as quais vais para possuí-las, e as desapossares e habitares na sua terra,

guarda-te que não te enlaces com imitá-las, após terem sido destruídas diante de ti; e que

não indagues a cerca de seus deuses, dizendo: Assim como serviram estas nações aos seus

deuses, do mesmo modo também farei eu. Não farás assim ao SENHOR, teu Deus, porque

Westminster Conference, 1976), 26. 31

Horton Davies, Worship and Theology in England, 1:54. 32

Michael Bushell, The Songs of Zion: A Contemporary Case for Exclusive Psalmody, 120. William Young

escreveu: ―A total corrupção e engano do coração humano desqualifica o homem para julgar o que deve ser

admitido no culto a Deus. Pode ser que antes da queda nossos primeiro pais tivessem gravados em seus

corações a lei da adoração, e que ao olharem para o íntimo de seus próprios seres pudessem ler os

mandamentos de Deus. Mas, ainda assim, eles não possuíam uma comunicação externa direta da vontade

Daquele que passeava e conversava com eles no jardim. Entretanto, desde a queda, embora a consciência

humana permaneça testemunhando a todos os homens que a adoração é devida ao Ser supremo, não se pode

obter do coração do homem qualquer informação sobre como Deus deve ser adorado‖ (Frank J. Smith e

David C. Lachman, ed., Worship in the Presence of God [Greenville, SC: Greenville Seminary Press, 1992],

81).

Page 28: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

tudo o que é abominável ao SENHOR e que ele odeia fizeram eles a seus deuses, pois até

seus filhos e suas filhas queimaram aos seus deuses. Tudo o eu te ordeno observarás; nada

lhe acrescentarás, nem diminuirás‖ (Dt. 12:29-32).

O conceito anglicano de autoridade e tradição da igreja é uma rejeição implícita

dos direitos régios de Jesus Cristo. Os teólogos episcopais não são obedientes à grande

comissão que Jesus ordenou à igreja: ―ensinando-os [as nações] a guardar todas as cousas

que vos tenho ordenado‖ (Mt. 28:20). A versão deles deveria ser: ―ensinando-os [as nações]

a guardar todas as cousas que vos tenho ordenado e tudo que os bispos decidirem que é

edificante‖. Quando líderes eclesiásticos ou qualquer outra pessoa definem leis humanas,

ordenanças religiosas, cerimônias ou rituais paralelamente à vontade revelada de Deus, tais

homens, então, estão atribuindo a si mesmos uma autoridade que pertence apenas a Deus.

Somente Deus tem autoridade para declarar um ato como moral ou imoral. No entanto,

homens e mulheres foram disciplinados e perseguidos simplesmente por recusarem

submissão a ritos e cerimônias elaborados por homens. Todo uso de tradição humana no

culto a Jeová é implicitamente romanista e tirânico. Embora não seja permitido a

congregações evangélicas e igrejas reformadas desviadas praticarem a tortura, o

aprisionamento, o confisco de bens ou o banimento como forma de punirem os puritanos

modernos, elas usam muitas formas sutis, e outras nem tão sutis, de coerção, de disciplina e

de reprovação. Mesmo que muitas igrejas desaprovem o culto bíblico, jamais devemos

colocar a nossa fé nas ordenanças religiosas autônomas de homens finitos e pecadores.33

É

maligno e tolo considerar as tradições humanas no culto como se fossem parte da Palavra

de Deus. A fé bíblica deve ser direcionada apenas para Cristo e Sua Palavra, ―pois toda a

nossa obediência no culto a Deus é a obediência da fé. E se a Escritura é a regra de fé, a

nossa fé — com todo o seu zelo — não deve ir além dela, do mesmo modo que a coisa

regulamentada não pode ir além do regulamento‖.34

Só Jesus Cristo é o Rei e único legislador da igreja. Sempre que os homens

acrescentam leis humanas, ordenanças, rituais ou cerimônias ao que Cristo autorizou em

Sua Palavra, eles negam aos crentes a liberdade que têm em Cristo. Owen escreveu:

O cerceamento da liberdade dos discípulos de Cristo, pela imposição de coisas que

Ele não determinou, nem se fizeram necessárias pelas circunstâncias que as

antecederam, são claras usurpações das suas consciências, destrutivas à liberdade

que Ele lhes adquiriu, às quais — se o dever deles é andar conforme a ordenança

do evangelho — submeter-se é pecaminoso.35

Hoje, ironicamente, os oponentes ao sola scriptura aplicada ao culto (i.é, o

princípio regulador do culto) têm tentado virar a mesa contra os puritanos modernos

argumentando que são aqueles que querem regular o culto que cerceiam a liberdade dos

33

John Knox escreveu: ―Não basta ao homem inventar cerimônias conforme o seu querer e depois dar-lhes

um significado... Porém se alguma coisa procede da fé é preciso ter a Palavra de Deus como sanção, pois não

ignorais que ‗a fé vem pela pregação, e a pregação, pela Palavra de Cristo‘ [Rm. 10:17]. Agora, se provardes

que as vossas cerimônias procedem da fé e, de fato, agradam a Deus, devereis provar que Deus as ordenou

expressamente em palavras, caso contrário jamais comprovareis que procedem da fé e que agradam a Deus,

mas que são pecado e que O desagradam, conforme as palavras do apóstolo: ‗tudo o que não provém de fé é

pecado‘ [Rm. 14:23]‖ (William Croft Dickenson, ed., John Knox’s History of the Reformation in Scotland

[New York: Philosophical Library, 1950], 1:87. 34

John Owen, ―The Word of God the Sole Rule of Worship‖ in Works (Carlisle, PA: Banner of Truth, 1967),

13:473. 35

John Owen, ―A Discourse Concerning Liturgies‖ in Works (Carlisle, PA: Banner of Truth, 1965 [1850-

1853]), 15:55.

Page 29: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

crentes, por não darem oportunidade aos outros de introduzirem inovações humanas no

culto a Deus. O problema com tal argumento é que liberdade, como definida pela Escritura,

jamais significa libertação da lei de Deus, ou autonomia para se criar as próprias

ordenanças ou cerimônias de culto à parte da Palavra de Deus. A liberdade bíblica refere-se

a: (1) nossa libertação de obedecer à lei como meio de justificação diante de Deus (e.g.,

Rm. 3:28); (2) nossa libertação do poder do pecado em nós (e.g., Rm. 6:6ss.); (3) anulação

da lei cerimonial, e, portanto, a nossa libertação dela; (4) nossa libertação em coisas que são

verdadeiramente adiafóricas, isto é, coisas indiferentes (e.g., Rm. 14:20). Liberdade cristã

jamais significa que nos é permitido fazer acréscimos aos preceitos morais de Deus ou ao

que Deus prescreveu para o culto. Considerar que a atividade mais importante e reverente

em que os cristãos se envolvem (no culto a Deus) está, de algum modo, dentro da esfera da

adiaforia é completamente antibíblico e absurdo.

A verdadeira liberdade advém do entendimento apropriado da doutrina reformada

de sola scriptura e da doutrina correlata da suficiência da Escritura. Rawlinson escreveu

dos puritanos:

Além disso, eles criam com Calvino que, se Deus havia mostrado à luz

esclarecedora de Sua Palavra como Ele deveria ser adorado, era presunção

desviante, fronteiriça à blasfêmia, que os homens fizessem acréscimos ao que

Deus havia revelado. Em 1605 William Bradshaw disse que os puritanos

‗declaravam e defendiam que a Palavra de Deus contida nos escritos dos profetas e

apóstolos é absolutamente perfeita e dada por Cristo, o Cabeça da Igreja, sendo

para a mesma o único Cânon e regra em todos os assuntos de religião, adoração e

culto. E é ilegítimo tudo que for realizado nessa mesma adoração e culto que não

puder ser justificado por esta palavra‘. Passagens bíblicas tais como 2Timóteo

3:15-17; 2Pedro 1:19-21; Mateus 15:9, 13 e Apocalipse 22:19 eram utilizadas para

justificar esta posição, ao passo que de passagens como Atos 2:41-42; 1Timóteo

2:1ss.; Efésios 5:19; Romanos 10:14-15; 2Timóteo 1:13 e Mateus 18:15-18,

argumentava-se que havia seis ordenanças de culto evangélico: Oração, Louvor,

Pregação, Batismo e Ceia do Senhor, Catequização, e Disciplina.36

Por não permitirem tradições humanas no culto, as igrejas reformadas consistentes

nunca disciplinam as pessoas por adotarem apenas o culto determinado na Escritura. É

somente nas igrejas que acrescentam as tradições humanas que os crentes são proscritos e

perseguidos, e os ministros demitidos, por se apegarem ao puro culto evangélico. Como é

possível acusar os puritanos modernos de negarem liberdade às pessoas quando toda culpa

deles está em seguirem as leis e as ordenanças da Escritura sem a mescla humana? ―O valor

de proporcionar sanção bíblica para todas as ordenanças do culto puritano era que isso dava

a tais ordenanças uma augusta autoridade por meio daqueles que as usavam, como faziam

os puritanos, na obediência da fé‖.37

Quem acrescenta invenções humanas no culto a Deus

jamais pode lidar adequadamente com o assunto da autoridade por causa de suas inovações

humanas. Não há autoridade divina que apóie as suas práticas nem a coerção envolvida na

implementação e continuidade delas. John Owen escreveu:

O princípio pelo qual a igreja tem o poder de instituir qualquer coisa, ou cerimônia

pertinente ao culto a Deus, tanto em conteúdo quanto em forma, além da

36

Leslie A. Rawlinson, ―Worship in Liturgy and Form‖ in Anglican and Puritan Thinking (Cambridge,

England: Westminster Conference, 1977), 74. 37

Horton Davies, Worship and Theology in England, 1:71.

Page 30: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

obediência a essas circunstâncias como se elas atendessem a uma determinação do

próprio Cristo, está na raiz de toda horrível superstição e idolatria, de toda

confusão, sangue, perseguição e guerras, que têm por um bom tempo se espalhado

sobre a superfície do mundo cristão‖.38

Aqueles que não consideram a autoridade divina como um item importante para o

governo e culto da igreja, deveriam se lembrar dos 18.000 homens, mulheres e crianças —

dedicados presbiterianos escoceses (pactuantes) — que foram assassinados simplesmente

por recusarem submissão às ordenanças humanas da liderança eclesiástica anglicana.

Uma análise do culto ilegítimo criado pelo homem não apenas revela que ele, por

sua natureza, não possui aval divino, e é, portanto, não apenas tirânico, mas também,

antropocêntrico. Qual é o propósito de toda pompa, ostentação e espetáculo do culto

anglicano? Qual a razão de catedrais ostentosas? Qual a razão de vitrais, de dias santos

especiais, de gestos especiais e de especiais vestimentas sacerdotais? A razão não é que

Deus ordenou tais coisas, e que, por isso, se deleita nelas. Deus não se impressiona de

modo algum com catedrais fantásticas, sinos, incensos e vestimentas tolas. O propósito

geral dos vários adornos feitos pelo homem (exceto no alto-clero) é exercer algum efeito

psicológico no homem. A parafernália papista e os adereços medievais mantidos pelas

igrejas anglicanas eram considerados como auxílios à devoção. A intenção deles era

suscitar o espanto, a reverência e a inspiração dos adoradores. A catedral, com a sua pompa

e cerimônia, tinha função similar ao LSD, à maconha e aos efeitos de luz experimentados

por um roqueiro num show de rock. Eles dão o tom emocional e manipulam o coração. No

fundo todos esses tipos de recursos inventados pelo homem, para seu deleite e efeito

psicológico, revelam falta de fé no poder do Espírito Santo que acompanha o puro culto

evangélico. A pompa e a ostentação do culto anglicano é uma negação implícita de que o

culto autorizado e designado por Jesus Cristo seja adequado ao objetivo a que se destina.

George Gillespie adverte que as cerimônias humanas obscurecem a verdadeira religião. Ele

escreveu:

Mas entre tais coisas — que têm sido os amaldiçoados instrumentos da desolação

da igreja, os quais para alguns de vocês talvez não pareçam nada ferir nem causar

o mínimo malefício — estão as cerimônias de ajoelhar-se no ato de receber a Ceia

do Senhor, benzer ao batizar, episcopalianismo, dias santos, etc. que são infligidas

sob o nome de coisas indiferentes; entretanto se se analisar cuidadosamente suas

graves e variadas inconveniências, ter-se-á um pensamento bem ao contrário. As

vãs aparências e sombras dessas cerimônias têm escondido e obscurecido a

substância da religião; a verdadeira vida de piedade é extinguida e anulada pelo

fardo dessas invenções humanas; por causa disso muitos que são tanto fiéis a

Cristo quanto leais ao rei, sofrem ofensa, zombaria, vergonha, ameaça,

perturbação; por causa delas os irmãos cristãos são ofendidos, e os fracos

grandemente escandalizados; por causa delas os mais poderosos e sofridos

ministérios do país são banidos, ou ameaçados de serem banidos de suas vocações;

por causa delas os mais qualificados e esperançosos candidatos são impedidos de

abraçarem o ministério; por causa delas os seminários [teológicos] estão tão

corrompidos que pouca ou nenhuma boa planta pode nascer dali; por causa delas

muitos são admitidos no ministério sagrado, ou papista ou arminiano, que

38

Johw Owen, citado por William Cunning em ―The Reformers and the Regulative Principle‖ in The

Reformation of the Church (Carlisle, PA: Banner of Truth, 1965), 40-41.

Page 31: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

ministram veneno e não comida ao rebanho; ou tolos ignorantes que dispensam ao

faminto comida insalubre.39

Aos oponentes do princípio regulador do culto, que acusam o culto puritano de

―minimalismo nominalista‖ ou de ―iconoclastia daltônica‖, perguntamos o seguinte: que

melhorias humanas podem ser feitas ao cântico de salmos inspirados por Deus? Que

acréscimos humanos — auditivos, palatais e visuais* — são suplementos necessários ao

ouvir a Palavra de Deus lida e pregada, e contemplar e banquetear-se na carne e no sangue

do Filho de Deus? O que são edifícios deslumbrantes, tolas vestes papais, cerimônias e

pompa romanista comparadas às ordenanças que nos foram dadas pelo nosso bendito

Senhor e Salvador? Não seria suficiente colocar a nossa fé nas infalíveis palavras de

Cristo? Temos também que colocá-la nas palavras e invenções dos homens?40

2. O Luteranismo

As igrejas luteranas também se apartaram do sola scriptura na compreensão e

regulamentação do culto público. Lê-se na Confissão de Augsburgo (1530):

E para [alcançar] a verdadeira unidade da Igreja é bastante que se concorde

quanto à doutrina do evangelho e a administração dos sacramentos. Nem é

necessário que as tradições humanas, rituais, ou cerimônias instituídas pelos

homens devam ser iguais em toda parte, como disse São Paulo: ―uma só fé, um só

batismo; um só Deus e Pai de todos‖ (Artigo 7, Da Igreja).41

Quanto aos rituais eclesiásticos [criados pelos homens], eles ensinam que

39

George Gillespie, A Dispute Against the English Popish Ceremonies Obtruded on the Church of Scotland

(Dallas, TX: Naphtali, 1993 [1637]), xxx. * O autor usa aqui algumas alegorias do livro de John Bunyan, The Holy War (London, England: 1682) onde a

cidade de Mansoul (alma do homem) é tomada por Diabolus e depois reconquistada por Shaddai. Mansoul

tinha cinco portões que simbolizavam os sentidos humanos: audição, visão, paladar, olfato e tato,

respectivamente no livro: Ear-gate, Eye-gate, Mouth-gate, Nose-gate e Feel-gate (N.E.). 40

Uma dos entendimentos errôneos mais comuns quanto ao princípio regulador do culto é que ele foi

desenvolvido por acaso, como reação exacerbada aos abusos do catolicismo. Alguns até argumentam que ele

foi bom apenas para aquele período inicial da Reforma, quando muitas pessoas estavam saindo da igreja

papal; agora, entretanto, que o protestantismo está firmado e estabelecido, isso é muito extremado e não mais

necessário. Muitas são as razões pelas quais o cenário citado deve ser considerado como pura ficção. Em

primeiro lugar, a idéia de que Zwínglio, Calvino, Knox, Farel, Bucer e os primitivos puritanos eram todos

pragmáticos, dispostos a torcer a Escritura em prol de um bom propósito, é ridícula. Esses homens preferiam

ser torturados e mortos a comprometerem a verdade da Escritura. Por exemplo, João Calvino gastou toda a

sua vida pregando, escrevendo comentários e refinando as suas Institutas. O princípio regulador é claramente

ensinado do começo ao fim de seus escritos (vide Apêndice A). É óbvio a qualquer estudante de história que a

sua posição sobre o culto não foi adotada por acaso ou negligentemente. Em segundo lugar, os luteranos eram

também egressos do catolicismo, mas rejeitavam o princípio regulador. Se o pragmatismo estivesse envolvido

na adoção do princípio regulador isso não era demonstrado pelas igrejas e teólogos reformados.

Humanamente falando, as igrejas reformadas estariam fisicamente mais seguras contra os assaltos de Roma e

de seus lacaios se houvessem comprometido a sua compreensão de culto e se unido aos luteranos. Em terceiro

lugar, os teólogos do segundo período da Reforma, tanto na Inglaterra (e.g., John Owen) quanto na Escócia

(e.g., George Gillespie, Samuel Rutherford, James Durham), que estudaram a matéria do culto mais

detalhadamente até mesmo que Calvino e Knox, chegaram à mesma conclusão. Se há alguma diferença, é que

os homens da segunda Reforma eram mais consistentes e rigorosos que alguns dos teólogos anteriores. Em

quarto lugar, os princípios subjacentes que deram origem ao catolicismo em seu apogeu ainda estão entre nós

e representam uma ameaça aos protestantes. Embora os perigos físicos não estão mais entre nós em muitos

países, o perigo espiritual da doutrina papista é tão grande quanto sempre foi. 41

Creeds of Christendon, 3:12.

Page 32: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

aqueles rituais devem ser obedecidos e observados sem pecado, e que são

proveitosos para a tranqüilidade e boa ordem na Igreja; assim como são

determinados dias santos, festivais e coisas semelhantes. Mas quanto a isso, deve-

se admoestar aos homens que não devem ter as consciências pesadas como se tais

serviços fossem necessários à salvação. Ensina-se, ademais, que todas as

ordenanças e tradições feitas pelo homem com o propósito de por elas reconciliar-

se a Deus e merecer graça são contrárias ao evangelho e à doutrina da fé em

Cristo. Portanto votos e tradições quanto a comidas e dias e coisas

semelhantemente instituídas para merecer graça e reparação pelo pecado são

inúteis e contrárias ao Evangelho (Artigo 15, Dos Rituais Eclesiásticos).42

Na Fórmula de Concórdia (1576 [1584]), Artigo 10, Das Cerimônias

Eclesiásticas, lê-se:

(As quais são comumente chamadas de adiafóricas, ou coisas indiferentes).

Surgiu também entre os teólogos da Confissão de Augsburgo uma controvérsia

quanto às cerimônias eclesiásticas ou rituais que não são ordenados nem proibidos

na Palavra de Deus, mas que foram introduzidos na Igreja meramente por causa da

ordem e da decência. (Sã doutrina e confissão referente a este Artigo). I. Para

melhor desembaraço dessa controvérsia nós cremos, ensinamos e confessamos,

com unânime consentimento, que cerimônias ou rituais eclesiásticos (que não são

ordenados nem proibidos na Palavra de Deus, mas foram instituídos apenas por

motivos de ordem e decência) não são em si mesmos culto divino, nem sequer

fazem parte dele. Pois está escrito, ―em vão me adoram, ensinando doutrinas que

são preceitos de homens‖ (Mt. 15:9). II. Nós cremos, ensinamos e confessamos

que é permito à Igreja de Deus em qualquer parte da terra, a qualquer tempo,

consoante a ocasião, modificar tais cerimônias, de modo que sejam julgadas mais

úteis para a Igreja de Deus e mais apropriadas à sua edificação... V. Nós cremos,

ensinamos e confessamos que uma igreja não deve condenar outra por ela observar

em maior ou menor grau as cerimônias externas, as quais o Senhor não instituiu,

desde que haja entre elas concordância quanto à doutrina e a todos os artigos

concernentes, e no verdadeiro uso dos sacramentos.43

Nós repudiamos e condenamos como antagônicos à Palavra de Deus os

seguintes falsos dogmas: I. Que as tradições e preceitos humanos de coisas

eclesiásticas devem, por si mesmos, ser considerados como culto divino ou pelo

menos como parte do culto divino. II. Quando cerimônias e preceitos desse tipo

são, por algum tipo de coerção, impostos à igreja como necessários, sendo isso

contrário à liberdade cristã que a igreja de Cristo tem em assuntos externos dessa

natureza.44

A posição luterana confessional sobre o culto é basicamente a de que os homens

podem fazer acréscimos ao culto a Deus conforme lhes for conveniente, uma vez que os

acréscimos humanos não são considerados como parte do culto. É permitido à igreja

acrescentar rituais e cerimônias uma vez que não sejam condenados pela palavra e sejam

considerados proveitosos. Entretanto, as tradições humanas que são acrescentadas ―não são

42

Ibid., 3:16. 43

Ibid., 3:160-163. 44

Ibid., 3:163-164.

Page 33: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

em si mesmas culto divino, nem sequer fazem parte dele‖. De acordo com os teólogos

luteranos, os rituais e cerimônias criados pelos homens são meramente matérias externas e

não verdadeiramente culto; podem ser acrescentados e retirados à vontade; e não podem ser

impostos como compulsórios ao laicato.

O entendimento luterano sobre o culto foi desenvolvido cedo na Reforma e era

dirigido primariamente contra Roma. Para Lutero e Melanchthon o maior problema com os

ritos e cerimônias papais é que eram compulsórios e considerados necessários à salvação.

Lutero escreveu:

Sobre esta mesma base frágil os romanistas atribuíram ao sacramento da

ordenação um certo ―caráter‖ fictício, do qual se diz estar indelevelmente impresso

em um ordenando. Eu perguntaria donde surgiram tais idéias, com a autoridade de

quem e com que propósito foram estabelecidas? Não é que não queiramos que os

romanistas sejam livres para inventar, dizer ou asseverar o que bem quiserem. Mas

nós também insistimos na nossa própria liberdade, para que eles não se arroguem o

direito de criar artigos de fé da sua própria cabeça, como até agora têm se atrevido

a fazer. É suficiente que, por causa da concórdia, devemos nos acomodar às suas

cerimônias e idiossincrasias, mas recusamo-nos a ser forçados a aceitá-las como

necessárias à salvação, porque que elas não o são. Retirem eles o item de

obrigatoriedade de suas demandas arbitrárias, que concederemos livre obediência

aos seus desejos para que possamos viver em paz uns para com os outros. Porque é

indigno, iníquo, e servil para um homem cristão, em sua liberdade, ser submetido a

qualquer regra exceto à celestial e divina.45

Em sua Apologia, Melanchthon escreve: ―Pois a Escritura chama as tradições de

doutrinas de demônios, ao passo que ensina que os ritos religiosos são úteis para merecer

remissão de pecados e graça. Se os adversários defendem esses atos humanos como

merecedores de justificação, de graça e de remissão de pecados, eles estabelecem definitiva

e completamente o reino do Anticristo. Daniel indica que novos cultos humanos serão a

própria forma e preceito do Anticristo‖.46

As principais diferenças entre o culto reformado e o luterano resultam das

diferentes perspectivas teológicas de Lutero e Calvino. Pode-se dizer que Lutero, quanto à

prática da igreja, era bem conservador. Para ele, a justificação pela fé era a doutrina maior

sob a qual praticamente todos os outros ensinamentos tinham de ser consideramos para

serem entendidos. Era a doutrina principal pela qual a igreja se mantinha de pé ou caía. Por

isso, quando Lutero aplicou-se à reforma do estilo de culto medieval, ao qual estava

acostumado, ele usou um bisturi e não um machado. Embora Lutero fosse um ardente

defensor do sola scriptura, ele nunca fez a conexão entre a Escritura somente e a

necessidade da sanção divina para as ordenanças do culto, como fez Calvino. Quando

Lutero olhava a prática do culto, a sua principal preocupação era: Será que esta prática é

motivada por uma crença na justificação pela obras? Será que este ritual ou prática deprecia

de algum modo o perfeito, todo-suficiente sacrifício de Jesus Cristo? Com esse critério,

Lutero eliminou muitos abusos (e.g., a missa católico-romana, as peregrinações, a mediação

dos santos, a hierarquia clerical, etc.). Lutero ensinava também que qualquer prática de

45

Marin Luther, “The Pagan Servitude of the Church” in John Dillember, ed., Martin Luther: Selections from

His Writings Edited with an Introduction (New York: Anchor, 1961), 343-344. 46

Felipe Melanchthon, citado em J. L. Neve, Introduction to the Symbolical Books of the Luteran Church

(Columbus, OH: Lutheran Book Concern, 1926), 260-261.

Page 34: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

culto que contradissesse o claro ensinamento da Escritura deveria ser evitada. Por isso, o

culto da igreja deveria ser inteligível para o povo. Deveria ser conduzido em sua própria

língua. A Comunhão deveria ser servida em ambos os elementos — o pão e o vinho. A

pregação deveria ser enfatizada para que o rebanho recebesse instrução e edificação em vez

de inútil algaravia em latim. Um outro importante aspecto em Lutero era a liberdade cristã.

As tradições humanas no culto eram adiafóricas e não deveriam ser impostas às pessoas.

Tal coerção cheirava a catolicismo e mercadejar de méritos.

Lutero tinha uma visão favorável das tradições da igreja. As tradições humanas na

igreja deveriam ser respeitadas e consideradas valiosas desde que não contradissessem a

Escritura. Esta visão das tradições é notada na doutrina das ―ordens‖ de Lutero. Escreve

Davies:

A implicação desta doutrina era que Deus havia ordenado o mundo de tal modo

que o homem não deveria viver como um mero indivíduo isolado da sociedade,

mas como um ser que compartilha certos relacionamentos comunais. Tais

comunidades ordenadas por Deus são a Igreja e o Estado. Desde que elas

dependem do divino assentimento para a sua continuidade, os homens deveriam

respeitá-las. Devem, portanto, ser obedecidas, exceto quando contradizem

definitivamente a vontade revelada de Deus. Essa doutrina concede à tradição um

valor excessivo e como tal deve ser considerada como a base religiosa do

conservadorismo de Lutero. Ajuda também a explicar porque os bispos têm um

papel tão importante na decisão de quais reformas litúrgicas são desejáveis.

Teoricamente Lutero deixa a escolha de aceitar ou rejeitar as suas reformas

litúrgicas aos cristãos das igrejas locais, mas na prática a decisão foi deixada a

critério do bispo.47

A confissão luterana reflete fielmente o ensino de Lutero quanto às cerimônias

humanas. As tradições da igreja (i.é, rituais humanamente imaginados e cerimônias não

ordenadas na Escritura) são permitidas se: (1) elas não tiverem tendências católicas (isto é,

nenhum mérito humano está ligado à cerimônia), (2) as cerimônias não violarem o

ensinamento das escrituras, (3) elas não forem superestimadas a ponto de os crentes

valorizarem menos os reais mandamentos bíblicos (e.g., a Ceia do Senhor), (4) elas não

forem compulsórias (isto é, não podem ser impostas sob pressão). Noutras palavras, não

devem ser considerados atos necessários de culto. (Um ato necessário de culto é aquele

ordenado pela Escritura, como, por exemplo, os sacramentos).

Os luteranos ensinam que é permitido à igreja acrescentar rituais e cerimônias

apenas dentro do âmbito da adiaforia (palavra grega que significa ―coisas indiferentes‖).

Allbeck escreve:

A Fórmula de Concórdia delimita primeiro as fronteiras da genuína adiaforia. A

genuína adiaforia não é contrária à Palavra de Deus, não cria facções, não

romaniza, não [cria] tolos e inúteis espetáculos, não constitui essencialmente o

culto a Deus. Quanto à sua situação diz-se que a adiaforia pode ser modificada

pela igreja no interesse da boa ordem, disciplina e edificação. Mas há sempre a

necessidade de uma clara confissão doutrinal em palavras e ações. A adiaforia é

um elemento de liberdade. Adiaforia compulsória é uma contradição de termos.

Quando deixa de ser livre deve ser resistida.48

47

Horton Davies, The Worship of the English Puritans (Morgan, PA: Soli Deo Gloria, 1997 [1948]), 17. 48

Willard Dow Allbeck, Studies in the Lutheran Confessions (Filadélfia, PA: Muhlenberg, 1952), 283.

Page 35: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

O entendimento luterano de sola scriptura não permite à igreja acrescentar as suas

próprias doutrinas aos ensinamentos da Escritura, nem lhe permite acrescentar culto

―essencial‖ ou ―ordenado‖ (i.é, os sacramentos). Ele, no entanto, ao declarar simplesmente

que os acréscimos humanos estão no âmbito da adiaforia, dá à igreja um papel muito

amplo na determinação de ritos e cerimônias. Na teoria, as declarações luteranas referentes

ao culto são superiores aos ensinamentos episcopais. Pelo menos os luteranos não

consideram seus acréscimos humanos como parte real do culto. Eles também argumentam

que os rituais e cerimônias humanas não são compulsórios como as ordenanças de culto

prescritas pela Escritura. Na prática, entretanto, as igrejas luteranas não são melhores que as

suas similares episcopais. Ambas negam a suficiência das Escrituras no âmbito do culto.

Ambas são culpadas em permitir que a corrupção humana substitua o puro culto

evangélico. Ambas negam que o culto a Deus na era da nova aliança é fixado ou limitado

pelo cânon da Escritura. Em conseqüência disso, ambas entregam os parâmetros do culto

aceitável a uma alteração contínua. As fronteiras do culto estão em constante mudança

porque são determinadas, não pela Escritura somente, mas também pela tradição humana, e

há um número infinito de opções de culto à disposição do homem que não violam o

princípio luterano de permitir qualquer coisa que não seja expressamente proibida.

Há uma série de razões pelas quais o entendimento luterano do culto deve ser

rejeitado com não bíblico e irracional. Primeiro, não é bíblico a idéia de que ritos e

cerimônias externas são adiafóricas. Todo ato na esfera moral e religiosa é sempre bom ou

mal. As únicas atividades que podem ser consideradas adiafóricas são as matérias que são

realmente circunstanciais ou incidentais à cerimônia, tais como a disposição das cadeiras,

acender as luzes, etc. Atividades circunstanciais não necessitam de comprovação da

Escritura, entretanto precisam ser conduzidas conforme as regras gerais do mundo.

Williamson escreveu:

É preciso cuidado ao distinguir entre as circunstâncias do culto e o próprio culto.

Por exemplo, a Escritura não determina a que hora do dia o culto público

congregacional deve ocorrer. O Senhor também não determinou o formato, estilo

ou tamanho do local de culto. Conforme a natureza do caso, tais circunstâncias

poderão variar de país a país, entre as estação do ano, ou de um lugar para outro.

Há, entretanto, uma regra geral que determina que as congregações se reúnam em

algum lugar no dia do Senhor. A regra geral controla a situação particular,

conforme as circunstâncias. Mas, quando a congregação se reúne no local acertado

o culto, então, deve ser unicamente aquele que Deus ordenou.49

O estilo arquitetônico da igreja, a iluminação, a climatização, a organização da

bancada e a duração do serviço são circunstanciais no culto a Deus. Entretanto, aspergir

água-benta, fazer o sinal da cruz, proibir comer carne às sextas-feiras, usar sal e creme no

batismo infantil, Confirmação, celebração de Natal e de Páscoa, vestimentas sacerdotais,

cerimoniais especiais e ajoelhar-se para receber a Ceia do Senhor não são circunstanciais ao

culto, mas acréscimos a ele.

As inovações no culto criadas pelos homens são terminantemente proibidas pela

Escritura. A Bíblia ensina que os homens nada devem acrescentar ou subtrair dos preceitos

morais de Deus (cf. Dt. 4:2; Js. 1:7-8; Pv. 30:5-6) nem nada acrescentar ou subtrair ao culto

que Deus instituiu em Sua Palavra (cf. Dt. 13:32; Lv. 10:1-2; 2Sm. 6:3-7; Jr. 7:31,19:5). A

49

G. I. Williamson, The Westminster Confession of Faith for Study Classes (Phillipsburg, NJ: Presbyterian

and Reformed, 1964)), 164.

Page 36: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

idéia luterana de que os rituais ou cerimônias criadas pelo homem não são culto é

antibíblica e totalmente arbitrária. Sabemos que Deus considera os rituais ou cerimônias

humanos adicionados ao culto como não autorizados, inaceitáveis e pecaminosos. Jeová

matou Nadabe e Abiú por realizarem uma cerimônia idealizada humanamente (a queima de

fogo estranho diante do Senhor, Lv. 10:1-2). Embora os teólogos luteranos não considerem

os atos de culto humanamente criados como culto real, Deus se refere a todas essas

invenções humanas como ―culto de si mesmo‖ (Cl. 2:20-23). Jesus repreendeu os fariseus

pela invenção humana do ritual religioso de lavar as mãos (Mt. 15:1-3). Os judeus foram

repreendidos pelo nosso Senhor não porque haja alguma coisa intrinsecamente imoral no

lavar as mãos, mas porque a igreja não tem autoridade para acrescentar as suas próprias

cerimônias religiosas àquilo que Deus autorizou em Sua Palavra. Alguns argumentam que

Jesus estava condenando apenas às más e não edificantes tradições humanas que estavam

sendo adicionadas ao que Deus ordenara. O problema dessa argumentação é que o lavar

religioso das mãos, numa perspectiva estritamente ética, não fere ninguém. Jesus pegou a

tradição religiosa humana mais inocente e inócua possível para deixar claro como a luz o

ponto de que nenhum acréscimo humano é aceitável a Deus, não importa quão pequeno ou

―inocente‖ ele seja.

Em segundo lugar, a afirmativa luterana de que os rituais e as cerimônias humanas

não são obrigatórias nem compulsórias não reflete a prática real nem dos luteranos nem de

ninguém. Por quê? Porque quando cerimônias humanas são introduzidas na adoração

pública a Deus elas são sempre praticadas debaixo de algum tipo de coerção humana. A

partir do momento em que elas são introduzidas no culto da igreja, as pessoas são forçadas

ou a saírem daquela igreja, para evitar os acréscimos humanos, ou a cometerem pecado, ao

participarem de cerimônias não autorizadas. Sempre que alguma igreja acrescenta

cerimônias humanamente elaboradas ao culto a Deus há sempre pressão eclesiástica e

social para submeter-se a elas. Espera-se que os membros, e a isso são motivados, sigam o

calendário da igreja, vão aos cultos de Páscoa e de Natal, cantem hinos não inspirados,

ouçam a grupos musicais, assistam ao coral infantil, participem dos apelos para irem ao

altar, etc. Até mesmo em igrejas ―reformadas‖ as pessoas sofrem pressão ou coerção para

se conformarem às variadas corrupções que se foram acumulando ao longo dos anos. As

pessoas têm sido disciplinadas por se recusarem a participar de invenções humanas tolas e

romanistas (e.g., hinos não inspirados, dias santos, culto infantil, etc.).50

O conceito luterano de tradições humanas não compulsórias pode, na teoria, soar

bem, mas na prática ele corrompe a igreja e destrói a liberdade cristã. A Bíblia ensina que

somente Deus falando em Sua Palavra infalível tem absoluta, inquestionável autoridade

sobre a consciência dos homens. Assim assevera a Confissão de Fé de Westminster: ―Só

Deus é Senhor da consciência, e a deixou livre das doutrinas e mandamentos humanos que,

em qualquer coisa, sejam contrários à Sua Palavra, ou que, em matéria de fé ou de culto,

50

Gordon Clark escreve: ―A igreja do século XX na América parece ter caído numa curiosa contradição. A

cobiça pelo poder e controle de homens e organizações tem criado, por parte dos burocratas oficiais

eclesiásticos, uma reivindicação de autoridade quase papal. Quando a maioria fala (e os oficiais manipulam a

maioria) é a voz de Deus‖ (What do Presbyterians Believe? [Philadelphia, PA: Presbyterian and Reformed,

1965], 191). Tristemente, muitos presbíteros em denominações ―reformadas‖ consideram como seu ofício

manter o status quo ou o presente estado de apostasia de suas igrejas. Infelizmente isso significa muitas vezes

a aceitação inquestionável de toda sorte de tradições humanas. Significa também freqüentemente tratar os

cristãos comprometidos com a Reforma como se fossem excêntricos, como pessoas que precisam ser

neutralizadas, para se poder manter as defecções das gerações passadas.

Page 37: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

estejam fora dela. Assim, crer em tais doutrinas ou obedecer a tais mandamentos, por

motivo de consciência, é trair a verdadeira liberdade de consciência; e requerer para eles fé

implícita e obediência cega e absoluta, é destruir a liberdade de consciência e a própria

razão‖ (xx.ii). Os crentes em Cristo são livres não apenas de doutrinas e mandamentos que

são contrários à Palavra de Deus, tais como confissão a um sacerdote, missa, celebração de

dias santos além do Dia do Senhor, etc., são também livres de doutrinas e mandamentos

que sejam acréscimos à Bíblia, isto é, que não contradizem à Escritura explicitamente mas

não são ensinados nela; eles derivam da autoridade humana. ―A qualquer doutrina ou

mandamento contrário ou além da Sua vontade, em assuntos religiosos, o cristão não

apenas pode, mas deve desobedecer. Liberdade de consciência significa a liberdade do

indivíduo obedecer a Deus e não ao homem‖.51

Embora os luteranos insistam (como já foi observado) que os seus acréscimos

humanos não são compulsórios (com o objetivo de se evitar a aparência de catolicismo),

eles o são de fato. Até mesmo o grande Martinho Lutero foi inconsistente. Davies escreve:

De modo semelhante, em assuntos litúrgicos, pode-se argumentar legitimamente

que a sua doutrina da Palavra de Deus não foi desenvolvida logicamente. Como

atenuante, deve-se lembrar, entretanto, que ele foi o primeiro dos reformadores e

que no tempo de Calvino a situação era mais estável e os homens tinham mais

tempo para refletir sobre tais assuntos. Entretanto, não se pode negar que nos

últimos anos de Lutero, o reformador demonstrou um crescente conservadorismo.

Ele desejava uma maior uniformidade tanto no uso das vestimentas eclesiásticas

quanto na forma litúrgica. Aquilo que anteriormente havia sido opcional tornou-se

obrigatório.52

Será que se espera que acreditemos que um ministro luterano e sua congregação

serão deixados à vontade pelas autoridades da igreja se eles decidirem descartar o

calendário eclesiástico, os dias santos extra-bíblicos, hinos, órgãos, cruzes e todas as outras

inovações humanas que carecem da sanção divina? É triste, mas espera-se que os

congregados luteranos, assim como seus similares anglicanos, se submetam às cerimônias e

aos mandamentos dos homens com fé implícita e obediência cega. Lembre-se, ―aquilo que

não é feito em fé, nem é acompanhado do convencimento pessoal da sua obrigação ou

legitimidade à vista de Deus, é declarado como pecado — Rm. 14:23‖.53

Hodge escreve: ―É

um grande pecado, que envolve ao mesmo tempo sacrilégio e traição à raça humana,

qualquer homem ou associação humana arrogar-se a prerrogativa de Deus e tentar subjugar

a consciência de seus semelhantes com qualquer obrigação certamente não imposta por

Deus e revelada em Sua Palavra‖.54

Além disso, quando as pessoas participam das

ordenanças de culto que brotaram da mente do homem — que se baseiam na autoridade

eclesiástica e não na Escritura — não estão honrando a Deus (que jamais ordenou tais ritos

ou cerimônias), mas ao homem. Estão em princípio curvando-se à autoridade autônoma de

homens pecadores. Adorar a Deus sem que haja uma determinação divina é um

reconhecimento implícito do papado e de uma liderança eclesiástica. ―Filhinhos, guardai-

vos dos ídolos‖ (1Jo. 5:21).

Em terceiro lugar, as posições luteranas sofrem de contradições internas

51

James Benjamim Green, Harmony of the Westminster Presbyterian Standards (Collins World, 1976), 155. 52

Horton Davies, The Worship of the English Puritans, 18. 53

Robert Shaw, Exposition of the Confession of Faith, 206. 54

A. A. Hodge, The Confession of Faith, 267.

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irreconciliáveis. De acordo com as confissões luteranas é permitido aos homens

acrescentarem as suas próprias tradições, rituais ou cerimônias ao culto a Deus somente se

elas forem edificantes e consideradas não compulsórias. Tais qualidades levantam

importante questão. Se os homens têm a capacidade de imaginar uma tradição, ritual ou

cerimônia que verdadeiramente santifica os crentes, não deveria tal cerimônia — se

realmente edifica o povo de Deus — ser obrigatória? Os artigos anglicanos que determinam

que a igreja pode produzir e impor ao rebanho, se necessário, com disciplina eclesiástica,

ritos ou cerimônias que ela considera como edificantes são mais lógicos. Se uma tradição

humana, ritual ou cerimônia santifica, então deveria ser obrigatória. É importante observar,

entretanto, que o apóstolo Paulo ensina que mandamentos e ordenanças humanos não

edificam nem santificam a igreja. Ele escreve: ―Se morrestes com Cristo para os rudimentos

do mundo, por que, como se vivêsseis no mundo, vos sujeitas a ordenanças: não manuseies

isto, não proves aquilo, não toques aquiloutro, segundo os preceitos e doutrinas dos

homens? Pois que todas estas cousas, com o uso, destroem-se. Tais cousas, com efeito, têm

aparência de sabedoria, como culto de si mesmo, e de falsa humildade, e de rigor ascético;

todavia, não têm valor algum contra a sensualidade‖ (Cl. 2:20-23). Rituais e cerimônias

humanas são mandamentos de homens. Parecem ser sábios e edificantes, a verdade,

entretanto, é que elas nada santificam. O Espírito Santo não usa tradições humanas, rituais

ou cerimônias para edificar a igreja. Ele usa a Palavra de Deus. ―Santifica-os na verdade; a

Tua Palavra é a verdade‖ (Jo. 17:17). Se quisermos, portanto, receber edificação, devemos

seguir apenas as leis, estatutos e ordenanças religiosas de Deus. Legalismo papal, da

liderança eclesiástica e/ou fundamentalista não edifica.55

Em quarto lugar, a alegação luterana de que rituais ou cerimônias criadas pelo

homem não são culto é contra-senso fantasioso. Quando as autoridades eclesiásticas

inventam uma cerimônia religiosa e a introduzem no ato do culto público ao lado das

ordenanças de culto autorizadas na Escritura, eles estão ensinando implicitamente que as

cerimônias criadas pelo homem são do mesmo tipo e carregam autoridade igual às

ordenanças divinamente ordenadas. Quando os homens misturam cerimônias humanas com

ordenanças divinas no culto, será que eles esperam que os adoradores façam distinção entre

as duas (humana e divina) no desenrolar do ato de culto? Além disso, se as cerimônias

religiosas criadas pelo homem não são ato de culto, então, o que são elas? Qual o propósito

delas? Por que são elas conduzidas durante o culto? Por que são arroladas no boletim da

igreja como parte do culto público a Deus? Frank Smith escreve:

Observe cuidadosamente que o ato de culto é uma imposição, desde que se exige

que nos congreguemos com o povo de Deus para participarmos do culto público.

Portanto, qual é a posição legalista (e que se opõe à liberdade cristã) — a que

pensa que não é preciso aprovação bíblica para exigir que se faça isso ou aquilo no

culto, ou a que apela estritamente à Escritura e nada deseja impor ao precioso

rebanho de Deus que não se encontre em Sua Palavra? Poderíamos observar,

incidentalmente, que a fé reformada é ao mesmo tempo a mais rígida e estreita, e,

também, a mais larga e mais universal, devido à sua disposição de nada impor às

55

Gordon Clark escreve: ―É estranho dizer, mas evangélicos, fundamentalistas, pietistas ou pessoas de outros

grupos fervorosos, que ficariam horrorizados com o sinal da cruz ou com o curvar-se ante imagens, têm

inventado suas próprias exigências religiosas e tabus. Há uma certa escola bíblica que exige que as moças

usem seus cabelos presos, enrodilhados no alto da cabeça, pois usar o cabelo solto seria ‗mundano‘‖ (What

Do Presbyterians Believe? 192-193).

Page 39: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

pessoas que não seja bíblico.56

A idéia luterana de que os acréscimos humanos ao ato de culto realmente não são

culto mostra quão enganoso é o coração do homem. Os homens são tão apaixonados por

suas tradições humanas não autorizadas que eles torcem o claro sentido das palavras e

recorrem a argumentos ilógicos e doentios e a malabarismos exegéticos para justificarem as

suas práticas pecaminosas. A concepção luterana é muito parecida com a absurda afirmação

católico-romana de que o culto aos santos e à Virgem Maria não é realmente culto. Alegam

que é um culto especial (latria) quando o romanista curvar-se diante de Deus. Mas quando

ele se curva para adorar os santos e a bendita virgem é doulia (ou, para Maria,

hyperdoulia). Precisamos reconhecer que todas estas distinções tipicamente farisaicas nada

mais são que desculpas espertas para desviar-se do culto que Deus tem determinado. Contra

toda usurpação tirânica e excesso da igreja, Cristo diz: ―E em vão me adoram, ensinando

doutrinas que são preceitos de homens‖ (Mt. 15:9; cf. Is. 29:13).

3. O Evangelicalismo

Os evangélicos também são culpados de restringir a aplicação da autoridade da

Bíblia. Quanto o assunto é culto, os evangélicos não crêem que a Escritura é suficiente.

Eles diriam que nada que seja pecaminoso deve fazer parte do culto. Entretanto crêem que

os homens têm autoridade para dar qualquer forma e conteúdo que acharem ser útil ao

culto. Infelizmente o entendimento de culto dos episcopais e luteranos tem sido adotado

pela grande maioria dos cristãos professos. Essa visão pragmática do culto tem,

previsivelmente, conduzido ao caos litúrgico nas igrejas evangélicas. Sempre que as igrejas

abandonam o sola scriptura na esfera do culto e abraçam o pragmatismo, o resultado é um

ato de culto que se torna crescentemente antropocêntrico e pagão.

Tal fato tem se tornado cada vez mais evidente nos últimos trinta anos, na medida

em que as igrejas têm adotado o paradigma de culto dos especialistas em crescimento de

igrejas. Estes ―especialistas‖ que buscam sua sabedoria em técnicas de comércio, na

psicologia, na sociologia e não na Bíblia, afirmam que a melhor maneira para se alcançar o

crescimento da igreja é torná-la mais amigável à clientela incrédula. Esta tática envolve

uma diminuição da ênfase na Palavra pregada e nos sacramentos em favor de uma ato de

culto que divirta e proporcione entretenimento. A ênfase dos mais modernos atos de culto

evangélicos está no entretenimento. Tais cultos não alimentam o intelecto, antes, pelo

contrário, estimulam as emoções. Os cultos modernos têm pouco em comum com o culto

apostólico, e muito em comum com Las Vegas, Hollywood e Broadway. Em muitas igrejas

as pessoas até aplaudem depois da apresentação, como se estivessem num teatro ou

concerto.

O resultado é que o culto evangélico moderno não glorifica Deus, mas o homem. É

basicamente um show do homem, voltado para o homem, com canções agradáveis ao

homem e montes de entretenimento: pastores comediantes, solistas musicais, grupos de

rock, bandas ―gospel‖, célebres oradores convidados, peças, esquetes, vídeos, cantores,

corais, dança litúrgica e assim por diante. O culto pragmático, centrado no homem, tem

influenciado até a arquitetura das igrejas. A característica principal de uma casa de reunião

puritana era o púlpito sobre o qual descansava uma grande Bíblia. O aspecto principal de

uma mega-igreja moderna é o palco. As pessoas que elaboraram o culto episcopal e

luterano, com todos aos seus desvios humanos, tentaram, pelo menos, ser reverentes e

56

Frank Smith, ―The Singing of Praise‖ in “Worship in the Presence of God”, 223.

Page 40: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

majestosas. Geralmente o culto evangélico moderno não é, nada disso; é grosseiro, não-

nutritivo e insosso.

Quando nos aproximamos de um Deus três vezes santo, que é infinito em

perfeição, não deveria ser a nossa única preocupação aprender o que Ele tem ordenado e

concentrar nossa atenção naquilo que O agrada e não naquilo que nos agrada e nos faz

sentir bem? Quando aderimos consistentemente ao sola scriptura e, por causa disso,

dependemos apenas da suficiente e infalível Palavra de Deus para determinar o que é culto

aceitável, eliminamos a possibilidade de se introduzir na igreja o culto papal, pagão,

imposto por alguma liderança eclesiástica, ou o pragmático culto a si mesmo. A adoração é

possivelmente a mais importante atividade em que a igreja se envolve. Portanto, quando

buscamos direção quanto ao culto, não deveríamos colocar a nossa confiança em Deus e em

Sua infalível Palavra, em vez de buscarmos as opiniões do homem pecador? ―Relacionamo-

nos com um Deus que é muito zeloso; ou Ele é adorado como Ele quer ser, ou não é

adorado de modo algum. Nem podemos nos queixar. Se Deus for um Ser tal como nos

ensina a Escritura Sagrada, é Seu direito inalienável determinar e prescrever como será

servido‖.57

É arrogante e tola a idéia de que homens pecadores possam, com seus

acréscimos, melhorar e tornar mais suficiente o culto que Deus autorizou em Sua Palavra.

Young escreve:

O entendimento iluminado contenta-se em aprender os preceitos de Deus e [tem]

renovada a sua vontade de andar neles, entretanto, o coração regenerado não pode,

como tal, querer fazer o mais leve acréscimo aos mandamentos de Deus. Sempre

que crentes verdadeiros agiram inconsistentemente quanto a isso, eles

invariavelmente permitiram a introdução de grande corrupção no santuário de

Deus.58

4. O Declínio Reformado

Muitas igrejas reformadas também abandonaram a autoridade exclusiva da Bíblia

sobre o culto. Muitas denominações reformadas e presbiterianas permanecem oficialmente

apegadas à sola scriptura na esfera do culto. O papel da Escritura quanto ao culto é

denominado de princípio regulador do culto. Este princípio declara que todas as partes ou

elementos do culto tem que possuir sanção divina, isto é, toda parte do culto que possui

significado religioso (i.é, coisas e atos que não são circunstanciais) tem de ser autorizada ou

por um mandamento direto da Escritura (e.g., ―fazei isto em memória de mim‖, Lc. 22:19);

ou pela inferência lógica da Escritura (i.é, pode não ser um mandamento explícito, mas,

quando diversas passagens são comparadas elas ensinam ou delas deduze-se uma prática da

Escritura, e.g., batismo infantil); ou por um exemplo histórico bíblico (e.g., a mudança do

dia de culto público corporativo do sétimo para o primeiro dia da semana). Dito de modo

simplificado, toda prática de culto tem de ser comprovada pela Escritura. Tal princípio (se

seguido rigidamente) elimina do culto todas as invenções humanas, pragmatismo e

sincretismo pagão, e, portando, deixa a igreja no mesmo estado em que estava nos dias

apostólicos.

Hoje, infelizmente, a maioria das igrejas reformadas abandonaram o princípio

regulador, e por isso, permitem muitas práticas que não foram prescritas pela Bíblia (e.g.,

57

Samuel H. Kellogg, The Book od Leviticus (New York: Hodder and Stoughton, s.d.), 240. 58

William Young, ―The Second Commandment‖ in Frank Smith e David C. Lachman, eds., Worship in the

Presence of God, 81-82.

Page 41: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

dias santos extra-bíblicos como Natal e Páscoa, hinos não inspirados, corais, musica

instrumental, etc.). Muitas igrejas reformadas estão seguindo os passos do arminianismo,

do reavivalismo, do carismatismo, e do culto no estilo do movimento de crescimento de

igrejas. Um excelente exemplo dessa deterioração é a Igreja Presbiteriana na América

(PCA). As estatísticas a seguir documentam a sua decadência. Há vinte e cinco anos atrás a

PCA tinha 2% de igrejas que cantavam exclusivamente salmos; 40% ―tradicionais‖ (e.g.,

usando o Trinity Hymnal, com piano e órgão); 50% ―tradicional‖ com alguns ―cânticos da

Escritura‖ e instrumentos musicais variados; e somente 8% tinha a mistura

―tradicional/contemporâneo‖. Hoje, aproximadamente 70% de suas igrejas têm a mistura

―tradicional/contemporâneo‖. Hurst escreve: ―Se [eles] não têm dança e teatro é porque não

há quem os dirija; mulheres e jovens podem dirigir o culto como orações individuais e

leitura da Escritura, o aplauso é aceitável para [um] ato bem feito; a música pode tomar a

forma de [uma] apresentação‖.59

Menos de 1% das igrejas da PCA aderem hoje

exclusivamente ao canto de salmos (i.é, culto bíblico).

Alguns conservadores dentro das denominações reformadas têm expressado

preocupação quanto a tendência de suas denominações de desviarem-se rapidamente do

culto ―tradicional‖ para o culto ―contemporâneo‖, ou ―celebrativo‖. Esses homens tentam

estancar a maré do culto ―moderninho‖ discutindo sobre como o culto tem de ser digno,

majestoso e reverente. Seu grito de batalha é: ―decentemente e em ordem‖. Não obstante

concordemos de coração com nossos irmãos quanto a necessidade de reverência, decência e

ordem no culto público a Deus, discordamos quanto ao problema fundamental que está

causando uma tão rápida decadência no culto. Para curar a doença é preciso fazer mais do

que tentar aliviar os sintomas, é necessário ir à raiz do problema. Como as denominações

reformadas rejeitaram ou redefiniram o princípio regulador do culto, tornando-o

virtualmente inútil, todos os esforços para uma séria reforma no culto serão derrotados.

Sem uma rígida interpretação do princípio regulador o debate sobre o culto deslocar-se-á da

discussão exegética sobre o que é sancionado pela Escritura para uma disputa primária

sobre as preferências humanas. A beleza e sabedoria do princípio regulador do culto é que

ele protege a igreja de nossos próprios corações pecaminosos. O culto que está firmemente

fundamentado na sólida rocha da Escritura é imune aos ventos e às ondas da opinião

humana, do modismo e da excentricidade.

59

Peter Hurst, ―Lesson 4: Congregational Worship‖ in Byron Snapp, ed., The Presbyterian Witness

(Hampton, VA: Calvary Reformed Presbyterian Church, verão 1997), XI.4, 13. Todas as estatísticas utilizadas

neste parágrafo foram retiradas do artigo de Hurst.

Page 42: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

V. Sola scriptura — Algumas Objeções Contemporâneas no Âmbito do

Culto Consideradas e Refutadas

Hoje, a maior parte das vozes que criticam o sola scriptura aplicado no âmbito do

culto (i.é, o princípio regulador) são os que se consideram como ―verdadeiramente

reformados‖.60

Esses apologistas da decadência e da manutenção da situação dominante trazem

alguns argumentos interessantes que pensam justificar o abandono generalizado do

princípio regulador do culto em favor de uma concepção de culto luterana/episcopal. Com o

intuito de aguçar a nossa compreensão quanto ao relacionamento do sola scriptura com o

culto bíblico, iremos examinar e refutar tais argumentos.

1. O Argumento da “Falsa Compreensão da Ética e da Adiaforia”

O primeiro argumento utilizado contra o princípio regulador do culto baseia-se

numa falsa compreensão do sentido e relacionamento do sola scriptura, do princípio

regulador e da liberdade cristã ou adiaforia. Schlissel escreve:

Alguns regulativistas tentarão ampliar seu apelo ao ―princípio‖ encontrado em Dt.

12:32 afirmando que ele também se acha em Dt. 4:2. Mas esta passagem diz:

―Agora, pois, ó Israel, ouve os estatutos e os juízos que eu vos ensino, para os

cumprirdes, para que vivais, e entreis, e possuais a terra que o SENHOR, Deus de

vossos pais, vos dá. Nada acrescentareis à palavra que vos mando, nem

diminuireis dela, para que guardeis os mandamentos do SENHOR, vosso Deus, que

eu vos mando‖. Se um regulativista apresentar tal passagem como respaldo à

60

Um dos maiores problemas que as denominações reformadas têm hoje é a existência de ministros e

presbíteros corruptos e desonestos. Há hoje um certo número de homens ordenados que, após terem jurado

fidelidade aos padrões de Westminster, trabalham para solapá-los em seus escritos e ensinamento. Há dos que

se consideram Reformados que atacam abertamente o princípio regulador, que é um dos pilares da reforma

calvinista. Há Conselhos que estão introduzindo muitas inovações no culto público. O objetivo, a longo prazo,

de alguns ministros e presbíteros, é uma igreja presbiteriana com culto episcopal construído sobre princípios

oriundos de uma liderança eclesiástica. Para tais homens, são apropriadas as palavras de James Begg. Ele

escreve: ―se for verdade, deve ser firmemente defendido, e deve ser resistido e descartado todo ato de culto

que não pode ser assegurado por divina sanção, e até que seja descartado, o mínimo que um ministro

presbiteriano pode fazer, é ser honesto em defesa disso. É pior, e completamente vão, abrir mão de nossas

obrigações solenes em favor de afirmações vagas e sem sentido. A posição assumida pela igreja presbiteriana

é uma ou outra, ou salutar ou doentia. ‗À lei e ao testemunho! Se eles não falarem desta maneira, jamais

verão a alva‘. E a única classe de homens mais inconsistentes e criminosos que os que deixam tal assunto em

dúvida, são aqueles que na aceitação do ofício professam defender e manter a doutrina da igreja presbiteriana,

mas que, posteriormente, tratam as suas solenes confissões e votos com perfídia e desrespeito... Estamos

agora provando isso [o princípio regulador do culto] por causa dos que são oficiais da igreja presbiteriana.

Todos eles juraram solenemente, conforme as suas convicções, que estes são os princípios da Escritura que

defenderão com o máximo de suas forças. Por causa disso, fazer qualquer outra coisa, fazer qualquer outra

profissão, sem abrir mão do ofício que receberam em conformidade com a sua prévia confissão, é

simplesmente perjúrio, próprio para trazer desgraça à Igreja Cristã, e para dar aos inimigos da causa motivo

de blasfêmia. Todo oficial presbiteriano está tão comprometido quanto nós em manter e fazer valer estes

princípios, e não em ser conivente, direta ou indiretamente, com a subversão deles. Vivemos, entretanto,

infelizmente, numa era onde ‗violar a trégua‘ não é raro; onde muitos, em vez de seguirem concordemente,

conforme os seus votos solenes, parecem fazer da promoção de inovações no culto a Deus uma de suas

ocupações favoritas. A Religião está ferida dentro da casa dos que dizem ser seus amigos. Nada mais

apropriado para corroer, como um cancro, a fé e a moral da comunidade‖ (Anarchy in Worship [Edinburgh:

Lyon and Gemmell, 1875], 10, 12-13.

Page 43: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

questão do culto, ele se afasta ainda mais do caminho que conduz à luz. Pois essa

passagem refere-se a toda a Lei de Deus, não meramente às leis que governam o

culto. Muitos poucos regulativistas argumentariam seriamente que a intenção de

Deus aqui é proibir Israel de fazer qualquer tipo de coisa em qualquer área da vida

que não seja especificamente ordenada na Lei. Suponho que os amish*, que fogem

de botões eletrônicos por não os encontrar mencionados na Escritura, poderiam ver

mais ou menos favoravelmente esta interpretação, mas estariam totalmente sós ao

fazê-lo. Contudo, se 4:2 for citado como apoio para a leitura que os regulativistas

fazem de 12:32, é precisamente dessa conclusão que não se pode escapar.

Deuteronômio 4:2 é uma regra geral que exige vida conforme a vontade declarada

de Deus em sua inteireza. A nota da Bíblia de Estudo NVI (Nova Versão

Internacional) é relevante ao tema: ―A revelação de Deus é suficiente. Deve ser

obedecida em tudo que nela há e nada que a adultera ou contradiz pode ser

tolerado‖. Não era a intenção de Deus que os recipientes desse versículo (4:2) não

fizessem literalmente nada que não estivesse ali mencionado (i.é, não andar de

skate, usar eletricidade, dirigir automóveis, ou chupar picolé de limão). Assim 4:2,

tomado como um paralelo, demonstra que 12:32 não deve ser considerado em

sentido absoluto. Ao se encontrar frases semelhantes usadas pelo mesmo autor no

mesmo livro, é preciso uma explicação que justifique a aplicação de sentidos

radicalmente diferentes para cada uma delas. Ao se concordar que 4:2, referente a

toda a Lei, não deveria ser entendido sem restrições ao proibir acréscimos e

subtrações, assim também 12:32 não deve ser entendido como uma regra abstrata e

absoluta. Ambos devem ser interpretados nos termos de toda Palavra de Deus,

uma Palavra que simplesmente não ensina: se não é ordenado, é proibido.61

O discurso de Schlissel é talvez o argumento moderno mais popular contra o

princípio regulador. Ele raciocina que Dt. 4:2 refere-se a toda lei que regula tudo da vida.

Como na vida há muitas atividades que não são rigidamente regulamentadas, que são

deixadas à livre escolha do homem (e.g., ―devo usar uma calça azul ou uma cinza?‖),

assim, portanto, passagens praticamente idênticas que provam o princípio regulador, tais

como Dt. 12:32, devem também ser interpretadas de tal modo que permitam ao homem

ampla liberdade na esfera do culto.

O argumento de Schlissel contra o princípio regulador fundamenta-se numa

compreensão totalmente equivocada de Dt. 4:2, e deve por isso ser rejeitada como não-

bíblica. Sua falsa compreensão dessa passagem, e a aplicação dela a área de culto, baseia-se

no erro gritante em distinguir entre a ética dada por Deus e as áreas adiafóricas. A

afirmação de Schlissel de que Dt. 4:2 ―não deveria ser entendido sem restrições ao proibir

acréscimos e subtrações‖ é totalmente falsa. Deuteronômio 4:2 ensina que aos homens nada

é permitido acrescentar ou subtrair dos mandamentos de Deus. Noutras palavras, Deus é a

única fonte de ética para a vida pessoal, familiar, institucional e civil. Os homens não

possuem autonomia ética. Não possuem qualquer autoridade para criar absolutos éticos,

nem lhes é permitido ignorar ou subtrair da Lei de Deus de qualquer maneira. R. J.

* Grupo que se separou dos anabatistas menonitas em fins do século XVII, e ainda existe hoje nos estados

norte-americanos de Ohio e Pensilvânia. Na América do Sul concentra a sua maior colônia no interior do

Paraguai (N.E.). 61

Steve Schlissel, ―All I Really Need to Know About Worship I Don‘t Learn From the Regulative Principle‖

(Part IV), Messiah’s Mandate.

Page 44: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

Rushdoony tem um claro entendimento sobre as implicações de passagens tais como Dt.

4:2. Ele escreve:

É preciso reconhecer que em qualquer cultura a fonte da lei é o deus daquela

sociedade. Se a lei tem a sua origem na razão do homem, então a razão é a lei

daquela sociedade. Se a fonte estiver numa oligarquia, ou numa corte, senado, ou

governante, então aquela fonte é o deus daquele sistema... O humanismo moderno,

a religião do estado, coloca a lei no estado e assim faz do estado, ou do povo

representado no estado, o deus do sistema... Nada é mais mortal e infiel que a

noção de que o cristão está livre quanto ao tipo de lei que pode ter... Tanto a lei

positiva quanto a lei natural nada podem refletir mais que o pecado e a apostasia

do homem: a lei revelada é necessidade e privilégio da sociedade cristã.62

Os homens não têm autoridade para dizer que qualquer pensamento, palavra ou obra seja

má ou pecaminosa sem o provar por mandamento ou dedução bíblica.

O fato de existir na vida muitos aspectos que sejam adiafóricos ou indiferentes63

(e.g., andar de skate, plantar tomates, passear de bicicleta, etc.) significa que Dt. 4:2 não

tinha o objetivo de ser rigorosamente entendido? Significa que é permitido aos homens

acrescentarem ou subtraírem da Lei de Deus? Não, absolutamente não! Da mesma forma,

no culto ordenado ou autorizado, os homens não têm liberdade para acrescentar ou retirar

uma vírgula do culto que Deus instituiu. Os homens, entretanto, têm uma grande liberdade

em áreas que são circunstanciais ou incidentais ao próprio culto. Os argumentos de

Schlissel fracassaram em reconhecer a distinção entre ética e adiaforia, entre as ordenanças

de culto e as suas circunstâncias.

Se os oponentes do princípio regulador do culto querem utilizar Dt. 4:2 como um

texto de prova contra o entendimento reformado de um culto rigorosamente regulado, eles

precisam demonstrar que as ordenanças de culto pertencem à esfera da adiaforia. Será que

as partes ou elementos do culto que estão delineados na Escritura acham-se na mesma

categoria de passear de bicicleta, ou de usar calças azuis em vez de calças cinza, ou plantar

tomate Floralou em lugar de tomate Floradel? A resposta é: obviamente não. A adiaforia

refere-se a assuntos que são indiferentes à ética (e.g., como fazer os ovos no desjejum,

cozidos ou mexidos?). Isto é, que envolvam atividades que não são ordenadas nem

62

R. J. Rushdoony, Institutes of Biblical Law (Philipsburg, NJ: Presbyterian and Reformed, 1977 [1973]), 4-

5, 9-10. 63

Quanto às áreas da vida que são eticamente indiferentes ou adiafóricas, existem pelo menos quatro

princípios bíblicos que precisam ser seguidos. Primeiro, tudo o que fazemos, não importa quão secular seja,

deve ser feito para a glória de Deus. ―Portanto, quer comais, quer bebais ou façais outra coisa qualquer, fazei

tudo para a glória de Deus‖ (1Co. 10:31). ―Porque nenhum de nós vive para si mesmo, nem morre para si.

Porque, se vivemos, para o Senhor vivemos; se morremos, para o Senhor morremos. Quer, pois, vivamos ou

morramos, somos do Senhor‖ (Rm. 14:7-8). Em segundo lugar, algo que normalmente seria indiferente deixa

de sê-lo se fizer pecar a um irmão mais fraco. ―É bom não comer carne, nem beber vinho, nem fazer qualquer

outra coisa com que teu irmão venha a tropeçar ou se ofender ou se enfraquecer‖ (Rm. 14:21). Terceiro,

qualquer atividade que em si mesma é indiferente deixa de sê-lo se não puder ser praticada em fé com uma

consciência limpa. ―Nenhuma coisa é de si mesma impura, salvo para aquele que assim a considera; para

esse é impura... Mas aquele que tem dúvidas é condenado se comer, porque o que faz não provém de fé; e

tudo o que não provém de fé é pecado‖ (Rm. 14:14, 23). Quarto, uma atividade que seja normalmente

adiafórica deixa de sê-lo se alguém fica escravizado a ela ou sob o seu poder ou controle. ―Todas as coisas

me são lícitas, mas nem todas convêm. Todas as coisas me são lícitas, mas eu não me deixarei dominar por

nenhuma delas” (1Co. 6:12). “Todas as coisas são lícitas, mas nem todas convêm; todas são lícitas, mas nem

todas edificam‖ (1Co. 10:23). Há muitas coisas lícitas, tais como tortas, Big Mac‘s, balas, Coca-Cola e bons

charutos, cujo abuso não edifica. Até mesmo o consumo inadequado de arroz integral pode ser pecaminoso.

Page 45: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

proibidas, e que, portanto, a decisão para executá-las ou não, não envolve pecado nem

violação da Palavra de Deus. Desde que ajam conforme as regras gerais da Escritura, os

homens têm total liberdade para realizá-las ou não (i.é, é para a glória de Deus? [1Co.

10:31, Rm. 4:7-9]; Faz pecar o irmão mais fraco? [Rm. 14:21]; Pode ser feito em fé e de

consciência limpa? [Rm. 14:14, 23]; Posso me envolver nessa atividade sem me tornar seu

escravo, por exemplo, viciado em fumo? [1Co. 6:12, 10:23]).

As ordenanças de culto não envolvem a liberdade do indivíduo fazer o que deseja

e, portanto, não podem ser classificadas na categoria da adiaforia. Estão os cristãos livres

para omitir ou acrescentar algo aos elementos do culto religioso conforme lhes aprouver?

Pode alguma igreja eliminar legitimamente a Ceia do Senhor e substitui-la por um novo

sacramento? Seriam os presbíteros de uma igreja obedientes a Cristo caso substituíssem o

batismo em nome do Deus trino por um ritual criado pelo homem? É permitido excluir a

leitura da Escritura substituindo-a por um vídeo de Shakespeare ou rock? Seria pecaminoso

eliminar a pregação da Palavra de Deus trocando-a por filme, comédia, ou show de

variedades ―cristãos‖? É óbvia a resposta a tais questões (não, não, não e não). Se as

ordenanças de culto forem enquadradas na categoria da adiaforia, então tudo que se

relaciona ao culto público, e até o próprio culto público, é opcional. Além do que, poder-se-

ia ter um, nenhum ou vinte sacramentos.

Por serem requeridas pela Escritura, as ordenanças de culto jamais deveriam ser

tratadas como adiaforia. Deveriam, ao contrário, receber o mesmo tratamento da lei moral

de Deus. As áreas da vida que são adiafóricas não correspondem às ordenanças do culto,

mas às suas circunstâncias (e.g., Deveríamos começar o serviço de culto às 10h30 ou às

11h? O carpete do templo deve ser azul ou vermelho? Devemos usar bancada de madeira

ou cadeiras dobráveis? etc.). Ironicamente, Dt. 4:2, quando compreendido apropriadamente,

é um dos textos de prova mais fortes para o princípio regulador do culto, pois este segue

logicamente a sola scriptura. O reformador protestante John Knox é da mesma opinião:

A idolatria principal é quando defendemos as nossas próprias invenções como

justas à vista de Deus por achar que elas são boas, louváveis, e agradáveis. Não

devemos pensar que sejamos tão livres ou tão sábios que possamos fazer a Deus, e

à Sua glória, aquilo que pensamos que é apropriado. Não! Deus ordena o contrário,

dizendo: ―Nada acrescentareis à palavra que vos mando, nem diminuireis dela,

para que guardeis os mandamentos do SENHOR, vosso Deus, que eu vos mando‖

(Dt. 4:2). Cujas palavras não devem ser entendidas apenas como o decálogo ou a

lei moral, mas [também] estatutos, ritos e cerimônias, pois Deus requer igual

obediência a todas as Suas Leis.64

2. Argumento de que “Tudo na Vida é Culto”.

Um argumento que está muito ligado ao de Dt. 4:2 é o que afirma que tudo na vida

é culto, e como na vida há muitas atividades que não estão rigidamente regulamentadas

pela Escritura, assim também o culto não está estritamente regulamentado. Embora, como

cristãos, tudo o que fazemos deve ser para a glória de Deus (1Co. 10:31), e assim devemos

viver para o Senhor (Rm. 14:7-8) e apresentar os nossos corpos como sacrifícios vivos a

Deus (Rm. 12:1), a idéia de que tudo na vida é culto e que não existe, portanto, distinção

64

John Knox, ―A Vindication of the Doctrine That the Sacrifice of the Mass Is Idolatry‖ in Works, David

Laing, ed. (Edinburgh: The Bannatyne Club, 1854), 3:37-38.

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entre o culto público, e atividades como aparar a grama, é absurda. Há várias razões pelas

quais podemos considerar como não-bíblico o argumento de que ―tudo na vida é culto‖.

Em primeiro lugar, há, tanto no Velho quanto no Novo Testamento, diversas

passagens que ensinam e/ou supõem que o culto público é especial e à parte da vida diária.

Salmo 22:22, 25. ―A meus irmãos declararei o teu nome; cantar-te-ei louvores no

meio da congregação; ... De ti vem o meu louvor na grande congregação; cumprirei os

meus votos na presença dos que o temem‖.

Salmo 27:4. ―Uma coisa peço ao SENHOR, e a buscarei: que eu possa morar na

Casa do SENHOR todos os dias da minha vida, para contemplar a beleza do SENHOR e

meditar no seu templo‖. David Dickson escreve:

Um terceiro motivo de certeza é a consciência do seu propósito de estudar, para

obter, pelo uso dos meios [da graça], constante comunhão com Deus, e a

consciência do seu desejo mui fervoroso de gozar em companhia da igreja o total

benefício dos cultos públicos. Donde aprende-se: (1) A resolução sincera de

submetermo-nos a todos os estatutos de Deus e de seguirmos os meios designados

para manter comunhão com Ele é uma das marcas saudáveis da fé sólida, e essa

consciência serve tanto mais para confirmar a nossa confiança em Deus, se

pudermos dizer com o profeta: ―uma coisa peço ao SENHOR, etc‖; (2) O uso dos

meios e o culto da casa de Deus possibilita ver a glória do Senhor e obter conselho

e direção para todas as coisas, com consolo e deleite espiritual para as nossas

almas; pois nos cultos Davi deleitar-se-ia ao ―contemplar a beleza do SENHOR e

meditar no Seu templo‖; (3) O desejo sincero da comunhão com Deus e o amor às

Sua ordenanças deve ocupar o primeiro lugar no coração acima de todos os

desejos e deleites terrenos, sejam quais forem: ―uma coisa peço‖; (4) Não se deve

deixar escapar um desejo sincero, mas deve-se persegui-lo resolutamente e

recomendá-lo diariamente a Deus: ―e a buscarei‖, disse ele; e deve-se perseverar

nos meios de comunhão com Deus na convivência pública da igreja, ―todos os dias

da” nossa ―vida‖.65

Ao aplicar esta passagem aos crentes da nova aliança, Calvino escreveu: ―A Palavra, os

sacramentos, as orações em público, e outros auxílios de mesmo tipo, não podem ser

negligenciados sem que se despreze pecaminosamente a Deus, que Se manifesta a nós

nessas ordenanças como em um espelho ou imagem‖.66

Salmo 84:1-2. ―Quão amáveis são os teus tabernáculos, SENHOR dos Exércitos! A

minha alma suspira e desfalece pelos átrios do SENHOR; o meu coração e a minha carne

exultam pelo Deus vivo!‖. Calvino escreve:

Davi queixa-se de ter sido privado da liberdade de ir à Igreja de Deus, de lá

professar a sua fé, aperfeiçoar-se em piedade, e adorar a Deus (...) Ele sabia que

Deus não havia estabelecido as santas assembléias em vão, e que os piedosos —

peregrinos que são neste mundo — necessitam de tais auxílios.67

Plummer escreve: ―O culto ao verdadeiro Deus sempre teve, em todas a épocas, grandes

atrativos para o regenerado‖.68

Salmo 87:2. ―o SENHOR ama as portas de Sião mais do que as habitações todas de

65

David Dickson, Commentary on the Psalms (Carlisle, PA: Banner of Truth, 1959 [1653-55]), 1:141-142. 66

John Calvin, Commentary on the Book of Psalms (Grand Rapids: Baker, 1980), 1:455. 67

Ibid., 3:353-354. 68

William S. Plummer, Psalms (Carlisle, PA: Banner of Truth, 1975 [1867]), 794.

Page 47: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

Jacó‖. David Clakson escreve:

Mas pode-se argumentar que o Senhor era adorado não apenas às portas de Sião,

no templo, mas também nas habitações de Jacó. Não podemos supor que toda a

posteridade de Jacó negligenciaria o culto a Deus em suas famílias; sem dúvida

alguma que os fiéis que havia entre eles decidiram com Josué: ―eu e a minha casa

serviremos ao Senhor‖. Portanto, desde que havia o culto a Deus tanto num quanto

noutro, como pode este culto ser a razão pela qual um deveria ser preferido ao

outro? Certamente por nenhuma outra razão a não ser esta: o culto a Deus, às

portas de Sião, era público, o culto nas habitações de Jacó era particular. Assim,

portanto, em conclusão, pode-se dizer que o Senhor ama as portas de Sião mais

que as habitações de Jacó, porque Ele prefere o culto público ao privado. Ele

amava a todas as habitações de Jacó, onde quer que fosse adorado em particular,

mas amava as portas de Sião mais que todas as habitações de Jacó, porque lá Ele

era adorado publicamente. Com base nisso temos uma razão óbvia para fazer a

seguinte observação: Deve-se preferir o culto público ao privado. Se é assim para

o Senhor, assim deveria ser para o Seu povo. Se assim era sob a lei, assim tem de

ser sob o evangelho. Não há dúvida de que existe uma diferença entre o culto

público sob a lei e o culto público sob o evangelho com respeito a uma

circunstância, a saber, o seu local. Sob a lei o lugar do culto público era sagrado,

mas sob o evangelho não temos nenhuma razão para assim considerar qualquer

lugar de culto público; e isto ficará claro se perguntarmos quais eram os motivos

para aquela santidade legal no tabernáculo ou templo, e se notarmos que nenhuma

delas pode ser aplicada a qualquer lugar de culto sob o evangelho.69

Eclesiastes 5:1-2. ―Guarda o pé, quando entrares na Casa de Deus; chegar-se para

ouvir é melhor do que oferecer sacrifícios de tolos, pois não sabem que fazem mal. Não te

precipites com a tua boca, nem o teu coração se apresse a pronunciar palavra alguma diante

de Deus; porque Deus está nos céus, e tu, na terra; portanto, sejam poucas as tuas palavras‖.

Basta esta passagem para provar que o culto público é único e especial. Deve haver o

solene reconhecimento da presença especial de Deus no culto público e, portanto, muito

zelo em ser sincero, reverente, sossegado, consciente, e atento. Matthew Henry escreve:

Prepare-se para o culto a Deus com uma pausa solene, e gaste algum tempo em

sossegar-se, não se aplicando a ele com precipitação, como é dito: apressar-se com

os pés, Pv. 19:2. Não permita que a sua mente se disperse aleatoriamente,

afastando-se do ofício; não se disponha a gastar seus sentimentos com as coisas

erradas, porque no serviço da casa de Deus há trabalho suficiente para todos, e

poucos para serem usados... Quando estamos na casa de Deus, estamos de um

modo especial diante de Deus e na Sua presença, lá onde Ele prometeu encontrar-

se com seu povo, onde os Seus olhos estão sobre nós, e os nossos olhos voltados

para Ele.70

John Gill escreve:

Tudo o que pode denotar a conversação pura e casta dos verdadeiros adoradores de

Deus; porque, assim como os pés são os instrumentos para o caminhar, eles devem

ter em mente qual é a conduta e o comportamento dos santos na casa de Deus,

69

David Clarkson, “Public Worship to be Preferred Before Private” in The Blue Banner (Dallas, TX: First

Presbyterian Church Rowlett, julho/agosto, 1999), 1. 70

Matthew Henry, Commentary (McLean, VA: MacDonald, s.d.), 6:1006.

Page 48: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

onde devem ter o cuidado de fazer tudo conforme a Sua palavra, a qual é lâmpada

para os pés e luz para o caminho.71

É óbvio, por estas e muitas outras passagens, que a participação no culto público deve ser

tratada pelo povo de Deus de modo bem diferente que uma competição esportiva ou um

churrasco. Frank Smith escreve:

Um dos privilégios do ofício de culto é o de vir à especial presença de Deus e à

comunhão com Ele. Tudo aquilo que divergir disso deveria ser claramente

proibido. Se estivéssemos na presença da rainha da Inglaterra, não seria próprio do

protocolo interromper a audiência com a monarca para conversarmos entre nós.

Quão mais importante é não interrompermos a nossa audiência com o Rei dos reis

com coisas fúteis centradas em nós mesmos.72

Levítico 23:3. ―Seis dias trabalhareis, mas o sétimo será o sábado do descanso

solene, santa convocação; nenhuma obra fareis; é sábado do SENHOR em todas as vossas

moradas‖. Depois que Israel foi estabelecido na terra, esta exigência de culto público

semanal só poderia ser posta em prática se existissem muitas congregações reunindo-se por

toda a terra de Israel. Esses cultos congregacionais descentralizados não conteriam,

obviamente, os elementos cerimoniais do culto do tabernáculo ou do templo (tais como o

sacrifício de animais). Matthew Henry escreve:

É uma santa convocação; isto é: ―se estiver ao vosso alcance, santificá-la-ás em

assembléia religiosa: não impedindo a tantos quantos possam vir à porta do

tabernáculo, nem impedindo que outros se congreguem alhures para oração,

louvor, e leitura da lei‖, como nas escolas dos profetas, enquanto continuava a

profecia, e posteriormente nas sinagogas. Cristo, ao reunir-se com seus discípulos

duas vezes (e talvez muitas outras vezes) no primeiro dia da semana, estatuiu o

sábado neotestamentário como uma santa convocação... Note que os sábados de

Deus devem ser observados religiosamente em cada casa em particular, por cada

família individualmente, como também por muitas famílias congregadas em santas

convocações.73

Atos 15:21. ―Porque Moisés tem, em cada cidade, desde tempos antigos, os que o

pregam nas sinagogas, onde é lido todos os sábados‖ (cf. Sl. 74:8).

Hebreus 10:24-25. ―Consideremo-nos também uns aos outros, para nos

estimularmos ao amor e às boas obras. Não deixemos de congregar-nos, como é costume de

alguns; antes, façamos admoestações e tanto mais quanto vedes que o Dia se aproxima‖.

Diferentemente das atividades quotidianas como andar de patins, cultivar o jardim e dirigir

um carro, o culto público, por não ser opcional, não é uma área que os crentes podem tratar

com indiferença. Aqueles que consideram que ―tudo na vida é culto‖ (à semelhança dos que

interpretam erroneamente Dt. 4:2) confundem completamente a diferença que há entre o

culto público, os elementos ordenados deste culto e os assuntos indiferentes ou comuns às

atividades humanas e às sociedades. Uma vez que certa atividade seja ordenada e separada

por Deus, não podemos tratá-la como opcional ou adiafórica. Cantar louvores a Deus está

numa categoria completamente diferente da de plantar tomates, mesmo que ambas sejam

feitas para a glória de Deus.

71

John Gill, Exposition of the Old Testament (Streamwood, IL: Primitive Baptist Library, 1979 [1810]),

4:579. 72

Frank Smith, ―An Introduction to the Elements of Worship‖ in Worship in the Presence of God, 135. 73

Matthew Henry, Commentary, 1:536.

Page 49: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

Em segundo lugar, Cristo o rei e cabeça da igreja designou oficias com funções

que requerem um uso público especial. ―Por isso, diz: Quando ele subiu às alturas, levou

cativo o cativeiro e concedeu dons aos homens... E ele mesmo concedeu uns para apóstolos,

outros para profetas, outros para evangelistas e outros para pastores e mestres, com vistas

ao aperfeiçoamento dos santos para o desempenho do seu serviço, para a edificação do

corpo de Cristo‖ (Ef. 4:8, 11, 12). A Bíblia faz certas exigências para se pregar, ler as

Escrituras e se administrar os sacramentos no culto público. Tais elementos de culto só

devem levados a efeito por mestre ou pregador ordenados e não podem ser tratados como

atividades indiferentes da vida quotidiana. Se não há distinção entre o todo da vida e o culto

público, por que então as ordenanças públicas restringem-se apenas aos oficiais ordenados

na igreja? Se tudo na vida fosse culto, então tais regras e distinções seriam desnecessárias.

Em terceiro lugar, quando o apóstolo Paulo discute qual deve ser a conduta dos

crentes durante o culto público, ele estabelece regras que pressupõem uma clara distinção

entre o culto público e o todo da vida. Por exemplo, as mulheres podem falar num

churrasco e podem ensinar as tarefas de casa aos seus filhos, mas estão totalmente proibidas

de falar ou ensinar durante o culto público (cf. 1Co. 14:34; 1Tm. 2:12-14). Quanto à Santa

Ceia, Paulo diz aos crentes que devem se portar de modo adequado à mesa do Senhor.

Devem examinar a si mesmos e certificarem-se de têm especial consideração por seus

irmãos (1Co. 11:17-34). Os regulamentos aplicáveis aos sacramentos não se referem,

obviamente, ao piquenique local ou à partida de voleibol. Há também um decoro especial

para o culto público que é ordenado por Paulo. Os homens não devem cobrir a cabeça, mas

as mulheres sim (1Co. 11:2-16). Os homens, entretanto, podem usar bonés de beisebol no

centro esportivo. Se o todo da vida fosse culto (como afirmam alguns), e por isso o culto

não devesse ser rigidamente regulamentado pela Escritura, então as instruções inspiradas do

apóstolo Paulo quanto ao culto público seriam supérfluas.

Em quarto lugar, o termo para igreja (ekklesia) denota freqüentemente uma

sociedade de cristãos professos que constituem uma igreja local que se reúne para o culto

público num local específico (At. 5:1; 11:26; 1Co. 11:18; 16:19; Rm. 16:23; Gl. 1:2; 1Ts.

2:14; Cl. 4:15; Fm. 2; Ap. 1:11;20. etc.). Hodge escreve:

Deus ordenou que seu povo se organizasse em comunidades eclesiásticas distintas

e visíveis, com constituições, leis e oficiais, emblemas, ordenanças e disciplina,

com o grande propósito de imprimir visibilidade a Seu reino, de fazer conhecido o

evangelho desse reino e de reunir em todos os seus súditos eleitos.74

A igreja neotestamentária reunia-se para o culto público no dia do Senhor (At. 2:1;

20:7; 1Co. 14:23, 26, 34, 35; 16:1, 2). O culto público no dia do Senhor foi ordenando por

Deus (Lv. 23:3; Hb. 10:24-45). É um período de tempo separado da vida quotidiana. O

culto público consiste de certos elementos que são autorizados pelas Escrituras (Dt. 31:9-

13; Nm. 8:7-8; 13:1; 1Ts. 5:27; Cl. 4:16; 1Tm. 4:13); oração (At. 4:31; 1Co. 11:13-15);

pregação a partir da Bíblia (At. 17:13; 20:8; 1Co. 14:28; 1Tm. 4:13; 2Tm. 4:2); a

administração dos sacramentos (Mt. 28:19; 1Co. 11:18-34) e o cântico de salmos (1Cr.

16:9; Sl. 95:1-2; 105:2; 1Co. 14:26; Ef. 5:19; Cl. 3:16). Seria obviamente inadequado tratar

o culto público prestado pela igreja da mesma maneira que as áreas da vida que são

indiferentes ou adiafóricas.

Em quinto lugar a Bíblia ensina que há uma presença especial de Deus no culto

público. Num sentido especial Cristo está falando ao povo da Sua aliança através da palavra

74

A. A. Hodge, The Confession of Faith (Carlisle, PA: Banner of Truth, 1958 [1869]), 312.

Page 50: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

pregada. O povo como comunidade da aliança responde à Palavra de Deus com oração e

louvor. A confissão de pecados a Deus inclui tanto os pecados individuais quanto os

corporativos. Quando a congregação participa da Ceia do Senhor (o pão e o vinho) como

um único corpo, uma bênção especial é recebida de nosso Senhor. Entretanto o participar

indignamente da Ceia (e.g., quando se despreza a assembléia da congregação reunida, etc.)

envolve sanções pactuais e até mesmo a morte (1Co. 11:27-34). Os casos de sérios pecados

públicos e excomunhões devem ser anunciados durante o culto público onde Cristo está

presente em Sua corte (Mt. 18:20), onde o excomungado é entregue a Satanás pelo poder de

Cristo (1Co. 5:4). A congregação não apenas recebe uma bênção especial pelos meios

públicos de graça e presença única de Deus, mas Deus é mais glorificado quando é louvado

pela assembléia do corpo de Cristo. Clarkson escreve:

O Senhor comprometeu-se em estar com cada um dos santos individualmente, mas

quando eles estão reunidos em culto público, todos esses compromissos

individuais estão conjuntamente unidos. O Senhor compromete-se em deixar fluir,

por assim dizer, um fio da sua presença confortadora, revigorante, para cada um

dos que o temem, mas quando muitos desses indivíduos ajuntam-se para adorar a

Deus esses diversos fios, então, combinam-se numa única torrente. Assim,

portanto, a presença de Deus, que, desfrutada em particular, é um mero regato, em

público torna-se num rio que alegra a cidade de Deus. O Senhor tem um prato para

cada alma que individualmente O serve em verdade; mas quando muitos

indivíduos se congregam, há uma grande variedade, uma confluência, uma

multidão de pratos. A presença do Senhor no culto público torna-o um banquete

espiritual. Assim expressa-se Isaías 25:6. Vê-se que há mais da presença de Deus

no culto público, logo, deve-se preferir o culto público ao particular.75

Não deve surpreender que Deus esteja, de modo especial, presente no culto

público, porque na terra nada se parece mais com a sala do trono de Deus no céu do que o

culto público. O céu é descrito na Escritura como um lugar de culto público contínuo onde

uma hoste inumerável de anjos e santos contemplam a face de Deus e do Cordeiro (Ap. 1:9-

12). ―As incontáveis hostes de anjos, e a igreja dos primogênitos, perfazem uma única

assembléia universal na Jerusalém celeste, Hb. 12:22, 23. São uma congregação gloriosa, e

assim juntamente cantam louvores ao que está assentado no trono, e os louvores do

Cordeiro, e continuam nesse culto público eternamente‖.76

Dizer que tudo na vida é culto e que o culto público, portanto, não está

estritamente regulamentado pela Palavra de Deus é o mesmo que comparar a Ceia do

Senhor com o que é comum ou profano.

A assembléia pública é um ajuntamento, um momento e um lugar para que Deus

se encontre diretamente com o Seu povo. Ele dá a conhecer a lei, e eles, em

retorno, o bendizem (...) O culto é algo especial e de natureza dialogal. É também

explicitamente ordenado. O fato de estar na presença de Deus significa que existe

não apenas princípios gerais a serem obedecidos, mas que os próprios elementos

do ato de culto foram escritos de antemão.77

75

David Clarkson, 3. 76

Ibid., 6. 77

Frank Smith, ―What is Worship?‖ in Worship in the Presence of God, 14-15. David C. Lachman, ao refutar

o argumento do ―dom espiritual‖, faz uma importante observação que é relevante à nossa discussão: ―Muita

ingenuidade é exercida na tentativa de se justificar várias práticas de culto. Muitos têm até argumentado que a

música é um dom espiritual, pretextando que a lista dos dons espirituais na Escritura não é exaustiva, mas

Page 51: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

3. Argumento de que “O Princípio Regulador do Culto Aplica-se apenas ao Templo”.

Um outro argumento popular contra o princípio regulador do culto baseia-se na

idéia de que o princípio regulador aplicava-se apenas ao culto no tabernáculo e no templo.

Esta idéia baseia-se no contexto da citação clássica do princípio regulador, Dt. 12:32, e na

noção de que Deus era muito exigente com o culto do tabernáculo/templo apenas porque o

serviço do templo tipificava a pessoa e a obra de Jesus Cristo. Se este argumento for aceito,

pode-se concluir que: (1) O culto descentralizado em Israel que ocorria na sinagoga não era

estritamente regulado. Em outras palavras, os israelitas podiam fazer o que bem desejassem

no culto desde que não violasse o ensinamento expresso da Escritura (esta é essencialmente

a concepção episcopal-luterana do culto aceitável); (2) O princípio regulador foi ab-rogado

com a morte de Cristo quando o Seu sacrifício perfeito tornou desnecessário o culto do

templo; (3) Portanto, a igreja da nova aliança não tem nada a ver com o princípio regulador

e tem a liberdade para criar ritos, cerimônias e dias santos conforme desejar, desde que as

invenções humanas não violem ou contradigam a Palavra de Deus.

A idéia de que o princípio regulador aplicava-se apenas ao serviço do santuário

central deve ser rejeitada por várias razões. Primeira, a noção de que Dt. 12:32, pelo fato de

ser dado numa seção que trata primariamente do tabernáculo, aplica-se apenas ao

tabernáculo é simplesmente adotada sem comprovação exegética. É-nos dito em alguma

parte do capítulo 12, ou em qualquer outro lugar em todo Velho ou Novo Testamentos, que

o princípio de acrescentar ou subtrair está limitado ao tabernáculo ou templo? Não, não nos

é dito. Mas, será que não podemos inferir do contexto que este princípio extremamente

explícito aplicava-se apenas ao tabernáculo/templo? Não. Na verdade, o contexto prova

exatamente o oposto. Conquanto é verdade que o capítulo 12 contém uma extensa

discussão sobre o santuário central (em particular sobre a necessidade de se oferecer

sacrifícios e oferendas no santuário central) o contexto de Dt. 12:32 fala também da

repressão à idolatria e ao sincretismo com o culto pagão que podem ocorrer não apenas no

tabernáculo, mas em toda a terra de Israel. Observe o contexto imediato da passagem:

Quando o SENHOR, teu Deus, eliminar de diante de ti as nações, para as quais vais

para possuí-las, e as desapossares e habitares na sua terra, guarda-te, não te enlaces

com imitá-las, após terem sido destruídas diante de ti; e que não indagues acerca

dos seus deuses, dizendo: Assim como serviram estas nações aos seus deuses, do

mesmo modo também farei eu. Não farás assim ao SENHOR, teu Deus, porque tudo

o que é abominável ao SENHOR e que ele odeia fizeram eles a seus deuses, pois até

seus filhos e suas filhas queimaram aos seus deuses. Tudo o que eu te ordeno

observarás; nada lhe acrescentarás, nem diminuirás (Dt. 12:29-32)

A passagem aplica-se não apenas ao comportamento no tabernáculo, mas às

praticas de culto em toda a terra de Israel. Se Dt. 12:32 aplicava-se apenas ao santuário

ilustrativa. Mas, geralmente, tais argumentos defendem apenas uns poucos supostos dons, incluindo

normalmente realizações como dança, teatro e até mesmo mágica. Além destas e de outras formas similares

de entretenimento, jamais alguém sugeriu que o fato de um cirurgião efetuar uma operação particularmente

difícil ou de um bombeiro hidráulico desentupir um cano seja parte do culto, por mais talentosos que sejam.

Conquanto todas essas coisas possam ser partes legítimas de nossas vidas, a Escritura não sugere em parte

alguma que Deus se agrada de qualquer uma delas quando são incluídas como parte do nosso culto. Aquilo

que em geral podemos fazer bem em nossa vida para a glória de Deus não tem, por esse motivo, qualquer

autorização oficial para que possa ser intrometido no culto a Deus‖ (―Christian Liberty and Worship‖ in ibid.,

99).

Page 52: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

central, por que razão seria ele usado como texto fundamental para suprimir a idolatria pagã

em todo o país? O culto pagão cananeu era descentralizado, com ídolos do lar, sítios

pagãos, lugares altos e bosques sagrados. Será que devemos crer que Dt. 12:32 preocupa-se

apenas com o sincretismo dentro do tabernáculo? O versículo 31 preocupa-se apenas em

suprimir o sacrifício de crianças dentro do tabernáculo? É claro que não! O contexto de Dt.

12:32 prova que ele não está restrito apenas ao tabernáculo/templo.

A segunda razão é que Dt. 12:32 não pode ser interpretado à parte de passagens

virtualmente idênticas, que afirmam sola scriptura, que se aplicam não apenas ao

tabernáculo/templo, mas à vida como um todo. As passagens de sola scriptura ensinam que

a igreja não tem autonomia ou autoridade legislativa quanto a ordenanças de doutrina, ética

ou culto. Observe as seguintes passagens: ―Nada acrescentareis à palavra que vos mando,

nem diminuireis dela, para que guardeis os mandamentos do SENHOR, vosso Deus, que eu

vos mando‖ (Dt. 4:2). ―Toda palavra de Deus é pura... Nada acrescentes às suas palavras,

para que não te repreenda, e sejas achado mentiroso‖ (Pv. 30:5-6).

Já chamamos a atenção, na nossa discussão de Dt. 4:2, que é pecaminoso para o

homem criar as suas próprias regras éticas. Os membros da igreja ficariam justamente

irados e ultrajados se seu pastor ou conselho decretasse que comer carne às sextas-feiras, ou

usar jeans, ou andar de bicicleta era agora pecaminoso e merecedor de censura eclesiástica.

Deuteronômio 4:2 também proíbe as autoridades da igreja de fazerem subtrações ou

acréscimos ao culto prescrito na Escritura. A única forma de Dt. 4:2 ser contornado pelos

opositores do princípio regulador é pretextar que o culto a Deus não é assunto prescrito da

lei, mas que pertence à esfera das coisas indiferentes (adiaforia). A idéia de que o culto a

Jeová (o dever mais sagrado e importante da igreja) é adiafórico é impossível por dois

motivos. Primeiro, a adiaforia refere-se apenas aos assuntos indiferentes que não são

ordenados nem proibidos, que não são diretamente regulados pela Escritura. O culto,

entretanto, é ordenado por Deus. Segundo, as áreas da adiaforia são opcionais. O culto não

é opcional. Deuteronômio 12:32, que é virtualmente idêntico a 4:2, é dado no contexto do

culto para enfatizar: (1) a autoridade exclusiva da Escritura sobre o culto, (2) a falta de

autoridade legislativa do povo da aliança para determinar ou criar o seu próprio culto e (3) a

necessidade de ater-se estritamente ao que diz a Palavra de Deus para evitar os acréscimos

humanos que, por causa da depravação humana herdada, levam ao sincretismo e ao pecado.

O princípio regulador é simplesmente o sola scriptura aplicado à esfera do culto. Aqueles

que aplicam Dt. 12:32 apenas ao templo, fazem-no somente porque não entendem Dt. 4:2 e

a completa aplicação da sola scriptura.

Terceira razão, a idéia de que o princípio regulador aplicava-se apenas ao templo

ignora o fato de que o culto no tabernáculo/templo continha ordenanças cerimoniais e não-

cerimoniais. O sacrifício de animais, a queima de incenso e o uso sacerdotal e levítico de

instrumentos durante o sacrifício eram cerimoniais. Mas a leitura da Escritura (1Ts. 5:27;

Cl. 4:16; 1Tm. 4:13), a oração (Mt. 6:9; 1Ts. 5:17; At. 4:31; 1Co. 11:13-15; Fp. 4:7; Tg.

1:5) e o cântico de louvor (Mt. 26:30; At. 16:25; 1Co. 14:26; Ef. 5:19; Cl. 3:16; Hb. 13:15;

Tg. 5:13) não eram cerimoniais. Tal afirmação prova-se pelo fato de que a leitura da

Escritura, a oração e o cântico de louvor são, todos eles, aspectos integrais do culto cristão

após a dissolução do templo e a ab-rogação das ordenanças cerimoniais. Por isso, é

extremamente simplista e exegeticamente falaz argumentar que o princípio regulador foi

anulado juntamente com a ordem cerimonial. Se o princípio regulador aplicava-se ao culto

do templo, então, ele regulava o culto não-cerimonial que lá ocorria.

Aqueles que argumentam que o princípio regulador aplicava-se somente ao templo

Page 53: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

e que foi, portanto, ab-rogado com a lei cerimonial, são culpados de fazerem uma antítese

total entre o culto no templo e o culto público na sinagoga/culto público cristão. Não se

pode negar que o culto no templo tipificava Cristo e Sua obra. Não se deve, entretanto,

subestimar o fato de que o templo era também um lugar de culto (Jo. 4:21) e oração (Mt.

21:13). Alguns dos elementos cruciais do culto público cristão foram praticados

primeiramente no templo. Bushell escreve:

Para o judeu do Velho Testamento o ritual do templo era a imagem viva da

adoração e todos os exercícios de piedade estavam, de uma forma ou de outra,

atrelados àquela fonte. As práticas litúrgicas na sinagoga correspondiam, em

muitos casos, diretamente às do templo. A oração, por exemplo, era oferecida na

sinagoga no mesmo momento das oferendas do templo. Fora deste lugar de culto,

a oração era sempre feita com a face voltada para o Templo, ou Jerusalém. As

sinagogas eram consideradas santuários em miniatura, a ponto de sua mobília (tais

como a arca e o candelabro de sete braços) ser calcada na do templo. Por isso,

considerando a importância do templo até mesmo para o culto fora de Jerusalém,

seria razoável postular um grau maior de continuidade entre a prática do culto

cristão e certos aspectos da liturgia do templo; uma continuidade maior do que

grande parte das autoridades está disposta a admitir. A escassez de referências na

literatura quanto à influência da liturgia do templo no culto cristão é uma situação

desequilibrada que precisa muito ser corrigida. É nossa opinião que o templo, e

não a sinagoga, é a referência final para certos aspectos mais importantes no culto

cristão. O fato de que muitos desses aspectos podem ter sido intermediados pela

sinagoga está além da questão, pelo menos até onde vai a nossa preocupação com

o assunto.78

Apesar de serem feitas certas tentativas de se limitar o princípio regulador ao templo, elas

não têm absolutamente qualquer fundamento na Escritura. O culto do templo prova em si

mesmo que o princípio regulador não pode estar restrito às ordenanças cerimoniais.

Quarta razão, há algumas passagens que aplicam o princípio regulador fora da

esfera do culto do tabernáculo/templo. Se existir na Escritura pelo menos uma palavra que

aplique o princípio regulador fora do culto do tabernáculo/templo, então a afirmativa de que

o princípio regulador aplica-se apenas ao templo cai por terra. Vamos examinar três

passagens.

1. Em Mt. 15:1-3 Jesus condenou os fariseus por acrescentarem a lavagem

ritualística, que ocorria em casa e não no templo, à lei. ―Então, vieram de Jerusalém a

Jesus alguns fariseus e escribas e perguntaram: Por que transgridem os teus discípulos a

tradição dos anciãos? Pois não lavam as mãos, quando comem. Ele, porém, lhes

respondeu: Por que transgredis vós também o mandamento de Deus, por causa da vossa

tradição?‖. Esta passagem constitui um sério problema para aqueles que ensinam que o

princípio regulador aplicava-se apenas ao templo, e que as tradições criadas pelos homens

são permitidas desde que não violem o claro ensinamento da Escritura. Onde, na Palavra de

Deus, condena-se a lavagem das mãos? Se os acréscimos humanos são permitidos na esfera

religiosa, o que poderia ser mais inocente, útil e prático do que um simples lavar de mãos?

Entretanto o nosso Senhor não apenas recusou submeter-se a esse ritual religioso criado

pelo homem como também repreendeu vigorosamente os fariseus por adicionarem uma

regra humana à Palavra de Deus. ―Lavar as mãos é algo bem apropriado; pode-se desejar

78

Michael Bushell, The Songs of Zion, 71-72.

Page 54: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

que fosse sempre praticado; mas elevá-lo à condição de ritual religioso é estultícia e

pecado‖.79

Os discípulos de Cristo foram bem treinados, pois sabiam que qualquer tradição

humana, não importa quão boa e inocente, não deve ser observada quando recebe do

homem, sem a sanção divina, status e significado religioso. ―Observe, as imposições ilegais

[tradições humanas no culto] ficarão sob a responsabilidade dos que as sustentam,

defendem, e as fazem vigorar, tanto quanto dos que primeiramente as inventaram e delas

gozaram‖.80

―A antiguidade e os Pais [da Igreja] sem a Escritura são a velha cartilha dos

supersticiosos formalistas... Daqui aprende-se que Deus em sabedoria põe em discussão as

cerimônias dos homens para que sejam refutadas e condenadas...‖81

Jesus é um ardente defensor do princípio regulador. Ele rejeita a mais inofensiva

das tradições religiosas e mostra-nos também como as tradições e leis humanas desviam e,

portanto, invalidam a sentença sobre aquilo que Deus condenou. Rutherford escreve:

Os fariseus criticaram quando viram alguns dos discípulos comendo pão com as

mãos sem lavar. Exigia-se a justificativa para a omissão de um ritual exterior,

visível aos olhos. Essas tradições, entretanto, não são condenadas por Cristo por

serem contrárias à Palavra de Deus ou por serem ímpias, mas por não serem

ordenadas. Eles não acusavam os discípulos de Cristo da impiedade de qualquer

sentimento perverso quanto a essas tradições, ou de crítica íntima ao ritual

religioso de lavar as mãos, nem disputavam com eles sobre se as tradições dos

anciãos deveriam, ou não, ser estimadas como a essência e a totalidade de todas as

religiões, como disse Vasquez*, mas altercavam tão somente sobre a concordância

externa em seguir, ou não seguir, a tradição dos anciãos, como está mais do que

claro no texto. Cristo, na verdade, desaprovou o fato de terem maior consideração

às tradições dos homens do que aos mandamentos de Deus, como os papistas e os

formalistas o fazem; mas não era esse o ponto em questão entre os discípulos de

Cristo e os fariseus. Cristo rejeita tais tradições com o argumento da falta de um

Autor legal, quando as chama de preceitos de homens em oposição aos

mandamentos de Deus.82

As pessoas que se opõem ao princípio regulador tentam, freqüentemente,

contornar a importância óbvia dessas passagens apelando para o contexto. Dizem que o

exemplo apresentado por Cristo nos versículos 4 e 5 (de alguém que segue a tradição para

esquivar-se de sustentar seus pais na velhice) nos informa que Cristo tinha na mente apenas

as tradições negativas, isto é, as tradições que anulavam, abandonavam ou contradiziam à

Palavra de Deus. O problema dessa interpretação é que ela ignora completamente o

versículo 2, o confronto original que resultou na respostas de Jesus nos versículos de 3 a 9.

Jesus exemplifica por que é errado acrescentar exigências humanas à Palavra de Deus. Elas

terminam por suplantar a Palavra de Deus. (Quem conhece o judaísmo ou a história da

igreja sabe que o ensinamento de nosso Senhor é verdadeiro). O fato de Cristo dar tal

exemplo não minimiza jamais o verso 2, onde a mais inocente e aparentemente inofensiva

das tradições humanas (lavar as mãos) é considerada totalmente imprópria. Como é que o

79

Charles Haddon Spurgeon, The Gospel of Matthew (Grand Rapids: Revell, 1987), 201. 80

Matthew Henry, Commentary (McLean, VA: MacDonald, s.d.), 5:210-211. 81

David Dickson, Mathew (Carlisle, PA: Banner of Truth, 1987 [1647]), 207. * Gabriel Vasquez (1549-1604). Filósofo e teólogo jesuíta, também conhecido como ―Bellomontanus‖. Sua

obra mais importante é Commentari ac Disputationes sobre a Summa Theologica de Tomás de Aquino. 82

Samuel Rutherford, The Divine Right of Church Government and Excommunication (London: John Field,

1647), 138.

Page 55: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

fato de alguém lavar as mãos pode contradizer, violar, ou pôr de lado a Palavra de Deus?

Jesus condena os fariseus por presumirem (ao contrário da Palavra de Deus) que os líderes

religiosos têm autoridade legislativa na igreja. Quando tais líderes atribuem a si mesmos a

autoridade de inventarem doutrinas ou mandamentos, o resultado final é decadência e

mesmo apostasia. Observe que nos versículo 9 Jesus condena claramente todas as doutrinas

e mandamentos humanos na religião. ―E em vão me adoram, ensinando doutrinas que são

preceitos de homens‖ (Mt. 15:9; cf. Is. 29:13).

Além disso, a passagem paralela de Marcos 7 põe termo ao assunto definindo-o,

porque nessa narrativa Jesus identifica explicitamente as tradições que Ele condena, como

inclusive as lavagens religiosas.83

―Respondeu-lhes: Bem profetizou Isaías a respeito de

vós, hipócritas, como está escrito: Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração

está longe de mim. Em vão, porém, me honram, ensinando doutrinas que são mandamentos

de homens. Porque, deixando o mandamento de Deus, retendes a tradição dos homens,

como o lavar dos jarros e dos copos, e fazeis muitas outras coisas semelhantes a estas. E

dizia-lhes: Bem invalidais o mandamento de Deus para guardardes a vossa tradição‖ (Mc.

7:6-9). ―É tão fácil destruir a autoridade da Palavra de Deus pelo acréscimo quanto o é pela

subtração, tanto soterrando-a sob as invenções humanas quanto negando a sua verdade. A

Bíblia toda, e nada a não ser a Bíblia, tem de ser a nossa regra de fé — sem acréscimos ou

amputações‖.84

O nosso Senhor não só condena as tradições humanas negativas, más ou

contraditórias, mas a todas elas sem exceção. Spurgeon escreve:

A religião baseada na autoridade humana é inútil; devemos adorar ao verdadeiro

Deus da maneira que Ele mesmo determina, ou não estaremos adorando-O jamais.

Doutrinas e mandamentos só devem ser aceitos quando têm a sustentação da

Palavra, e só por esta razão é que serão aceitos. A forma mais meticulosa de

devoção será vã adoração, se for regulamentada por ordenanças humanas à parte

dos próprios mandamentos de Deus.85

83

A segunda metade do versículo 8, que começa com ―o lavar dos‖, não foi incluída nas edições críticas

modernas do Novo Testamento grego (e.g., 3a. edição do Novo Testamento Grego das Sociedades Bíblicas

Unidas; 26a. edição do Novo Testamento Grego Nestle-Aland). A maioria das traduções modernas em inglês

(ASV, RSV, NASB, NEB, JB, NIV) refletem a crítica textual moderna deixando fora a segunda metade do

versículo 8 [Em português o mesmo ocorre com ARA2, NVI e BLH]. A versão ampliada do versículo 8

encontra-se no Textus Receptus (ou Texto Recebido) e no Texto Majoritário (ou bizantino/texto tradicional).

As versões KJV (Versão do Rei Tiago) e NKJV (Nova Versão do Rei Tiago) têm por base o Textus Receptus.

Em síntese, as edições críticas do Novo Testamento grego (em que estão baseadas virtualmente todas as

traduções modernas) dependem primariamente de uns poucos manuscritos mais antigos que foram

descobertos principalmente entre o final do século XIX e começo do século XX (e.g., o Codex Vaticanus e o

Codex Sinaiticus). Os textos majoritários não são tão antigos quanto os utilizados nas edições críticas, mas

são bem mais numerosos e são usados pela igreja de Cristo aproximadamente desde os primórdios do quinto

século, no mínimo. O conhecimento erudito moderno dos textos majoritários (i.é, a arqueologia, a verificação

de várias versões de papiros mais antigos, versões e citações dos primitivos pais da igreja [e.g., por exemplo,

o polêmico texto final de Marcos foi aceito como canônico lá pelo segundo século d.C.]), sérios problemas

com as pressuposições e metodologia dos primeiros mestres da crítica, como Wescott e Hort, e as grandes

diferenças entre os manuscritos Vaticanus e Sinaiticus, fizeram muitos cristãos apontarem de volta o Texto

Majoritário como superior ao texto da crítica moderna. Este autor considera que as versões da KJV e da

NKJV para Marcos 7:8 refletem as verdadeiras palavras de Jesus. Entretanto, a aceitação do princípio

regulador não depende da aceitação da versão do Texto Majoritário para Marcos 7:8. 84

J. C. Ryle, Expository Thoughts on the Gospels: Mark (Wheaton, IL: Crossway Books, 1993), 101-102.

Não obstante sejam verdadeiros seus comentários sobre Marcos, citados acima, Ryle (1816-1900) foi ministro

anglicano e bispo (de Liverpool) e, portanto, não adotava o princípio regulador. 85

Spurgeon, Matthew, 203.

Page 56: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

Após um breve exame do ensinamento de Cristo no contexto só se pode concluir

que o argumento de que nosso Senhor está condenando apenas certas tradições religiosas

perniciosas, e não a toda e qualquer tradição humana, é eisegesis da pior qualidade.

A tentativa de se burlar passagens que provam o princípio regulador, como Mateus

15:2-9, não são novas, mas são (de forma geral) reedições de antigos argumentos papistas e

de lideranças eclesiásticas há muito rejeitados pelas igrejas reformadas. Observe as palavras

de Zacarias Ursinus (escritas na década de 1570 e publicadas pela primeira vez na década

de 1580):

Alguns há que se opõem ao que dissemos aqui, afirmando, como apoio à pretensa

religiosidade, que as passagens que citamos condenando-a referem-se apenas às

cerimônias instituídas por Moisés e aos mandamentos humanos ilegítimos que não

fazem parte do culto a Deus, e não aos preceitos sancionados pela igreja, e bispos

que nada ordenam contrário à Palavra de Deus. Mas a falsidade deste argumento

pode ser provada por certas declarações, análogas às passagens da Escritura que

citamos, que também rejeitam àquelas leis humanas, que, em sua própria

autoridade, nada prescrevem com referência ao culto divino que Deus não tenha

ordenado, embora, em si mesma, a coisa não seja pecaminosa nem proibida por

Deus. Embora não fosse pecaminosa em si mesma, Cristo rejeita a tradição dos

judeus quanto ao lavar as mãos, pois associavam a ela a idéia de culto divino,

dizendo assim: ―Não é o que entra pela boca o que contamina o homem, mas o

que sai da boca, isto, sim, contamina o homem‖ e ―Ai de vós, escribas e fariseus,

hipócritas, porque limpais o exterior do copo e do prato, mas estes, por dentro,

estão cheios de rapina e intemperança!‖ (Mt. 15:11; 23:25). O mesmo se aplica ao

celibato e à discriminação entre dias e tipos de carnes, ao que Ele chama de

―doutrinas de demônios‖, embora sejam intrinsecamente legítimas ao piedoso,

como Ele ensina noutra parte. Por isso, aquelas coisas que são em si mesmas

indiferentes, que não são ordenadas nem proibidas por Deus, se forem prescritas e

realizadas como culto a Deus, ou se delas se supor que Deus seja honrado quando

as executamos e desonrado quando as negligenciamos, é claramente manifesto que

a Escritura as condena, nestas e em outras referências.86

2. Outra passagem da Escritura que desaprova a teoria do ―apenas ao templo‖ é Cl.

2:20-23: ―Se morrestes com Cristo para os rudimentos do mundo, por que, como se

vivêsseis no mundo, vos sujeitais a ordenanças: não manuseies isto, não proves aquilo, não

toques aquiloutro, segundo os preceitos e doutrinas dos homens? Pois que todas estas

coisas, com o uso, se destroem. Tais coisas, com efeito, têm aparência de sabedoria, como

culto de si mesmo, e de falsa humildade, e de rigor ascético; todavia, não têm valor algum

contra a sensualidade‖. O apóstolo Paulo, escrevendo sob a inspiração do Espírito Santo,

vários anos após o princípio regulador ter sido supostamente abolido, impôs rigorosamente

o princípio regulador.

Paulo diz que qualquer adição ao que Deus ordenou ou autorizou é religião auto-

imposta, ou como diz a versão do rei Tiago, ―culto da vontade‖ [ou ―culto de si mesmo‖,

ARA2

ou ―pretensa religiosidade‖, NVI]. A palavra grega usada por Paulo (ethelothreskeia)

significa culto que se origina da própria vontade do homem. ―Este não é o culto ordenado

por Deus, mas que brota da própria ingenuidade do homem — devoção não autorizada... O

86

Zacarias Ursinus, Commentary on the Heidelberg Catechism (Phillipsburg, NJ: Presbyterian and Reformed,

s.d. [de uma edição de 1852]), 518-519.

Page 57: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

referido culto não é solicitado nem aceito. É superstição...‖87

O essencial é que essas ordenanças são formas de culto ou de ato religioso

escolhidos pelo homem, conforme a vontade do homem, não significa escolhidos

por Deus. Este é o cerne do culto corrupto: quando os homens procuram

estabelecer as suas próprias formas de culto. Podemos chamá-lo de culto tipo

livre-escolha, pois os advogados do culto feito pelo homem alegam que o homem

tem o direito (ou a liberdade) de instituir meios aceitáveis para adorar a Deus.88

Paulo diz que fazer acréscimos à Palavra de Deus é uma demonstração de falsa

humildade. Será que o homem é capaz de melhorar a adoração e o ato de culto que Deus

instituiu? É o ápice da arrogância e da estupidez pensar que o homem pecador pode

melhorar as ordenanças de Deus. ―É provocar a Deus, pois isso recai sobre a Sua honra,

como se Ele não fosse sábio o suficiente para determinar o modo do Seu próprio culto. Ele

odeia todo fogo estranho oferecido em Seu templo. Lv. 10:11. Uma cerimônia [qualquer]

pode a um tempo [qualquer] levar a um crucifixo. Aqueles que defendem o uso do sinal da

cruz no batismo, por que não defendem também o óleo, o sal e o creme?‖89

Como diz

Paulo: a regras e regulamentos feitos pelo homem ―não têm valor algum‖ para o que crer

(Cl. 2:23).

Os oponentes do princípio regulador tentam contornar o ensinamento de

Colossenses de modo semelhante à passagem de Mt. 15:2ss. Eles pretendem que Paulo não

está condenando a todas as tradições humanas, mas que só está preocupado com a

eliminação de certos tipos de ascetismo. Em outras palavras, é errado criar regras que

proíbam comer carne e outros alimentos, mas é inteiramente aceitável inventar práticas de

culto, dias santos e rituais.

Há uma série de razões pelas quais a condenação de Paulo aos preceitos humanos

não pode estar limitada a certas práticas ascéticas. Primeira, o amplo contexto da passagem

indica que Paulo rejeita enfaticamente todas as tradições humanas na esfera religiosa, e não

meramente leis dietéticas ascéticas. O provável problema na igreja de Colossos era a

influência de uma forma primitiva de ascetismo gnóstico. Paulo, no capítulo 2, condena

enfaticamente o legalismo gnóstico. Entretanto, ao condenar esta filosofia em particular, e

ao falso sistema ético que dela deriva, Paulo condena todas as formas de filosofia não-cristã

e todo culto e ética fundamentados na filosofia e tradição de homens. Nesta epístola, Paulo

primeiro aponta Jesus Cristo aos colossenses. Os crentes colossenses precisam trazer à

memória que Cristo é preeminente (1:18); que em Cristo, que é o Cabeça de todos, eles

estão completos (2:10); que alguns não têm se mantido fiéis à Cabeça (2:19); que em Cristo

estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento (2:3). Cristo, sozinho, é

Rei e Cabeça da igreja. Somente Ele é a nossa santificação. Somente através de Cristo e da

Sua palavra-lei procede justa doutrina, propósito e ética. Por isso Paulo escreve: ―Cuidado

que ninguém vos venha a enredar com sua filosofia e vãs sutilezas, conforme a tradição

dos homens, conforme os rudimentos do mundo e não segundo Cristo‖ (Cl. 2:8). Calvino

escreve:

Conforme a tradição dos homens. Ele [Paulo] aponta mais precisamente qual é o

tipo de filosofia que reprova, e ao mesmo tempo condena-a duplamente como

87

John Eadie, Commentary on the Greek Text of the Epistle of Paul to the Colossians (Grand Rapids: Baker,

1979 [1884]), 199-200. 88

Kevin Reed, Biblical Worship (Dallas: Presbyterian Heritage, 1995), 56. 89

Thomas Watson, The Ten Commandments (Edinburgh: Banner of Truth, 1986 [1692]), 63.

Page 58: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

inútil: porque não é segundo Cristo, mas conforme as inclinações dos homens; e

porque consiste dos rudimentos do mundo. Note, entretanto, que ele opõe Cristo

aos rudimentos do mundo, e igualmente, às tradições dos homens; com isso, o que

ele quer dizer realmente é que, qualquer coisa produzida pela imaginação do

homem não está de acordo com Cristo, a quem o Pai designou como nosso único

mestre, para que Ele nos guarde na simplicidade do Seu evangelho, que se

corrompe até mesmo pela menor partícula do fermento das tradições humanas. Ele

também quer dizer que são estranhas a Cristo todas as doutrinas que tornam o

culto a Deus — que, segundo a lei de Cristo, sabemos ser espiritual — em

rudimentos do mundo, e que, como tais, escravizam as mentes dos homens com

ninharias e frivolidades, ao passo que Cristo chama-nos diretamente para Ele.90

É universal, a condenação de Paulo à filosofia conforme as tradições dos homens.

Não se pode argumentar que, nessa passagem, Paulo condena apenas o ascetismo gnóstico

e não condene as filosofias de Kant, Hegel, Schleiermacher, Marx e Dewey. Para Paulo não

existe neutralidade filosófica ou ética. Uma doutrina ou prática ou está, ou não está, em

concordância com Cristo. E se não estiver, ela procede, então, da imaginação autônoma do

homem e é (segundo Paulo) uma tradição de homens. Por isso, quando em 2:20-23 Paulo

condena os preceitos humanos, ele usa a mesma linguagem universal. No versículo 20

Paulo pergunta àqueles que estão em erro em Colossos o seguinte (numa paráfrase): ―Por

que é que vocês agem como pessoas perdidas que continuam a viver sob uma visão pagã e

sujeitando-se assim a preceitos humanos?‖. E então, no versículo 21, Paulo dá exemplos

específicos. Seriam os preceitos humanos, mencionados no versículo 21, as únicas tradições

humanas que Paulo proíbe? Não. Por causa da condenação universal da filosofia e tradição

humanas, que tanto precedem quanto sucedem o versículo 21, os preceitos humanos desse

versículo devem ser vistos como uns poucos exemplos tirados da categoria universal das

filosofias e tradições humanas. Não há como limitar a assertiva de Paulo no versículo 22 —

―segundo os preceitos e doutrinas dos homens‖ — apenas aos preceitos do ascetismo

gnóstico, tanto quanto a condenação da filosofia humana no versículo 8 não pode ser

restrita a uma única comunidade grega. Além disso, a declaração do versículo 22, ―segundo

os preceitos e doutrinas dos homens‖, espelha a condenação às tradições judaicas quanto a

doutrina e a ética encontradas em Is. 19:13 e Mt. 15:2-9. A Bíblia condena os acréscimos e

os preceitos criados pelo homem, na doutrina, na ética e no culto, sejam eles judaicos,

gregos, persas, romanos, alemães, ingleses ou americanos.

Segundo, a interpretação que diz que Paulo proíbe o acréscimo de algumas

filosofias e tradições humanas à doutrina, ética e culto da igreja, mas permite outras

tradições humanas, viola o padrão ortodoxo dos métodos de interpretação protestante. Um

estudo tanto do Velho quanto do Novo Testamentos prova, sem qualquer sombra de dúvida,

que Deus proíbe acréscimos ou subtrações à doutrina, ética e culto estabelecidos na divina

revelação (Dt. 4:2; 12:32; Pv. 30:6; Gn. 4:3-5; Lv. 10:1-2; 2Sm. 6:3-7; 1Cr. 15:13-15; Jr.

7:24,31; 19:5; Is. 29:13; Nm. 15:39-40; Mt. 15:2-9; Jo. 4:24; Ap. 2:18, 19; etc.). Essa

afirmação é simplesmente o entendimento confessional reformado de sola scriptura que

tem sido discutido nas partes anteriores desse estudo. A tentativa de fazer de Paulo um bom

episcopal, luterano, ou católico, quanto às tradições humanas, envolve a ignorância

proposital de todo o ensinamento da Escritura. O coração do homem é tão enganoso que,

pelo auto-engano e sutilezas da razão humana, ele cria onde não existe brecha para a

90

John Calvin, Commentary on the Epistle to the Colossians (Grand Rapids: Baker, 1981), 181.

Page 59: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

autonomia humana. Por isso, a nossa única esperança em manter a pureza na doutrina, na

ética e no culto está em adotar e obedecer estritamente aos mandamentos de Deus sem se

desviar para direita ou esquerda.

3. Uma outra passagem que desaprova a teoria do ―apenas ao templo‖ é Jo. 4:21-

24: ―Disse-lhe Jesus: Mulher, podes crer-me que a hora vem, quando nem neste monte,

nem em Jerusalém adorareis o Pai. Vós adorais o que não conheceis; nós adoramos o que

conhecemos, porque a salvação vem dos judeus. Mas vem a hora e já chegou, em que os

verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade; porque são estes que o Pai

procura para seus adoradores. Deus é espírito; e importa que os seus adoradores o adorem

em espírito e em verdade‖. Quando Jesus discutiu sobre adoração com a mulher samaritana

e contrastou o culto da velha aliança com o da nova, Ele ensinou que em ambas as

dispensações o culto deveria ser realizado sob os mesmos princípios. Observe a frase: ―mas

vem a hora e já chegou‖ (v. 23). Embora a morte de Cristo tenha eliminado todos os

aspectos e cerimônias típicas do culto da velha aliança, a necessidade de adorar a Deus ―em

espírito e em verdade‖ não era um princípio novo, pois já vigorava quando Jesus disse essas

palavras. Segundo Jesus, Deus deve ser adorado em espírito e em verdade, não porque o

templo represente a Cristo e ao evangelho, mas devido à natureza e ao caráter de Deus.

Bushell escreve:

O Espírito, que é a fonte da vida eterna, precisa ser também a fonte da verdadeira

adoração. Se admitirmos que o Espírito apenas opera em e através da Sua Palavra,

tal princípio tem por justa inferência que todo o culto verdadeiro deve estar

fundamentado nas Sagradas Escrituras... O culto aceitável precisa ser conforme o

caráter de Deus, como nos está revelado nas Escrituras, e em conformidade com

tal e suficiente regra, em todos os seus aspectos. Somente o culto que procede em

última instância do Espírito através da Sua Palavra é agradável a Deus.91

Essa passagem da Escritura refuta por si mesma a idéia de que o princípio

regulador aplicava-se apenas ao templo, porque quando Jesus começa essa discussão, fica

claro que Ele falava do culto no templo em Jerusalém (v. 21). Portanto, quando Ele diz que

o mesmo princípio de adoração ―em espírito e em verdade‖, que está em vigor agora na era

da velha aliança, estará também em vigor na era da nova aliança, Ele está ligando à igreja

da nova aliança o rígido princípio de adoração que regulamentava o templo. Se os crentes

tanto da velha quanto da nova aliança querem adorar adequadamente a Deus, eles só podem

fazê-lo em conformidade com a Sua natureza e caráter. E a única forma de aproximar-se de

Deus num modo que O agrade é achegar-se a Ele nos Seus próprios termos conforme as

Sua próprias regras. Isso significa que o culto tem de ser prescrito pela Escritura e não por

homens pecadores. Deus que é em si mesmo a verdade tem de ser adorado conforme a

verdade e não segundo a imaginação do homem. O Catecismo Maior de Westminster diz:

―Os pecados proibidos no segundo mandamento são: o estabelecer, aconselhar, mandar,

usar e aprovar de qualquer maneira qualquer culto religioso não instituído por Deus

mesmo...‖ (Catecismo Maior de Westminster, resposta 109). A idéia de que o princípio

regulador aplicava-se apenas ao culto do tabernáculo/templo não tem respaldo bíblico,

contradiz o óbvio ensino da Escritura e, portanto, tem de ser rejeitado.

4. O Argumento das “Circunstâncias do Culto”

Um método comum de se evitar a implicação total do sola scriptura na esfera do

91

Michael Bushell, The Songs of Zion, 149, 151-152.

Page 60: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

culto é confundir e turvar a distinção entre as ordenanças e as circunstâncias do culto. A

declaração da Confissão de Westminster quanto às circunstâncias do culto (i.vi) é sempre

utilizada como justificativa para se introduzir inovações e tradições humanas no culto

público a Deus. Escreve um oponente do princípio regulador:

Estamos aqui insistindo simplesmente que a admissão da Confissão de

Westminster quanto às ―circunstâncias‖ do culto (de que ―há algumas

circunstâncias, quanto ao culto de Deus e ao governo da Igreja, comuns a ações e

sociedades humanas, as quais têm de ser ordenadas pela luz da natureza e pela

prudência cristã, segundo as regras da Palavra, que sempre devem ser

observadas‖) é, na verdade, uma declaração muito, mas muito, mais compreensiva

da vontade de Deus para o culto da Nova Ordem do que se reconhece em alguns

redutos.91

É comum aos oponentes do princípio regulador (e aos que dizem adotá-lo, mas que

recusam-se a aplicá-lo a certas áreas do culto por amarem as tradições humanas)

acrescentarem inovações e tradições humanas no culto a Deus, e então declarar

arbitrariamente que são circunstâncias do culto. Essa tática, que conduz à corrupção do

culto, é simplesmente uma versão mais sofisticada e atualizada da noção luterana de que os

seus acréscimos pertencem todos à esfera da adiaforia. Este método de burlar o princípio

regulador não é um ataque frontal ao sola scriptura no que concerne ao culto, antes, pelo

contrário, é uma saída pela tangente ou pela porta dos fundos no que se refere ao princípio

regulador. Nas denominações que adotam as confissões reformadas (adotando assim

oficialmente o princípio regulador), que, entretanto, desviaram-se e apartaram-se do culto

bíblico, os apologistas da decadência e do status quo desenvolveram alguns astutos

argumentos não-bíblicos. Alguns exemplos populares de tais argumentos são os seguintes:

1. Alguns dizem que cantar não é um elemento separado do culto, mas meramente

uma circunstância do culto. Bahnsen escreve: ―Cantar é um ‗elemento‘ separado do culto

ou uma ‗circunstância‘ do culto? Se for este último, não necessita de sanção bíblica,

segundo o princípio regulador. Tenho defendido que cantar é simplesmente um meio para

(uma circunstância através da qual) orar, louvar, exortar, ou ensinar — e não um elemento

de culto em si mesmo‖.92

O que Bahnsen está dizendo é que o mandamento geral para

91

Steven Schlissel, ―All I Need to Know About Worship I Don‘t Learn From the Regulative Principle‖ (Part

IV) in Messiah’s Mandate. 92

Greg Bahnsen, ―Exclusive Psalmody‖ in Antithesis 1:2 (Março-Abril, 1990), 51. O argumento de que cantar

não é um elemento separado do culto foi popularizado por Vern S. Poythress, professor do Seminário

Teológico Westminster e ministro da PCA (Igreja Presbiteriana na América). Em 1974 ele escreve:

―Consideramos ensinar-pelo-cântico e ensinar-em-sentido-restrito, como simplesmente duas maneiras de

ensinar, cada uma particularmente eficaz em atender certas necessidades e em expressar certos aspectos da

doutrina cristã. Ambas têm suas vantagens e limitações, devido à natureza do meio de expressão. Desafiamos

[os defensores] da salmodia exclusiva a provarem pela Escritura, e não pela suposição, que ensinar pelo

cântico e proclamar são ‗dois elementos separados de culto‘. A nós, eles nos parecem tão mais ‗separados‘ do

que pregar a uma audiência visível em contraste com pregar pelo rádio‖ (―Ezra 3, Union with Christ and

Exclusive Psalmody‖, Westminster Theological Journal 37 (1974/1975), 225-226). A expressão mais recente

desse argumento vem da pena de John M. Frame: ―Mesmo se aceitarmos a divisão do culto em elementos,

não é plausível argumentar que o cântico é um elemento de culto independente de todos os outros. Como

dissemos no capítulo precedente, o cântico não é um elemento independente, mas, ao contrário, uma maneira

de fazer outras coisas. É um modo de orar, de ensinar, de confessar, etc. Por isso, quando aplicamos o

princípio regulador nos assuntos do cântico, não devemos perguntar especificamente que palavras a Escritura

nos ordena cantar, mas, que palavras a Escritura nos ordena utilizar no ensino, na oração, na confissão, etc‖.

Page 61: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

louvar a Deus é um elemento de culto, mas o modo como esta ordem para louvar é

executada é uma mera circunstância do culto. Assim, alguém pode louvar a Deus cantando,

ou meditando em silêncio, ou falando, ou mesmo através da arte dramática ou dança, pois

as circunstâncias de culto não estão regulamentadas rigidamente pela Palavra de Deus.

2. Muitos argumentam que o acompanhamento musical do louvor no culto público

é uma circunstância do culto. O teólogo John Frame dá um exemplo típico desse

argumento. Ele escreve:

As igrejas da tradição pactuante, como a Igreja Presbiteriana Reformada da

América do Norte, justificam muitas vezes o uso do diapasão de sopro como

―circunstância‖, não obstante rejeitam o uso de órgãos e pianos como ―elementos‖

não autorizados. A lógica para tal diferença me escapa. Se é legítimo usar um

diapasão de sopro para dar à congregação a primeira nota de um cântico, por que

não deveríamos ajudar à congregação dando-lhe a segunda nota, a terceira, e o

ritmo?93

Outros indicam que o uso de instrumentos musicais no culto é ―comum às ações e

sociedades humanas‖. Portanto (argumentam eles) isso deve ser uma circunstância de culto.

3. Muitos pastores e Conselhos em denominações reformadas ou presbiterianas

que têm cultos especiais de Natal e Páscoa, embora compreendam que tais atos de culto não

têm respaldo na Palavra de Deus, argumentam que a escolha de um texto para sermão é

uma circunstância de culto. Portanto, é totalmente permissível (como circunstância de

culto) que o pastor pregue sobre a encarnação em ou perto de 25 de dezembro. Assim,

portanto, podem-se encontrar muitas igrejas presbiterianas seguindo um calendário

eclesiástico católico ou anglicano com a desculpa de que fazer isso é uma mera

circunstância de culto.94

Para se combater os argumentos que tentam lograr a autoridade exclusiva da

Escritura em autorizar os elementos do culto, faz-se necessário considerar brevemente as

diferenças que há entre as circunstâncias e as ordenanças do culto. A primeira diferença é

que as ordenanças do culto são prescritas ou determinadas pela Escritura. Cada parte ou

elemento de culto tem de se basear ou numa ordenança bíblica explícita (e.g., ―fazei isto em

memória de mim‖ — Lc. 22:19); ou num comprovado exemplo histórico da Escritura (e.g.,

(Worship in Spirit and Truth: A Refreshing Study of Principle and Practice of Biblical Worship (Phillipsburg,

NJ: Presbyterian and Reformed, 1996), 124. 93

John Frame, Worship in Spirit and Truth, 62, nota de rodapé 1. 94

Se um pastor estiver pregando em determinado livro da Bíblia e no curso natural da sua exposição chegar a

uma passagem sobre o nascimento ou a encarnação de Cristo em ou próximo a 25 de dezembro, então a

escolha do texto é uma circunstância de culto, ao mudar deliberadamente o tema para a encarnação ou

nascimento de Cristo em ou próximo a 25 de dezembro, ele, então, levou em consideração um dia santo extra-

bíblico e está usando a circunstância da seleção de um texto como desculpa. Algumas das razões que os

crentes reformados dão para não celebrarem o Natal são: (1) A Bíblia só autorizou o Dia do Senhor, ou

sábado cristão, como dia santificado especial. Os crentes devem celebrar nele a obra completa da redenção.

(2) Jesus Cristo não nasceu em 25 de dezembro e por isso o Natal é uma mentira. O nosso Senhor nasceu no

término do ano. (3) É imoral para os cristãos sincretizarem o culto bíblico com paganismo e catolicismo. Os

crentes não devem ter qualquer participação com os resquícios do paganismo ou com as quinquilharias do

Anticristo. (4) A Bíblia diz ao povo de Deus: ―Não ameis o mundo nem as coisas que há no mundo‖ (1Jo.

2:15). O Natal foi uma invenção de pagãos consumados e romanistas apóstatas. É amado e admirado pelos

pagãos (sodomitas, assassinos, pedófilos, Hollywood, etc.) em todo o mundo como um ―dia santo‖ especial.

Portanto, é anticristão e deveria ser deliberadamente evitado por todos os crentes.

Page 62: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

a mudança do culto corporativo do sétimo para o primeiro dia da semana);95

ou pela

inferência lógica retirada da Bíblia (i.é, pode não haver um mandamento explícito mas

quando diversas passagens são comparadas elas ensinam ou inferem uma prática bíblica).96

Como esses elementos precisam ser comprovados pela Bíblia, eles são, portanto, de número

finito; e como o cânon da Escritura está fechado, esses elementos são fixos e imutáveis. As

circunstâncias do culto não são determinadas a partir da Bíblia. Embora se requeira o culto

público no dia do Senhor (o sábado cristão), a hora da reunião não está prescrita. Outras

circunstâncias de culto são: o tipo do edifício onde ocorre da reunião; o tipo de assento; a

localização da casa de reunião; a seleção de salmos específicos; a escolha do texto da

pregação; a escolha do texto de leitura, etc. As circunstâncias do culto são determinadas

pela prudência cristã (i.é, o senso comum santificado) conforme as regras gerais da

Escritura (e.g., a que horas a reunião pode ser mais conveniente e edificante para a

congregação? Que seleção de salmos é mais adequada ao texto do sermão? Como o projeto

do edifício ajudaria à congregação a concentrar-se na Palavra? etc.). Algumas

circunstâncias são determinadas pelo pastor (e.g., o texto do sermão); outras pelo Conselho

(e.g., a hora da reunião) e outras pelos líderes das famílias e pelos indivíduos (e.g., na igreja

devo usar um terno azul, preto, cinza ou marrom? etc.). Diferentemente dos elementos do

culto, as circunstâncias do culto são praticamente de número infinito e mudam

freqüentemente. Lembre-se, se alguma coisa no culto público é determinada pela Escritura,

então não pode ser uma circunstância de culto. Além disso, considere que somente Deus

tem autoridade para tornar uma circunstância em ordenança de culto. Por exemplo, não

existe nada especialmente intrínseco quanto a qualquer dia da semana específico. Deus,

entretanto, tem a autoridade de separar um dia em particular e de torná-lo religiosamente

significativo. Nada há significativamente de religioso ou especial quanto a uma

determinada faixa de terra no planeta. Mas, na era da Velha Aliança, Deus fez de Jerusalém

e do templo um local religiosos especial. Portanto, quando os homens acrescentam os seus

próprios dias santos, ou criam um lugar ou objeto sagrados, ou introduzem no culto a Jeová

instrumentos musicais ou hinos não-inspirados, eles estão usurpando a autoridade de Deus.

Uma vez entendido que as ordenanças de culto são comandadas ou prescritas pela

95

Um exemplo histórico é o culto público no dia do Senhor. Não há na Escritura registro de mandamento

explícito ou imperativo divino modificando o culto público do sétimo dia (sábado) para o primeiro dia

(domingo) da semana. Mas, no Novo Testamento, a mudança do sétimo para o primeiro dia está registrada

como um fato concretizado (At. 20:7, 1Co. 16:2, Ap. 1:10). Nem todo mandamento divino ou palavra

profética foram consignados na Escritura (i.é, incluídos na Bíblia). A prática universal da igreja apostólica, tal

como o culto público no dia do Senhor, é obrigatória somente por causa da autoridade dada aos apóstolos, i.é,

pela revelação direta. Quando os apóstolos morreram, a revelação cessou e o cânon foi fechado; agora, a

nossa doutrina, culto, e todos os exemplos históricos estão limitados pela Bíblia, a Palavra de Deus. Aqueles

que buscam autoridade nas tradições da igreja para estabelecerem ordenanças de culto, inventadas depois do

fechamento do cânon, não são, em princípio, melhores que Jeroboão, o filho de Nebate (1Rs. 12:26-33). 96

―É preciso, é claro, distinguir cuidadosamente entre a Palavra de Deus e as inferências retiradas dela.

Podemos contestar a validade das inferências da Escritura e tentar determinar se elas são ou não bíblicas de

fato, mas jamais podemos contestar assim a validade das declarações explícitas da Escritura. As palavras e

declarações da Escritura têm autoridade absoluta, original e indiscutível. A autoridade das inferências bíblicas

válidas, por outro lado, não é de natureza original, mas não se pode argumentar que tais inferências tenham

menos autoridade do que as expressas declarações da Escritura‖. (Michael Bushell, The Songs of Zion, 124).

Algumas das doutrinas basilares e mais importantes do cristianismo são colhidas das inferências bíblicas, tais

como a união hipostática de duas naturezas em Jesus Cristo e a doutrina da Trindade. Que o uso das

inferências, que podem ser ―lógica e claramente‖ deduzidas da Escritura, para formular doutrinas é bíblico

pode-se ver nas passagens seguintes: Lc. 20:37ss., Mt. 19:4-6; 22:31ss., Mc. 12:26, 1Co. 11:8-10.

Page 63: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

Escritura não haverá mais o desvio causado pelos que tentam confundir a distinção entre os

elementos ou partes do culto e as circunstâncias do culto. Por exemplo (como observado

anteriormente), muitos pastores hoje argumentam que o uso de instrumentos musicais no

culto público seja uma circunstância do culto. Para alguém não familiarizado com a Bíblia

esse argumento parece plausível. Afinal de contas, os instrumentos musicais não são usados

em todas as culturas e nações? Não são comumente usados em cerimônias religiosas? O

problema com esse argumento é que o uso de instrumentos musicais foi ordenado por Deus,

e apenas sacerdotes e levitas eram autorizados a tocá-los quando associados com o culto no

templo (Nm. 10:8, 10; 1Cr. 15:14-24, 23:5, 28:11-13, 19; 2Cr. 5:11-14, 29:26; Ed. 3:10;

Nm. 12:27, etc.). Se os instrumentos musicais fossem apenas uma circunstância do culto, e

se qualquer israelita pudesse tocar instrumentos musicais no culto, então tais mandamentos

seriam totalmente desnecessários e fora de lugar. Algo que por natureza seja incidental ao

culto é incidental e arbitrário em todas as circunstâncias.

Segundo, tudo que no culto possuir significado religioso ou moral é elemento ou

parte dele e, portanto, carece de aprovação divina. As circunstâncias do culto são ―comuns

às ações humanas e sociedades‖. Observe, para esclarecer, a seguinte ilustração. Se uma

igreja no primeiro século na Palestina tivesse um balde de água à porta que os crentes

usavam para lavar os pés antes de se sentarem, então essa lavação de pés não teria

significado religioso. Mas se os presbíteros daquela igreja instruíssem os seus membros

para mergulharem a mão na água e fazerem o sinal da cruz, ou para pegarem um pouco dela

e salpicarem no ar dizendo uma certa prece, eles então seriam culpados de acrescentarem

uma tradição humana no culto a Deus. Muitos pastores têm um copo d‘água no ou perto do

púlpito para beberem durante o sermão. Não há qualquer significado religioso em um copo

d‘água. Entretanto, se o pastor abençoar o copo d‘água, mergulhar nele um chocalho de

bebê e começar a salpicar com ele os membros da igreja enquanto murmura em latim, ele

então acrescentou uma tradição humana ao culto. Há hoje muitos acréscimos humanos no

culto que obviamente ultrapassaram a linha e que são considerados possuidores de

significado especial, sagrado ou religioso (e.g., sinal da cruz, água benta, vestes sacerdotais,

velas para rezar, ajoelhar-se à comunhão, apelos para ir à frente, teatro religioso, dança

litúrgica, calendário ―cristão‖, santo do dia, dias santos — além do dia do descanso, etc.).

Terceiro, as ordenanças do culto são práticas exigidas pela Escritura e por isso não

são voluntárias ou opcionais. Isto é, elas são necessariamente bíblicas. Os membros da

igreja não têm a opção de eliminar o sermão, a leitura da Escritura, ou os sacramentos, etc.

(na verdade, os evangélicos consideram com freqüência os grupos que omitem tais coisas

como seitas). As circunstâncias não são exigidas nem biblicamente necessárias. Os serviços

de culto não dependem de edifícios, assentos e púlpitos. As circunstâncias do culto são

itens que podem ser modificados, eliminados ou adicionados sem qualquer conseqüência

para o culto público. Nenhum cristão defenderia que a Ceia do Senhor era opcional.

Entretanto, será que alguém seria levado a sério se defendesse que solo musical, esquete

teatral, espetáculo de marionetes, banda de rock, apelo para ir ao altar, incenso

processional, ou gritarias e giros de corpo fossem aspectos necessários ao culto? Quando as

igrejas adicionam tradições humanas opcionais e desnecessárias no culto a Deus, elas

subtraem daquilo que Deus prescreveu; misturam o que é profano com o que é

verdadeiramente religioso e significativo; e ofendem a Deus que não ordenou tais coisas.

A tentativa de ampliar a definição de circunstâncias de culto, ou de tornar

indistinta a diferença entre elementos e circunstâncias de culto, ou de mesclar elementos

Page 64: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

distintos em amplas categorias, é antibíblica e anticonfessional.97

Jamais se deve tratar os

elementos de culto como abstrações ajustáveis às concepções prévias daquilo que é

permitido na adoração. O procedimento interpretativo bíblico apropriado deixa que a Bíblia

nos diga quais são os elementos distintos de culto e que a Escritura estabeleça as regras

para cada elemento. Embora seja verdadeiro que os elementos de cântico de louvor,

pregação ou ensino e oração possam ter certos aspectos comuns (e.g., muitos salmos

97

A Confissão de Fé de Westminster não particulariza os elementos de culto em categorias maiores, antes,

define-os todos bem distintamente como partes ordinárias do culto religioso. A Confissão fala

especificamente de ―oração com ações de graças‖ (xxi:iii), de ―leitura das Escrituras, com santo temor; a sã

pregação da Palavra e a consciente atenção a ela, em obediência a Deus, com entendimento, fé e reverência; o

cântico de salmos, com gratidão no coração; bem como a devida administração e digna recepção dos

sacramentos instituídos por Cristo — são partes do culto comum oferecidos a Deus, além dos juramentos

religiosos, votos, jejuns solenes e ações de graças em ocasiões especiais, os quais em seus vários tempos e

ocasiões próprias, devem ser usados de um modo santo e religioso‖ (xxi:v). Os autores da Confissão de Fé

criam claramente que cada parte individual do culto necessitava de autorização ou comprovação bíblica. É por

isso que cada elemento distinto de culto tem, na Confissão, comprovação textual bíblica. A perspectiva

confessional das circunstâncias e elementos de culto é apoiada e refletida nos textos dos maiores teólogos

daquela época. George Gillespie (1613-1648) escreve: ―Além disso, não há nada do culto a Deus, que tenha

sido deixado sob o critério dos homens, exceto as meras circunstâncias de culto, que não são em si mesmas

santas, pois não têm no sagrado mais utilidade e valor que no secular, e que, por serem incontáveis, não foram

sequer parcialmente determinadas na Escritura; se não, por exemplo, cerimônias carregadas de significado

sagrado — como fazer o sinal da cruz, ajoelhar-se ante os elementos da Santa Ceia, o uso da sobrepeliz, a

guarda de dias santos, o episcopalianismo, etc. — que não têm utilidade e valor exceto na religião, seriam,

também, mui facilmente identificáveis (contudo não ordenadas) dentro dos limites que a sabedoria de Deus

estabeleceu em Sua Palavra escrita. Deus jamais deixou tais coisas sob a determinação de quaisquer leis

humanas‖ (A Dispute Against the English Popish Ceremonies Obtruded upon the Church of England

Christopher Coldwell, ed. [Dallas, TX: Naphtali, 1993 (1637, 60)], xli). Samuel Rutheford (1600-1661)

escreve: ―em atos ou meios de culto religiosos, ou circunstâncias físicas, não morais, não religiosas, quanto a

se o púlpito é de pedra ou de madeira, o sino deste ou daquele metal, ou se o prédio da igreja é assim ou

assado‖ (The Divine Right of Church-Government and Excommunication [London: John Field for Christopher

Meredith, 1646], 109). William Ames (1576-1633) escreve: ―as circunstâncias externas são pertinentes à

ordem e decência, 1Co. 14:40. Que tudo seja feito decentemente e em ordem. A regra geral, entretanto, é que

essas coisas sejam ordenadas da maneira mais apropriada à edificação, 1Co. 14:26. Dessa natureza são as

circunstâncias de lugar, tempo, e similares, que são acessórios comuns aos atos civis e religiosos. Embora

costuma-se denominar tais circunstâncias de ritos e cerimônias religiosas ou eclesiásticas, elas nada têm em

suas naturezas que sejam próprios à religião, e portanto o culto religioso na verdade não consiste delas‖ (The

Morrow of Sacred Divinity [London: Edward Griffen for Henry Overton, 1642], 318). John Owen (1616-

1683) escreve: ―diz-se que aos homens nada é permitido acrescentar à substância do culto a Deus, mas lhes é

autorizado ordenar, organizar, e apontar as coisas que pertençam ao seu modo e circunstância, isto é, tudo

aquilo que se realiza conforme está nas liturgias. Já falamos antes das circunstâncias em e sobre o culto a

Deus, e eliminamos aquelas suposições. É arriscado fazer distinção nas coisas de Deus onde Ele mesmo não

fez. Na verdade, em toda a natureza do culto não há nada de tão circunstancial, no âmbito das coisas comuns,

que sendo designado por Deus não se torne parte da sua substância; nem nada assim, apontado por quem quer

que seja, pode jamais tornar-se uma circunstância do Seu culto‖ (―A Discourse Concerning Liturgies and

Their Imposition‖ in Works [Carlisle, PA: Banner of Truth, 1965 (1850-53)], 15:40). Thomas Ridgely (1667-

1734) escreve: ―A primeira idéia contida nelas [nas ordenanças de culto] é que são deveres religiosos,

prescritos por Deus, como um método determinado pelo qual Ele será adorado por Suas criaturas... Agora, as

ordenanças assim descritas têm que estar associadas e em conformidade com uma prescrição divina. Criatura

alguma está autorizada a impor quaisquer modos de culto, alegando que serão aceitáveis ou agradáveis a

Deus, porque somente Deus, que é o objeto da adoração, tem o direito de prescrever a forma pela qual será

adorado. Seria, da parte da criatura, um exemplo de profanação e presunção insolente estabelecer modos de

culto, e o ato de adoração seria ‗em vão‘, como afirma o nosso Salvador quanto sobre ao que não possui

sanção maior que mandamentos de homens‖ (A Body of Divinity [New York: 1855], 2:433).

Page 65: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

contêm oração, oração pode conter louvor e sermões podem conter louvor e súplica, etc.), a

idéia de que esses elementos distintos possam ser concatenados numa única categoria (e.g.,

ensino) ou de que as regras específicas dadas pela Escritura para um único elemento sejam

aplicáveis às outras partes do culto, desmorona completamente quando se examinam as

regras específicas e o contexto que a Bíblia dá para cada ordenança em separado. Observe

os seguintes exemplos:

1. Um dos elementos é a pregação da Bíblia (Mt. 26:13; Mc. 16:15; At. 9:20;

17:10; 20:8; 1Co. 14:28; 2Tm. 4:2). A pregação envolve o arrazoamento da Escritura (cf.

At. 17:2-3; 18:4, 19; 24:25) e a explicação e exposição da obra de Deus (cf. Mc. 4:34; Lc.

24:27; At. 2:14-40; 17:3; 18:36; 28:23). Os mestres da Nova Aliança não falaram por

divina interpretação, mas interpretaram a Escritura divinamente inspirada. Da mesma

maneira os mestres levitas do Velho Testamento explicaram e interpretaram a lei escrita

para o povo da aliança (cf. Nm. 8:7-8; Lv. 10:8-11; Dt. 17:8-13; 24:8; 31:9-13; 33:8; 2Cr.

15:3; 17:7-9; 19:8-10; 30:22; 35:3; Ed. 7:1-11; Ez. 44:15, 23-24; Os. 4:6; Ml. 2:1,5-8). Há

regras bíblicas específicas aplicáveis à pregação que a distingue de outros elementos tais

como louvor e oração. Conquanto homens e mulheres possam orar (At. 1:13-14, 1Co. 11:5;

Tg. 5:13) e cantar louvores (Ef. 5:19; Cl. 3:16) somente os homens (1Co. 14:34-35; 1Tm.

2:11-14) que são chamados e separados por Deus para o ministério do evangelho podem

pregar (Mt. 28:18-20; At. 9:15; 13:1-5; Rm. 10:14-15; Ef. 4:11-12; 2Tm. 4:2, etc.).

Portanto, é claramente antibíblica a idéia de que cantar louvores não seja um elemento de

culto, mas apenas uma maneira de ensinar ou uma circunstância de ensino. Se cantar

louvores fosse simplesmente um método de ensino, então as mulheres seriam proibidas de

cantar na igreja, pois elas são proibidas de ensinar nas assembléias públicas. Além disso, se

o cântico fosse uma circunstância de culto, então seria opcional e poderia ser

completamente excluído do culto público.

2. Uma outra parte do culto é o cântico de Salmos (1Cr. 16:9; Sl. 95:1-2; 105:2;

1Co. 14:26; Ef. 5:19; Cl. 3:16). Diferentemente da pregação, onde os ministros usam as

suas próprias e palavras não-inspiradas para exporem a Escritura, o cântico de louvor

envolve apenas o uso de canções inspiradas pelo Espírito. Na Bíblia a inspiração profética

era uma exigência para se escrever cânticos de adoração para a igreja (cf. Ex. 15:20-21; Jz.

5; Is. 5:1; 26:1ss; 2Sm. 23:1,2; 1Cr. 25:5; 2Cr. 29:30; 35:15; Mt. 22:43-44; Mc. 12:36; At.

1:16-17; 2:29-31; 4:24-25). No Velho Testamento escrever cânticos de adoração era tão

intimamente ligado à inspiração profética que 2Rs. 23:2 e 2Cr. 34:30 usam

intercambiavelmente os termos levita e profeta.

3. A leitura da Bíblia é também uma das partes do culto público (Mc. 4:16-20; At.

1:13; 13:15; 16:13; 1Co. 11:20; 1Tm. 4:13; Ap. 1:13). Obviamente, a leitura das Escrituras

exige que só a Bíblia seja lida. A leitura de apócrifos, Shakespeare, ou poesia cristã não

inspirada, ou livros de teologia não podem substituir esse elemento. A leitura da Escritura,

do mesmo modo que a pregação, mas ao contrário do cântico de louvores, está restrita aos

ministros do evangelho (Ex. 24:7; Js. 8:34-35; Dt. 31:9-13; Nm. 8:7-8; 13:1; 1Ts. 5:27; Cl.

4:16; 1Tm. 4:3).

4. Outro elemento de culto é orar a Deus (Dt. 22:5; Mt. 6:9; 1Co. 11:13-15; 1Tm.

5:17; Fp. 4:6; Hb. 13:18; Tg. 1:5). Ao contrário dos elementos de cântico, de louvor e de

leitura da Escritura, a Bíblia autoriza o uso de nossas próprias palavras na oração, desde

que sigamos o padrão ou modelo que nos foi dado por Cristo (cf. Mt. 6:9). Deus promete ao

Seu povo que o Espírito Santo os assistirá quando fizerem as suas orações (cf. Zc. 12:10;

Rm. 8:26-27).

Page 66: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

Essa breve consideração quanto aos elementos do culto, acima observados, prova que as

regras que se aplicam a um elemento (e.g., oração) não pode ser aplicada a outro elemento

(e.g., cântico de louvor ou leitura da Bíblia) sem que a Escritura seja transgredida. A nossa

consideração provou que agrupar vários elementos de culto em categorias maiores também

violenta a Palavra de Deus. A única razão pela qual as pessoas constroem artificialmente

essas categorias mais amplas é para evitar as regras específicas que Deus instituiu para cada

elemento particular de culto. As feministas fazem isso para permitir às mulheres que façam

a leitura da Escritura no culto público e preguem na igreja. Outros o fazem para permitir

que grupos de teatro substituam o sermão. Há ainda muitos que fazem assim para poderem

substituir os Salmos inspirados de Deus, pelos cânticos não-inspirados dos homens.

5. Argumento de que “Jesus Aceitou e Participou de Tradições Humanas”.

Um argumento popular contra o princípio regulador é que o próprio Jesus não cria

nele, porque ele aceitou e até mesmo participou de tradições religiosas criadas pelo homem.

Argumenta-se que Jesus celebrou a Páscoa conforme a tradição rabínica não autorizada.

Isso é, do séder* judaico com todas as suas adições humanas. Quanto ao séder judaico

(termo hebraico para ―ordem‖) não há o que discutir, exceto que os fariseus acrescentaram

os seus próprios rituais à refeição. Escreve Wilson:

A refeição incluía vários elementos simbólicos, cada um deles consumido em

pontos específicos no decorrer do anoitecer. Isso incluía cordeiro assado, ervas

amargas, pão ázimo, harōset (massa misturada com amêndoas, frutas, e vinho), e

uma hortaliça mergulhada em um líquido picante. Quatro taças de vinho eram

consumidas em vários intervalos, como símbolo da alegria. O vinho era

provavelmente misturado com água e aquecido (cf. Pesahim vii.13). Lavagem

ritual das mãos, orações, e porções do Hallel**

(Sl. 113-119) também marcavam a

observância.98

Qual é a prova textual que se oferece para afirmar que Jesus participou de vários

acréscimos rabínicos? A única ―prova‖ que apresentam é o fato de Jesus ter bebido vinho.

Por que Cristo e os apóstolos tinham vinho na sua refeição, supõe-se que eles também

tinham participado de um séder com os seus ritos adicionais. Observação: Nenhum dos

acréscimos judaicos — os rituais do séder — é mencionado em quaisquer das diversas

narrativas da última ceia. Quando beber vinho às refeições era a prática virtualmente

universal nos dias de Jesus, a teoria do séder judaico é uma inferência necessária do texto

ou pura especulação? Seria teológica e pastoralmente responsável desenvolver-se uma

teologia de culto tendo por base pura especulação e adivinhação?

E quanto ao uso do vinho? Alguns argumentam quem desde que o uso do vinho

não está ordenado na instituição original da Páscoa, é, portanto, uma inovação humana num

ritual religioso. Seria o uso de vinho violação do princípio regulador? Não, porque a Páscoa

era uma refeição, e a bebida é uma circunstância ordinária, necessária ao comer

(especialmente ao se comer cordeiro assado, pão sem levedo e ervas amargas). Durante a

Festa dos Pães Asmos era ordenado aos israelitas não comer pão levedado durante sete dias

* ou Seider. Do hebraico: ordem; arranjo. Festividade da primeira noite da Páscoa – na Diáspora: das duas

primeiras noites (N.E.). **

Do hebraico: exaltar (N.E.). 98

M. R. Wilson, “Passover” in Geoffrey W. Bromiley, ed., International Standard Bible Encyclopedia

(Grand Rapids: Eerdmans, 1986), 3:677.

Page 67: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

(Ex. 12:15ss.). Contudo nada se menciona quanto às bebidas a serem consumidas. É óbvio

que Deus não estava exigindo que os judeus morressem de sede no clima calorento do

Egito. O fato de que Jesus e os discípulos beberam vinho nas (ou após as) suas refeições

não tinha qualquer significado até que Jesus tornou-o uma ordenança evangélica na Ceia do

Senhor. A argumentação a partir de uma narrativa histórica tem que se basear no que está

nela consignado por escrito, não em suposições quanto ao que ocorreu.

A teoria do ―séder judaico‖ não é apenas totalmente especulativa, mas também

violenta os métodos padrões de interpretação protestante (i.é, a analogia da Escritura).

Sempre que algum intérprete se depara com passagem difíceis ou obscuras, ele tem que

usar as porções mais claras da Escritura para interpretar as menos claras. Será que faz

sentido interpretar as atitudes de Jesus na última ceia de modo a contrariar o claro

ensinamento, tanto do Velho quanto do Novo Testamento? As passagens do sola scriptura

ou do princípio regulador são obscuras ou difíceis de entender? Jesus condenou os fariseus

por adicionarem tradições humanas à Palavra de Deus, inclusive a lavagem das mãos (Mt.

15:2ss.). Participaria o nosso Senhor do séder judaico, que incluía a lavagem ritual das

mãos,99

após ter Ele condenado os fariseus com os termos mais fortes pela mesma atitude?

Observe também que o fundamento da ―teoria séder‖ não é a Escritura inspirada,

mas a Mishnah judaica. A Mishnah é uma compilação das tradições rabínicas orais que

datam de cerca de 200 a.C. até cerca de 200 d.C. Foi compilado inicialmente pelo Rabi

Judá (―Ha Nasi‖, ou O Príncipe) com outros eruditos judeus por volta de 189 d.C. Como a

maior parte do que foi registrado àquela época veio da tradição oral, ninguém tem certeza

de quanto da Mishnah reflete fielmente as tradições dos judeus. Edersheim escreve: ―já foi

sugerido mais de uma vez que a lei registrada na Mishnah representa freqüentemente as

teorias e especulações dos doutores judeus do segundo século d.C., e não a prática real de

um dado período. Várias das suas normas tratam conseguintemente de costumes obsoletos,

e dão pouca atenção às reais circunstâncias do tempo‖.100

Conquanto seja compreensível

que um estudioso cristão examine a Mishnah em busca de entendimento quanto a esfera

social da Palestina do primeiro século, é inacreditável que pastores e doutores de

99

Alfred Edersheim escreve: ―a ‗taça da bênção‘, era a terceira, e integrava a nova instituição da Ceia do

Senhor, sendo mencionada no versículo 20. Ao lavarem as mãos, repetiam essa oração usual: ‗Bendito és Tu,

Jeová nosso Deus, que nos tens santificado com os Teus mandamentos, e nos tens alegrado quanto ao lavar de

nossas mãos‘. A tradição prescrevia dois tipos diferentes de ‗lavagem‘ — ‗mergulhando‘ e ‗derramando‘. Na

ceia pascal as mãos deveriam ser ‗mergulhadas‘ em água‖ (The Temple: Its Ministry and Services as They

Were at the Time of Christ, 239 [Grand Rapids: Eerdmans, 1950]). Observe a nota de rodapé inserida por

Edersheim à citação acima: ―A distinção [entre os dois tipos de rituais de lavagem de mãos] é também

interessante, como explica Mc. 7:3. Porque quando a água era derramada sobre as mãos, elas precisavam ser

levantadas, de modo que a água não se devesse molhar acima do pulso, nem voltar novamente sobre a mão;

melhor, portanto, cerrar os punhos. Daí (como comenta, acertadamente, Lightfoot) Marcos 7:3, deveria ser

traduzido, ‗porque os fariseus (...) a menos que lavem as mãos com o pulso, não comem, observando a

tradição dos anciãos‘‖ (ibid., nota de rodapé 4). Observe, Mc. 7:2ss é uma narrativa paralela à Mt. 15:2ss. O

que tudo isso significa é que se Jesus e o discípulos celebram o séder conforme a Mishnah (como muitos

asseveram) então Cristo seria culpado de participar do mesmíssimo ritual que anteriormente, nos relatos do

evangelho, eles e seus discípulos se recusaram a submeter e que causou a amarga condenação dos fariseus,

por nosso Senhor. Consideramos tal cenário como exegética e teologicamente impossível. Há outros

problemas com a idéia de que Jesus seguiu o séder conforme a Mishnah. Por exemplo, as narrativas do

evangelho não se referem a quatro taças mas meramente à uma única que foi compartilhada por todos os

discípulos. 100

Alfred Edersheim, History of the Jewish Nation after the Destruction of Jerusalem under Titus (Grand

Rapids: Baker, 1975 [1865]), 381.

Page 68: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

denominações ―reformadas‖ procurem em documentos tão indignos de confiança e

blasfemos101

algo para minar os alicerces da sola scriptura.

Outro argumento popular é que Jesus comemorou o Chanukah porque Ele estava

presente em sua celebração, conforme João 10:22-23. ―Celebrava-se em Jerusalém a Festa

da Dedicação. Era inverno. Jesus passeava no templo, no Pórtico de Salomão‖. Esta

passagem da Escritura prova ou mesmo implica que Jesus aceitou e participou de tradições

humanas no culto. Não. Há muitas razões pelas quais tal visão deva ser rejeitada. Primeiro,

pelo texto não se pode afirmar sequer que Jesus celebrou a Festa da Dedicação. O texto não

diz que Jesus foi para Jerusalém para celebrar a Festa da Dedicação, diz apenas que Ele

estava em Jerusalém àquele tempo. Muitos excelentes comentaristas (e.g., Hengstenburg,

Meyer, Weiss e outros) argumentam que Jesus estava em Jerusalém desde a festa dos

tabernáculos. Segundo, nada há de importante no fato de nosso Senhor estar em Jerusalém

nos dias da festa, pois ela não só ocorria em Jerusalém. O Chanukah era comemorado em

todo o país.

João nada declara quanto a atitude de Jesus sobre o Chanukah, mas está, no

decorrer do discurso, relatando apenas uma ocorrência histórica. Terceiro, mesmo se Cristo

fosse a Jerusalém para estar lá durante a festa, o capítulo como um todo indica que Ele foi

lá para ensinar. Gillespie escreve:

Devemos lembrar que o evangelista cita apenas as circunstâncias de hora e lugar,

para provar a história, e não para [criar] qualquer mistério. Cristo havia subido

para a festa dos tabernáculos (Jo. 7) e demorou-se todo aquele tempo porque havia

uma grande confluência de pessoas em Jerusalém. Pelo que, aproveitou a ocasião

para lançar a rede do evangelho para apanhar muitas almas. E quando João diz,

―Celebrava-se em Jerusalém a Festa da Dedicação‖, ele dá apenas uma razão para

a vinda de tanto povo a Jerusalém, e mostra como foi que Cristo teve

oportunidades de pregar a tal multidão; e quando ele acrescenta, ―era inverno‖, dá

o motivo pelo qual Cristo caminha no pórtico de Salomão, lugar para onde afluíam

os judeus. Não se achava decoroso caminhar pelo templo propriamente, mas os

homens costumavam ajuntar-se no pórtico para conversar ou caminhar, porque no

verão o pórtico fazia sombra protegendo-os do calor. Outros pensam que quando

ele diz que era inverno, isso denota que Cristo estava mais freqüentemente no

templo, sabendo que dispunha de pouco tempo para a Sua pregação; pois Ele iria

sofrer no início da próxima primavera.102

Não há a prova, mínima sequer, de que o nosso Senhor participou de quaisquer

rituais criados por homem. (Observe: Paulo pregou no areópago [At. 17:22ss.] não porque

fosse favorável à filosofia grega, mas porque isso lhe dera uma excelente oportunidade de

101

Observe como a Mishnah perverte o sentido de Lv. 18:21 e endossa a idolatria: ―MISHNAH. AQUELE

QUE DÁ DA SUA DESCENDÊNCIA A MOLOQUE NÃO INCORRE EM PUNIÇÃO A MENOS QUE A

DÊ E A FAÇA PASSAR PELO FOGO. SE A DEU A MOLOQUE MAS, NÃO A FEZ PASSAR PELO

FOGO, OU, O CONTRÁRIO, ELE NÃO INCORRE EM PUNIÇÃO, A MENOS QUE FAÇA OS DOIS.

GEMARA. R. Abin disse: A nossa Mishnah concorda com a visão de que a adoração a Moloque não é

idolatria... R. Simeon disse: se a Moloque, ele é confiável; se a outro ídolo, não é (Sanhedrin 64a). R. Aha, o

filho de Raba, disse: se alguém fez toda a sua descendência passar [pelo fogo] a Moloque, ele está livre de

punição, porque está escrito, da tua descendência implicando que não é toda a tua descendência (Sanhedrin

64b)‖ (The Babylonian Talmud citado em Gary North, Tools of Dominion: The Case Laws of Exodus [Tyler,

TX: Institute of Christian Economics, 1990], 1019). (No Talmude, a Mishnah é sempre escrita com todas as

letras maiúsculas). 102

George Gillespie, English Popish Ceremonies, 269-270.

Page 69: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

evangelização).

Em quarto lugar, a presença de Jesus não prova que Ele celebrou a Festa da

Dedicação, pois a celebração do Chanukah não envolve quaisquer santas convocações.

Além disso, não era um sábado religioso, no qual exigia-se que o povo interrompesse seus

trabalhos.

Quinto, a maioria dos comentaristas que especulam sobre a menção que o apóstolo

faz da festa afirmam que nessa ocasião Jesus dedicou-se para morrer (cf. Pink, Lightfoot,

Stachen, etc.). Noutras palavras, a menção da festa aponta para Cristo e não para as

tradições humanas.

Sexto (como já referido), nunca se deve escolher uma interpretação que transgrida

a analogia da Escritura. É exegeticamente irresponsável impor ao texto aquilo que ele não

diz (eisegese) e depois usar essa interpretação especulativa para destruir outras tantas

passagens claras da Escritura que condenam inequivocamente as tradições humanas na

esfera religiosa. Proceder assim nada mais é que auto-engano, inventar desculpa e segurar-

se a uma corda podre.

Há mais um argumento (de que Jesus aprovou tradições humanas no culto)

fundamentado na idéia de que o nosso Senhor abençoou duas cerimônias judaicas que

foram provavelmente adicionadas após o fechamento do cânon do Velho Testamento. Esses

rituais estavam associados à festa dos tabernáculos. Afirma-se que as declarações feitas

estrategicamente por Jesus (que confrontavam essas cerimônias) provam que Ele não

condena tais tradições humanas. Um rápido exame dessas passagens provará que tal

conclusão é infundada.

A primeira passagem é Jo. 7:37-39. ―No último dia, o grande dia da festa,

levantou-se Jesus e exclamou: Se alguém tem sede, venha a mim e beba. Quem crer em

mim, como diz a Escritura, do seu interior fluirão rios de água viva. Isto ele disse com

respeito ao Espírito que haviam de receber os que nele cressem; pois o Espírito até aquele

momento não fora dado, porque Jesus não havia sido ainda glorificado‖. F. F. Bruce dá

uma explicação de como o festival teria sido celebrado nos dias de Jesus.

O festival estendia-se por oito dias, e no oitavo havia uma ―santa convocação‖ e

―reunião solene‖ (Lv. 23:36; cf. Nm. 29:35ss.; Nm. 8:18), quando o povo, na

celebração dos Tabernáculos, agradecia a Deus por todos os frutos do ano anterior

— a videira e a oliveira, também a cevada e o trigo — sem esquecer da Sua chuva

dadivosa, sem a qual nenhuma dessas safras haveriam de crescer. Em Zc. 14:16ss.

está implícita a associação dessa festa com as chuvas propícias, embora a

cerimônia de derramamento de água, comprovadamente associada aos

Tabernáculos nos dois séculos antecedentes a 70 d.C., não seja mencionada no

Velho Testamento (exceto na duvidosa exceção de 1Sm. 7:6), fosse,

provavelmente, de uma bem considerável antiguidade. Esta cerimônia, que tinha o

propósito de reconhecer a bondade de Deus por ter enviado a chuva, e de garantir a

abundância de suprimentos na estação seguinte, era realizada no alvorecer nos

primeiros sete dias do festival. Uma procissão conduzida por um sacerdote descia

ao poço de Siloé, onde um cântaro de ouro era enchido de água, e retornava ao

templo à hora que o holocausto da manhã estava sendo oferecido. A água era então

derramada, com um funil, no lado ocidental do altar, e o coro do templo começava

a cantar o Grande Hallel (Sl. 113-118).103

103

F. F. Bruce, The Gospel of John (Grand Rapids: Eerdmans, 1983), 181.

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Jesus fez a Sua declaração ao oitavo dia, quando os sacerdotes não mais derramavam a

água. Muitos comentaristas crêem que o nosso Senhor escolheu propositalmente a hora

para fazer a Sua declaração, para dramatizar e enfatizar a necessidade da verdadeira água

espiritual doadora da vida.

A segunda passagem é Jo. 8:12. ―De novo, lhes falava Jesus, dizendo: Eu sou a luz

do mundo; quem me segue não andará nas trevas; pelo contrário, terá a luz da vida‖.

Alguns comentaristas crêem que a declaração de Jesus quanto à ―luz da vida‖ era uma

comparação proposital d‘Ele mesmo com as grandes e brilhantes lâmpadas que eram

colocadas no Pátio das Mulheres e acesas no início da Festa dos Tabernáculos.

Há uma série de razões pelas quais deve-se rejeitar a idéia de que essas passagens

provam que Jesus aceitou e aprovou as tradições humanas no culto. Primeiro, nenhuma das

passagens em questão dizem que o nosso Senhor ratificou as tradições criadas pelos

homens. A idéia de que Cristo aprovou o acréscimo das tradições dos homens é

simplesmente adotada sem qualquer prova textual. Não seria sábio seguir o que a Bíblia

diz, ao invés de rejeitá-la em favor daquilo que ela não diz? Em segundo lugar, uma teoria,

hipótese ou interpretação especulativa jamais deveria ser usada para subverter o claro

ensinamento da Escritura. Toda idéia de que Jesus estava dando Sua aprovação às tradições

humanas é um argumento improcedente. Não se fundamenta no texto bíblico, mas na não-

inspirada Mishnah que foi composta por judeus incrédulos em 189 d.C. (Os comentaristas

não são concordes quanto a essas passagens. Na verdade a maioria deles não crê que o

nosso Senhor estava comparando-se a certos rituais, mas, ao contrário, comparava-se aos

eventos do livro de Êxodo: a água que brota da rocha — Êx. 17:6; Nm. 20:7-11 — e a

coluna de fogo — Êx. 13:21-22).104

Talvez devêssemos dar ouvidos ao comentário de

Hengstenberg. Ele escreve: ―é desnecessário desperdiçar tempo criando hipóteses,

buscando justificativas externamente no nascer do sol, no acender das lâmpadas do templo,

etc. Se alguma coisa significativa assim tivesse ocorrido o apóstolo não nos deixaria ficar

especulando sobre ela‖.105

Terceiro, mesmo se Jesus fizesse as suas declarações

coincidirem com certos rituais judaicos, isso não significa que Ele sancionou as adições

criadas pelos homens. Se um certo pastor (que não concorda com o Natal) distribui folhetos

evangélicos no shopping em dezembro, e prega lá sobre a obra redentora de Cristo como

104

Leon Morris escreve: ―Contudo, exatamente como a alusão à água no capítulo 7 aponta-nos a rocha no

deserto e não ao derramar da água do cântaro de ouro, assim também a alusão à luz refere-nos à coluna de

fogo no deserto. Vimos a referência ao maná no capítulo 6, de modo que em três capítulos sucessivos as

metáforas do deserto aparecem consistentemente usadas para ilustrar aspectos da obra e da pessoa de Jesus.

Deve ter-se em mente que a luz é um tema comum tanto no Velho quanto no Novo Testamento, portanto não

nos é necessário buscar a fonte do grande dito de Jesus em qualquer lugar não-bíblico (The Gospel According

to John [Grand Rapids: Eerdmans, 1971], 437. R. C. H. Lenski escreve: ―Maimônides afirma que esta

cerimônia ocorria ao anoitecer de todos os dias da festa, outros têm certeza de que ela ocorria apenas na

primeira noite. A dificuldade maior em associar a palavra de Jesus a esta cerimônia é que ela deixa de fora

uma parte essencial da figura. Aqueles candelabros eram fixos, e os homens dançavam nos pátios, ao passo

que Jesus fala de uma luz móvel: ‗aquele que me segue‘. Podemos dizer mais. Em 7:37, quando Jesus chama

todo o que ‗tem sede‘ e insta-o a que venha a Ele e ‗beba‘, Ele não pára na cerimônia de retirar água de Siloé

e de a derramar no altar, onde não existe metáfora que represente o saciar da sede pelo ato de beber; ele

retrocede à bênção original recebida em Meribá onde o sedento verdadeiramente recebeu água para beber.

Aqui Ele faz o mesmo. Uma das grandes bênçãos durante a peregrinação de Israel no deserto era a coluna de

nuvem e de fogo, prova da presença de Jeová com o Seu povo‖ (St. John’s Gospel [Minneapolis: Augsburg,

1961], 593-594). 105

E. W. Hengstenberg, Commentary on The Gospel of John (Minneapolis: Klock and Klock, 1980 [1865]),

1:429.

Page 71: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

um presente de Deus, isso não significa que ele concorde com o Natal. Ao se ler uma

passagem deve-se ter o cuidado de não introduzir nela coisa alguma que nela não esteja.

Quarto, uma inferência mais lógica e bíblica dessas passagens não era que Ele aprovava as

adições deles, mas que Ele ensinava que a lei e os profetas não apontavam para rituais

tolos, mas para Ele mesmo.106

Ao contrário da moderna opinião popular, Jesus não era

fariseu nem papista.

Mas, e o argumento que diz que ―se Jesus fosse um regulativista rigoroso não

haveria Ele de atacar os sacerdotes e levitas do templo que faziam acréscimos à Palavra de

Deus, como antes Ele o fizera aos cambistas?‖. O argumento de que Cristo teria atacado os

sacerdotes e levitas se Ele cresse no princípio regulador baseia-se na ignorância da

Escritura. Jesus não veio à terra como um magistrado civil (cf. Lc. 12:13-14; Jo. 8:1-11).

Sua opinião sobre os acréscimos farisaicos à Lei de Deus era bem conhecida através de Seu

ensinamento (e.g., Mt. 5:17-6:8; 15:2-9; 23:1-36; etc.). Se Jesus, a cada vez que se

confrontasse com o pecado, se irasse e recorresse a azorragues Ele disporia de pouco tempo

para pregar o evangelho, que era a Sua missão didática primária. Além disso, os sacerdotes

e levitas não eram meros mercadores ou cambistas, mas detinham posição de autoridade. Se

nosso Senhor os houvesse atacado ele teria: (1) cometido um ato revolucionário;

(2) precipitado um motim no templo; (3) colocado Sua vida e a de Seus discípulos

prematuramente em perigo; e (4) possivelmente teria sido preso pelas autoridades romanas.

Em 70 d.C. Jesus tratou de sacerdotes e levitas apóstatas, mas, enquanto na terra, Ele

respeitou as legítimas autoridades governantes (cf. Mt. 23:2-3; At. 23:1-5). Os oponentes

do princípio regulador estão mais uma vez segurando-se numa corda podre.

6. Argumento da “Festa de Purim”.

Talvez o argumento mais popular que apóia as tradições humanas no culto baseia-

se na Festa de Purim. Afirma-se que se os judeus, sem qualquer ordenança ou revelação

especial de Deus, criaram seu próprio dia santo, então a igreja pode fabricar seus próprios

dias santificados tais como Natal e Páscoa.

Há muitos problemas com esse argumento. Ele aceita, sem qualquer prova, que

Purim era um dia santificado especial assim como o Natal. O texto bíblico deixa

extremamente claro que Purim não era um dia santo especial, mas uma ocasião de ação de

graças. Os eventos de Purim são: ―havia entre os judeus alegria e regozijo, banquetes e

festas... e de mandarem porções dos banquetes uns aos outros, e dádivas aos pobres‖ (Et.

8:17, 9:22). ―Não há menção de qualquer observância religiosa associada ao dia‖.107

Não

havia atos especiais de adoração, não havia cerimônias, não havia atividades levíticas ou

106

Hengstenberg escreve: ―A festa não era apenas de ação de graças, mas também de esperança. E o texto

apropriado a este seu último aspecto era Is. 12:3. Jesus afirma ser Ele mesmo a água da salvação anunciada

pelo profeta Isaías, e no próprio Isaías está a razão para o fazer. A associação entre as fontes da salvação e a

pessoa do Messias fica evidente pela relação do capítulo 12 com o 11, onde toda a salvação futura está

totalmente ligada à pessoa do Messias. E aquilo que Isaías disse no capítulo 12 quanto às águas da salvação,

tem o seu cumprimento também no capítulo 4:14, a que as palavras ‗ean tis dipsa pineto‘ (quem tem sede

beba) aludem definitivamente: cf. 6:45, 4:14‖ (Commentary on the Gospel of John, 1:405). Brook Foss

Westcott escreve: ―Nada comprova mais claramente a íntima relação que há entre o ensinamento registrado

por S. João e o Velho Testamento do que o modo em que Cristo é mostrado ao transferir para si mesmo as

figuras do Êxodo (a serpente de bronze, o maná, a água, a coluna de fogo)‖ (The Gospel According to St. John

[Grand Rapids: Baker, 1980], 277). 107

J. P. Lewis, ―Feasts‖ in Merrill C. Tenney, ed., The Zondervan Encyclopedia of the Bible (Grand Rapids:

Zondervan, 1975, 1976), 2:525.

Page 72: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

sacerdotais. Purim, também — diferentemente do Natal e da Páscoa — não era uma

mistura de monumentos e parafernálias pagãs e papais com a religião de Jeová. Não se

deveria comparar Purim a dias santos papais, como o Natal, mas a dias especiais de

regozijo como o Dia de Ações de Graças. Os teólogos de Westminster (que eram ardentes

defensores do princípio regulador) utilizaram Purim como texto que comprova (Ester 4:16;

9:22) a autorização de dias ocasionais de ação de graças (cf. Confissão de Fé xxi:v, um

prova textual).

Segundo, Purim não surgiu porque os oficiais da igreja se juntaram e decidiram

criar um dia santo. Ele surgiu devido a um evento histórico único na história da salvação de

Israel. O festival foi decretado pelo magistrado civil (o primeiro ministro Mordecai e a

rainha Ester). Os líderes religiosos não tiveram nada a ver com isso. O povo concordou

unanimemente com o decreto civil. Thomas M‘Crie escreve:

Ao propô-lo, agiu Mordecai levado pela noção particular da sua própria mente, e,

em conformidade com ela, prosseguiu com o inteiro consentimento do povo? Ou,

em ambos os casos, foi ele guiado por conselho divino e extraordinário, a ele

mesmo revelado, ou por algum profeta que vivesse naquele tempo? Que visão e

profecia ainda eram desfrutadas pelos judeus que habitam a Pérsia não se pode

negar pelos que crêem na autoridade canônica desse livro, e pelo que está contido

em Esdras. Já vimos as razões por que achamos que Mordecai, no momento em

que propôs a sua sobrinha Ester como candidata à sucessão da rainha Vasti, agiu

sob a influência da fé dos pais de Moisés. Não pode haver dúvida de que ele foi

levantado extraordinariamente como um salvador de Israel, e no decorrer dessa

lição vimos razões para crer que, além de seus outros méritos, ele foi usado como

o escriba dessa porção da Escritura inspirada. Por todas essas considerações é

razoável concluir que a festa de Purim não foi instituída sem o conselho e a

aprovação divina. Acrescente-se que o decreto de Ester confirmando [Purim], é

citado no final desse capítulo, tendo sido incluído no livro pelo que o escreveu,

seja quem for.108

Observe que a ocasião e a sanção de Purim estão consignadas na Palavra de Deus

e aprovadas pelo Espírito Santo. Por isso, Purim satisfez propriamente a exigência do

princípio regulador como definido biblicamente.

Terceiro, a noção de que Purim prova que aos homens é permitido criar dias

santificados sempre que desejarem não pode ser verdadeira, porque se fosse, a Escritura

conteria uma gritante contradição. Ela não apenas contradiria as passagens que ensinam que

não nos é permitido fazer acréscimos ao que Deus autorizou (e.g., Dt. 4:2; 12:32; Pv. 30:5;

etc.), mas também ao Livro dos Reis onde Deus condenou o rei Jeroboão por estabelecer

um dia de festa ―escolhido a seu bel-prazer‖ (1Rs. 12:33). Nem mesmo reis têm autoridade

para criarem seus próprios dias santos. M‘Crie escreve:

Procurar por uma justificativa para dias de comemoração religiosa nos festivais

judaicos do evangelho, não é apenas ignorar as distinções entre a velha e a nova

dispensação, mas se esquecer de que jamais foi permitido aos judeus instituírem

por si mesmos tal memorial, mas simplesmente a obedecer àqueles cuja Sabedoria

infinita tinha expresso e nominalmente separado e santificado. A sanção

proibitória é igualmente rigorosa em ambos os Testamentos: ―Tudo o que eu te

ordeno observarás; nada lhe acrescentarás, nem diminuirás‖.

108

Thomas M‘Crie, Lectures on the Book of Esther (New York: Robert Carter, 1838), 287-288.

Page 73: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

Quando Deus chama, há, por um lado, momentos para jejum religioso, ou,

por outro lado, para ações de graças e exultação religiosa, e é nosso dever atender

a esses chamados reservando tempo para os respectivos exercícios. Mas há uma

diferença substancial entre um dia santo recorrente e um anual. No primeiro caso o

dia é escolhido para o exercício do dever, no segundo o exercício é realizado em

função do dia. No primeiro não há santidade no dia, mas no que nele procede do

ato de culto que é nele realizado e, na sua ocorrência seguinte, ele continuará a ser

um dia tão ordinário quanto qualquer outro. No último caso o dia é separado em

todas as suas ocorrências seguintes, e não pode ser utilizado com propósitos

comuns ou seculares. Os festivais instituídos e recorrentes favorecem o falso

princípio de que alguns dias têm uma santidade peculiar, tanto inerente quanto

infundida pelas obras ocorridas neles; eles seguem adiante sob a falsa suposição da

autoridade humana; interferem com o livre uso do tempo que o Criador tem

concedido ao homem; detratam a honra devida ao dia de descanso sagrado que Ele

determinou; levam à imposições sobre a consciência; têm sido a nascente fecunda

de superstição e idolatria; e têm produzido os piores efeitos sobre a moral, em

todas as idades, entre todas as gentes, bárbaros e civilizados, papistas e

protestantes, daqueles que os têm obedecido. Por essas razões foram rejeitados

desde o princípio, entre outras corrupções do anticristo, pela Igreja Reformada da

Escócia que não permitiu a instituição de dias religiosos, exceto do Sábado

Cristão.109

7. Argumento da “Distorção do Princípio Regulador”

Um método extremamente comum para invalidar o princípio regulador hoje é

atribuir-lhe uma definição falsa, que é bíblica e racionalmente indefensável. Depois de

defini-la assim, os adversários de sola scriptura na adoração seguem em frente fazendo a

sua caricatura do princípio regulador parecer totalmente absurda. A falsa versão do

princípio regulador que é usada é: ―Se não está ordenado, está proibido‖. Noutras palavras,

deve existir um imperativo divino explicito para cada ordenança de culto na igreja. É dessa

forma que os Batistas fundamentalistas argumentam quando dizem: ―Onde somos

ordenados na Bíblia a batizar crianças?‖. Os Adventistas do Sétimo Dia seguem esta prática

quando dizem: ―Mostre-nos onde foi que Deus ordenou a igreja apostólica descansar e

adorar no domingo e não no sábado!‖. Os anti-regulativistas usam argumentos como: (a) o

culto da sinagoga nunca foi ordenado por Deus; (b) Cristo e os apóstolos participaram e

aprovaram o culto na sinagoga, portanto, (c) Cristo e os apóstolos rejeitaram o princípio

regulador.110

109

Ibid., 298-300. 110

Examinemos brevemente o que escreve um ministro calvinista independente, que se opõe ao culto

reformado: ―a própria existência da sinagoga, entretanto, desmantela a posição do regulativista! Porque ele

sabe que as sinagogas existiram. E ele sabe que Cristo e os apóstolos adoravam regularmente nas sinagogas,

sem que houvesse a mínima sugestão de que eram institucional ou liturgicamente ilegítimas. Ele sabe que não

pode encontrar o menor resquício de mandamento divino quanto ao que deveria ser feito na sinagoga. E, de

acordo com o seu princípio, se Deus nada ordenou quanto ao que devia ser feito, então tudo era proibido. E se

tudo era proibido, então tudo o que nele havia — instituição e liturgia — era uma abominação pecaminosa.

Mas isso o leva de volta para Cristo lá participando do culto a Deus e seguindo à sua liturgia: pecou Ele ao

participar numa inteira ordem de culto que não tinha a expressa sanção divina? O pensamento é blasfêmia!‖

(Steve Schlissel, ―All I Really Need to Know About Worship I Don‘t Learn From the Regulative Principle‖,

Part I, Messiah’s Mandate, 7).

Page 74: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

Uma vez compreendida a verdadeira definição do princípio regulador reconhece-

se de imediato que as objeções ao culto reformado apresentadas por batistas, adventistas do

sétimo dia e anti-regulativistas não se fundamentam na Escritura, mas na ignorância do

próprio princípio regulador. Embora não seja raro ver um regulativista dizer coisas como

―se não está ordenado, está proibido‖ como uma declaração superficial ou resumida do

princípio, a Confissão de Westminster e virtualmente todos os autores reformados definem

o princípio regulador de maneira muito mais ampla. O princípio regulador refere-se não

apenas às ordenanças expressamente declaradas na Escritura, mas também aos exemplos

históricos aprovados na Bíblia e às ordenanças lógica e claramente deduzidas dela, isto é,

uma ordenança ou prática de culto particular é inferida a partir de muitas passagens da

Escritura.

A Confissão e vários autores reformados irão provar que o genuíno, histórico e

confessional entendimento do princípio regulador é amplo e facilmente defensável pela

Escritura. A Confissão de Fé de Westminster (i.vi) diz:

Todo o conselho de Deus concernente a todas as coisas necessárias para a glória

dele e para a salvação, fé e vida do homem, ou é expressamente declarado na

Escritura ou pode ser lógica e claramente deduzido dela. À Escritura nada se

acrescentará em tempo algum, nem por novas revelações do Espírito, nem por

tradições dos homens; reconhecemos, entretanto, ser necessária a íntima

iluminação do Espírito de Deus para a salvadora compreensão das coisas reveladas

na palavra, e que há algumas circunstâncias, quanto ao culto de Deus e ao governo

da Igreja, comuns às ações e sociedades humanas, as quais têm de ser ordenadas

pela luz da natureza e pela prudência cristã, segundo as regras gerais da palavra,

que sempre devem ser observadas.

Assim como o manancial está para a torrente de água, para os teólogos de

Westminster sola scriptura é o ponto de partida do princípio regulador, Não pode haver a

menor dúvida de que a frase ―lógica e claramente deduzidas dela‖ aplica-se ao culto e ao

governo da igreja. Afirmar outra coisa deslocaria totalmente a seção ―circunstâncias quanto

ao culto de Deus e ao governo da Igreja‖.

Em seu ensaio The Word of God the Sole Rule of Worship John Owen contende

com Samuel Parker, um opositor do puritanismo. Owen diz que Parker considera que ―o

fundamento de todo o puritanismo‖ esteja no princípio ―de que nada deve ser estabelecido

no culto a Deus exceto o que está sancionado por algum preceito ou exemplo da Palavra de

Deus, que é a completa e suficiente regra de culto‖.111

Parker formulou esta precisa

definição ao ler a literatura puritana de seus dias (no século XVII).

Robert Shaw escreve:

Ao defendermos a perfeição das Escrituras, não estamos insistindo que cada artigo

da religião esteja contido nas Escrituras em palavras explícitas, mas sustentamos

que as conclusões claramente deduzidas das declarações da Palavra de Deus são

partes tão verdadeiras da divina revelação quanto se fossem ensinadas

expressamente pelo Volume Sagrado. O exemplo de nosso Salvador, ao combater

e provar a doutrina da ressurreição contra os Saduceus (Mt. 22:31, 32), e o de

Paulo, ao provar que Jesus de Nazaré é o Cristo quando arrazoava com os judeus

acerca das Escrituras do Velho Testamento (At. 17:2, 3), comprovam que as

111

Samuel Parker citado por John Owen, ―The Word of God the Sole Rule of Worship‖ in Works (Carlisle,

PA: Banner of Truth, 1967 [1644]), 13:462.

Page 75: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

lógicas e claras inferências da Escritura devem ser recebidas como partes da regra

de nossa fé e prática. Está escrito que ―toda a Escritura‖ é ―útil para o ensino,

para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça‖, mas todos esses

fins não podem ser alcançados exceto pela dedução deles. As inferências

legítimas, na verdade, apenas revelam claramente o completo significado das

palavras da Escritura, e por sermos dotados de raciocínio e ordenados a buscar as

Escrituras, fica manifesta a intenção de que deveríamos tirar conclusões daquilo

que lá está posto em palavras expressas.112

Hetherington escreve: ―Eles [os reformadores escoceses] ousaram, portanto,

concluir que se pode reivindicar a legítima autoridade divina, não apenas para as

declarações expressas contidas nas Escrituras, mas também para aquilo que delas poderia

ser concluído pela clara inferência lógica‖.113

Francis Petticrew escreve:

A prática que referente ao detalhe de um mero item, a uma mera circunstância, a

algo que a igreja defenda ser indiferente, imaterial, e deixada em aberto, não

constitui lei geral. Entretanto a prática fundamentada num princípio faz com que

todas as intenções e propósitos se constituam lei universal. E esta é a natureza e a

prática dessa igreja ao excluir o uso de instrumentos musicais do culto a Deus. O

princípio foi substancialmente este, de que exige-se, para tudo aquilo que constitui

o culto, a sanção positiva da autoridade divina na forma de uma ordenança direta,

ou de uma clara inferência lógica, ou de um exemplo aprovado; e de que não há

liberdade para introduzir-se qualquer coisa associada ao culto a Deus que não traga

o legitimo rótulo apostólico de ―decência e ordem‖.114

James H. Thorwell escreve: ―Não fomos capazes de por as mãos numa única

Confissão de Fé puritana que não ensine explicitamente que as inferências lógicas da

Escritura têm a mesma autoridade das expressas declarações dela, nem encontramos sequer

um escritor puritano que, tendo ocasião de aludir ao tema, não tenha ensinado

explicitamente as mesmas coisas. O princípio de inferência que eles têm unanimemente

defendido. A nossa própria Confissão de Fé — com certeza um documento puritano —

defende-o, numa passagem já citada‖.115

John L. Giradeau escreve: ―é necessária a sanção divina para qualquer elemento de

doutrina, governo e culto da igreja, tudo que nessas esferas não estiver ordenado pela

Escritura, seja pela sua declaração expressa ou pela clara inferência lógica das suas

declarações, é proibido‖.116

A. A. Hodge escreve:

112

Robert Shaw, Exposition of the Confession of Faith (Edmond, AB, Canada: Still Waters Revival, s.d.

[1845]), 16. 113

W. M. Hetherington, History of the Church of Scotland (Edinburgh, Scotland, 1848), 1:15. 114

Francis Petticrew, ―Speech of the mover of the report to the General Assembly, 1873‖ in James Glasgow,

Heart and Voice: Instrumental Music in Christian Worship Not Divinely Authorized (Belfast: C. Aitchinson;

J. Cleeland, s.d.), 4-5. Glasgow adiciona a seguinte nota de rodapé: ―Não as circunstâncias religiosas

introduzidas e amalgamadas com o culto, mas as meras circunstâncias sociais dos homens, como as de tempo,

lugar, pessoas, etc.‖ (ibid., 5). 115

James H. Thornwell, ―Boards and Presbyterianism‖ in Collected Writings (Carlisle, PA: Banner of Truth,

1974 [1875]), 4:225. 116

John L. Girardeau, Instrumental Music in the Public Worship of the Church (Havertown, PA: New

Covenant Publication Society, 1980 [1888]), 9.

Page 76: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

Conquanto a Escritura seja a única e completa regra de fé e de prática — e

que nada deve ser crido ou imposto à consciência como artigo de fé ou dever

religioso que não esteja explícita ou implicitamente nela ensinado — ela,

entretanto, não se aprofunda nos detalhes práticos das questões, mas estabelece

princípios gerais deixando aos homens (guiados pelas influências santificadoras do

Espírito Santo) no exercício de seu discernimento natural, aplicá-los, à luz da

experiência, na adaptação dessas questões às circunstâncias mutáveis.

Essa liberdade, é claro, só é permitida dentro dos limites da rígida

interpretação dos princípios ensinados na Palavra, e na legítima aplicação desses

princípios no detalhamento das adaptações às circunstancias mutáveis, e à

regulamentação da vida prática do indivíduo e da igreja.117

B. B. Warfield escreve:

Deve-se observar, entretanto, que os ensinamentos e prescrições da Escritura

não estão confinados pela Confissão àquilo que ―é expressamente declarado na

Escritura‖. Exige-se que o homem creia e obedeça não apenas àquilo que ―é

expressamente declarado na Escritura‖, mas também ao que ―pode ser lógica e

claramente deduzido dela‖. Esta é a intensa e universal contenda da teologia

reformada contra os socinianos e os arminianos, que desejavam limitar a

autoridade da Escritura às sua asserções literais; e envolve uma característica

valorização da razão como instrumento de demonstração da verdade. Temos que

depender das nossas faculdades humanas para descobrir o que a Escritura diz; não

podemos renunciá-las abruptamente e rejeitar a sua orientação ao determinar o que

a Escritura significa. Evidentemente isso não objetiva fazer da razão a base da

autoridade das doutrinas e deveres inferidos. A razão é o instrumento usado para

descobrir todas as doutrinas e deveres, sejam eles ―expressamente declarados na

Escritura‖, ou ―lógica e claramente deduzidos dela‖: mas a autoridade deles, uma

vez descobertos, deriva de Deus, que os revela e os prescreve na Escritura, seja por

asserção literal ou por clara inferência. A Confissão é única em zelo, quando

declara que somente a Escritura é a regra autoritativa de fé e de prática, querendo

assim dizer que a Escritura como um todo é autoritativa na extensão total do seu

significado. Na Confissão está refletida a questão reformada de que o significado

da Escritura é Escritura, e que os homens estão moralmente obrigados ao

significado total de todas as suas implicações. O ressurgimento, nas recentes

controvérsias, da alegação de que a autoridade da Escritura deve se limitar às suas

declarações expressas, e que não se deve confiar na lógica humana para as coisas

divinas, é, portanto, uma negação direta de uma das posições fundamentais da

teologia reformada, explicitamente afirmada na Confissão, como é também uma

negação fundamental, que tornaria não apenas o uso da mente em um sistema

impossível, mas desacreditaria de uma só vez muitos dos fundamentos da fé —

tais como, por exemplo, a doutrina da Trindade — e envolveria logicamente a

negação da autoridade de toda e qualquer doutrina, pois nenhuma doutrina,

simples que seja, pode ser averiguada na Escritura exceto pelo uso do processo do

entendimento. Não é, portanto, um acidente sem importância que a recente

alegação contra o uso da lógica humana na determinação da doutrina tem sido

contundentemente apresentada com o objetivo de rejeitar uma doutrina que é

117

A. A. Hodge, The Confession of Faith (Carlisle, PA: Banner of Truth, 1961 [1869]), 39.

Page 77: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

explicitamente ensinada — e repetidamente — na própria letra da Escritura; se a

alegação tiver qualquer validade, destrói de imediato a nossa confiança em todas

as doutrinas, nenhuma das quais é descoberta ou formulada sem o auxílio da lógica

humana.118

William S. McClure escreve: ―Os mandamentos de Deus são tanto explícitos,

claramente decretados, quanto implícitos, resultado lógico, inferência clara tirada de

exemplo autoritativo, tal como o de Cristo e seus apóstolos‖.119

William Young escreve: ―Não é necessário que o modo de prescrição seja

explicitar um mandamento num único texto da Escritura. Os exemplos aprovados

sancionam um elemento de culto tão certamente quanto um preceito direto. Além do que,

uma lógica e clara inferência pode sancionar a aceitação do culto. Sem entrar em questões

controversas, como os meios apropriados de batismo, todos concordariam que a Escritura

autoriza a admissão de mulheres à mesa do Senhor, embora não se possa aduzir qualquer

mandamento expresso ou exemplo aprovado‖.120

Michael Bushell escreve:

Quando dizemos que qualquer elemento de culto requer sanção divina, não

queremos dizer que exige-se, para cada caso, um mandamento explícito em um

texto isolado. Não é necessário um mandamento, no sentido restrito do termo, para

estabelecer uma prescrição divina. Um exemplo aprovado ou a inferência de

relevantes dados bíblicos é suficiente para determinar a maneira apropriada de

culto. A Confissão de Fé opera distintamente assumindo que os princípios ―lógica

e claramente‖ derivados da Palavra nos obrigam moralmente, em seus mínimos

aspectos, tanto quanto aqueles ―expressamente declarados na Escritura‖. É notável

que haja tanta confusão nos círculos reformados quanto à validade desse princípio

essencial... A adoção da validade e caráter obrigatório do argumento da inferência

da Escritura é parte essencial da vida de cada cristão e está na base de cada

mandamento de doutrina ou fé que vai além das expressas palavras da Escritura.

Certamente podemos desejar, de tempos em tempos, questionar a validade das

inferências a que algumas pessoas chegam, mas esta é uma questão completamente

diferente da que se a igreja pode ou não obrigar a consciência de um crente tendo

por base uma inferência da Escritura.121

É importante que se entenda a ampla e apropriada interpretação do princípio

regulador, porque os anti-regulativistas apontam freqüentemente exemplos históricos na

Bíblia como textos de prova contra o sola scriptura no culto. Quando um anti-regulativista

encontra na Bíblia uma prática de culto que não tenha antes um divino imperativo por

escrito por trás dela, eles assumem que tais práticas devem ter se originado da tradição

118

B. B. Warfield, ―The Westminster Doctrine of Holy Scripture‖ in Works (Grand Rapids: Baker, 1981

[1931]), 6:226-227. Publicado originalmente em The Presbyterian and Reformed Review IV (1893), 582-655. 119

William S. McClure, ―The Scriptural Law of Worship‖ in John McNaugher, ed., The Psalms in Worship

(Edmonton, AB, Canada: Still Waters Revival Books, 1992 [1907]), 33. 120

William Young, The Puritan Principle of Worship (Vienna, Va: Publication Committee of the Presbyterian

Reformded Church, s.d.), 10. 121

Michael Bushell, The Songs of Zion (Pittsburgh, PA: Crown and Covenant, 1993 [1980]), 122-123.

Observe também: ―Tudo aquilo que não está ordenando na Escritura é proibido. Tudo o que a igreja faz no

culto deve estar sancionado por um explícito mandamento de Deus, ou ser deduzido de uma clara inferência,

ou derivar de um exemplo histórico aprovado (e.g., a mudança do dia de culto corporativo ao Senhor do

sétimo para o primeiro dia)‖ (Brian M. Schwertley, The Regulative Principle of Worship and Christmas

[Southfield, MI: Reformed Witness, 1996], 4).

Page 78: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

humana. Quando um regulativista puritano ou reformado encontra uma prática de culto que

é aprovada por Deus, contudo não acompanhada de mandamento explícito, assume-se (com

base na analogia da Escritura) que tal prática baseia-se em alguma revelação anterior que

não foi introduzida no cânon. Por exemplo, John Owen escreve:

Por um longo período de tempo aprouve a Deus guiar a Sua igreja em muitos

aspectos de Seu culto com novas revelações ocasionais, precisamente desde que

foi feita a primeira promessa a Adão até a entrega solene da lei de Moisés; pois

embora os homens tivessem, no decorrer dos tempos, muitas revelações

estabelecidas, que eram preservadas pela tradição entre eles, como a primeira

promessa, a instituição de sacrifícios, e coisas semelhantes, Deus, entretanto, os

guiou com novas revelações ocasionais quanto às urgentes e diversas necessidades

de Seu culto, e partes dele. Agora, não sendo essas revelações registradas na

Escritura, por serem apenas para o uso do momento ou da necessidade emergente,

não temos como conhecê-las a não ser por meio daqueles a quem aprouve a Deus

revelar-se, e que, ao praticá-las acharam nEle aceitação em bom testemunho. Seja

o que for que fizeram, eles tinha a sanção especial de Deus para isso; como no

próprio caso da grande instituição de sacrifícios, que é argumento suficiente [para

provar] que foram divinamente instituídos, pois eram graciosamente aceitos.122

Os oponentes do princípio regulador argumentam que o entendimento reformado

ou puritano de ―exemplos históricos aprovados‖ é uma alegação que incorre em petição de

princípio (i.é, que pressupõe o que se quer demonstrar); ou que é um argumento de

silêncio; ou que os regulativistas são culpados de forçar a prova ajustando-a ao seu próprio

ponto de partida deficiente. Todas essas objeções são, entretanto, fáceis de serem refutadas

quando se entende a convincente inferência da Escritura e se obedece aos procedimentos

padrão de interpretação protestante.

Um dos princípios mais fundamentais da interpretação bíblica é que a Escritura

não pode contradizer a si mesma. Um outro importante princípio é que quando duas ou

mais passagens parecem contradizer uma à outra, as porções mais claras da Escritura

devem ser utilizadas para interpretar a menos clara. Se essas regras de interpretação forem

seguidas, será simples determinar que o entendimento de um exemplo histórico aprovado é

bíblico.

Observe as muitas razões por que a abordagem relativista deve ser aceita: (1) Há

na Bíblia muitas passagens que condenam, inequivocamente, fazer acréscimos à palavra da

lei de Deus (e.g., Dt. 4:2; 12:32; Pv. 30:5); (2) O homem não tem permissão para

determinar autonomamente a sua própria ética, teologia, ou culto; (3) Há também passagens

em que tanto Cristo (e.g., Mt. 15:2-9; Mc. 7:1-13) quanto Paulo (e.g., Cl. 2:20-23)

condenam as tradições humanas no culto. Essas passagens não são difíceis de entender, se

houver disposição para aceitar o que dizem. Dado o claro ensinamento da Escritura quanto

ao acréscimo de tradições humanas à ética ou ao culto, qual interpretação deve-se escolher

ao se deparar com Jesus ou com os apóstolos envolvidos num culto que não está discutido

especificamente nas Escrituras do Velho Testamento?

Ao se argumentar que Jesus, por ir à sinagoga, estava aprovando as tradições

humanas no culto, é porque se optou por uma interpretação que contradiz as claras porções

da Escritura. Ao se defender que as passagens de sola scriptura e do princípio regulador

122

John Owen, ―The Word of God the Sole Rule of Worship‖ in Works (Carlisle, PA: Banner of Truth, 1967

[1644]), 13:467.

Page 79: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

devem ser reinterpretadas à luz de textos tais como a participação de Jesus no culto da

sinagoga, ou como a mudança do culto público para o domingo, então se é culpado de usar

passagens que nem mesmo falam diretamente da questão da tradição humana no culto (que

por isso não são passagens claras) para se derrubar as passagens claras que, de fato, tratam

diretamente da questão dos acréscimos humanos. Quando os regulativistas tratam de

passagens onde Deus aceita o culto oferecido, conquanto não estejam acompanhados de

imperativos divinos, eles não estão simplesmente usando o argumento do silêncio ou

impondo um ponto de partida ou pressuposição arbitrárias ao texto. Em vez disso, mantêm-

se apoiados no claro ensinamento geral quanto ao culto e por isso inferem legitimamente

que aquilo que Deus aceita não pode ser ―doutrinas e mandamentos de homens‖.

A posição regulativista não se sustenta apenas nos procedimentos padrões da

hermenêutica bíblica, mas também numa inspirada interpretação neotestamentária de uma

prática de culto do Velho Testamento que não se acompanha de quaisquer mandamentos

divinos escritos. Gênesis 4:3-5 diz: ―Aconteceu que no fim de uns tempos trouxe Caim do

fruto da terra uma oferta ao SENHOR. Abel, por sua vez, trouxe das primícias do seu

rebanho e da gordura deste. Agradou-se o SENHOR.de Abel e de sua oferta; ao passo que

de Caim e de sua oferta não se agradou. Irou-se, pois, sobremaneira, Caim, e descaiu-lhe

o semblante‖. Nessa passagem o sacrifício de sangue de Abel foi aceito, ao passo que a

oferta de Caim, do fruto da terra e sem sangue, não foi. Observe que não há, no livro de

Gênesis, registros prévios de imperativos divinos quanto ao sacrifício de sangue. Ao se

aplicar nessa passagem a mesma interpretação não-regulativista que tem sido utilizada para

Jesus e o culto na sinagoga, poder-se-ia concluir, então, que Deus preferiu a tradição

humana de Abel, e não a de Caim. O autor da carta aos Hebreus rejeita implicitamente a

interpretação não-regulativista quando diz que ―Pela fé, Abel ofereceu a Deus mais

excelente sacrifício do que Caim‖ (Hb. 11:4). A fé bíblica pressupõe a revelação divina. Ao

longo de todo capítulo 11 de Hebreus a fé é tratada como a crença na Palavra de Deus que

resulta em obediência à Sua vontade revelada. Qualquer idéia de que a oferta de Abel

baseava-se apenas na razão, ou de que a sua aceitação, pela parte de Deus, foi arbitrária ou

baseou-se apenas no estado subjetivo do coração de Abel, deve ser rejeitada como não

bíblica. John Brown concorda:

Embora não tenhamos qualquer registro particular da instituição do sacrifício, a

teoria de que se originou de uma divina determinação expressa, é a única

plausível. A idéia de se expressar sentimentos religiosos, ou de se expiar o pecado,

pelo derramar do sangue de animais, jamais poderia ter surgido na mente do

homem. Lemos que Deus cobriu os nossos primeiros pais com pele de animais, e a

explicação mais provável dessa questão é que essas eram as peles dos animais que

Ele lhes ordenou oferecer em sacrifício. Já vimos, nas nossas ilustrações do nono

capítulo, versículo 16, que todas as alianças divinas, que todas as misericordiosas

medidas quanto ao homem caído, têm sido ratificadas pelo sacrifício. A declaração

de misericórdia contida na primeira promessa parece ter sido acompanhada da

instituição do sacrifício expiatório. E o sacrifício expiatório, quando oferecido pela

fé na revelação divina referente a ele, era aceitável a Deus, tanto como a forma

determinada de expressar a consciência de culpa e castigo, e de esperança de

misericórdia, e quanto como um ato de obediência à vontade de Deus. Ao que

parece, Caim não cria nesta revelação e não via nem sentia a necessidade do

sacrifício expiatório, e que a sua religião consistia meramente no reconhecimento

da Divindade como a autora dos benefícios que ele gozava. Abel, por sua vez, creu

Page 80: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

na revelação. Reconhece-se prontamente como um pecador, e expressa o seu

arrependimento e a sua esperança de perdão na forma determinada por Deus. Ao

crer no que Deus disse, fez o que Ele ordenou.123

A passagem de Hebreus 11:4 oferece inquestionável prova bíblica de que o culto

aceitável não pode ser apoiado pela tradição, ou baseado na sabedoria e imaginação do

homem, mas sim na fé em Deus e em Sua infalível Palavra. O culto aceitável fundamenta-

se apenas na fé na revelação divina. Portanto, ao se considerar que Noé ofereceu animais

limpos, ou que os apóstolos guardaram o sábado no primeiro dia da semana, ou que Jesus e

Paulo leram e expuseram as Escrituras na sinagoga (tudo isso sem estar acompanhado de

explícitos imperativos divinos), não se deveria imaginar jamais que essas práticas aceitáveis

de culto se fundamentassem na tradição humana. Elas baseavam-se na fé na Palavra falada

de Deus.124

123

John Brown, Hebrews (Carlisle, PA: Banner of Truth, 1963 [1862]), 493-494. 124

Uma objeção ao conceito puritano e reformado de exemplos históricos aprovados da Escritura é dizer que

ele é farisaico e católico romano. Argumenta-se que os teólogos reformados, ao assumirem que os exemplos

históricos baseiam-se numa revelação anterior que não foi registrada por escrito, estão defendendo uma forma

de sujeição e tradição oral normativa. Esta comparação com os fariseus e católicos romanos é um ataque ad

hominem [argumento com que se procura confundir o adversário, opondo-lhe seus próprios atos ou palavras,

N.E.] inteligente, contudo injustificado. Os fariseus e os católicos romanos foram e são culpados de

acrescentarem suas próprias doutrinas e mandamentos àquilo que a Bíblia ensina. Eles justificam suas adições

às Escritura advogando uma fonte de revelação divina que é independente da Bíblia. Os judeus têm o

Talmude (que na versão inglesa chega a 34 grandes volumes) e os católicos romanos têm os pais da igreja, os

concílios, os decretos e as declarações papais. Os pastores e teólogos puritanos e reformados nada

acrescentam de si mesmos à doutrina ou mandamento da Escritura. Eles não crêem em quaisquer fontes

independentes de revelação fora da Bíblia. Eles simplesmente inferem da própria Bíblia que nas poucas

ocorrências em que Deus é descrito com aceitando práticas de culto que não se acompanham de instruções

[bíblicas] explícitas, as pessoas envolvidas (tais como Abel, Gn. 4:3, ou Noé, Gn. 8:20) fundamentaram as

suas práticas numa prévia comunicação de Deus. Conforme observado acima, a interpretação reformada é

uma convincente inferência da Escritura. Os exemplos históricos aprovados procedem apenas do texto da

Escritura, e não de algum tipo independente de tradição oral farisaica ou romana. Uma coisa é inferir uma

comunicação tendo por base um texto particular da Escritura, e outra bem diferente é postular que Deus falou

todo o Talmude a Moisés no monte Sinai. Os oponentes do princípio regulador estão comparando maçãs com

laranjas, e eles sabem disso. Quem é que tem mais coisa em comum com os fariseus ou romanistas? Aquele

que acrescenta as suas próprias tradições humanas àquilo que Deus autorizou? Ou aquele que se recusa a fazer

acréscimos à Palavra de Deus?

Page 81: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

Resumo e Conclusões

Este estudo do sola scriptura e da sua relação com o princípio regulador do culto

comprovou uma série de importantes afirmativas. Primeiro, demonstrou que as regras do

culto formulados pelos reformadores calvinistas e registrada em todos os credos e

confissões reformadas é totalmente bíblica. O culto reformado deveria ser adotado por

todos os que se professam cristãos. Aqueles que zombam do princípio regulador, e instam

aos crentes reformados que abandonem esse sustentáculo crucial da Reforma não deveriam

receber a menor atenção (Na verdade eles deveriam ser intelectualmente honestos e se

filiarem à igreja episcopal).

Em segundo lugar, a análise dos pontos de vista não-reformados do culto trouxe à

tona vários problemas insolúveis de ordem teológica, exegética, lógica e ética que são

intrínsecos a essas teorias:

1. A idéia de que ao homem é permitido fazer acréscimos no culto autorizado por

Deus em Sua Palavra contradiz o expresso ensinamento da Escritura. Simplesmente não há

qualquer maneira pela qual os homens possam burlar o claro sentido das passagens de sola

scriptura sem que alterem o seu contexto e sentido histórico óbvio. Jeová diz: ―Nada

acrescentareis à palavra que vos mando, nem diminuireis dela‖. Nada há de complexo ou

difícil ou esotérico quanto às passagens regulativistas. Uma acusação que sempre se faz diz

que o princípio regulador é em si mesmo um acréscimo humano à Escritura. Isso não tem o

menor fundamento. Deus diz-nos: ―nada acrescentareis... nem diminuireis‖, e os

regulativistas se recusam a fazer acréscimos ou subtrações. O princípio regulador é

simplesmente uma reafirmação teológica do evidente ensinamento da Palavra de Deus. Aos

que consideram o princípio regulador como um acréscimo não-bíblico, perguntamos: Como

pode ser errado obedecer rigorosamente ao que a Bíblia ensina? Quando foi que a Igreja se

prejudicou por seguir ao que a Bíblia ensina, sem se desviar para a direita ou para a

esquerda? Acaso estão errados os regulativistas ao se recusarem a obedecer às tradições dos

homens que não possuem qualquer ratificação da Palavra de Deus? Pode um membro ser

disciplinado por recusar-se a participar de ritual inventado por homens? Se a resposta a esta

questão for ―sim‖, então que se explique como é possível disciplinar um cristão que nada

violou da Escritura. Os católicos e as lideranças eclesiásticas têm uma resposta à essa

questão. Nós, entretanto, não damos ouvidos às palavras do Anticristo.

2. A idéia de que aos homens é permitido acrescentar suas próprias inovações ao

culto autorizado é também uma negação da suficiência e perfeição da Palavra de Deus. As

ordenanças que Deus deu à igreja são suficientes ou são inadequadas? Se se acredita que

não são suficientes, então é favor identificar o que está faltando. Se se acredita que são

suficientes, então por que acrescentar ordenanças desnecessárias? Faça-se também o favor

de explicar como é que as doutrinas e mandamentos de homens podem aperfeiçoar a

Palavra de Deus e conduzir à edificação? Não advertiu o apóstolo Paulo à igreja que as

ordenanças humanas não são sabedoria verdadeira e nem santificam? (Cl. 3:23). O que

haveria de pensar um grande pintor como Claude Monet (1840-1926) se dessem tintas a

pessoas totalmente incapacitadas ou inexperientes na área artística e lhes permitissem

alterar e ―aperfeiçoar‖ as suas pinturas como achassem melhor? Tais atos seriam o cúmulo

da estupidez e arrogância. Entretanto, os homens fazem muito pior quando fazem

acréscimos à santa, suficiente e perfeita Escritura de Deus.

3. As teorias não-reformadas não consideram apropriadamente a natureza e o

Page 82: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

caráter de Deus (e.g., Sua infinita santidade, majestade, justiça, etc.) e a natureza

pecaminosa do homem. A idéia de que após a queda os homens (mesmo regenerados)

possam oferecer, conforme seus próprios termos e regras, um culto aceitável ao Deus trino

é contrária à Escritura e ao senso comum santificado. James Begg escreve:

Todo verdadeiro cristão há de concordar que o homem pecador não tem

absolutamente qualquer direito de vir à presença de Deus. A amizade outrora

existente no Éden foi espedaçada pela queda. Foi Deus que ―o lançou fora‖, e

somente Deus poderá dizer se e em que condições, será permitido ou não ao

homem aproximar-se novamente do Seu trono. É clara presunção da parte de

criaturas caídas determinarem a Deus que não haverá nenhum culto ou que forma

ele terá. Ao adentrar-se nas cortes dos reis terrenos, mesmo naquelas onde se

concede tal direito, todo o seu protocolo deve ser obedecido à risca; e quão mais

importante é entrar, por graciosa permissão, na presença imediata do Rei dos reis e

Senhor dos senhores.125

O culto de Jeová deve ser sincero, através de Jesus Cristo, e precisa ser

divinamente designado. A razão humana decaída jamais deveria ter um papel criativo

independente ao fixar doutrina, ética, ou ordenanças de culto. Ela tem que depender

totalmente da Escritura.

4. É impossível aos homens impor inovações humanas no culto público sem que se

violente a liberdade cristã de seus congregados. Todos os rituais e cerimônias no culto

público que são fabricados pelos homens envolvem invariavelmente algum tipo de

imposição humana. Deus ordena que os crentes participem de um culto público sabático.

Quando bispos, pastores ou assembléias introduzem no ato de culto público rituais ou

cerimônias criados pelos homens, eles forçam seus congregados: (a) a participarem em

culto indevido não-autorizado ou, (b) a não se apartarem de corrupções bíblicas. A idéia

não-regulativista de que as tradições humanas são permissíveis no culto público (do ponto

de vista da liberdade cristã) só pode ser defendida de duas formas, que são antibíblicas e

arbitrárias.

Um desses métodos de defesa argumenta que Deus deu à igreja um poder

independente da Escritura. Noutras palavras, bispos, pastores e Conselhos não apenas

podem acrescentar as suas próprias invenções ao culto público, como também têm

autoridade para obrigar os membros da igreja (sob a ameaça de disciplina e excomunhão, se

necessário) a se submeterem às novas ordenanças humanas. Essas posições não são nada

menos que papismo e monarquismo eclesiástico da pior espécie (Este autor desconhece que

haja algum escritor anti-regulativista ―reformado‖ ou ―presbiteriano‖ que tenha usado

argumento romanista tão gritante).

A defesa mais comum é que os ritos e cerimônias humanamente inventados estão

dentro da esfera da adiaforia, ou questões indiferentes. O problema desta perspectiva é que

ela se apóia numa falsa e arbitrária definição de adiaforia. O que são questões indiferentes?

Para alguma coisa ser indiferente é preciso: (1) que não seja determinada nem exigida pela

Escritura; (2) que seja verdadeiramente circunstancial ao culto, e não um elemento ou parte

essencial dele; (3) que seja opcional ou voluntário; (4) que não seja algo necessário (i.é, que

pode ser eliminado a qualquer momento, diferentemente de oração, pregação, Ceia do

Senhor, etc.). Quando uma congregação adiciona qualquer tradição humana ao ato de culto

público, tal prática não pode ser honestamente considerada como adiafórica porque:

125

James Begg, Anarchy in Worship, 4-5.

Page 83: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

(1) como parte do ato de culto ela não é mais opcional ou voluntária, a menos que alguém

se retire ou se recuse a participar; (2) é colocada lado a lado, e recebendo o mesmo

tratamento que, os elementos ordenados; (3) é parte essencial da adoração ou (4) como

parte do culto público ela é explicita ou implicitamente imposta obrigatoriamente. Embora

as igrejas possam se referir às tradições humanas como adiafóricas, para justificar-lhes o

uso no culto público, elas, na prática, nunca agem como se tais adições fossem indiferentes.

Quando as palavras são definidas de modo arbitrário, pode-se significar com elas o que

bem se quiser. O argumento da adiaforia é uma desculpa fundamentada numa mentira.126

Terceiro, a análise das objeções mais comuns ao princípio regulador mostrou que

elas não se fundamentam numa cuidadosa exegese da Escritura, mas em mal-entendidos,

distorções e pura especulação. Alguns se baseiam no entendimento distorcido das

passagens de sola scriptura e adiaforia. Outros têm por base uma falsa definição do

princípio regulador. Outros, igualmente, dependem de um falso entendimento sobre as

circunstâncias de culto. A maioria dos argumentos, entretanto, alicerçam-se em pura

especulação. Criam-se teorias com material extra-bíblico (com a Mishnah, por exemplo) e

então forçam-nas sobre a passagem da Escritura em questão.

A doutrina do sola scriptura e do princípio regulador do culto precisa ser ensinada,

enfatizada, e rigorosamente defendida nesses dias de declínio, ignorância e apatia. A luta

heróica de Calvino, Knox, Melville, os puritanos ingleses e os pactuantes escoceses pela

reforma do culto precisa continuar. Nunca será demais enfatizar este ponto nos dias de hoje,

quando o culto bíblico tem sido atacado por todos os lados; quando os maiores oponentes

do culto reformado procedem do campo supostamente reformado e teonômico. Tais

pessoas, desafiando as Escrituras, procuram ―melhorar‖ o culto a Deus através de suas

próprias invenções; procuram anular a liberdade que Cristo nos concedeu das doutrinas,

mandamentos e tradições dos homens; zombam arrogantemente das conquistas de nossos

pais espirituais. Esses assim chamados mestres da lei oferecem-nos autonomia humana e a

126

A posição não-regulativista tem outros problemas sérios que precisam ser abordados. Um problema muito

sério, que todo cristão deveria observar pela Escritura e pela história da igreja, é que os acréscimos humanos à

ética, ao culto, à doutrina ou governo eclesiásticos, como estabelecidos na Bíblia, descartam, invariavelmente,

aquilo que Deus sancionou em favor das tradições criadas pelos homens. O que ocorre é que os homens

simplesmente não se contentam em limitar cuidadosamente as suas próprias tradições. As inovações são

acrescentadas aqui e acolá e essas novas adições tornam-se, por fim, amadas e ―indispensáveis‖ aos

governantes da igreja e às suas congregações. Umas poucas tradições criadas pelos homens podem, à primeira

vista, não parecer um problema, mas deve-se ter em mente que a igreja é uma instituição muito antiga. Ao

longo do tempo as inovações criadas pelos homens acumulam-se até que a doutrina e o culto da igreja ficam

radicalmente modificados. No decorrer das muitas gerações tantas doutrinas, mandamentos e inovações de

culto criadas pelo homem são acrescentados à igreja, que o puro culto evangélico, e mesmo o próprio

evangelho, fica obscurecido e até mesmo perdido. Isso ocorreu em diferentes graus ao judaísmo, ao

catolicismo romano, à ortodoxia oriental, ao evangelicalismo e mesmo a muitas igrejas reformadas. As

pessoas que rejeitam o princípio regulador não possuem qualquer sólido fator de limitação que restrinja os

seus próprios acréscimos. Quantas inovações são aceitáveis? Quando deveremos parar de acrescentar mais?

Os pastores que atacam o princípio regulador dizem que não há motivos de preocupação, ―o Conselho

manterá os acréscimos sob controle‖. A verdade, entretanto, é que sem o princípio regulador é quase

impossível se livrar das tradições humanas. Uma vez que a tradição seja amada e aceita pela congregação

(e.g., o Natal), ai do pastor que tentar livrar a igreja desses elementos não-ordenados! O único método seguro

pelo qual pode-se depender para evitar-se as corrupções criadas pelo homem é demarcar o limite do conteúdo

e cerimônia do culto onde Deus fixou. Permitir que homens pecadores façam e refaçam essas fronteiras, como

lhes aprouver, tem sido um desastre total para a igreja. A repreensão de Jesus aos fariseus tem uma aplicação

muito ampla: ―assim, invalidastes a palavra de Deus, por causa da vossa tradição‖ (Mt. 15:6).

Page 84: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

tirania dos oficiais da igreja, tudo em nome da liberdade cristã. Qual é a ―grande‖ prova que

se nos oferece para que abandonemos os nossos credos e confissões em favor das tradições

humanas acrescentadas ao culto? São basicamente especulações estribadas na Mishnah. O

amor pelas tradições humanas tem feito muitos mestres e doutores, normalmente

competentes, recorrerem a acrobacias exegéticas e a lucubrações distorcidas da pior

espécie. A nossa melhor defesa contra tais argumentos romanizantes é uma ofensiva

vigorosa. A grande verdade do sola scriptura, ensinada e acompanhada pelo Espírito de

Deus, invadirá a cortina de fumaça da confusão e da ignorância e destroçará as colunas do

papismo e da ditadura de uma liderança eclesiástica. Para garantir este grandioso final,

trabalhemos e oremos com fervor.

Page 85: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

Apêndice A

João Calvino e o princípio regulador

João Calvino (1509-1564) foi o maior teólogo e expositor bíblico da Reforma

Protestante. Através da academia teológica em Genebra e de seus muitos escritos, Calvino

fez mais do que qualquer um para moldar a doutrina e o culto das igrejas presbiterianas,

reformadas e puritanas. O ensinamento de Calvino quanto ao culto reflete-se claramente em

todos os diversos credos e confissões reformados: A Confissão Francesa (1559), a

Confissão Escocesa (1560), a Confissão Belga (1561), o Catecismo de Heidelberg (1536), a

Segunda Confissão Helvética (1566), e os Padrões de Westminster (1643-1648).

É importante que os crentes que se autodenominam de reformados ou

presbiterianos tenham, por várias razões, um certo conhecimento da perspectiva de Calvino

sobre o culto (em particular do princípio regulador). Em primeiro lugar, porque vivemos

dias de sério declínio no que concerne ao culto em muitas das denominações que são

consideradas como reformadas. Muitos pastores, mestres e presbíteros das igrejas

―reformadas‖ rejeitam, tanto diretamente quanto por subterfúgios, o culto reformado em

favor de uma concepção luterana ou episcopal. Segundo, por conta dessa decadência e

ignorância tem havido um reducionismo do que significa ser reformado. Tanto para

Calvino quanto para Knox, reformado significava mais do que uma soteriologia bíblica,

significando também uma concepção bíblica de adoração (i.é, o princípio regulador). Hoje

o termo reformado é usado para alguém que aceita meramente os cinco pontos do

calvinismo. Assim, temos hoje pastores e organizações que se vangloriam de ser

―verdadeiramente reformados‖ ou ―neo-puritanos‖ que, há alguns séculos, atrás teriam sido

considerados anti-puritanos e não-reformados. Terceiro, hoje muitos têm a opinião de que a

pureza do culto não deveria ser uma das maiores preocupações da igreja. As pessoas que se

preocupam com tais questões são freqüentemente desdenhadas. Contudo, Calvino (no que

respeita à religião cristã) considerava que o verdadeiro culto a Deus não era superado por

nada em ordem de importância. Em ―A Necessidade de Reformar a Igreja‖ ele escreve: ―Se

for questionado, então, quais são os principais motivos pelos quais a religião cristã tem uma

duradoura existência entre nós, saber-se-á que os dois a seguir não apenas ocupam o lugar

principal, mas compreendem neles todas as outras partes, e conseqüentemente toda a

substância do cristianismo, a saber, o conhecimento, primeiro, do modo pelo qual Deus é

devidamente adorado; e, segundo, de que fonte deve-se obter a salvação. Quando essas

duas são mantidas fora de perspectiva, embora possamos nos gloriar no nome de cristão, as

nossas profissões serão vazias e vãs‖.127

Segue-se uma série de citações de João Calvino que revelam a sua doutrina sobre o

culto. Calvino foi o defensor e principal expositor do que viria a se chamar de princípio

regulador do culto.

Levítico 10:1

Nadabe e Abiú, filhos de Arão. Registra-se aqui uma notável circunstância, através

da qual se evidencia quão grandemente Deus abomina todo pecado que corrompe a pureza

da religião. Era aparentemente uma transgressão leve usar fogo estranho para queimar

incenso; por outro lado, a atitude impensada deles pareceria inescusável, pois Nadabe e

127

John Calvin, ―The Necessity of Reforming the Church‖ in Selected Works: Tracts and Letters, Henry

Beveridge, ed. (Grand Rapids: Baker, 1983 [1844]), 1:126.

Page 86: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

Abiú certamente não desejaram insubordinada e intencionalmente contaminar as coisas

sagradas, mas, como é na maioria das vezes em questão de novidade, ao se aplicarem tão

avidamente a elas, a precipitação deles os induziu ao erro. A severidade da punição,

entretanto, não agradaria àqueles arrogantes que não hesitam em criticar desdenhosamente

dos juízos de Deus; mas se ponderarmos em quão sagrado é o culto a Deus, a enormidade

da punição não nos escandalizará de modo alguma. Além disso, era necessário que a

religião deles fosse aprovada bem no seu começo, porque se Deus tivesse suportado a

transgressão dos filhos de Aarão sem os ter punido, eles haveriam de negligenciar toda a

Lei posteriormente. Esta foi, portanto, a razão de tão grande severidade: os sacerdotes

deveriam zelar fervorosamente contra toda profanação. O crime deles foi especificado, a

saber, que eles ofereceram incenso numa forma diferente da qual Deus havia designado, e

conseqüentemente, embora tenham errado por ignorância, foram ainda assim declarados

culpados pelos mandamentos de Deus, por terem se aplicado negligentemente àquilo que

era digno da maior atenção. O ―fogo estranho‖ distinguia-se do fogo sagrado que estava

sempre queimando sobre o altar, não miraculosamente, como o querem alguns, mas pela

constante vigilância dos sacerdotes. Agora, Deus havia proibido que se utilizasse qualquer

outro fogo nas ordenanças, para excluir todos os rituais estranhos, e para mostrar o Seu

ódio por tudo que poderia ser proveniente de outra parte qualquer. Aprendamos, portanto, a

dar ouvidos aos mandamentos de Deus para não corrompermos o Seu culto com qualquer

invenção estranha. Mas se Ele vingou severamente esse erro, quão horrível condenação

aguarda os papistas, que não se envergonham de defender obstinadamente tantas

corrupções grotescas?128

Levítico 22:32

Não profanareis. Ao proibir a profanação de Seu nome, Ele confirma com outras

palavras o sentimento anterior, preservando, por elas, o Seu culto de todo tipo de

corrupção; para que seja conservado em pureza e integridade. A cláusula que vem

imediatamente aposta tem o mesmo objetivo, porque os que não se desviam do culto

legítimo e sincero santificam o nome de Deus. Que se observe isso cuidadosamente, sejam

quantas forem as invenções dos homens, tantas serão as profanações do nome de Deus; pois

embora os supersticiosos possam, pela própria imaginação agradar a si mesmos, toda a

religião deles está ainda assim cheia de sacrilégios, pelo que Deus se queixa que a Sua

santidade é profanada.129

Números 15:39

E, primeiro que tudo, ao contrastar o ―coração‖ e os ―olhos‖ dos homens com a

Sua Lei, Ele mostra que o Seu povo deverá estar satisfeito com o preceito que Ele

prescreve, sem misturar com nada da imaginação deles; e, portanto, condena abertamente a

futilidade de qualquer coisa que o homem invente para si mesmo, e conquanto lhes pareça

agradável qualquer plano humano, Ele continua a repudiá-lo e a condená-lo. E isso está

mais claramente explicitado na última palavra, quando Ele diz que os homens andam

―adulterando‖ sempre que são governados por seus próprios conselhos. Tal declaração é

digna da nossa especial atenção, porque enquanto os que cultuam Deus segundo sua própria

vontade têm grande auto-satisfação, e enquanto consideram seu próprio zelo como muito

128

John Calvin, Commentaries on the Four Last Books of Moses (Grand Rapids: Baker, 1981), 3:431-432. 129

Ibid., 1:344.

Page 87: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

bom e legítimo, eles nada mais fazem que se contaminar pelo adultério espiritual. Pois

aquilo que o mundo considera ser a mais santa devoção, Deus com a Sua própria boca

condena como fornicação. Pela palavra ―olhos‖ Ele quer significar inquestionavelmente a

capacidade de discernimento do homem.130

Deuteronômio 4:1

Agora, pois, ó Israel, ouve. Ele requer que o povo se disponha a aprender, para que

aprendam a servir a Deus, pois o princípio de uma vida boa e justa está em conhecer o que

é agradável a Deus. A partir daí, então, Moisés começa a ordenar-lhes que procurem

atentamente a orientação da Lei, e os admoesta a provarem pela inteireza das suas vida que

eles lograram apropriadamente da Lei. A promessa aqui introduzida, apenas os convida à

obediência irrestrita pela esperança da promessa. O ponto central é que eles nada poderiam

acrescentar nem diminuir da pura doutrina da Lei, o que não será possível a menos que o

homem renuncie primeiramente aos seus sentimentos particulares, e feche os ouvidos a

todas as imaginações dos outros. Ninguém, pois, será tido como (verdadeiro) discípulo da

Lei, a não ser os que dela obtêm a sua sabedoria. É como se Deus os ordenasse a estarem

contentes com os Seus preceitos, pois não há outro modo de guardarem a Lei, exceto

entregando-se totalmente ao ensinamento dela. Segue-se daí que só obedecem a Deus os

que dependem unicamente da Sua autoridade, e só honram legitimamente à Lei os que não

aceitam nada que se oponha ao seu sentido natural. É uma passagem notável, condenando

abertamente tudo aquilo que a ingenuidade humana possa inventar para o culto a Deus.131

Deuteronômio 12:32

Tudo o que eu te ordeno. Nessa breve cláusula ele [Moisés] ensina que nenhum

outro ato de culto a Deus é legítimo, exceto o que tem o testemunho da Sua aprovação em

Sua Palavra, e que a obediência é, por assim dizer, a mãe de toda piedade; [é] como se ele

tivesse dito que todos os modos de devoção, não dirigidos por esse preceito, são absurdos e

contaminados pela superstição. Daí deduzimos que a guarda do primeiro mandamento

exige o conhecimento do verdadeiro Deus, derivado da Sua Palavra, e associado à fé. Ao

proibir o acréscimo ou diminuição de qualquer coisa, ele claramente condena como

ilegítimo tudo o que os homens inventam pela sua própria imaginação.132

2Samuel 6:6-12

Ademais, devemos por isso concluir que nenhuma de nossas devoções serão

aceitáveis a Deus a menos que estejam conformadas à Sua vontade. Tal preceito lança por

terra todas as invenções humanas do assim chamado culto a Deus do papado, que é tão

cheio de pompa e tolice. Diante de Deus tudo isso nada mais é que puro lixo e verdadeira

abominação. Tenhamos em mente, portanto, essa inequívoca regra: querer adorar a Deus

segundo as nossas próprias idéias é simplesmente abuso e corrupção. Antes, pelo contrário,

precisamos ter o testemunho da Sua vontade para seguirmos e submetermo-nos àquilo que

nos tem ordenado. É assim que a adoração que prestamos a Deus será aprovada.133

130

Ibid., 1:365. 131

Ibid., 1:344-345. 132

Ibid., 1:353. 133

John Calvin, Sermons on 2 Samuel (Carlisle, PA: Banner of Truth, 1992), 246.

Page 88: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

Isaías 29:13

No segundo ponto, Deus, ao ser adorado por meio de invenções humanas, condena

esse ―temor‖ como supersticioso, embora os homens se esforcem em disfarçá-lo de

pretensa religião, devoção, ou reverência plausíveis. Ele aponta a razão, que é,

―mandamentos de homens, que maquinalmente aprendeu‖. Eu considero que melummadah

tem um sentido de passividade, pois Ele quer dizer que fazer dos ―mandamentos de

homens‖, e não da Palavra de Deus, a regra para adorá-lO, é uma subversão de ordem. A

vontade do nosso Deus, entretanto, é que o ―temor‖ e a reverência com que O adoramos

devam ser regulados pela Sua Palavra, e Ele não exige mais que uma mera obediência, pela

qual devamos nos conformar, e todas as nossas atitudes, à Palavra, sem nos desviarmos

para direita ou para a esquerda.

Isso prova suficientemente que todos os que aprendem, por meio das ―invenções

dos homens‖, como deveriam adorar a Deus, não são apenas néscios incontestes, mas

desgastam-se em destrutivo labor, pois não fazem mais que provocar a ira de Deus. Ele,

portanto, não poderia demonstrar mais claramente quão grande abominação sente pelo falso

culto, do que pela tremenda severidade dessa punição.134

Jeremias 7:21-24

Ele acrescenta adiante que ―andaram nos seus próprios conselhos‖, e também, ―na

dureza do seu coração maligno‖. Essa comparação agrava o pecado deles — os judeus

preferiram seguir os seus próprios caprichos a obedecerem a Deus e aos Seus

mandamentos. Se algo tivesse sido colocado diante deles que os houvesse enganado e

obscurecido a autoridade da lei, ainda haveria uma desculpa, mas como nada havia que os

impedisse de obedecer ao mandamento de Deus, exceto o seguirem à sua tola imaginação,

eles ficaram totalmente inescusáveis. Pois que desculpa poderiam inventar? Que quiseram

ser mais sábios que Deus! Que grande loucura foi essa, e quão diabólica? Mas o profeta não

lhes deixa escapatória a não ser essa vã escusa, o que duplicou-lhes a culpa. Não há dúvida

que pensaram ter seus corações bem ajustados ao propósito, mas ele aqui não lhes permite

que julguem, antes os condena clara e merecidamente.

Devemos prestar especial atenção a essa passagem, pois a maioria dos homens de

hoje opõem as suas próprias fantasias à Palavra de Deus. Na verdade os papistas pretextam

a antiguidade; dizem que foram ensinados por seus antecessores, e ao mesmo tempo

patrocinam os concílios e as ordenanças dos pais [da igreja], contudo não há um deles

sequer que não seja apegado às suas próprias invenções, e que não tome a liberdade, ou

melhor, a desenfreada libertinagem, de rejeitar o que bem lhe apraz. Além disso, se se levar

em conta a origem de todo o culto papal, ficará evidente que os primeiros a criarem tantas

superstições estranhas foram movidos somente pela audácia e presunção, para que

pudessem calcar aos pés a Palavra de Deus. Por isso é que tudo se tornou corrupto, pois

introduziram todas as estranhas fantasias de suas mentes. E vemos que os papistas hoje

estão tão perversamente arraigados nos próprios erros que preferem a si mesmos, e às suas

quinquilharias, a Deus. A situação é a mesma com todos os heréticos. Então, que deve ser

feito? Como já disse, deve-se defender a obediência como a base de toda verdadeira

religião. Se, então, por outro lado, desejarmos apresentar a Deus o nosso culto por Ele

aprovado, aprendamos a lançar fora tudo que for de nós mesmos, de modo que a Sua

134

John Calvin, Commentary on the Book of the Prophet Isaiah (Grand Rapids: Baker, 1981), 1:397-398.

Page 89: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

autoridade prevaleça acima de todas as nossas razões.135

Jeremias 7:31

O que nunca ordenei, nem me passou pela mente. Esse motivo deveria receber

cuidadosa atenção, porque nele Deus corta do homem toda a possibilidade de inventar

subterfúgios, pois, com uma única frase, Ele condena tudo aquilo que os judeus inventaram:

―O que nunca ordenei‖. Portanto, não é necessário, além desse, qualquer argumento para se

condenar as superstições — que elas não são ordenadas por Deus — pois quando os

homens dão a si mesmos o direito de adorarem a Deus segundo as suas próprias concepções

fantasiosas, e não obedecem aos Seus mandamentos, eles pervertem a verdadeira religião. E

se esse princípio fosse adotado pelos papistas, todos aqueles fantasiosos modos de culto, a

que absurdamente se aplicam, ruiriam por terra. É verdadeiramente algo horrível que os

papistas procurarem se desincumbir de seus deveres para com Deus exercitando as suas

próprias superstições. Há um enorme número delas, como bem se sabe, e como claramente

se manifestam. Se admitissem esse princípio, que não podemos adorar a Deus corretamente

exceto obedecendo a Sua Palavra, eles seriam salvos desse seu tão grande abismo de erros.

Então, as palavras do profeta são de grande importância, quando ele diz que Deus não

ordenou tal coisa, nem jamais passou pela Sua mente. É como se tivesse dito que os

homens se arrogam muita sabedoria quando inventam o que Ele jamais exigiu, ou melhor, o

que Ele jamais soube.136

Jeremias 19:4-5

Deus, primeiramente, queixa-se que fora esquecido por eles, porque modificaram

o culto que havia sido prescrito em Sua Lei. E isso é o que deve ser cuidadosamente

considerado, pois nenhum deles estaria disposto a confessar aquilo do que Jeremias acusava

a todos; eles haveriam dito: ―Não temos nos esquecido de Deus, porque somos os filhos de

Abraão. Mas o que queremos fazer é incrementar o Seu culto, e por que isso nos haveria de

ser censurado se não estamos satisfeitos com a nossa própria forma simples de adorar a

Deus e acrescentamos várias outras formas? E adoramos a Deus não apenas no templo, mas

também nesse lugar. Além disso, não poupamos nossos próprios filhos‖. Mas Deus, com

uma única expressão, mostra que essas eram frívolas evasivas, pois Ele só reconhece aquilo

que é recebido em obediência ao que Ele determina e ordena. Saibamos que Deus é

esquecido tão-logo os homens se desviem da Sua pura Palavra, e que apostatam todos os

que se desviam para cá e para lá, e não seguem ao que Deus aprova...

Os judeus devem ter objetado, tal qual os papistas fazem hoje, que os seus modos

de adoração não foram criados em seus dias, mas que os derivaram de seus ancestrais.

Deus, porém, considerava como nada os reis e patriarcas que há muito tempo atrás se

apartaram degeneradamente da verdadeira e genuína religião. Deve-se observar aqui que o

conhecimento real está associado à verdade: pois os que primeiramente inventaram novas

formas de culto, seguiram sem dúvida às suas próprias e tolas imaginações; como quando

se pergunta hoje aos papistas por que se fatigam tanto com suas superstições, o escudo

deles sempre é a boa intenção: ―Oh, achamos que isso seja agradável a Deus‖. Deus,

portanto, repudia as invenções deles como totalmente inúteis, pois nada possuem de sólido

135

John Calvin, Commentaries on the Prophet Jeremiah and the Lamentations (Grand Rapids: Baker, 1981),

1:397-398. (itálicos no original). 136

Ibid., 1:413-414.

Page 90: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

ou permanente.137

Mateus 15:1

Fariseus e escribas. Como o erro aqui corrigido não é muito comum, mas

altamente perigoso, a passagem merece nossa particular atenção. Vemos a extraordinária

insolência que os homens demonstram quanto à forma e à maneira de adorar a Deus; pois

estão perpetuamente criando novos modos de culto, e quando alguém quer ser considerado

mais sábio que os outros, demonstra a sua capacidade inventiva nesse assunto. Não falo de

estranhos, mas dos próprios domésticos da Igreja, daqueles a quem Deus conferiu a honra

particular de declararem com seus lábios a lei da piedade. Deus declarou o modo pelo qual

deseja que devamos adorá-Lo, e incluiu na Sua lei a perfeição de santidade. Contudo, um

grande número de homens, como se obedecer a Deus e guardar o que Ele ordena fosse uma

questão leve e trivial, colecionam para si mesmos muitos acréscimos advindos de todo

lugar. Os que ocupam posição de autoridade apresentam as suas invenções com esse

propósito, como se possuíssem alguma coisa mais perfeita que a Palavra do Senhor. A isso,

segue-se o lento crescimento da tirania, pois ao imputarem as si mesmos o direto de exarar

mandamentos, eles exigem rígida aderência às suas leis e não permitem que seja posto de

lado um til sequer, seja por desobediência ou por esquecimento. O mundo não suporta a

legítima autoridade, e rebela-se mais violentamente contra o jugo do Senhor, não obstante é

facilmente e de boa-vontade que se embaraça nas ciladas das tradições inúteis; ou melhor,

tal escravidão parecer ser, no caso de muitos, um objeto de desejo, ao passo que o culto a

Deus, do qual o primeiro e supremo princípio é a obediência, é corrompido. Prefere-se a

autoridade de homens aos mandamentos de Deus. As pessoas comuns são forçadas, com

severidade e, portanto, tiranicamente, a darem total atenção a ninharias. Essa passagem nos

ensina, primeiro, que todos os modos de culto inventados pelos homens não agradam a

Deus, porque Ele determina que Ele apenas é que deve ser ouvido, para nos treinar e

instruir na verdadeira piedade conforme o Seu agrado; segundo, os que não estão satisfeitos

com a única lei de Deus, e se exaurem por obedecer às tradições dos homens, são

inutilmente utilizados; terceiro, comete-se um ultrage contra Deus, quando as invenções

dos homens são tão altamente exaltadas que a majestade da Sua glória fica quase rebaixada,

ou pelo menos a reverência a ela, diminuída.138

Mateus 15:9

E em vão me adoram. As palavras do profeta ocorrem, portanto, literalmente: ―seu

temor para comigo consiste só em mandamentos de homens‖. Mas Cristo deu, fiel e

exatamente, o sentido de em vão é Deus adorado, quando a doutrina é substituída pela

vontade do homem. Por essas palavras, todos os tipos de pretensa religiosidade, como

Paulo a denomina (Cl. 2:23 - NVI) são claramente condenadas. Pois, conforme dissemos,

como é Deus que determina que não será adorado de nenhum outro modo exceto conforme

à Sua própria determinação, Ele não pode tolerar a invenção de outros novos modos de

culto. Tão logo os homens permitam a si mesmos vaguearem para além dos limites da

Palavra de Deus, quanto mais labor e ansiedade demonstrem a adorá-Lo, tanto mais pesada

é a condenação que trazem sobre si mesmos, porque, por tais invenções, é que a religião é

137

Ibid., 2:438-439. 138

John Calvin, Commentary on a Harmony of the Evangelists: Matthew, Mark, and Luke (Grand Rapids:

Baker, 1981), 2:245-246.

Page 91: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

desonrada.

Ensinando doutrinas que são preceitos de homens. Nessas palavras há o que se

chama de aposição, pois Cristo lhes declara que erra aquele que apresenta, em lugar da

doutrina, os preceitos de homens, ou que procuram achar neles a regra para adorar a Deus.

Que se considere, portanto, como princípio estabelecido, visto que Deus tem maior estima

pela obediência do que pelos sacrifícios (1Sm. 15:22, 23), que todos os tipos de culto

inventados pelos homens não têm, a Seus olhos, a menor valia; mais ainda, que, assim

como declara o profeta, eles são malditos e detestáveis.139

Colossenses 2:22-23

A síntese é — que o culto a Deus, a verdadeira piedade, e a santidade dos cristãos

não consistem de bebida, comida e vestes, que são coisas transitórias, passíveis de

corrupção e perecem pelo abuso. Porque o abuso se aplica apropriadamente às coisas que se

destroem pelo seu uso. É por isso que as ordenanças não têm qualquer valor para as coisas

que tendem a suscitar inquietação de consciência. Mas no papado dificilmente encontrar-se-

ia qualquer [outro tipo] de santidade, exceto a que consiste das pequenas observâncias de

coisas perecíveis.

Uma segunda contestação é acrescida — que a origem delas [das ordenanças] está

no homem, e não têm Deus como seu Autor; e com esse avassalador argumento ele derruba

e aniquila todas as tradições dos homens. Por quê? Este é o raciocínio de Paulo: ―Aqueles

que trazem as consciências em cativeiro agravam a Cristo e esvaziam a Sua morte. Pois o

que é de humana invenção não compromete a consciência...‖

Observe, entretanto, quais são as cores que, segundo Paulo, compõem essa

aparência de sabedoria. Ele menciona três: culto de si mesmo, falsa humildade, e rigor

ascético. Entre os gregos a palavra superstição recebe o nome de ethelothreskeia — termo

que Paulo usa aqui. Ele, entretanto, está de olho na etimologia do termo, pois

ethelothreskeia denota literalmente um ato de culto voluntário, que os homens

determinaram por si mesmos por sua própria opção sem a autorização de Deus. As

tradições humanas, portanto, nos são agradáveis nesse aspecto, que elas são conforme o

nosso entendimento, pois qualquer um encontrará na sua própria mente os seus primeiros

esboços... Deveria ser ponto pacífico entre todos os piedosos que o culto a Deus não

deveria ser avaliado segundo a nossa visão, e que, conseqüentemente, nenhum tipo de culto

seria legítimo, tendo por base apenas o que nos é agradável. Também isso deveria ser um

ponto pacífico comum — que devemos nos render humildemente a Deus, entregando-nos

simplesmente à obediência de Seus mandamentos, sem nos estribarmos em nosso próprio

entendimento, etc. (Pv. 3:5)...

Assim, nos dias de hoje, os papistas não têm falta de pretextos especiosos, através

dos quais estabeleçam as suas próprias leis, embora sejam alguns delas ímpias e tirânicas, e

outras tolas e levianas. Se, todavia, lhes concedermos tudo, ainda resta, não obstante, esta

contestação de Paulo, que é em si mesma mais que suficiente para dispersar todas as suas

nuvens de fumaça.140

As Institutas da Religião Cristã

139

Ibid., 2:253-254. 140

John Calvin, Commentaries on the Epistles of Paul the Apostle to the Philippians, Colossians and

Thessalonians (Grand Rapids: Baker, 1981), 201-203.

Page 92: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

Imagens e figuras são contrárias à Escritura.

Agora devemos ter mente que a Escritura descreve repetidamente as superstições

com essa linguagem: elas são ―obras de mãos de homens‖, sem a autoridade de Deus (Is.

2:8; 31:7; 37:19; Os. 14:3; Mq. 5:13); isso é para estabelecer o fato de que todos os atos de

culto que os homens inventam por conta própria são detestáveis.141

A Verdadeira religião nos une a Deus como o único e uno Deus.

Mas a piedade, para permanecer num firme pedestal, mantém-se dentro de seus

próprios limites. De modo semelhante, a mim me parece que a superstição é assim

denominada porque, não satisfeita com o modo e a ordem descritas, empilha uma massa

inútil de coisas sem sentido.142

Honrar imagens é desonrar a Deus.

Por meio dessa lei agrada-Lhe prescrever aos homens o que é bom e justo, e assim

obrigá-los a um padrão de certeza do qual ninguém pode licenciar-se para inventar qualquer

tipo de culto que lhe agradar.143

A suficiência da lei.

Por outro lado, o Senhor, ao dar a lei da perfeita justiça, vinculou todas as suas

partes à Sua vontade, mostrando assim que nada Lhe é mais aceitável do que a obediência.

Quanto mais inclinada for a engenhosidade enganosa da mente humana para imaginar os

mais variados rituais pelos quais possa dEle merecer o bem, tanto mas diligentemente

devemos denunciar esse fato. O melhor remédio para curar tal erro será ter firmemente

fixado na mente o seguinte pensamento: a lei foi-nos divinamente entregue para nos ensinar

a perfeita justiça; nenhuma outra justiça é nela ensinada além da que é conforme as

exigências da vontade de Deus; é inútil, portanto, tentarmos novas formas de obras para

obter o favor de Deus, cujo culto legítimo consiste unicamente em obedecer; mais

exatamente, todo zelo por boas obras que vagueia do lado de fora da lei de Deus é uma

profanação intolerável da divina e verdadeira justiça.144

O culto espiritual do Deus invisível.

No mandamento anterior, Ele se declarou o único Deus fora do qual não se pode

ter ou imaginar outros deuses. Agora Ele declara mais abertamente que tipo de Deus Ele é,

e com que classe de culto deve ser honrado, para que não ousemos atribuir-Lhe qualquer

coisa de carnal. Portanto, o propósito desse mandamento é que Ele não quer que o Seu culto

legítimo seja profanado por rituais supersticiosos. Em síntese, Ele nos quer apartar

totalmente das mínimas observância carnais, que a nossa mente estúpida inventa, após

imaginarmos rudemente a Deus. E, então, nos faz conformar ao culto legítimo que Lhe é

devido, a saber, um culto espiritual por Ele mesmo estabelecido. Ademais, Ele põe em

relevo o mais palpável erro dessa transgressão, que é a idolatria exterior.145

141

John Calvin, Institutes of the Christian Religion I.XI.4, Ford Lewis Battles (trad.) (Philadelphia:

Westminster Press, 1961), 1:104. 142

I.XII.I, 1:117. 143

I.XII.3, 1:120. 144

II.VII.5, 1:371-371. 145

II.VIII.17, 1:383.

Page 93: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

(As tradições e invenções humanas no culto, condenadas pela Escritura e pelo próprio

Cristo, 23-26)

Apelar à autoridade da igreja contradiz as provas da Escritura.

Mas quão importantes achamos que seja para o Senhor ser privado do reino que

reivindica tão firmemente por Seu? Do qual é privado sempre que é adorado por leis

humanamente criadas, posto que quer ser o único legislador de Seu próprio culto. E para

que ninguém considere a isso como de pouca monta, ouçamos em quão alta estima o

Senhor o tem. ―O Senhor disse: Visto que este povo se aproxima de mim e com a sua boca

e com os seus lábios me honra, mas o seu coração está longe de mim, e o seu temor para

comigo consiste só em mandamentos de homens, que maquinalmente aprendeu, continuarei

a fazer obra maravilhosa no meio deste povo; sim, obra maravilhosa e um portento; de

maneira que a sabedoria dos seus sábios perecerá, e a prudência dos seus prudentes se

esconderá‖ [Is. 29:13-14]. Outra passagem: ―em vão me adoram, ensinando doutrinas que

são preceitos de homens‖ [Mt.15:9]. E verdadeiramente a causa dos filhos de Israel se

corromperam com tantas idolatrias é atribuída a esta mistura impura pela qual eles

transgrediram os mandamentos de Deus e fabricaram novos cultos...

Em decorrência disso, é dito posteriormente que eles, atemorizados por esse

castigo, adotaram os ritos prescritos na lei; mas como não estavam adorando com pureza o

verdadeiro Deus, diz-se duas vezes que eles o temeram e que eles não o temeram [2Rs.

17:24-25, 32-33, 41]. Pelo que concluímos que uma parte da reverência que Lhe é devida

consiste simplesmente em adorá-Lo da forma que Ele ordena, sem misturar as nossas

próprias invenções. E os reis piedosos sempre são louvados pois agiram em conformidade

com todos os Seus preceitos, e não se desviaram nem para direita nem para a esquerda

[2Rs. 22:1-2; cf. 1Rs. 15:11; 22:43; 2Rs. 12:2; 14:3; 15:3; 15:34; 18:3]. Digo mais, não

obstante muitas vezes no culto inventado pelos homens a impiedade não seja claramente

vista, ainda assim ela é condenada severamente pelo Espírito, porque desvia-se do preceito

de Deus. O altar de Acaz, cujo modelo fora trazido de Samaria [2Rs. 16:10], poderia à

primeira vista parecer aumentar a dignidade do templo, porque a intenção de Acaz era

oferecer nele sacrifícios ao único Deus, o que parecia fazer-se com mais esplendor do que

no altar original. Contudo vemos como o Espírito abomina esse atrevimento pela única e

exclusiva razão de que as invenções humanas no culto a Deus são outras tantas corrupções

[2Rs. 16:10-18]. E quanto mais a vontade de Deus nos é revelada, tanto menos inescusável

é a nossa ousadia ao tentar alguma coisa.146

O culto maligno é abominação a Deus.

Muitos se maravilham de que o Senhor ameace severamente com tão horríveis

castigos o povo que O adorava com mandamentos de homens [Is. 29:13-14], e declare que

em vão é adorado por preceitos humanos [Mt. 15:9]. Mas se eles levassem em conta o que é

depender exclusivamente das determinações de Deus em questões de religião (que é

prerrogativa da sabedoria divina), compreenderiam de uma vez as razões pelas quais o

Senhor abomina tais rituais perversos, que Lhe são oferecidos segundo a vontade da

natureza humana. Pois, ainda que neles haja alguma aparência de humildade na obediência

às leis desse culto a Deus, eles, não obstante, em nada são humildes aos olhos de Deus, pois

impõem a si mesmos essas mesmas leis a que obedecem. E esta é a razão pela qual Paulo

146

IV.X.23, 2:1201-1202.

Page 94: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

nos admoesta tão diligentemente para não sermos enganados por meio de filosofias e vãs

sutilezas, segundo as tradições dos homens [Cl. 2:4ss.], nem por aquilo que ele chama de

ethelothreskeia, que é ―culto de si mesmo‖, inventado pelo homem à parte do ensinamento

de Deus [Cl. 2:23,22]. Assim é certamente. E é necessário que a nossa sabedoria, bem

como a de todos os homens, seja tida por loucura, para que Ele seja reconhecido como o

único sábio. Este, sem dúvida, não é o caminho adotado pelos que, com as suas tradições

inventadas pelos caprichos dos homens, querem forçar uma fingida obediência a Deus, que

é, na verdade, unicamente prestada aos homens.147

Réplica à contraprova romanista.

Enfim, qualquer nova invenção com que os homens procuram honrar a Deus, nada

mais é que uma contaminação da verdadeira santidade.148

(As leis e tradições da igreja, e a consciência cristã diante de Deus).

A questão básica.

É esta a questão a ser discutida: se a igreja tem ou não o legítimo direito de obrigar

as consciências com as suas leis. Tal discussão não se refere à ordem política, mas

preocupa-se apenas com o modo pelo qual Ele ordenou como deve ser devidamente

adorado, e pelo modo como se deve preservar a liberdade espiritual que se refere a Deus.

Tem-se tornado costume chamar de ―tradições humanas‖ a todos as disposições

relativas ao culto a Deus criadas pelos homens, à parte da Sua Palavra. O nosso argumento

é contra essas coisas, não contra as santas e úteis determinações da igreja que servem para a

preservação da disciplina, da honestidade ou da paz.149

Orientações para determinar que constituições humanas são inadmissíveis.

Paulo emprega a primeira razão quando contende, na carta aos colossenses, contra

os falsos apóstolos que procuravam oprimir as igrejas com novas cargas [Cl. 2:8]. Ele usa a

segunda razão na carta aos gálatas, num caso semelhante [Gl. 5:1-12]. Coerentemente, ele

argumenta na carta aos colossenses que não devemos buscar no homem a verdadeira

doutrina do culto a Deus, porque Deus tem fiel e plenamente nos instruído de que modo

devemos adorá-Lo. Para provar isso, ele diz no primeiro capítulo que o Evangelho contém

toda a sabedoria pela qual o homem de Deus é aperfeiçoado em Cristo [Cl. 1:28]. No

começo do segundo capítulo ele declara que todos os tesouros da sabedoria e do

entendimento estão ocultos em Cristo [Cl. 2:3]. Disso logo conclui que os fieis devem estar

vigilantes para não se apartarem do aprisco de Cristo por causa da sedução da vã filosofia,

conforme as ordenanças de homens [Cl. 2:8]. Mas, no final do capítulo, ele condena mais

vigorosamente toda religião auto-imposta, isso é, a todo culto fingido, que os homens

criaram por si mesmos ou receberam de outros, e a todos os preceitos que se atrevem a

promulgar no que respeita ao culto a Deus [Cl. 2:16-23].150

(Constituições eclesiásticas que autorizam cerimônias no culto são tirânicas, frívola e

contrárias à Escritura)

147

IV.X.24, 2:1204. 148

IV.X.26, 2:1204. 149

IV.X.1, 2:1179. 150

IV.X.8, 2:1186-1187.

Page 95: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

Segundo esse princípio, as constituições romanas devem ser rejeitadas.

Ainda não falei nas graves abominações com que eles têm se esforçado para

destroçar toda a piedade. Com certeza não considerariam como crime tão atroz a falta de

obediência, até mesmo à menor das tradições, se não cressem que o culto divino consiste

dessas suas ficções. Portanto, que pecado cometemos se não queremos aceitar que a

maneira legítima de servir a Deus seja ordenada pelo capricho dos homens, o que Paulo

ensinou ser intolerável? Principalmente quando nos ordenam a adorar a Deus segundo ―os

rudimentos do mundo‖ [Cl. 2:20], dos quais, testifica Paulo, são contra Cristo. Ademais, é

bem sabido com que rigor extremo obrigam as consciências à obedecerem a tudo quanto

ordenam. Quando nos opomos a isso, fazemos causa comum com Paulo, que não queria

permitir de forma alguma que as consciências dos fieis se submetessem aos caprichos dos

homens [Gl. 5:1].151

As constituições papais negam a lei de Deus.

Mas há ainda algo pior. Uma vez que se tenha começado a definir a religião com

essas tão vãs ficções, tal iniqüidade é sempre acompanhada de uma outra odiosa impiedade,

razão por que Cristo repreendeu os fariseus. É que eles tornavam nulos os mandamentos de

Deus por causa das tradições dos homens [Mt. 15:3]. Não quero contender com os nossos

presentes legisladores usando as minhas próprias palavras; que prevaleçam, digo eu, se

puderem de qualquer forma ficar limpos da acusação de Cristo.152

As constituições papais são vazias e inúteis.

Eu sei que a minha descrição delas como tolas e inúteis não serão críveis à

sabedoria da carne, que tem tanto deleite nelas que veria a igreja como totalmente

desfigurada se dela fossem retiradas. Mas isso é o que Paulo escreve: ―Tais coisas, com

efeito, têm aparência de sabedoria, como culto de si mesmo, e de falsa humildade, e de

rigor ascético‖, e por isso, por causa do seu rigor, parecem ser capazes de dominar a carne

[Cl. 2:23]. Jamais deveríamos nos esquecer dessa salutar advertência! As tradições

humanas, diz ele, ocultam o engano sob a aparência de sabedoria. De onde procede essa

aparência enganosa? Do fato de terem sido inventadas por homens. O espírito humano

reconhece nelas o que é propriamente seu e, uma vez reconhecido, abraça-o com mais

prazer do que a qualquer outra coisa verdadeiramente excelente, mas não tão de acordo

com a sua vaidade... Além disso, por se afigurarem capazes de refrear os deleites da carne,

e a sujeitá-la a rigorosa abstinência, parecem ter sido sabiamente criadas. Mas, que diz

Paulo quanto a isso? Rasga ele as suas máscaras, para que os ingênuos não sejam iludidos

pela falsa aparência delas? Ao contrário, como pensava que era bastante contestá-las como

invenções humanas, passou de largo sem nem as mencionar, como se as considerasse de

nenhum valor [Cl. 2:22]. Paulo sabia, de fato, que todas as maneiras de servir a Deus

inventadas pelos homens estavam condenadas, e que, quanto mais deleite propiciasse à

natureza humana, mais tidas por suspeita seria aos fiéis; ele sabia que a falsa aparência de

humildade exterior está tão distante da verdadeira humildade quanto é facilmente

reconhecida como tal; ele, por fim, sabia que a disciplina elementar não deve ser mais

estimada do que o sacrifício corporal. Ele queria que essas mesmas coisas — razão pela

qual as tradições humanas eram tão estimadas pelos homens — servissem aos fieis para

151

IV.X.9, 2:1187-1188. 152

IV.X.10, 2:1188.

Page 96: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

contestá-las.153

Aplicações gerais das percepções comuns.

Porque sempre que entra no coração dos homens a superstição de querer adorar a

Deus com as suas próprias invenções, todas as leis decretadas com esse propósito

degeneram imediatamente nesses graves abusos. Porque Deus não ameaça apenas a uma ou

outra era, mas a todos os séculos e eras com essa maldição: perecerá a sabedoria e

desvanecerá a inteligência de todos os que O adorarem com doutrinas de homens [Is. 29:

13-14]. Essa cegueira é a causa daqueles que menosprezam as tantas advertências de Deus,

e espontaneamente se enredam nessas armadilhas mortíferas, abraçarem todo tipo de

absurdo. Mas se, deixarmos de lado as circunstâncias atuais, queiramos apenas

compreender quais são as tradições de todas as épocas que deveriam ser repudiadas pela

igreja e por todos os homens piedosos, veremos que é certa e clara a definição de que são

leis à parte da Palavra de Deus, leis feitas pelos homens, tanto para prescrever o modo de

adorar a Deus quanto para subjugar as consciências, como se fossem coisas necessárias à

salvação.154

Mas, no presente caso, suponha-se que, deixando de lado todas as máscaras e

disfarces, atentássemos verdadeiramente para aquilo que deveria ser a nossa primeira

preocupação e que é de grande importância para nós, isso é, o tipo de igreja que Cristo

queria para que pudéssemos nos moldar e ajustar ao padrão dela. Veríamos, então,

facilmente que não é igreja a que, ultrapassando os limites da Palavra de Deus, formula, a

seu irresponsável capricho, novas leis. Não foi a lei, uma vez dada à igreja, instituída

perpetuamente como boa? ―Tudo o que eu te ordeno observarás; nada lhe acrescentarás,

nem diminuirás‖ [Dt. 12:32]. E em outra passagem: ―Nada acrescentes às suas palavras,

para que não te repreenda, e sejas achado mentiroso‖ [Pv. 30:6]. Como não podem negar

que isso foi dito à igreja, que outra coisa fazem senão apregoar a sua rebeldia, da qual

vangloriam-se a ponto de que, mesmo depois dessas proibições, atrevem-se a acrescentar e

misturar sua própria fantasia à doutrina de Deus? Longe de nós esteja assentir com a

falsidade deles, pelas quais trazem tamanho insulto à igreja! Compreendamos o quão

falsamente se pretende o nome de ―igreja‖ sempre que se trata desse apetite e desejo dos

homens — que não conseguem conservar-se dentro dos limites determinados por Deus,

sem que, insolentemente, corram após as suas próprias invenções. Nada há envolto, obscuro

ou ambíguo nas palavras que proíbem à igreja universal acrescentar ou subtrair qualquer

coisa da Palavra de Deus, quando estão envolvidos o culto ao Senhor e os preceitos de

salvação... O Senhor, que há muito tempo atrás declarou que nada o ofendia mais do que

ser adorado por rituais humanamente inventados, não se tornou falso a Si mesmo.155

As constituições romanas não remontam aos apóstolos, tampouco à “tradição apostólica”.

Mas remontar a origem dessas tradições (com as quais a igreja tem sido desde

então oprimida) aos apóstolos é pura falsidade e engano. Porque toda a doutrina dos

apóstolos tem esse objetivo: não sobrecarregar as consciências com novas observâncias,

nem contaminar o culto a Deus com as nossas próprias invenções. Portanto, se houver na

história e nos antigos registros algo digno de crédito, os apóstolos não somente ignoravam

153

IV.X.11, 2:1189-1190. 154

IV.X.16, 2:1194. 155

IV.X.17, 2:1195-1196.

Page 97: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

aquilo que os romanistas atribuem a eles, como sequer o ouviram. 156

Confissão de Fé em Nome das Igrejas Reformadas de França (1662)

Do culto de Deus

Agora — em conformidade com a Sua declaração de que obedecer é melhor que

sacrificar (1Sm. 15:22), associada à Sua imutável injunção para darmos ouvido ao que Ele

ordena — se tivéssemos que oferecer da nossa parte um sacrifício designado e aceitável,

argumentaríamos que não nos cabe inventar o que nos parecer bom, nem obedecer ao que

pode ter sido inventado pela mente de outra pessoa, mas limitar-nos-íamos simplesmente à

pureza da Escritura. Porquanto cremos que nada que dela proceda, mas que tenha sido

apenas ordenado por autoridade de homem, não é digno de ser considerado como culto a

Deus...

O segundo axioma é que, quando supomos poder servir a Deus ao nosso próprio

modo, Ele o repudia como corrupção. É essa a razão por que Ele exclama através do profeta

Isaías que toda a verdadeira religião tem sido pervertida ao se obedecer aos mandamentos

de homens (Is. 29:13). E nosso Senhor Jesus Cristo confirma o mesmo ao dizer que em vão

haveríamos de conhecer a Deus por meio das tradições humanas (Mt. 15:9). É, portanto,

com boa razão, que a Sua supremacia espiritual sobre as nossas almas permanece

inviolável, e que nas mínimas coisas a Sua vontade, assim como um cabresto, conduzirá

nossas devoções.157

Da tradição humana.

Temos nesta questão advertências tão notáveis da experiência comum, que

estamos cada vez mais convencidos a não traspassar os limites da Escritura. Pois desde que

os homens começaram a criar leis para regularem o ato de culto a Deus e subjugarem a

consciência, não há mais fim nem conta delas, ao passo que, por outro lado, Deus tem

punido tal temeridade, cegando-os com ilusões tais que podem fazê-los estremecer. Quando

nos prestamos a examinar de perto o que são realmente as tradições humanas, descobrimos

que são um abismo, e que o numero delas é infindável. E há, contudo, abusos tão absurdos

e enormes, que é espantoso o quanto os homens são estúpidos — não fosse Deus ter levado

a efeito a vingança que anunciou pelo Seu profeta Isaías, cegando e enfatuando o sábio que

pretendesse adorá-lO observando mandamentos de homens (Is. 29:14).158

Das intenções idólatras.

Desde que os homens se apartaram da pura e santa obediência a Deus, descobriram

que as boas intenções eram suficientes para aprovar qualquer coisa. Isso foi o escancarar da

porta para todo tipo de superstições. Tem sido a origem do culto às imagens, da compra de

missas, do encher da igreja de pompa e ostentação, de correr daqui para lá em

peregrinações, de fazer promessas por tudo que está ao alcance. Mas o abismo aqui é tão

profundo que nos basta apenas citar alguns exemplos. Honrar a Deus por meio de humanas

invenções está tão longe de ser legítimo que não haveria firmeza, nem certeza, terra firme

ou ancoradouro na religião: tudo haveria de soçobrar, e o cristianismo em nada seria

156

IV.X.18, 2:1197. 157

John Calvin, ―Confession of Faith‖ in Selected Works: Tracts and Letters (Grand Rapids: Baker, 1983

[1844]), 2:147-148. 158

Ibid.

Page 98: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

diferente das idolatrias dos pagãos.159

A Necessidade de Reformar a Igreja (1544)

Além do mais, a regra que faz a distinção entre o culto puro e o corrompido é de

universal aplicação, para que não possamos adotar qualquer recurso que pareça adequar-se

a nós mesmos, mas para atentarmos às injunções d‘Aquele que é o único apto a prescreve-

las. Portanto, se pretendemos ter a Sua aprovação à nossa adoração, esse estatuto, que Ele

em todo lugar reitera com o maior rigor, tem que ser cuidadosamente obedecido. Há uma

dupla razão pela qual o Senhor, ao condenar e proibir todo culto fictício, exige que

obedeçamos apenas à Sua voz. A primeira tende grandemente a estabelecer a Sua

autoridade de modo que não sigamos nosso próprio arbítrio, mas dependamos inteiramente

da Sua soberania; e, em segundo lugar, a nossa insensatez é tanta que, ao sermos deixados

livres, tudo de que somos capazes de fazer é desviarmo-nos. E uma vez que tenhamos nos

apartado da reta vereda, não terá fim a nossa peregrinação, até que estejamos soterrados sob

uma multidão de superstições. Portanto — para fazer valer o Seu direito de domínio

absoluto — é merecidamente que o Senhor impõe com rigor aquilo que Ele quer que

façamos e rejeita, de pronto, todos os meios humanos em desacordo com Seu mandamento.

É também com justiça que define expressamente quais sejam os nossos limites, para que

não nos seja permitido — ao inventarmos perversos modos de culto — provocar a Sua ira

contra nós.

Bem sei quão difícil é persuadir o mundo de que Deus desaprova todos os modos

de culto não sancionados expressamente pela Sua Palavra. A persuasão oposta, que se lhes

entranha, por assim dizer, nas suas próprias juntas e medulas, é de que tudo aquilo que

fazem — desde que apresente algum tipo de zelo pela honra de Deus — tem em si mesmo

aprovação suficiente. Mas Deus não apenas considera infrutífero, como também abomina

totalmente, tudo o que por nossa própria conta consideramos ser zelo pelo Seu culto. E se

estiver em oposição ao Seu mandamento, o que ganhamos indo contra ele? As palavras de

Deus são claras e distintas: ―o obedecer é melhor do que o sacrificar‖ (1Sm. 15:22), ―em

vão me adoram, ensinando doutrinas que são preceitos de homens‖ (Mt. 15:9). Qualquer

acréscimo à Sua Palavra, especialmente nessa questão, é uma mentira. O mero ―culto de si

mesmo‖ (ethelothreskeia) é vaidade. É esse o veredicto, e uma vez que o juiz haja decidido,

não há mais o que debater...160

Havendo notado que a Palavra de Deus é o teste que distingue entre o Seu culto

verdadeiro e aquilo que é falso e corrompido, prontamente inferimos que a forma total do

culto divino dos dias presentes, de modo geral, nada mais é que pura corrupção. Pois os

homens não atentam ao que Deus ordenou, ou ao que Ele aprova, para poder servi-lO de

modo apropriado, mas dão a si mesmos o direito de inventar modos de culto, e depois os

impõem a Ele como substituto à obediência. Se pareço exagerar o que digo, que sejam

examinados todos os atos pelos quais geralmente supõe-se adorar a Deus. Atrevo-me a

deixar de fora a décima parte deles, como se não fosse o fruto à toa das suas próprias

mentes. Que mais haveríamos de considerar? Deus rejeita, condena, abomina toda adoração

fictícia, e usa a sua Palavra como cabresto para nos manter em absoluta obediência. Quando

sacudimos de nós esse jugo, andamos erráticos após as nossas próprias fantasias e Lhe

oferecemos um culto, obra da precipitação humana, que, por mais que nos possa deleitar, é,

159

Ibid., 148-149. 160

―The Necessity of Reforming the Church‖ in Selected Works, 1:128-129.

Page 99: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

à Sua vista, frivolidade, ou antes, vileza e corrupção. Os advogados das tradições humanas

descrevem-nas com belas e aparatosas cores, e Paulo certamente admite que eles portam

uma certa aparência de sabedoria; mas como Deus valoriza a obediência mais que a todos

os sacrifícios, o fato de não ser sancionado pelo mandamento de Deus deveria ser razão

suficiente para a rejeição de qualquer modo de culto...161

Por havermos, com respeito ao culto, eliminado as observâncias vazias e infantis e

adorado a Deus mais simplesmente, nossos adversários logo nos acusam de tendermos tão-

somente à hipocrisia. Os fatos atestam que nada detratamos do culto espiritual a Deus. Pelo

contrário, quando [algo] havia grandemente caído em desuso, nós o restabelecemos às suas

antigas prerrogativas...162

O pior de tudo, entretanto, é que, não obstante tenha Deus com tanta freqüência e

rigor interditado todos os modos de culto prescritos pelo homem, a única forma de

adoração que lhe foi prestada consistiu de invenções humanas. Que base têm, então, nossos

inimigos para vociferarem que quanto a isso nós abandonamos a religião? Primeiro, não

participamos minimamente em nada daquilo que Cristo condena como sem valor, quando

declara ser inútil adorar a Deus com as tradições humanas. A coisa, talvez, teria sido mais

fácil de suportar se a única conseqüência dela fosse apenas a perda dos esforços humanos

em prol de um culto inútil; mas como, segundo tenho chamado a atenção, Deus em muitas

passagens proíbe qualquer novo culto desprovido da sanção da Sua Palavra, e declara-Se

gravemente ofendido pela presunção de tal culto inventado, ameaçando-o de severa

punição, fica claro que a reforma que temos introduzido foi exigida por uma forte

necessidade.

Não estou inadvertido de quão difícil é persuadir o mundo de que Deus rejeita e

até mesmo abomina tudo que, relativamente a Seu culto, é inventando pela razão humana.

O erro desse item deve-se a várias razões: ―todo mundo tem-se em alta conta‖, diz o antigo

provérbio. Por essa causa é que o fruto da nossa própria mente nos delicia, e, além disso,

como admite Paulo, esse pretenso culto tem aparência de sabedoria. Portanto, como tem ele

em grande parte um esplendor exterior agradável à vista, é mais aprazível à nossa natureza

carnal do que somente aquele que Deus requer e aprova, mas que é menos ostentoso.

Entretanto, no julgamento dessa questão, nada há mais cegante e enganoso ao entendimento

dos homens do que a hipocrisia. Embora demande-se dos verdadeiros adoradores a entrega

do coração e da mente, os homens estão sempre querendo inventar um modo de servir a

Deus com característica totalmente diferentes, sendo o objetivo deles cumprirem em Seu

favor alguma observância física, mantendo a mente em si mesmos. Além disso, imaginam

que por terem Lhe forçado essa pompa exterior, ficaram, através desse artifício, livres se

darem a si mesmos. Esta é a razão pela qual submetem-se a inumeráveis observâncias que

os fatigam miseravelmente, sem medida e sem fim, e por que preferem andar erráticos num

labirinto perpétuo, em vez de simplesmente adorarem a Deus em espírito e em verdade...163

Como poderíamos, sem que pecássemos, deixar de repreender a zombaria que é

adorar a Deus com nada mais que gesticulações exteriores e fantasias humanas? Sabemos o

quanto Ele odeia a hipocrisia, contudo ela imperava no culto fictício que se praticava em

toda parte. Ouvimos os tão amargos termos com os quais o profeta protesta veementemente

contra todo tipo de culto fabricado pela precipitação humana. Todavia uma boa intenção —

161

Ibid., 1:132-133. 162

Ibid., 1:151. 163

Ibid., 1:152-153.

Page 100: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

isto é, uma insana licença para o homem ousar o que bem lhe aprouver — era considerada a

perfeição da adoração. Pois é certo que no todo do culto que se havia firmado, dificilmente

existia uma única observância que possuísse sansão autoritativa da Palavra de Deus. Não

devemos, quanto a essa questão, apoiar-nos em nosso próprio juízo, ou no de outros

homens. Precisamos escutar a voz de Deus, e ouvir a sua consideração quanto a profanação

do culto que se dá quando os homens, ultrapassando os limites da Sua Palavra, atiram-se à

larga em suas próprias invenções. As razões que Ele dá para punir os israelitas com

cegueira, após terem perdido a pia e santa disciplina da Igreja, são duas, a saber, o

predomínio da hipocrisia, e o ―culto de si mesmo‖ (ethelothreskeia) significando assim uma

forma de culto planejada pelos homens.164

O Verdadeiro Método de se Conceder Paz à Cristandade e Reformar a Igreja (1548)

Devemos acrescentar que o conhecimento dessa questão demanda a sua própria

explicação. Há dois aspectos principais. Primeiro, temos que assumir que o culto espiritual

a Deus não consiste de cerimônias exteriores nem de quaisquer outros tipos de obras, sejam

quais forem; e segundo, nenhum culto é legítimo a menos que seja formulado de tal

maneira que tenha por sua única regra a vontade d‘Aquele a quem é celebrado. Ambas

essas proposições são absolutamente necessárias. Como nossos sentidos não vão além de

nós mesmos e do mundo material, assim também avaliamos Deus por nós mesmos. É por

essa razão que sempre nos deleitamos mais na aparência exterior, que não tem qualquer

valor à vista de Deus, do que no íntimo culto do coração, que somente Ele aprova e exige.

Por outro lado, é notória a libertinagem das nossas mentes, que prolifera, especialmente

nessa época, onde nada tem sido suficientemente atrevido. Os homens se dão o direito de

imaginar todos os tipos de culto, e de moldá-los e remodelá-los ao seu bel-prazer. Não é

pecado exclusivo à nossa era, pois desde o princípio que o mundo porta-se licenciosamente

assim para com Deus. Ele mesmo proclama que não há nada que valorize mais do que à

obediência (1Sm. 15:22). Por essa razão, a todos os modos de culto ideados contrariamente

ao Seu mandamento, Ele não apenas os reputa por vazios, mas condena claramente. Que

necessidade tenho eu de aduzir provas numa questão tão óbvia? Passagens com esse sentido

deveriam ser proverbiais entre os cristãos.165

Breve Formulação de uma Confissão de Fé

Eu confesso que toda a regra do justo viver, como também da instrução em fé,

estão majoritariamente consignadas nas Sagradas Escrituras, às quais, sem criminalidade,

nada pode ser acrescentado nem subtraído. Por essa razão aborreço tudo que, da

imaginação dos homens, poderia ser-nos imposto como artigos de fé, e nos obrigar a

consciência por meio de leis e estatutos. E, portanto, repudio em geral tudo que tem sido

introduzido no culto a Deus sem a autoridade da Palavra de Deus. Dessa sorte são todas as

cerimônias papistas. Em resumo, abomino o jugo tirânico pelo qual as consciências

miseráveis têm sido opressas — como a lei das confissões auriculares, celibato, e outras da

mesma espécie.166

164

Ibid., 1:189. 165

John Calvin, ―The True Method of Giving Peace to Christendom and Reforming the Church‖ in Selected

Works: Tracts and Letters (Grand Rapids: Baker, 1983), 3:260-261. 166

John Calvin, ―Brief Form of a Confession of Faith‖ in Selected Works: Tracts and Letters (Grand Rapids:

Baker, 1983), 2:133.

Page 101: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

Carta a Edward Seymour, Conde de Hertford, Duque de Somerset, Regente da Inglaterra

durante e Menoridade de Edward VI (1548)

Glorificado seja Deus, que não necessitais aprender qual seja a verdadeira fé dos

cristãos, e a doutrina que devem defender, parecendo que pelo vosso meio a verdadeira

pureza da fé tem sido restaurada. Isso é, que consideramos a Deus como o único governante

das nossas almas; que consideramos a Sua lei como a única regra e diretório para as nossas

consciências, não O servindo segundo as tolas invenções de homens; que também segundo

a Sua natureza deve ser adorado em espírito e pureza de coração. Por outro lado,

reconhecendo que nada há em nós mesmos exceto toda miséria, e que somos corruptos em

todos os nossos sentimentos e afeições, de forma que as nossas almas são um vero abismo

de iniqüidade, totalmente sem esperança em nós mesmos; e que, havendo exaurido toda a

presunção da nossa própria sabedoria, valor, ou poder em fazer o bem, devemos recorrer à

fonte de toda a bênção, que está em Jesus Cristo.167

167

John Calvin, ―To the Protector Somerset‖ in Selected Works: Tracts and Letters, 5:189.

Page 102: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

Foto de João Calvino

... é Deus que estatui que não será adorado de nenhum outro modo

exceto conforme à Sua própria determinação, Ele não pode tolerar a

invenção de outros novos modos de culto. Tão logo os homens

permitam a si mesmos andarem errantes para além dos limites da

Palavra de Deus, quanto mais labor e ansiedade demonstrem em

adorá-Lo, tanto mais pesada é a condenação que trazem sobre si

mesmos, porque, por tais invenções, é que a religião é desonrada.

João Calvino

Page 103: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

Apêndice B

O desafio neopresbiteriano à ortodoxia presbiteriana confessional: Uma

análise bíblica do livro de John Frame ―Adoração em espírito e verdade‖

Introdução

John Frame, ministro ordenado da Igreja Presbiteriana na América (PCA), ―líder

do louvor‖ e professor de Apologética e Teologia Sistemática no Seminário Teológico

Reformado, Orlando,168

escreveu um livro que tanto defende quanto estabelece o

paradigma de culto da maior parte do presbiterianismo ―conservador‖ moderno (por

presbiterianismo conservador referimo-nos ao grupos presbiterianos que aderem

firmemente à inerrância bíblica, nascimento virginal, milagres literais, expiação vicária,

ressurreição literal e os cinco pontos do calvinismo). Antes de analisar muitos dos aspectos

fundamentais do livro de Frame, este autor gostaria de recomendar Frame por vários

motivos. Primeiro, o livro Worship in Spirit and in Truth [Adoração em Espírito e Verdade]

é bem escrito e organizado. Segundo, Frame tocou num tema que é muito importante e

dificilmente abordado neste século. Terceiro, Frame é fortemente comprometido com a

inerrância bíblica e com a autoridade absoluta da Bíblia. Embora o livro de Frame possua

alguns aspectos recomendáveis, ele deve ser totalmente condenado como um sério

abandono do entendimento histórico padrão do culto reformado. O que é particularmente

perturbador quanto ao livro de Frame é que ele abandona os padrões de Westminster,

embora apresente a si mesmo como um campeão do princípio regulador ensinado naqueles

padrões. Ou Frame é culpado de grave auto-engano, ou é incrivelmente desonesto. Nesta

breve análise do seu livro consideraremos: (1) o livro de Frame como uma justificação do

status quo (i.é, culto neopresbiteriano); (2) a deturpação que faz da posição referente ao

culto dos antigos presbiterianos e dos Padrões de Westminster; (3) a redefinição de Frame

para o princípio regulador; (4) a metodologia exegética bizarra, arbitrária e heterodoxa que

usa para justificar muitas inovações humanas no culto; e (5) o caso de Frame com o

moderno culto ―celebrativo‖.

Defendendo o Status Quo

Um dos propósitos do livro de Frame é justificar o tipo de culto praticado pela sua

igreja, e por tantas outras. Ele escreve: ―parte da minha motivação foi a preocupação de

garantir à minha congregação local, e outras semelhantes, a liberdade de adorar a Deus em

seu estilo costumeiro — não-tradicional, mas em meu discernimento, totalmente

espiritual‖.169

Ao longo de todo o livro, Frame refere-se ao culto tradicional versus o não-

tradicional. Embora nunca defina o que vem a ser o culto tradicional, é claro que não é a

seu favor. Ele diz: ―Historicamente os livros-texto [sobre o culto cristão] tipicamente

tentam nos fazer sentir culpados se não seguirmos os modelos tradicionais. Os

tradicionalistas teológicos também querem tipicamente minimizar a liberdade e a

flexibilidade. Até mesmo os que dão sugestões para um ‗culto com sentido‘ são muitas

vezes restritivos, pois tendem a ser muito negativos para com as igrejas que não seguem as

168

Frame ensinou por muitos anos no Seminário Teológico Westminster em Filadélfia, e no Westminster

West em Escondido, na Califórnia. 169

John Frame, Worship in Spirit and in Truth: A Refreshing Study of the Principles and Practice of Biblical

Worship (Phillipsburg, NJ: Presbyterian and Reformed, 1996), xii.

Page 104: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

suas sugestões‖.170

Essa afirmativa, que ocorre no prefácio do livro, é um caso clássico

daquilo que os debatedores chamam de ―envenenar o poço‖. Segundo sugere Frame, há o

culto tradicional que se fundamenta na tradição humana, e há o seu tipo de culto, que é

verdadeiramente livre de tradições humanas, e bíblico. Entretanto veremos que ele propõe

todo tipo de coisas no culto que não possui qualquer garantia da Palavra de Deus. Se Frame

condenasse por tradicional os hinos não-inspirados, os instrumentos musicais (e.g., o piano

e o órgão) e os dias santificados extra-bíblicos (e.g., Natal e Páscoa), então ele estaria na

trilha certa.171

Contudo, à medida que se lê o livro, nota-se que o seu problema com o típico

culto ―presbiteriano‖, fora de moda e corrompido, é que ele não possui inovações humanas

suficientes. Frame é realmente a favor de uma maior, não menor, autonomia humana.

Na medida que este estudo progride veremos que há duas escolas básicas de

pensamento quanto ao culto nos círculos presbiterianos ―conservadores‖. Há regulativistas

coerentes e estritos que seguem o objetivo original dos padrões de Westminster. Essas

pessoas cultuam da forma exata que os presbiterianos cultuaram por mais de duzentos anos

(i.é, cantando os salmos exclusivamente à capela, sem dias santos extra-bíblicos). Há

outros (a grande maioria) que descobriram formas de burlar o princípio regulador e

introduzir as mais diversas inovações humanas. Frame, como integrante deste último grupo,

está simplesmente sendo mais consistente. Essa é basicamente a razão por que o estilo

arminiano-carismático de culto está sendo adotado por todas as denominações

presbiterianas ―conservadoras‖ que já abandonaram o culto bíblico. O principal desacordo

de Frame com o culto ―presbiteriano‖ ultrapassado e corrupto (e.g., Trinity Hymnal e piano)

é realmente único em estilo e tom (embora ainda persista algumas diferenças filosóficas

maiores quanto ao papel da mente no culto e no misticismo). A discordância de Frame com

os Padrões de Westminster e com os regulativistas estritos é essencial e basilar. Assim, a

maior parte de seu livro é diretamente contra os Padrões de Westminster e o culto resultante

deles (cântico exclusivo dos salmos à capela, sem dias santificados extra-bíblicos, etc.).

Num certo sentido, Frame prestou um grande serviço à igreja de Cristo ao colocar

por escrito uma defesa do culto neopresbiteriano, para que todos leiam e analisem. O que é

o culto neopresbiteriano? É um culto no estilo arminiano-carismático levado a efeito por

presbiterianos que fingem adotar os Padrões de Westminster na esfera do culto. Pode-se

entender donde procede Frame, pelo seguinte declaração: ―De uma certa maneira, o livro

procura resumir o pensamento subjacente ao culto das igrejas presbiterianas New Life [Vida

170

Ibid., xvi. 171

Com o objetivo de manter essa resenha razoavelmente abreviada, este autor não refutará os argumentos de

Frame contra as históricas posições reformadas sobre o cântico exclusivo de salmos, uso de instrumentos

musicais no culto e a celebração de dias santificados extra-bíblicos (e.g., Natal e Páscoa). Este autor já refutou

os argumentos de Frame (que são típicos do moderno status quo presbiteriano) em outros trabalhos: The

Regulative Principle of Worship and Christmas; Musical Instruments in the Public Worship of God e A Brief

Examination of Exclusive Psalmody. Todos estes livros estão gratuitamente disponíveis em

www.reformed.com. Outras obras recomendadas são: John L Girardeau, Instrumental Music in the Public

Worship of the Church (Havertown, PA: New Covenant Publication Society, 1983 [1888]); Kevin Reed,

Christmas: An Historical Survey Regarding Its Origins and Opposition to It (Dallas, TX: Presbyterian

Heritage Publications, 1983) e Biblical Worship (Dallas, TX: Presbyterian Heritage, 1995); Michael Bushell,

The Songs of Zion: A Contemporary Case for Exclusive Psalmody (Pittsburgh: Crown and Covenant

Publications, 1977); G. I. Williamson, On the Observance of Sacred Days (Havertown, PA: New Covenant

Publication Society, s.d.) e Instrumental Music in the Public Worship of God: Commanded or Not

Commanded? e D. W. Collins, Musical Instruments in Divine Worship Condemned by the Word of God

(Pittsburgh: Stevenson and Foster, 1881).

Page 105: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

Nova]: A Igreja Presbiteriana Vida Nova [New Life Presbyterian Church], em Escondido,

na Califórnia, onde cultuo, nossa ―igreja-mãe‖ de mesmo nome em Glenside, Pensilvânia, e

outras‖.172

A ―igreja mãe‖ a que se refere Frame foi fundada na década de 1970 pelo pastor

presbiteriano ortodoxo Jack Miller. A ―igreja mãe‖ em Glenside adotou as práticas de culto

das igrejas arminiano-carismáticas e descobriu que as novas práticas de culto eram

divertidas, atraíam os jovens e faziam a igreja crescer. É importante observar que o novo

culto ―não-tradicional‖ adotado pela igreja Nova Vida original, em Glemside, que é agora

praticado em muitas congregações da PCA (Igreja Presbiteriana na América) e em diversas

igrejas presbiterianas ortodoxas, não surgiu de uma cuidadosa exegese da Escritura

realizada por pastores e teólogos reformados. O pacote completo foi simplesmente tomado

emprestado dos carismáticos arminianos, que nem sequer teriam condição de dar a mínima

atenção a algo como o princípio regulador. Frame, um ―líder do louvor‖ de uma igreja

assim, tenta harmonizar em seu livro esse tipo de culto com a fé reformada, vinte anos

depois que essa forma de culto foi adotada. Ele trouxe para si a tarefa de harmonizar um

paradigma de culto não-reformado e arminiano-carismático com o rigoroso paradigma

regulativista dos Padrões de Westminster. Num dado momento veremos que isso envolve

uma tão ampla redefinição do conceito reformado de ―sanção divina‖ que quase tudo é

permitido no culto. Frame tem a tarefa de tentar encaixar um grande pino retangular (o

culto arminiano-carismático) numa pequena cavidade circular (a doutrina reformada

confessional do culto). Por isso ele gasta tanto tempo com o martelo e a talhadeira, fazendo

da pequena e circular cavidade, um grande buraco quadrado. É preciso que se seja dado o

crédito a Frame por ele ter redefinido completamente, com muita perícia, suavidade, astúcia

e habilidade, o princípio regulador, ao mesmo tempo em que alega ser totalmente leal aos

Padrões de Westminster.

Um outro propósito declarado do livro de Frame é aliviar as consciências culpadas

de pastores reformados que sabem o suficiente de teologia e de história da igreja para

reconhecerem, até certo ponto, que se desviaram do culto reformado e confessional. Ele

escreve:

O culto presbiteriano — baseado no ―princípio regulador‖ bíblico, que

descrevo nessas páginas — foi nos primórdios muito limitador, severo e

―minimalista‖. Excluía órgãos, conjuntos corais, letras de hinos que não fossem os

salmos, simbolismos em assuntos de culto, e dias santificados com exceção do

sábado cristão. Presbiterianos da tradição ―pactuante‖, tais como os da Igreja

Presbiteriana Reformada da América do Norte [Reformed Presbyterian Church of

North América], e outras poucas denominações, ainda cultuam desse modo, mas

são hoje, quanto a isso, uma minoria de presbiterianos conservadores.

Apesar disso a teologia puritana do culto, que produziu tal minimalismo, é

ainda ensinada nas igrejas presbiterianas e seminários conservadoras como sendo a

autêntica visão de culto presbiteriano e reformado. Isso acontece em parte porque

essa teologia se reflete na Confissão de Fé de Westminster e nos Catecismos,

adotadas por essas denominações. Entretanto os Padrões de Westminster contêm,

na verdade, muito pouco da teologia de culto puritana. Os teólogos puritanos e

escoceses que escreveram os Padrões de Westminster foram sábios o bastante para

172

Worship in Spirit and in Truth, xvi. Este autor freqüentou a ―igreja mãe‖ na década de 70, conheceu e

conversou com o Dr. Miller, que era homem muito sincero, religioso e piedoso (foi chamado à Glória em

1995). Na área de culto, entretanto, os seus esforços muito contribuíram para corromper a igreja de Cristo.

Page 106: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

não incluírem neles todas as suas idéias sobre o culto. Os princípios responsáveis

pelo minimalismo litúrgico são provenientes de outros textos puritanos e

reformados que extrapolavam os documentos confessionais. Esses textos extra-

confessionais, entretanto, tinham em si mesmos considerável autoridade informal

nas igrejas presbiterianas conservadoras.

O resultado é que embora poucas igrejas presbiterianas conservadoras

cultuem de fato da forma puritana, a teologia puritana do culto permanece entre

eles como padrão de ortodoxia. Essa discrepância resulta algumas vezes em

consciências culpadas. Tenho, por exemplo, conversado com pastores que estão

dispostos a retornar ao uso exclusivo de salmos no cântico congregacional, mas

que se sentem desconfortáveis para cantar hinos. Eles parecem pensar que

deveriam cultuar como faziam os puritanos, mesmo que não tenham essa intenção.

Temem que esse tipo de indecisão seja incoerente com os seus compromissos com

a fé reformada e com a ortodoxia presbiteriana.

Eu creio que os presbiterianos necessitem repensar um pouco esse assunto.

Na minha opinião, a Confissão de Westminster está totalmente correta no seu

princípio regulador — que o verdadeiro culto limita-se àquilo que Deus ordena.

Entretanto os métodos usados pelos puritanos para descobrir e aplicar esses

mandamentos necessitam de uma minuciosa revisão teológica. A maior parte do

que disseram não pode ser justificada pela Escritura. Espero que o resultado do

nosso repensar seja algum tipo de paradigma revisado para o culto presbiteriano;

completamente reformado em suas suposições, afirmando o princípio regulador e

as declarações da Confissão de Westminster e dos Catecismos, mas permitindo

uma flexibilidade muito maior que a dos puritanos, ao aplicarem os mandamentos

de Deus ao culto. Esse paradigma revisado aliviará os sentimentos de culpa

mencionados anteriormente, não porque nos permitirá ignorar os mandamentos

de Deus, mas porque nos ajudará a entender mais exatamente aquilo que o Senhor

espera de nós.173

O livro de Frame deveria ser visto por aquilo que realmente é. Em primeiro lugar,

e antes de tudo, é uma defesa da apostasia e da decadência no âmbito do culto que vem

ocorrendo nesses últimos duzentos anos na maioria das denominações presbiterianas.

Frame admite abertamente, na citação acima, que há uma ―discrepância‖ entre aquilo que

os presbiterianos modernos professam e aquilo que eles realmente praticam. Essa

discrepância faz com que alguns ministros presbiterianos se sintam culpados. Entretanto

(segundo Frame) o que esses ministros precisam é de um novo ―paradigma revisado‖ que

lhes permita uma ―flexibilidade muito maior‖ (que resulte numa ―autonomia humana muito

maior‖), de modo que as igrejas possam adorar na moda corrompida e apóstata a que estão

acostumados sem que tenham ―sentimentos de culpa‖. Para aliviar as consciências culpadas

Frame declara guerra contra o culto reformado e ataca o princípio regulador redefinindo-o

completamente e esvaziando-o de sentido. Ele então investe contra os padrões e posições

bíblicas e históricas defendidas pelos presbiterianos, até quando começou a decadência

(e.g., o cântico exclusivo de salmos, a não utilização de instrumentos no culto público, a

não celebração de dias santificados pagãos e papais, etc.). O segundo propósito do livro de

Frame é justificar à sua audiência já apóstata (Trinity Hymnal, piano e órgão) a

superioridade do culto arminiano-carismático contemporâneo. Veremos que o que a

173

Ibid., xii-xiii, ênfase acrescentada.

Page 107: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

maioria dos presbiterianos modernos precisam não é de uma apologética para a apostasia,

mas, pelo contrário, de uma chamada ao arrependimento sincero. É preciso haver um

retorno à sabedoria bíblica alcançada por nossos ancestrais presbiterianos.

Reescrevendo a História.

Antes de concentrarmos a nossa atenção no tratamento que Frame dá ao princípio

regulador, é preciso considerar a versão deturpada da história da igreja que ele apresenta, e

que o faz parecer favorável aos Padrões de Westminster. Ele escreve: ―[O]s Padrões de

Westminster contêm, na verdade, muito pouco da teologia de culto puritana. Os teólogos

puritanos e escoceses que escreveram os Padrões de Westminster foram sábios o bastante

para não incluírem neles todas as suas idéias sobre o culto. Os princípios responsáveis pelo

minimalismo litúrgico são provenientes de outros textos puritanos e reformados que

extrapolavam os documentos confessionais. Esses textos extra-confessionais, entretanto,

tinham em si mesmos considerável autoridade informal nas igrejas presbiterianas

conservadoras‖.174

O propósito dessa afirmativa é fazer uma separação entre o ensinamento dos

Padrões de Westminster e os ―textos extra-confessionais‖ (i.é, livros, folhetos, panfletos, e

sermões) escritos por puritanos e outros reformados ―que extrapolavam os documentos

confessionais‖. Segundo Frame, não foi a Confissão que produziu o ―minimalismo

litúrgico‖175

mas antes os extremistas puritanos que foram longe demais. Qual é a razão

para que Frame distinga os ensinamentos dos Padrões de Westminster dos escritos sobre o

174

Ibid., ênfase acrescentada. 175

Frame pegou o termo ―minimalista‖ emprestado do livro de James Jordan Liturgical Nestorianism

(Niceville, FL: Transfiguration Press, 1994). Neste livro Jordan acusa os regulativistas rigorosos de serem

como os nestorianos que denegriram a natureza humana ―dizendo que Deus e o homem não se poderiam

conjugar [numa única pessoa]‖. À parte do fato de que eram os monofisistas que — por meio de um modo de

fundir as duas naturezas — negavam e assim denegriam a verdadeira humanidade de Cristo, o argumento de

Jordan nada tem a ver com o debate sobre o princípio regulador. Isso pode parecer criativo e intelectual, o que

é bastante para muitos dos seguidores de Jordan. Não é de surpreender que Frame cite, aprovando, o livro de

Jordan. Há anos que Jordan vem deturpando e ridicularizando o princípio regulador. Ele é conhecido também

por seu ―maximalismo interpretativo‖. Através de sua hermenêutica alucinógena ele descobre sentidos

obscuros ocultos no texto. Os dois homens, entretanto, atacam o princípio regulador por motivos diferentes.

Frame quer um culto no estilo carismático, ao passo que Jordan prefere um estilo de culto liturgicamente

anglo-católico. Observe as seguintes citações do seu livro Sociology of the Church (Tyler, TX: Geneva

Ministries, 1986): ―O ensinamento bíblico, como um todo, é bastante favorável à comemoração do Natal

como um festival eclesiástico anual... Ao estudar as Escrituras, tenho descoberto que as igrejas luteranas e

anglicanas são mais bíblicas em seu culto [do que as batistas e as reformadas], apesar de alguns problemas‖

(210). ―O que estou dizendo é que o costume [de se persignar] não é antibíblico, e que a igreja conservadora

deveria pensar amplamente a respeito disso‖ (212). ―Isso tudo [a leitura bíblica e o sermão] está designado

para nos conduzir ao segundo ato do sacrifício: o ofertório. O ofertório não é uma mera ‗coleta‘, mas ato de

auto-imolação... Assim, as bandejas do ofertório são trazidas diante do ministro, que as eleva diante de Deus

(‗oferta alçada‘) e as dá a Ele‖ (27). ―O sacerdócio pessoal e integral de todos os crentes não significa apenas

a participação congregacional (exigida nos livros de orações), mas também um ‗fazer‘ holístico. Significa

cantar, lançar-se ao chão, ajoelhar-se, dançar, bater de palmas, procissões, e assim por diante‖ (32). ―Ao

exigir consciência diante da comunhão, a igreja exclui as suas crianças da Mesa... Se precisamos ter uma

Reforma, temos que rejeitar este resíduo de gnosticismo e retornarmos ao entendimento de que o ato da

Eucaristia antecede à interpretação dele mesmo‖ (38). Jordan, assim como Frame, argumenta baseado em

―princípios de culto amplos e abrangentes‖ (209) e, portanto, envolve-se numa aplicação criativa e

especulativa. Se alguém discordar da visão ―anglo-católica‖ de Jordan será arbitrariamente rotulado (sem uma

mínima comprovação qualquer) de neoplatônico, nestoriano, gnóstico, nominalista, estóico, etc.

Page 108: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

culto daqueles puritanos e presbiterianos que escreveram os Padrões de Westminster? A

simples razão pela qual Frame e outros advogados do culto neopresbiteriano deturpam

reiteradamente a doutrina dos Padrões de Westminster é que eles não querem admitir que o

seu posicionamento é anticonfessional. Os advogados do culto neopresbiteriano (e.g., hinos

não inspirados, instrumentos musicais no culto e dias santificados extra-bíblicos [e.g., Natal

e Páscoa]) ignoram ou deturpam a história da igreja.

Para provar que a distinção que Frame faz entre os Padrões de Westminster e os

outros textos puritanos e reformados — que supostamente extrapolam a Confissão e

produzem ―minimalismo litúrgico‖ — é falso, e que o ataque de Frame a esse alegado culto

minimalista é anticonfessional, vamos considerar brevemente três posições a que ele se

opõe, e que eram, contudo, defendidas pela Assembléia de Westminster: o cântico

exclusivo de salmos, a rejeição do uso de instrumentos musicais no culto e a rejeição de

dias santificados extra-bíblicos.

Lemos, na Confissão de Fé, quanto ao culto religioso: ―A leitura das Escrituras,

com santo temor; a sã pregação da Palavra e a consciente atenção a ela, em obediência a

Deus, com entendimento, fé e reverência; o cântico de salmos, com gratidão no coração;

bem como a devida administração e digna recepção dos sacramentos instituídos por Cristo

— são partes do culto comum oferecidos a Deus‖ (xxi.v). Segundo a Confissão, o que é que

os crentes devem cantar durante o culto comum oferecido a Deus? Eles devem cantar

salmos. A pergunta que sempre surge quanto a essa seção da Confissão é: o termo ―salmos‖

refere-se ao Livro dos Salmos, canções religiosas em geral, inclusive hinos criados pelos

homens, ou a todos os cânticos inspirados da Escritura? Os defensores do culto

neopresbiteriano gostam de apontar o fato de que a palavra salmos não possui inicial

maiúscula, como se isso provasse que ela é usada num sentido um tanto vago e genérico. O

problema desse argumento é o simples fato de que os autores dos Padrões de Westminster

apenas usavam a inicial maiúscula com a palavra salmos quando era utilizada como o título

de todo o livro. Observe a seguinte citação do Diretório para o Culto Público a Deus:

Também recomendamos a leitura mais freqüente dessa Escritura, de modo

que aquele que a lê deve decidir o que é melhor para a edificação de seus ouvintes,

como por exemplo, o livro dos Salmos e semelhantes. Quando o ministro que

estiver lendo julgar necessário expor alguma parte daquilo que é lido, que não seja

feito até que se conclua [a leitura] de todo o capítulo ou salmo... Após a leitura da

palavra (e o cântico do salmo), o ministro que irá pregar... É dever dos cristãos

louvar a Deus publicamente, com o cântico de salmos em conjunto com a

congregação, e também particularmente em família.

Ao cantar salmos, a voz deve ser harmônica e solenemente impostada; mas a

preocupação maior deve ser cantar com entendimento e com graça no coração,

louvando ao Senhor.

Para que toda a congregação possa participar conjuntamente, todo aquele

que sabe ler deve ter um livro de salmos; e todos os demais, não impedidos pela

idade ou por outro motivo, devem ser exortados a aprenderem a ler. Mas

presentemente, quando muitos na congregação não sabem ler, é conveniente que o

ministro, ou outra pessoa apropriadamente indicada por ele ou outro oficial

regente, leia o salmo, linha após linha, antes do seu cântico. 176

A citação acima prova que a palavra salmo ou salmos não se refere a cânticos de

176

Westminster Confession of Faith, 376, 393.

Page 109: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

louvor de um modo geral, inspirados ou não, mas ao Livro dos Salmos em particular.

Um exame adicional às Atas da Assembléia de Westminster [Minutes of the

Westminster Assembly] prova que o único livro de cânticos aprovado pela assembléia para

o culto público era a versão do livro de Salmos do Sr. Rouse.

O Sr. Reynolds fez um relatório quanto a uma resposta aos Lordes sobre os

Salmos do Sr. Barton. Ela foi lida e debatida... Esta [é] a resposta à Câmara dos

Comuns.

À ordem — Considerando que a Nobre Câmara dos Comuns havendo, por

ordem datada de 20 de novembro de 1643, apresentado os Salmos organizados

pelo Sr. Rouse à consideração da Assembléia de Teólogos, esta Assembléia fê-los

serem cuidadosamente analisados, e como estão agora modificados e corrigidos, os

tem aprovado de fato, e humildemente considera que é útil e proveitoso para a

Igreja que sejam autorizadas para o canto público.(1)

À ordem — Que a comissão que analisou cuidadosamente os Salmos deve

levar esta [resposta] à Nobre Câmara dos Comuns.

[E que] Dr. Temple, Dr. Smith, Dr. Winconp levem a resposta à Câmara dos

Lordes.177

Uma nota de rodapé nos informa qual foi a resposta da Câmara dos Lordes. (1)

A Câmara resolveu em conclusão ―que este Livro de Salmos organizado

pelo Sr. Rouse, e cuidadosamente analisado pela Assembléia de Teólogos, seja

imediatamente impresso‖ — Journals of House of Commons [Diários da Câmara

dos Comuns], vol. iv, pág. 342.178

Os únicos debates que ocorreram na Assembléia de Westminster referentes ao

cântico de louvor foram sobre se outras traduções do livro dos Salmos deveriam ou não ser

cantadas nas igrejas. A Assembléia somente autorizou a versão de Rouse porque ―ajustava-

se exatamente ao texto original‖ e por causa da uniformidade e da edificação.

A Comissão elaborou uma resposta a Câmara dos Lordes sobre os Salmos do

Sr. Barton. Foi lida e posta em discussão.

Resolve sobre a questão. Que seja transcrita e enviada aos Lordes como a

resposta da Assembléia à sua ordem. O Sr. Carter Jr. registra seu dissentimento ao

voto de enviar esta resposta aos Lordes.(1)

(1)

Esta resposta não foi inserida nas Atas, mas foi preservada nos Diários da

Câmara dos Comuns, como segue:

À EXCELENTÍSSIMA CÂMARA DOS LORDES REUNIDA NO

PARLAMENTO.

Esta Assembléia de Teólogos recebeu, em 9 de abril desta Nobre Câmara

uma Notificação datada de 20 de março de 1646 — para lhes responder

formalmente por que não se deve autorizar nas igrejas, e aos que desejarem, o uso

e o cântico da tradução dos Salmos do Sr. Barton, bem como de qualquer outra

tradução — à qual respeitosamente responde o seguinte: Considerando que em 14

de novembro de 1645, em obediência a uma ordem dessa Nobre Câmara referente

177

Alex F. Mitchell e John Struthers, eds., Minutes if the Sessions of the Westminster Assembly of Divines

While Engaged in Preparing Their Directory of Church Government, Confession of Faith, and Catechisms

(November 1644 to March 1649) from Transcripts of the Originals Procured by a Committee of General

Assembly of the Church of Scotland (Edmonton, AB, Canada: Still Waters Revival Books, 1991 [1874]), 163. 178

Ibid..

Page 110: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

aos Salmos do sobredito Sr. Barton, já havíamos lhes recomendado uma tradução

dos Salmos em versos produzida pelo Sr. Rouse, e detidamente analisada e

corrigida pelos mesmos doutos cavalheiros; a Comissão da Assembléia

entendendo que [esta] seria muito útil à edificação da Igreja por ajustar-se tão

exatamente ao texto original, e considerando que já existem diversas outras

traduções dos Salmos; entendeu despretensiosamente que se fosse concedida às

pessoas a liberdade de cantar na igreja cada uma das traduções que desejassem,

pois, de fato, diversas traduções poderiam vir a ser utilizadas ao mesmo tempo em

uma única congregação, isso poderia vir a ser uma grande desordem e obstáculo à

edificação — Diários da Câmara dos Comuns, vol. viii, págs. 283, 284.179

O último debate relativo ao uso ou não da tradução dos Salmos do Sr. Barton (ou

de qualquer outra versão exceto a de Rouse) ocorreu na manhã da quarta-feira de 22 de

abril de 1646.180

Conforme se observa na citação acima, ficou resolvido que seria permitida

nas igrejas somente a versão do Sr. Rouse. Apenas seis meses depois, na manhã da sexta-

feira de 30 de outubro de 1646, o capítulo xxi, ―Do Culto Religioso‖, foi votado e aprovado

pela Assembléia.181

A idéia (que é muito comum hoje) de que a palavra ―salmos‖ no

capítulo relativo ao culto religioso inclui hinos não-inspirados é claramente falsa. Será que

os puritanos e presbiterianos, na sua insistência quanto ao cântico exclusivo de salmos,

extrapolaram os Padrões de Westminster, conforme afirma Frame? Não, absolutamente

não! Se os neopresbiterianos quiserem incluir hinos e corinhos de acampamento em seus

atos de culto, os seus Concílios apóstatas certamente o aprovarão. Eles, entretanto,

deveriam ser abertos e honestos em admitir que, nesse assunto, são anticonfessionais.

Em sua Exposição da Confissão de Fé (1845) Robert Shaw ensina que ―o cântico

de salmos‖ na Confissão de Fé significa salmos bíblicos.

3. O cântico de salmos. Isso foi ordenado, no Velho Testamento, como uma

das partes do culto ordinário a Deus, e é diferenciado do culto cerimonial (Sl.

69:30, 31). Não foi revogado no Novo Testamento, antes pelo contrário, foi

confirmado (Ef. 5:19; Cl. 3:16). É sancionado pelo exemplo de Cristo e Seus

apóstolos (Mt. 26:30; At. 16:25). Os salmos de Davi foram, segundo o propósito

de Deus, criados especialmente para o uso da Igreja no exercício do público

louvor, na dispensação anterior, e são igualmente apropriados ao uso da Igreja na

presente dispensação. Embora os apóstolos insistam na abolição das práticas

rituais, eles jamais insinuam que os salmos de Davi não sejam apropriados para o

culto evangélico; se tivessem a intenção de exclui-los da era do Novo Testamento,

é de se imaginar que um outro saltério fosse providenciado em seu lugar. No Livro

dos Salmos há várias passagens que parecem indicar que o Espírito tencionava que

fossem utilizados pela Igreja em todas as épocas. Diz Davi: ―Exaltar-te-ei, ó Deus

meu e Rei; bendirei o teu nome para todo o sempre‖ (Sl. 145:1).182

179

Ibid., 221-222. 180

Ibid., 221. 181

Ibid., 298. 182

Robert Shaw, An Exposition of the Confession of Faith (Edmonton, AB, Canada: Still Waters Revival

Books, 1845), 224, 225. O pastor presbiteriano ortodoxo G. I. Williamson concorda: ―Um outro elemento do

culto verdadeiro é ‗o cântico de salmos, com gratidão no coração‘. Será observado que a Confissão não

reconhece a legitimidade do uso de hinos modernos no culto a Deus, mas apenas os salmos do Velho

Testamento. De modo geral não se compreende hoje que as igrejas presbiterianas e reformadas usavam

originalmente apenas os salmos inspirados, hinos, e cânticos do Saltério Bíblico no culto divino, mas este é o

Page 111: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

Esta questão não está apenas clara no ensinamento da Confissão de Fé e do

Diretório do Culto Público, mas é fato histórico que os presbiterianos da Escócia, Irlanda e

América do Norte adotavam cântico exclusivo de salmos até a última parte do século

dezoito. O que é particularmente interessante, ao considerarmos o abandono do cântico

exclusivo do saltério pelas maiores denominações presbiterianas no século dezoito, é que

ela não foi posta de lado como o resultado de um minucioso estudo e contestação da parte

de pastores, doutores e teólogos. O afastamento de diversas denominações presbiterianas do

cântico exclusivo dos salmos (i.é, do culto bíblico) deveu-se basicamente a três razões.

(1) Diversas igrejas presbiterianas perderam o entendimento bíblico do princípio

regulador do culto e por isso só o aplicavam ao ato de culto público. Reuniões

―particulares‖, culto familiar e particular eram consideradas áreas da vida que estavam fora

alcance do rígido parâmetro da aprovação divina. Praticamente todas as inovações dos

séculos dezoito e dezenove penetraram nas igrejas através de práticas que foram

arbitrariamente colocadas para fora da ―sola scriptura‖ (e.g., culto familiar, Escola

Dominical, reuniões de avivamento, etc.).

(2) Muitos presbiterianos foram influenciados pelo sentimentalismo do

reavivamento pietista que varreu as colônias durante o século dezoito. Ao longo desse

período várias famílias e pastores começaram a usar a ―Imitação dos Salmos de Davi‖

[Psalms of David Imitated, 1719] de Isaac Watts, em lugar do saltério (1650)

cuidadosamente traduzido e empregado pelos presbiterianos daqueles dias. A versão dos

salmos de Watts era um afastamento radical do cântico exclusivo de salmos, sendo muito

mais que uma paráfrase dos salmos. Em muitas ocorrências equivalia a hinos não-

inspirados vagamente baseado nos Salmos. Não se deve esquecer jamais que Isaac Watts,

no prefácio de seu Hymns and Spiritual Songs [Hinos e Canções Espirituais, 1707], admitia

abertamente que considerava os Salmos de Davi como falhos, ―contrários ao evangelho‖ e

capazes de fazer os crentes ―falarem falsamente a Deus‖. A versão dos Salmos de Watts foi

aceita por muitas famílias e diversos ministros, e foi uma pedra de passagem para a

clamorosa hinologia do hinário de Watts.*

(3) As inovações do século dezoito não teriam se enraizado se os presbitérios das

colônias tivessem feito seu trabalho e disciplinado os ministros que haviam corrompido o

culto a Deus e se apartado da Escritura e dos Padrões de Westminster. Havia uma certa

indisposição em fazer da pureza do culto uma questão de disciplina. Ocorreram várias

disputas a respeito da versão de Watts de 1752 até 1780. O resultado, entretanto, era sempre

o mesmo. O presbitério ou sínodo envolvido recusava tomar atitudes decisivas, permitindo,

dessa forma, que as imitações de Watts permanecessem. Como resultado, os que não

desejavam se contaminar separaram-se em grupos presbiterianos bíblicos menores. O

caso. A Assembléia de Westminster não apenas expressou a convicção de que apenas os salmos deveriam ser

cantados no culto divino, mas a colocou em prática ao preparar uma versão metrificada do Saltério para ser

usada nas igrejas. Este não é o lugar para tecer considerações sobre esta questão, mas devemos lembrar a

nossa convicção de que a Confissão está correta nesse ponto. Cremos que ela está certa porque jamais ficou

provado que Deus ordenou à Sua Igreja que cantasse as composições não-inspiradas em vez de, ou juntamente

com os cânticos inspirados, hinos e salmos do Saltério no culto divino‖ (The Confession of Faith for Study

Classes [Phillipsburg, NJ: Presbyterian and Reformed, 1964], 167). * Isaac Watts (1647-1748), hinólogo inglês, foi ministro congregacional em Londres, e era um calvinista não

muito convicto. Não se sentia satisfeito com as doutrinas da depravação total e da reprovação, e alguns tem

visto tendências arianas em suas obra publicadas. Foi noticiado que Watts tornou-se unitário nos seus anos

finais, mas nunca houve provas disso (N.E.).

Page 112: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

declínio foi codificado em 1788 quando se adotou um novo diretório para o culto que

modificava a declaração de ―cântico de salmos‖ do diretório de 1644 para ―por cântico de

salmos e hinos‖.

Michael Bushell nos chama a atenção para que aprendamos com os erros e os

pecados da PCUSA (Igreja Presbiteriana nos Estados Unidos da América). Ele escreve:

Debaixo das influências pietistas e humanistas que integravam e acompanhavam o

Grande Despertamento, a igreja presbiteriana americana chegou, por fim, à

conclusão de que a paz da igreja seria melhor alcançada se se permitisse uma

considerável diversidade nas práticas de culto das igrejas sob o seu cuidado. A

prática de culto da igreja presbiteriana foi, com efeito, desatrelada dos laços da

Escritura e deixada à vontade para seguir o seu próprio rumo. Foi essa situação,

mais que qualquer outra, que conduziu a igreja presbiteriana finalmente a apostasia

modernista. Se uma igreja não mantiver o seu culto puro e bíblico, se não

preservar zelosamente pela sua prática, quando o seu povo se apresenta diante de

Deus em louvor e adoração conscientes, então não se deve esperar que ela preserve

por muito tempo a sua pureza doutrinária. Não é de causar o menor espanto que os

homens tenham tão pouco respeito intelectual pelas Escrituras, quando, dia após

dia, desprezam os seus claros mandamentos quanto à maneira que o seu Autor

deve ser adorado. O culto da igreja presbiteriana nesse país é determinado agora

pelos ditames das conveniências, e não pelas demandas das Escrituras, e, nesse

campo, não há basicamente qualquer diferença entre as igrejas liberais e as

evangélicas, não pelo menos quanto à forma exterior. Aos nossos irmãos das

várias comunhões reformadas que discordam disso, gostaríamos de fazer esta

simples pergunta: ―Se o princípio regulador não fosse ensinado na Escritura que

diferença ele faria no seu culto?‖ A resposta, na maior parte dos casos, seria,

―muito pouco‖. Também perguntaríamos a esses nossos irmãos se têm procurado

aplicar conscientemente o princípio regulador à sua prática de culto. Desconfiamos

que a maioria das pessoas em nossas igrejas reformadas jamais ouviram falar do

princípio regulador, e muito menos em procurar aplicá-lo. As nossas igrejas

reformadas herdaram um padrão de pensamento que encoraja virtualmente

qualquer prática de culto desde que não ofenda as pessoas erradas. Estas são

palavras ásperas, mas estamos totalmente convictos de que são exatas.183

Uma outra suposta prática ―minimalista‖ que Frame alega extrapolar os Padrões de

Westminster é a rejeição do uso de instrumentos musicais no culto. Será que a rejeição

desses instrumentos no culto era apenas a opinião de alguns puritanos que extrapolaram o

consenso da Assembléia? Não, absolutamente não! Uma carta dos ministros e presbíteros

escoceses que eram delegados na Assembléia [de Westminster] à Assembléia Geral da

Escócia (1644) prova o contrário. Nela se lê: ―Só podemos nos maravilhar com a boa mão

de Deus nas grandes coisas já realizadas até aqui, particularmente: que o Pacto (a base de

toda a obra) foi aceito; que a liderança eclesiástica e todo o [seu] séquito foi, por causa

disso, extirpado; o Livro de Oração, esquecido em muitas localidades, a pregação plena e

183

Michael Bushell, The Songs of Zion, 210-211. Para uma discussão mais completa sobre o abandono da

salmodia exclusiva pela PCUSA, vide Bushell, 198-212. O abandono do cântico exclusivo de salmos por

outras denominações presbiterianas e pelas igrejas reformadas holandesas é discutido nas páginas 212-220.

Para o aprofundamento da leitura sobre a PCUSA e os salmos de Watts, vide Charles Hodge, The

Constitutional History of the Presbyterian Church in the United States of America (Philadelphia: Presbyterian

Board of Publications), parte 2, 244-306.

Page 113: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

poderosa estabelecida; muitas faculdades de Cambridge supridas com ministros zelosos da

melhor Reforma; altares removidos; os grande órgãos de Paulos e Pedros em Westminster

foram derrubados; imagens e muitos outros monumentos de idolatria destruídos e

abolidos‖.184

A Assembléia Geral escocesa respondeu à correspondência dos comissionados

com uma carta oficial à Igreja da Inglaterra, onde se lê: ―Fomos grandemente reconfortados

ao tomar conhecimento pelas cartas dos nossos comissários que estão convosco... das

grandes e boas coisas que o Senhor tem operado entre vós e em vosso favor... a remoção de

muitas corrupções como altares, imagens, e outros monumentos de idolatria e superstição...

a derrubada dos grandes órgãos em Paulos e Pedros‖.185

O não uso de instrumentos

musicais no culto era a norma entre puritanos e presbiterianos e a posição principal dos

teólogos de Westminster. Os presbiterianos começaram a abandona essa posição na década

de 1880.

Uma terceira prática que Frame consideraria ―minimalista‖ e exagerada é a não

celebração de dias santificados (e.g., Natal e Páscoa) excetuando-se o domingo, que é o

sábado cristão. Há nessa posição alguma coisa que exceda a Assembléia de Westminster?

Não. A Assembléia demonstrou muito claramente a sua posição nessa matéria. O seu

Diretório do Culto Público a Deus diz: ―não há, sob o evangelho, outro dia ordenando pela

Escritura a ser santificado exceto o dia do Senhor, que é o sábado cristão. Dias festivais,

vulgarmente chamados de dias santos, por não terem o aval da Palavra de Deus, devem ser

descontinuados‖.186

Frame aparentemente quer nos fazer crer que além dos Padrões de Westminster,

com os quais ele diz estar em concordância, há outros textos puritanos e reformados que

extrapolam a Confissão e que precisam ser corrigidos. Dado o fato de que a Assembléia

endossou o uso exclusivo dos salmos, a supressão dos instrumentos musicais no culto e dos

dias santos, pedimos a Frame que nos mostre quais são os aspectos ―minimalistas‖ que

extrapolam a Confissão aos quais ele se refere. Puritanos havia que reivindicavam que as

igrejas parassem de recitar o Credo, a oração dominical, a confissão e a doxologia.

Também houve discordâncias sobre assuntos tais como conventículos. Não houve, contudo,

divisões além desses temas periféricos. Se esses são os itens aos quais se refere Frame, não

dá para ser dito pela leitura do seu livro. As questões que realmente o aborrecem, com as

quais despende tempo contestando, foram todas corroboradas pela Assembléia de

Westminster. Portanto, é justo concluir-se que o livro de Frame é, em muitos aspectos, um

ataque aos Padrões de Westminster, em particular, e ao culto reformado, em geral.187

184

John Maitland, Alexander Henderson, Samuel Rutherford, Robert Baillie e George Gillespie (os delegados

escoceses da Assembléia de Westminster, 1644). 185

A Resposta das Assembléias Gerais à Excelentíssima Reverenda Assembléia de Teólogos na Igreja da

Inglaterra (1644). Samuel Gibson escreve: ―Mas tem-se dito freqüentemente: Tirar o Livro de Oração

Comum é tirar a nossa Religião. Não, de maneira alguma, [pois] a nossa Religião está na Bíblia, nela está o

nosso Deus, e o nosso Cristo, e a nossa fé, e o nosso Credo em todos os pontos. A Bíblia em sua totalidade foi

a crença de Paulo; nela estão os salmos de Davi, e as suas orações, e a oração dominical, e outras orações

pelas quais podemos aprender a orar. Temos ainda os Cânticos do Senhor, os Cânticos de Sião, cantados por

muitos com graça em seus corações, louvando ao Senhor, contudo sem os órgãos. Nela temos todos os

mandamentos‖ (Samuel Gibson [ministro, Igreja da Inglaterra, teólogo em Westminster], The Ruin of the

Authors and Fomentors of Civil Wars [1645]). 186

Confession of Faith, 394. 187

O que é particularmente bizarro no livro de Frame, é que no parágrafo imediatamente anterior ao que ele

falsamente afirma que o culto minimalista não foi um produto dos Padrões de Westminster, mas que veio de

outras obras puritanas e reformadas que excedem aos Padrões, ele escreve: ―O culto presbiteriano — baseado

Page 114: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

A Redefinição de Frame para o Princípio Regulador

Nessa seção provaremos que Frame redefine completamente o princípio regulador

do culto. É muito importante que os crentes Reformados que aderem aos símbolos

Reformados entendam que o conceito de sanção divina de Frame não tem virtualmente

nada a ver com os Padrões de Westminster. Na verdade, aquilo que Frame apresenta como

uma exposição do princípio regulador é totalmente inusitado. Este autor (que tem estudado

amplamente esta questão) desconhece quaisquer outros teólogos Reformados, expositores

ou autores que têm advogado aspectos do princípio regulador ou da sanção divina que

sejam, nem remotamente, semelhantes à visão de Frame. (Talvez a mais aproximada seja o

―princípio de culto informado‖, de Steven Schlissel, que se fundamenta na rejeição aberta

do princípio regulador).188

Frame deveria ter seguido o seu próprio conselho sobre como

escrever um artigo teológico. Ele escreve: ―no mínimo, no mínimo, envolverá pesquisa

exegética e inteligente interação com os textos bíblicos. De outro modo, o trabalho

teológico mui pouco poderá recorrer à validade bíblica de seus argumentos; e se não for

bíblico, não terá, simplesmente, o menor valor‖.189

Nós veremos que o modo como Frame

usa os textos bíblicos para assegurar a sanção divina, para coisas como representação

teatral, não é inteligente nem bíblico e completamente sem valor. Frame continua: ―além

disso, deve haver normalmente alguma interação com outros teólogos ortodoxos para

resguarda-se de alguma aberração individualista‖.190

A maneira como Frame compreende o

princípio regulador é claramente uma aberração individualista. Este resenhista desafia a

Frame, e aos professores de seminário que endossam seu livro anti-confessional, a

apresentarem um único autor Reformado que concorde com o conceito de sanção divina

produzido por Frame.

Frame lança o fundamento da sua singular versão do princípio regulador nos

capítulos 4 e 5 de seu livro. No capítulo 4 (―Normas Para o Culto‖) ele discute o princípio

regulador. No capítulo 5 (―O Que Fazer no Culto‖) trata dos elementos do culto. O que

Frame faz nesses capítulos é muito enganoso. Primeiro, dá uma honesta definição padrão e

ortodoxa do princípio regulador (nessa seção, entretanto, ele ignora totalmente como os

puritanos e presbiterianos definiram métodos de sanção divina). Após apresentar-se como

presbiteriano confessional aderente do princípio regulador, ele prossegue,

sistematicamente, redefinindo e destruindo o entendimento confessional histórico do

mesmo princípio. Uma leitura atenta do livro de Frame revela que ele crê que o

entendimento confessional histórico do princípio regulador não é bíblico nem exeqüível. E

por acreditar que o entendimento confessional histórico do princípio regulador não é bíblico

no ‗princípio regulador‘ bíblico, que descrevo nessas páginas — foi nos primórdios muito limitador, severo e

‗minimalista‘. Excluía órgãos, conjuntos corais, e letras de hinos que não fossem os salmos, simbolismos em

assuntos de culto, e dias santificados com exceção do sábado cristão‖ (p. xii). O princípio regulador que

produziu o culto presbiteriano e reformado que Frame descreve e diz que em seu começo era limitador, severo

e minimalista, está assentado muito mais rigorosamente nos Padrões (e.g., CFW: i.vi-vii; xx.ii; xxi.i-v; CM:

108, 109, 110; BC: 50, 51, 52). A versão histórica de Frame não tem o menor sentido, seja qual for. Dizer que

os puritanos e os presbiterianos ensinavam e praticavam um rígido tipo de culto regulativista, embora em seus

Padrões adotassem algo supostamente diferente, é uma versão totalmente absurda. 188

Veja, por Brian Schwertley, A Brief Critique of Steven Schlissel Article Against the Regulative Principle of

Worship (www.iserv.net/~graceopc/pub/schwertley/schlissel.html). 189

John M. Frame, The Doctrine of the Knowledge of God (Phillipsburg, NJ: Presbyterian and Reformed,

1987), 371. 190

Ibid.

Page 115: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

nem exeqüível, Frame o põe de lado e apresenta a sua inusitada versão dele.

Como é que Frame substitui o princípio regulador confessional pela sua versão

particular? Há uma série de coisas que precisam ser examinadas na nossa análise da

definição de Frame. Primeiro, ele adota a posição de que a Bíblia nada apresenta de

específico quanto ao culto, mas apenas generalidades. Esse tipo de argumento era comum

entre os teólogos anglicanos (e.g., Hooker) ao tentarem refutar os puritanos. De acordo com

Frame, essas coisas específicas foram deixadas ao arbítrio dos homens. Segundo, Frame

cria uma falsa imagem da posição puritano-presbiteriana a respeito das reuniões formais em

oposição às reuniões informais. Ele também não distingue entre culto público, familiar ou

particular e ignora as diferenças entre eventos extraordinários e momentos especificados

para a adoração. Frame é capaz de chegar ao ponto de escarafunchar as Escrituras

procurando provas em referências que, claramente, nada têm a ver com o culto público.

Terceiro, Frame rejeita a perspectiva confessional sobre as circunstâncias do culto em favor

do que denomina de ―aplicações‖. Tal divorciamento da Confissão lhe permite abandonar

uma aprovação específica em favor de uma sanção que depende de regras ou princípios

genéricos. Frame adota as regras que os teólogos de Westminster aplicaram apenas às

circunstância ou incidentes do culto e as usa como garantia divina para as ordenanças de

culto. Quarto, Frame rejeita a perspectiva da Confissão de Fé quanto aos elementos do

culto. Ele substitui a visão confessional de elementos separados, que dependem

individualmente de aprovação divina específica, em favor de umas poucas categorias gerais

que os homens podem aplicar cabalmente como lhes aprouver. À medida que consideramos

a redefinição de Frame para o princípio regulador não podemos perder de vista o fato de

que o seu livro é uma defesa do culto neopresbiteriano (i.é, no estilo arminiano-

carismático). As suas ladinas redefinições visam a um único alvo, qual seja: a remoção do

rígido e ―minimalista‖ conceito confessional da sanção divina em prol de um conceito mais

amplo, genérico e frouxo.

A Falsidade Ideológica de Frame Quanto aos Padrões de Westminster

Ao se ler a subscrição de Frame aos Padrões de Westminster e a sua definição

inicial do princípio regulador, à parte do restante de seu livro, tem-se a impressão de que

ele é um presbiteriano confessional ou ortodoxo. Frame escreve: ―Meu próprio

compromisso teológico é presbiteriano; eu endosso entusiasticamente a Confissão de Fé de

Westminster e os Catecismos, e tenho certeza de que tal compromisso ficará bem

evidenciado neste livro‖.191

Observe que Frame defende o entendimento de culto reformado contra as visões

não-reformadas. Ele escreve: ―Católicos romanos, episcopais, e luteranos adotam a posição

de que podemos fazer tudo no culto, exceto aquilo que a Escritura proíbe. Aqui as

Escrituras regulam o culto de maneira negativa — pelo exercício do poder de veto. As

igrejas presbiterianas e reformadas têm, entretanto, empregado um princípio mais vigoroso:

tudo aquilo que as Escrituras não ordenam é proibido. A Escritura tem aqui um maior poder

de veto; a sua função é essencialmente positiva. Nessa perspectiva a Escritura deve

positivamente exigir uma prática, se tal prática for apropriada para o culto a Deus‖.192

Frame, então, cita a clássica declaração regulativista da Confissão de Fé de Westminster

(xxi.i) e diz: ―A palavra chave é ‗prescrito‘. Posteriormente essa restrição de culto tornou-

191

Frame, Adoração em Espírito e Verdade, xiv-xv. 192

Ibid., 38.

Page 116: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

se conhecida como ‗princípio regulador‘‖.193

Frame continua: ―podemos, confiados em nós

mesmos, determinar à parte da Escritura, aquilo que Deus gosta ou não gosta no culto?

Nossa limitação e pecado nos desqualificam para exercermos tal juízo... A própria Escritura

condena o culto que se baseia apenas nas idéias humanas... A Escritura, a Palavra de Deus,

é suficiente para tudo do culto, como para tudo da vida‖.194

Frame faz referência a uma

série de passagens regulativistas padrão como Lv. 10:1-2, Is. 29:13, Mt. 15:8-9, Mc. 7:6-7 e

Cl. 2:23.195

Frame Tira a Fantasia

Após ler a declaração de Frame quanto ao seu compromisso com os Padrões de

Westminster e o princípio regulador, pode-se pensar, naturalmente, que Frame seja um

ardente defensor do princípio regulador e do culto reformado de Calvino, Knox, os

puritanos e dos presbiterianos primitivos. A verdade sobre o assunto, entretanto, é que o

conceito de Frame para o princípio regulador e sanção divina, como delineado no restante

do seu livro, é uma rejeição explícita dos Padrões de Westminster e do culto confessional

reformado.

Pode-se começar a ver a verdadeira opinião de Frame sobre o princípio regulador

quando ele escreve: ―Diferentemente de alguns escritores presbiterianos, eu creio que

compreendo, e sinto simpatia, por que alguns cristãos preferem não cultuar da forma

presbiteriana. Eu reconheço que há problemas reais com a visão presbiteriana tradicional

que precisam ser abordados pelas Escrituras, e pretendo tratar desses problemas

seriamente‖.196

Será que não lemos o suficiente sobre o vigoroso compromisso de Frame

193

Ibid., 39. 194

Ibid. 195

Frame, 39. Embora Frame nos apresente uma lista de textos de abonação tradicionais do princípio

regulador, observe que ele, na verdade, não acredita que essas passagens o confirmem, e nos diz que ampara-

se em princípios mais gerais; embora não nos diga onde ou como esses princípios são derivados da Escritura.

Ele escreve: ―Alguns leitores irão notar que embora haja citado anteriormente uma lista de passagens, como

Lv. 10:1-3, para demonstrar o desagrado de Deus para com o culto ilegítimo, eu não usei esta lista para provar

o princípio regulador, mas tenho em vez disso me amparado em considerações mais gerais. A mim não parece

que essa lista de passagens comprove a exatidão da questão de que ‗tudo aquilo que as Escrituras não

ordenam é proibido‘. As práticas condenadas nessas passagens não são meramente não ordenadas, elas são

explicitamente proibidas. Por exemplo, aquilo que Nadabe e Abiú fizeram em Lv. 10:1 não era apenas ‗não-

ordenado‘, como nos informa o texto, mas também ‗contrário ao mandamento [de Deus]‘. O fogo deveria ser

tirado do altar de Deus (Nm. 16:46) e não de uma fonte particular (compare Ex. 35:3)‖ — [pág. 47, nota final

2]. É errônea a análise de Frame do episódio de Nadabe e Abiú. A razão por que o fogo deles é chamado de

―estranho‖ (Versão do Rei Tiago), ―profano‖ (Nova Versão do Rei Tiago) ou ―não-autorizado‖ (Nova Versão

Internacional) não é porque é expressamente proibido, mas pelo que o texto diz explicitamente: porque jamais

fora ordenado. As passagens oferecidas por Frame para contrariar o entendimento regulativista tradicional não

confirmam, de modo algum, o seu ponto de vista. O texto de Nm. 16:46 apenas diz que o fogo deve ser tirado

do altar e posto no incensário. Nem nessa nem em outra passagem qualquer se diz expressamente às pessoas

para não usar fogo de outra origem. A questão do princípio regulador é que quando Deus diz, ―tira fogo do

altar‖, os homens devem obedecer-Lhe a determinação sem acrescentar as suas próprias regras ou tradições

humanas. A passagem que Frame oferece como prova de que o fogo de uma outra origem é expressamente

proibido (Ex. 35:3) apenas ensina que o povo não deve acender fogo em suas moradas no dia de sábado. Nada

tem a ver com a passagem de Lv. 10: 1. É estranho que Frame cite — numa seção sobre o princípio regulador

— uma série de passagens nas quais não acredita realmente que ensine o princípio regulador; não deveríamos,

entretanto, nos surpreender com tais contradições, uma vez que ele, no mesmo livro, endossa com fervor os

ensinamentos dos Padrões de Westminster quanto ao culto para logo em seguida os rejeitar explicitamente. 196

Ibid., xv.

Page 117: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

com os Padrões de Westminster e o princípio regulador? Se Frame adere à Confissão de Fé

e aos Catecismos Maior e Breve, como alega, não deveria ele, então, crer que o modo

presbiteriano é o modo bíblico? Não está ele aqui admitindo que pensa haver problemas

com os Padrões de Westminster que precisam ser tratados pelas Escrituras? Noutras

palavras, os Padrões de Westminster não são bíblicos e precisam ser alterados para

concordarem com o ensinamento bíblico. É possível que Frame não esteja se referindo

propriamente aos Padrões, mas à corrupção que vem ocorrendo no culto presbiteriano

desde a segunda metade do século dezoito? Não. Desde que Frame gasta uma boa parcela

de tempo defendendo o declínio que tem ocorrido, só se pode concluir que ele acredita que

há ―problemas reais‖ com os Padrões de Westminster.

Frame também admite que o seu conceito de princípio regulador deixa bastante

espaço para autonomia humana. Ele escreve: ―O primeiro elemento para a adoração

significativa é fazer como Deus ordena. Além disso, é claro, há a questão de como melhor

concretizar esses mandamentos em nosso tempo e lugar presentes. Essa é a questão da

―linguagem‖ com a qual deveríamos expressar nossa adoração a Deus, e com a qual

deveríamos buscar a mútua edificação. Mas temos que saber quais foram os limites que

Deus nos impôs antes que possamos determinar as áreas em que somos livres para buscar

formas mais significativas. Uma das minhas principais preocupações nesse livro é definir

duplamente tanto as áreas em que estamos cativos pelas normas de Deus, quanto as que

fomos postos em liberdade (por aquelas mesmas normas!) para desenvolvermos aplicações

criativas daquelas normas‖.197

A chave para se entender a redefinição de Frame do

entendimento histórico do princípio regulador é a expressão ―aplicações criativas‖ (a sua

perspectiva singular quanto as ―aplicações criativas‖ será tratada abaixo).

Frame acredita que o princípio regulador não conduz o povo de Deus a nenhum

―estilo de culto‖ particular. Ele escreve: ―no restante deste livro, portanto, não vou instar

com ninguém para conformar-se ao estilo de culto Puritano, nem a qualquer outro estilo.

Quanto a isso, comparado à maioria dos outros livros sobre adoração, esse livro será

bastante incomum! Antes apresentarei o princípio regulador como aquele que nos liberta,

dentro de limites, para adorar a Deus na linguagem de nossos dias; que nos liberta para

buscar por aquelas aplicações dos mandamentos de Deus que mais edificam os adoradores

em nossas culturas contemporâneas. Temos que ser tanto mais conservadores quanto mais

liberais do que a maior parte dos estudiosos do culto cristão: conservadores em apegarmo-

nos exclusivamente aos mandamentos de Deus na Escritura, como nossa regra de culto, e

liberais, ao defender a liberdade daqueles que aplicam esses mandamentos de modos

legítimos, embora não tradicionalmente‖.198

Segundo Frame a Bíblia não oferece quaisquer

esboços na esfera do culto. Antes pelo contrário, ela é vaga e genérica e deixa, portanto, os

detalhes para o homem (i.é, autonomia humana).199

197

Ibid., xv. 198

Ibid., 46. 199

Frame também tem assumido posições antibíblicas quanto à participação da mulher no culto. Ele absorveu

os ensinamentos de James Hurley sobre este assunto, os quais foram criados para driblar o claro ensinamento

da Escritura e acomodar a infiltração do feminismo na igreja. Frame escreve: ―em geral, eu concordo com

James Hurley, Man and Woman in Biblical Perspective (Grand Rapids: Zondervan, 1981), e outros, que

argumentam que a única limitação bíblica à função das mulheres é que não podem exercer o presbiterato.

Hurley afirma que a proibição de falarem, em 1Co. 14:34 e 35, não se aplica durante a congregação, mas ao

juízo autoritativo dos profetas descrito nos versículos 29-33, ―julguem cuidadosamente o que foi dito‖ (NVI),

e que a proibição de ensinarem, de 1Tm. 2:12, refere-se ao ensinar autoritativo do ofício presbiteral. Seja qual

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Segundo os Padrões de Westminster e o pensamento Puritano, o princípio

regulador liberta o homem das tradições e inovações no culto. Frame define o princípio

regulador de tal maneira que dá autonomia para fazer inovações, estabelece alguns

princípios gerais a serem seguidos e denomina essas inovações de ―aplicação criativa‖. Ele

escreve: ―No meu ponto de vista, uma vez que tenhamos compreendido o que a Escritura de

fato ordena quanto ao culto, veremos que ela deixa verdadeiramente um grande número de

coisas ao nosso arbítrio, e por isso permite uma considerável flexibilidade. Eu acredito que

a maioria dos livros sobre culto, presbiterianos ou outros, não avaliam corretamente o nível

da liberdade que a Escritura nos permite no culto... Este livro, no entanto, enfatizará que a

Escritura deixa muitas questões em aberto — questões às quais igrejas diferentes, em

for o modo de interpretarmos essas difíceis passagens, está claro que sob algumas circunstâncias as mulheres,

de fato, falaram legitimamente no culto (1Co. 11:5), e que não estavam totalmente impedidas de ensinar (At.

18:26; Tt. 2:4) (pág. 75, nota de fim 6)‖. São várias as razões por que o ensinamento de Frame e de Hurley

deve ser rejeitado. Primeiro, em lugar nenhum da Bíblia encontramos um contraste entre o ensinar autoritativo

com o ensinar não-autoritativo no culto público. Esse tipo de distinção arbitrária, sem fundamentação textual,

teria enchido de orgulho os escolásticos medievais. Segundo, Hurley ignora o fato de que embora não fosse

permitido às mulheres fazer perguntas, falar ou ensinar nas sinagogas judaicas na Velha Aliança e na era

apostólica, aos homens — os cabeças da casa — era permitido perguntar e tecer comentários sobre a leitura e

exposição da Escritura. As mulheres tinham que perguntar a seus maridos em casa. Por que ignorar o contexto

histórico (e o ambiente cultural) e forçar no texto uma leitura da cultura feminista moderna? A resposta é

simples. Os argumentos de Hurley são mais a justificação de uma prática existente (i.é, o declínio corrente) do

que uma exegese objetiva. Terceiro, em ponto algum da passagem ou do contexto se diz que o silêncio das

mulheres aplicava-se apenas ao juízo de profetas. A conclusão de Hurley é especulativa — especulação não

levantada por praticamente nenhum comentarista, teólogo ou pregador até a ascensão e popularidade do

feminismo na década de 70. Quarto, a conclusão especulativa de Hurley contradiz o ensinamento explícito de

1Tm. 2:12 onde não há a possibilidade de que Paulo esteja falando sobre a avaliação de profetas. Quinto, as

razões dadas pela Escritura para que as mulheres não falem, ensinem ou façam perguntas na igreja — e.g., (1)

a escala de autoridade ordenada por Deus, 1Co. 11:3; (2) Adão foi criado primeiro, 1Tm. 2:13; (3) a mulher

(Eva) foi originada do homem (Adão), Gn. 2:21-22, 1Co. 11:8; (4) a mulher-esposa foi criada como uma

auxiliadora para o homem-Adão, Gn. 2:18, 1Co. 11:9; (5) Eva foi enganada e caiu em transgressão, 1Tm.

2:14; (6) a autoridade do marido segundo o pacto, 1Co. 14:34-35 — aplicam-se obviamente a toda forma de

ensinar ou de falar no culto público. Tais razões não podem ser aplicadas arbitrariamente apenas a um tipo de

falar ou de ensinar. Esta posição tem o forte apoio das declarações de Paulo sobre as mulheres serem

submissas e argüirem aos seus maridos em casa. Paulo está claramente expondo e dando sustentação ao

ensinamento bíblico quanto à autoridade segundo o pacto. Hurley aplica artificialmente esses princípios

amplos e abrangentes a um mínimo fragmento do culto público (ao juízo de profetas) que nem mesmo se

aplica mais à igreja moderna, pois a profecia cessou. Sexto, a alegada grande dificuldade de conciliar 1Co.

11:5 (onde se diz que a mulher ora e profetiza) com 1Co. 14:34-35 (onde se proíbe às mulheres que falem na

igreja) têm sido solucionada de modo a não violentarem a analogia da Escritura, e são muito mais

responsáveis exegeticamente do que a especulação de Hurley. São três as possíveis interpretações: (1) Quando

Paulo diz que a mulher ora e profetiza, em 1Co. 11:5, o termo profecia refere-se ao cântico de Salmos, que

são Escritura profética; (2) A discussão de Paulo quanto sobre a mulher orar e profetizar no culto público é

meramente hipotética, pois mais adiante, em 1Co. 14:34-35, ele proíbe totalmente tal prática (cf. o comentário

de Calvino sobre essa passagem); (3) Paulo, sob inspiração, considera que a exposição da revelação direta da

parte de Deus, pelas mulheres, seja uma exceção ao normal ato de falar (e.g., fazendo comentários ou

perguntas) e ensinar (e.g., a exposição não-inspirada das Escrituras). Em outras palavras, como na profecia é o

próprio Deus que fala sem usar a explanação humana, quando uma mulher profetiza não é ela própria que está

exercendo autoridade sobre o homem. As passagens utilizadas por Frame (At. 18:26; 1Tm. 2:12) sobre o

ensino das mulheres nada tem a ver com o culto público. A primeira passagem refere-se ao ensinamento

particular de Priscila e de seu marido a Apolo. A segunda passagem refere-se às mulheres mais velhas que,

através de seu relacionamento interpessoal com as mais jovens, devem ensiná-las serem boas esposas e donas

de casa.

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situações diferentes, podem responder diferentemente com legitimidade‖.200

Se o princípio

regulador limita os homens apenas àquelas práticas que dependem de sanção divina ou

prova bíblica, como pode alguém dizer que tal princípio concede grande liberdade ao

homem? Se, por liberdade, Frame quer dar a entender a liberdade da doutrina,

mandamentos e inovações de homem, ou refere-se a uma certa liberdade nas áreas que são

circunstanciais ao culto (e.g., organização da bancada, iluminação, tipo de púlpito, etc.),

então haveríamos de concordar. Entretanto a sua definição para liberdade extrapola os

Padrões de Westminster. Ele define a liberdade como uma ―aplicação criativa‖ de

princípios gerais que podem conduzir a tipos de culto completamente diferentes. Observe

as expressões tais como: ―nosso arbítrio‖, ―considerável flexibilidade‖, ―aplicação criativa‖,

―muitas questões em aberto‖, ―somos livres para buscar formas mais significativas‖, etc.

Frame quer um culto fundamentado na autonomia humana e cheio de inovações, mas que

esteja entrelaçado mui frouxamente, de alguma maneira, com o ensino geral da Escritura.

O Princípio Regulador ―Não-específico‖ de Frame

A singular definição do princípio regulador de Frame fundamenta-se em parte no

seu modo de entender reuniões realizadas na sinagoga e no cristianismo (apostólico). Ele

escreve: ―Jesus freqüentava e ensinava regularmente na sinagoga (Lc. 4:15-16), portanto

não pode haver qualquer dúvida da aprovação de Deus à instituição. Entretanto, é

interessante observar que a sinagoga e o templo tinham bases bíblicas bem diferentes: Deus

regulamentava detalhadamente o culto sacrificial do tabernáculo e do templo, ordenando o

povo a fazer tudo estritamente conforme o modelo revelado. Contudo, quanto à sinagoga

(ou à questão sobre os ministérios de ensino e oração realizados na mesma condição do

templo), Ele quase nada dissera a Israel, deixando largamente sob o arbítrio do povo a

organização dos atos de culto dela. É claro, eles sabiam em geral o que Deus queria: Ele

queria que a Sua Palavra fosse ensinada, e que se fizessem orações. Mas Deus deixou os

específicos em aberto‖.201

Frame argumenta que a permissão divina aplica-se apenas de um

modo ―geral‖. Os específicos estão ―em aberto‖. Quer dizer, os específicos são

determinados pelo homem.

Frame afirma que a reunião cristã ocorria como na sinagoga, em que a aprovação

bíblica não descia ao nível dos detalhes específicos do culto. Portanto, varias atividades que

fazem parte do culto religioso da Nova Aliança não exigem ―autorização bíblica

específica‖. Ele escreve: ―infelizmente é praticamente impossível provar que algo seja

exigido divina e especificamente para os atos de culto oficiais‖.202

Ele acrescenta: ―O Novo

Testamento nos fala um pouco mais acerca das reuniões cristãs (que se pareciam mais com

as da sinagoga do que com o culto sacrificial do templo), mas não nos apresenta uma

relação sistemática ou exaustiva dos eventos que eram autorizados para esses atos de culto.

Ele certamente não nos dá uma lista de elementos, no sentido técnico da teologia Puritana:

atividades que exigem autorização bíblica específica, ao contrário das circunstâncias ou

aplicações que não o exigem‖.203

Depois de afirmar que o princípio regulador não se aplica a específicos (no seu

entender não-confessional do princípio regulador), Frame define a sua versão ímpar da

200

Ibid., xvi. 201

Ibid., 2, ênfase acrescentada. 202

Ibid., 44, ênfase acrescentada. 203

Ibid., 54.

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aprovação divina. Ele escreve: ―Na falta de específicos, temos que, por instrumentalidade

da nossa sabedoria santificada, aplicar generalidades, dentro dos princípios gerais da

Palavra... O Novo Testamento não nos apresenta uma lista exaustiva do que se fazia ou não

nas reuniões cristãs primitivas. Entretanto, como no caso da sinagoga do Velho

Testamento, nós, ao apelarmos a amplos princípios teológicos, podemos obter a certeza

daquilo que Deus quer que façamos quando nos reunimos em Seu nome‖.204

Frame crê que

a Bíblia não é específica na esfera do culto. Ela é incompleta, vaga e genérica. É como um

mapa defeituoso que mostra grandes rotas, mas que faltam os detalhes. Para que o mapa

seja útil (ou funcional) os homens devem usar a sua ―sabedoria santificada‖ para preencher

os vazios dos específicos e completar os detalhes e as partes que faltam. Frame tem

assumido uma posição que é muito mais próxima do episcopalismo do que da rígida

posição regulativista dos Padrões de Westminster. Embora não diga que ao homem tudo é

permitido, desde que as suas inovações não sejam contrárias à Escritura, ele lhe permite

uma autonomia de âmbito muito amplo, desde que a prática esteja frouxamente embasada

nos ―princípios gerais da palavra‖.

Algumas idéias nas declarações de Frame precisam de comentários adicionais.

Primeiro, ele adotou a interpretação anti-regulativista da sinagoga judaica, e assume que

por não existir por escrito um conjunto de imperativos divinos quanto às reuniões na

sinagoga, o que nela ocorria, portanto, havia sido deixado ―ao arbítrio do povo‖. Antes

mesmo de começar o seu capítulo sobre o princípio regulador (i.é, ―As Regras do Culto

Público‖) Frame argumenta que ele, do modo como está historicamente definido, aplica-se,

no máximo, apenas ―ao culto sacrificial do tabernáculo e do templo‖.205

Frame acredita que

seja errado e não-bíblico o ensinamento dos Padrões de Westminster de que seja necessária

uma autorização específica para cada ordenança ou elemento de culto. Se o pensamento de

Frame estiver correto, então não existe princípio regulador. Toda a conversa de Frame

sobre o seu tenaz comprometimento com os Padrões de Westminster é pura tapeação.

As análises de Frame sobre as sinagogas judaicas levantam algumas questões

importantes. Será que o fato de não existir na Escritura um conjunto de mandamentos

específicos que regulem as sinagogas prova que o conceito puritano-presbiteriano da

sanção divina (que se aplica a partes e elementos específicos do culto) é antibíblico? Será

que os teólogos de Westminster e nossos antepassados puritanos e presbiterianos

cometeram uma tamanha asneira ao adotarem e incorporarem em suas confissões e

catecismos a rígida posição regulativista? Seria Frame um herói por ousadamente levantar-

se e declarar: ―o rei está nu‖? A resposta a todas essas perguntas é um enfático ―Não‖!

Qualquer um pode assumir (assim como Frame e outros mais) que as sinagogas não

estavam debaixo do princípio regulador (como historicamente definido) e que os judeus

estavam criando os seus específicos de culto à medida que prosseguiam. O único problema

com tal suposição, entretanto, é que ela contradiz o claro ensinamento da Escritura.

Há muitas passagens na Bíblia que condenam inequivocamente os

acrescentamentos à Palavra-Lei de Deus (e.g., Dt. 4:2; 12:32; Pv. 30:5). Ao homem não é

permitido definir a sua própria ética, teologia ou culto. Há também passagens em que tanto

Cristo (e.g., Mt. 15:2-9; Mc. 7:1-13) quanto Paulo (e.g., Cl. 2:20-23) condenam as tradições

humanas no culto. A Bíblia não apenas condena os acréscimos ou inovações de uma modo

geral, mas trata de adições específicas (e.g., oferecimento do fruto da terra em vez do

204

Ibid., 54-55, ênfase acrescentada. 205

Ibid., 23.

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sangue: Gn. 4:3-5; uso de fogo estranho: Lv. 10:1-2; lavagem ritual das mãos: Mt. 15:2-9;

práticas alimentares ascéticas: Cl. 2:21). Observe que o princípio regulador (como

biblicamente definido, i.é, a versão Puritana) não se restringe ao tabernáculo ou ao templo,

mas aplica-se aos indivíduos no lar e na igreja. Devido ao fato de que a Escritura não

contradiz a Escritura, e que as porções mais claras da Escritura devem ser usadas para

interpretar as menos claras, será que faz sentido (hemeneuticamente) assumir que as

reuniões das sinagogas não eram reguladas por algum tipo de revelação divina? Tomando

as Escrituras como um todo, os Puritanos acreditavam que seria contraditório Cristo e Paulo

condenarem os acréscimos religiosos específicos do lar e da igreja e aprovarem os das

sinagogas. Um dos aspectos do que ―pode ser lógica e claramente deduzido‖ da Escritura

(CFW i.vi — i.é, a inferência lógica da Escritura) é aquilo a que os Puritanos se referiam

como exemplos históricos aprovados. Quando se observa na Escritura que Abel (Gn. 4:4) e

Noé (Gn. 8:20-21) ofereceram sacrifícios aceitáveis a Jeová sem que houvesse imperativos

divinos por escrito, ou que a prática universal da igreja da Nova Aliança não era o culto

público no sétimo, mas no primeiro dia, sem haver quaisquer instruções por escrito para

trocar de dia, pode-se então inferir logicamente que tais práticas firmavam-se em algum

tipo de revelação divina que não estava escrita.

A compreensão Puritana dos exemplos históricos aprovados tem o respaldo de Hb.

11:4 que diz: ―Pela fé, Abel ofereceu a Deus mais excelente sacrifício do que Caim‖. A fé

bíblica pressupõe revelação divina. Por todo o capítulo 11 de Hebreu a verdadeira fé é

tratada como a crença na Palavra de Deus que resulta na obediência à Sua vontade revelada.

Qualquer idéia de que a oferta de Abel apoiava-se apenas na razão, ou que a aceitação por

Deus da oferta de sangue foi arbitrária ou calcada apenas no estado subjetivo do coração de

Abel, tem que ser rejeitada como não bíblica. Devido à analogia da Escritura, a necessidade

de fé em atos religiosos e a aceitação, da parte de Deus, de certas práticas que aparecem na

Escritura sem instruções detalhadas, a idéia de que as reuniões da sinagoga não eram

reguladas, mas determinadas pelo ―arbítrio do povo‖ não se sustenta. Assumir (como faz

Frame) que os judeus da sinagoga estavam criando à medida que prosseguiam

(―improvisando‖) é adotar algo que contradiz claramente o ensinamento da Escritura.

Segundo, Frame argumenta que assim como as sinagogas judaicas, as reuniões

cristãs eram basicamente não-reguladas quanto aos específicos (e.g., ―O Novo

Testamento... não nos apresenta uma relação sistemática ou exaustiva dos eventos que eram

autorizados para esses atos de culto‖206

). Embora seja verdadeiro que em parte alguma do

Novo Testamento encontramos uma lista sistemática daquilo que deve ocorrer no culto

público, isso não significa que o Novo Testamento nada tem a dizer sobre a questão ou que

os vários elementos do culto não possam ser determinados por um estudo da Escritura. Não

é relevante que o Novo Testamento nos dê, ou não, uma lista sistemática de ordenanças

para os atos de culto da Nova Aliança. Muitos assuntos e doutrinas importantes estão

consignados na Escritura de modo extremamente não-sistemático. Frame está tentando

convencer os leitores de seu livro de que um princípio regulador que trata com específicos

precisa ser rejeitado. Uma vez que tenha demolido a concepção histórica e tradicional do

princípio regulador, ele precisa, então, colocar a versão generalizada ou ―vale-tudo‖ em seu

lugar. Entretanto, desde que a Bíblia ensina claramente que tudo o que o homem faz no

culto (até mesmo os específicos) precisa ter a aprovação divina; não precisamos ser

enganados pelo subterfúgio de Frame. E quanto à sua afirmativa de que o Novo Testamento

206

Ibid., 55.

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não nos dá ―uma relação sistemática ou exaustiva dos eventos que eram autorizados para

esses atos de culto‖? O Novo Testamento não precisa nos dar uma lista exaustiva, porque se

uma certa prática não for encontrada nele (ou ensinada ou inferida do Velho Testamento)

então já está proibida. A idéia de não existir uma ―lista exaustiva‖ pressupõe um conceito

de liderança eclesiástica de culto, e é uma negação implícita da suficiência da Escritura na

esfera do culto.

Terceiro, Frame ensina que a sanção divina não é específica, mas geral.

Argumenta que como a Bíblia não contém específicos acerca das reuniões da sinagoga ou

dos cristãos neotestamentários, os homens devem buscar a aprovação divina em ―amplas

generalidades teológicas‖. Devem usar a sua sabedoria santificada para ―aplicarem as

generalidades‖. As pessoas devem seguir os ―princípios gerais da Palavra‖. Ao falar da

sanção divina em termos de ―amplos princípios teológicos‖, ―generalidades‖ e ―princípios

gerais da Palavra‖, Frame rejeita os Padrões de Westminster para este assunto e redefine

completamente o princípio regulador. Há uma grande diferença entre uma sanção específica

da Escritura para uma determinada prática e em fundamentar uma prática na ―generalidade‖

ou em um ―amplo princípio teológico‖. Desde que uma prática qualquer esteja associada de

leve a uma ―generalidade‖ ou a um ―amplo princípio teológico‖, o uso da definição de

Frame para o princípio regulador possibilita que se obtenha uma variedade infinita de

opções de culto. A versão rígida e estreita do princípio regulador defendida pelas confissões

reformadas produziu uma uniformidade geral de culto por muitas gerações. A visão de

Frame conduz ao caos e a uma multiplicidade de práticas de culto exatamente porque

concede ao homem uma extensa área de autonomia. É claro que Frame não a chama de

autonomia. Ele usa expressões como ―aplicação criativa‖ e ―considerável flexibilidade‖.

Com o objetivo de revelar como é que esse seu conceito de sanção divina pode

confirmar tudo o que se queira, examinemos como ele próprio justifica certas práticas no

culto público. Na página 56 ele diz que as saudações devem ser uma parte do serviço do

culto. Com é que ele prova que as saudações são prescritas por Deus? Frame escreve: ―elas

[a saudações e as bênçãos] eram claramente partes da vida da igreja, desde que eram partes

regulares das cartas de Paulo (vide Rm. 1:7; 1Co. 1:3; Rm. 15:33; 1Co. 16:23-24; 2Co.

13:14). Como as suas cartas eram muito provavelmente lidas nas reuniões da igreja (Cl.

4:16; 1Tm. 5:27; Fm. 2), essas saudações e bênçãos compreendiam também uma parte do

culto público‖.207

Normalmente se alguém reformado quisesse argumentar a favor de um

momento especial de saudações (i.é, um momento para apertar as mãos ou se abraçar)

durante o culto ele procuraria por um mandamento específico ou tentaria inferir de algum

exemplo histórico da Escritura. Frame, entretanto, mostra simplesmente que Paulo saudava

as igrejas em suas epístola e que as suas cartas eram lidas na igreja. Ignora-se o fato de que

todas as cartas contêm saudações e de que é duvidoso que livros inteiros da Bíblia fossem

lidos a cada culto. Seguindo essa sua lógica alguém poderia argumentar: a Escritura

freqüentemente menciona barcos (e.g., 2Sm. 19:18; Pv. 30:19; Is. 33:21; Ez. 27:5; Jn. 1:3-

5; Mt. 4:21-22; Mc. 1:19; Lc. 5:3; Jo. 6:22; At. 17:16, 30, 32; etc.); como as escrituras são

lidas nas reuniões da igreja, os barcos também deveriam fazer parte do culto público.

O melhor exemplo do conceito de ―aplicação criativa‖ de Frame é a aprovação

divina que ele apresenta para usar a representação teatral (i.é, esquetes e peças) no culto

público. A sua defesa da teatralização dá-nos uma compreensão explícita da sua definição

ímpar da sanção divina. Ele até mesmo apresenta a sua justificativa como exemplo de uma

207

Ibid., 56.

Page 123: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

aplicação de um princípio geral. Ele escreve:

Muitas igrejas hoje estão utilizando-se da representação teatral numa tentativa de

comunicar de modo mais claro a Palavra de Deus, do que poderia ser feito através

das formas mais tradicionais de pregação. Alguns presbiterianos opõem-se a isso

porque não há, na Bíblia, mandamento específico para se usar o teatro desse o

modo. Mas nós já vimos que nem sempre são necessários mandamentos

específicos. Quando Deus nos dá um mandamento geral (nesse caso, a ordem para

pregar a Palavra), e silencia em alguns aspectos da sua aplicação específica, nós

mesmos, dentro das regras gerais da Escritura, podemos fazer apropriadamente

aquelas aplicações. As questões com que nos defrontamos são, portanto, se a

representação teatral é uma forma legítima de pregação ou ensino, e se existem

quaisquer ensinamentos bíblicos que poderiam ser usados para exclui-la como um

meio de comunicar a Palavra. Eu responderia que sim, para a primeira pergunta, e

não, para a segunda.208

Observe uma vez mais que para Frame não é necessário uma aprovação específica.

Quando a Escritura silencia sobre uma ―aplicação‖ (i.é, quando ele é insuficiente ou

incompleta), o homem deve fazer uso do seu pensamento autônomo para remover o silêncio

de Deus. Noutras palavra, o homem deve pegar aquilo que é insuficiente e geral e fazê-lo

suficiente e específico.

Qual é a sanção que Frame apresenta para representação teatral no culto? Ele

argumenta que ―pregar e ensinar contém muitos elementos dramáticos‖;209

Jesus ―ensinou

parábolas, em que é freqüente a ocorrência de diálogos entre diferentes personagens‖;210

as

cartas de Paulo ―são sempre dramáticas‖211

e ―o livro de Apocalipse é um banquete

dramático‖;212

―os profetas algumas vezes representaram ações simbólicas‖;213

e, ―os

sacrifícios e festivais do Velho Testamento, e os sacramentos neotestamentários são

encenações das grandes obras da redenção de Deus‖.214

Quando lemos as aplicações que Frame faz da sua própria versão do princípio

regulador nos espantamos que este seu livro tenha sido endossado por quatro mestres de

dois seminários ―reformados e conservadores‖.215

Por quê? Porque o conceito de Frame

para a sanção divina é tão genérico, amplo e arbitrário que poder-se-ia provar qualquer

coisa com ele. O seu conceito de ―prova‖ faria feliz o líder de qualquer seita.

Se se pensa que isso é exagero, apliquemos o seu conceito de sanção divina a

outras práticas que algumas pessoas achariam ―renovadoras‖ no culto público. Na Bíblia

defrontamo-nos assiduamente com profetas que estejam deprimidos. Há na Bíblia muitos

livros que contêm grande quantidade de elementos tristes e deprimentes. Estamos, por isso,

autorizados por Deus a ter bandas de blues (com as letras apropriadas, é claro) como parte

do culto público. Por que não? Conforme diz Frame, cantar não é apenas uma maneira de

ensinar ou pregar?

208

Ibid., 92-93. 209

Ibid., 93. 210

Ibid.. 211

Ibid. 212

Ibid. 213

Ibid. 214

Ibid. 215

Richard L. Pratt Jr. e Steve Brown do Seminário Teológico Reformado, em Orlando; Richard B. Gaffin Jr.

e D. Clair Davis do Seminário Teológico Westminster, em Filadélfia.

Page 124: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

Na Bíblia lemos sempre sobre batalhas militares. O apóstolo Paulo descreve com

freqüência a vida cristã como uma guerra. Não temos no livro de Apocalipse o quadro de

uma grande guerra entre o povo de Deus e os seguidores da besta? Portanto, como uma

aplicação criativa desses princípios teológicos genéricos podemos introduzir lutas com

espadas no culto público. Ninguém, obviamente, seria ferido. Elas seriam simplesmente

uma encenação dramática da vida cristã. As crianças adorariam.

São absurdos os métodos ―exegéticos‖ que Frame usa para provar ou justificar

certas práticas de culto. Ele retira da Bíblia coisas que nada têm a ver com o culto público

e, então, faz uma aplicação arbitrária na inovação humana que desejar. Será que o fato de

Deus ordenar a certos profetas que fizessem algumas coisas extraordinárias e dramáticas

nos dizem algo acerca de como devemos conduzir um ato de culto público? Não, claro que

não; não há qualquer tipo de vínculo entre eles. Será que o fato de pregar na Escritura poder

ser de algum modo dramático implica que Deus autoriza apresentações dramáticas no culto

público? Não, de maneira nenhuma. A associação é totalmente arbitrária. Na verdade,

nenhuma pessoa ao longo de toda a história da Igreja enxergou tal conexão até Frame a

perceber. Será que o fato de Jesus ter falado por parábolas — em que ocorriam mais de um

personagem — prova que representações dramáticas são bíblicas? Não. Ouça atentamente.

Não perca isso. Os tipos nas parábolas de Jesus não eram personagens de uma peça, nem

mesmo pessoas reais. Jesus estava ilustrando o Seu ensinamento. Dizer que o nosso Senhor

estava autorizando a representação dramática no culto público é pura fantasia. Se Jesus

estava aprovando os grupos de teatro, os apóstolos inspirados pelo Espírito não o

perceberam, porque a representação dramática não fazia parte do culto apostólico. Uma

legitima aplicação da metodologia da pregação de Jesus poderia ser o uso de ilustrações e

estórias na pregação. O fato de Apocalipse ser (segundo Frame) um banquete dramático nos

diz alguma coisa sobre o culto público? Não. Conquanto o livro possua algumas cenas de

culto metaforicamente descritas, não há, de modo nenhum, mandamentos, exemplos

históricos ou inferências lógicas que apontem nele representações dramáticas.

As argumentações de Frame para ―provar‖ as práticas de culto que ele deseja,

sempre lembram a este autor da argumentação usada por Vern Poythress (professor do

Seminário Teológico Westminster na Pensilvânia) em seu livro The Shadow of Christ in the

Law of Moses [A Sombra de Cristo na Lei de Moisés].216

Dadas às muitas e notáveis

similaridades, é oportuna a citação da análise de Greg L. Bahnsen da obra de Poythress, que

aplica-se como uma luva à argumentação de Frame. Ao ler a análise de Bahnsen, apenas

substitua o nome de Poythress pelo de Frame. Bahnsen escreve:

Poythress tem uma certa predileção por apelar a ―temas‖ vagos nas passagens

bíblicas, e de nos dizer, então, (sem base exegética) que eles nos sugerem algumas

―conexões‖ ou ―relações‖ (sem as definir). Tratar com alusões amplas e ambíguas

não é exato o bastante para demonstrar qualquer conclusão específica; por não

haver quaisquer princípios de controle ou de previsibilidade do modo que tais

noções indefinidas serão entendidas, a porta fica escancarada à criatividade

subjetiva do intérprete. E afirmar simplesmente que X está (de alguma maneira)

―relacionado‖ com ou ―conectado‖ a Y, é trivial — não muito informativo (No fim

das contas, tudo está, de um certo modo, relacionado com tudo). Essas vagas

conexões têm um papel determinante onde Poythress quer tirar conclusões

teológicas significativas... A chave para se tirar ardilosas ―conexões‖ de qualquer

216

Brentwood, TN: Wolgemuth and Hyatt, 1991.

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parte da Bíblia, é claro, é fazer com que as suas categorias sejam amplas e vagas o

bastante para incluírem qualquer tipo de coisa... Que se supõe que o teólogo deve

fazer com tais discussões? Na verdade, elas nem são argumentos. Estão mais para

ansiolíticos (―tome alguns comprimidos de Valium e curta a experiência‖).

Olhando-as pelo seu lado menos danoso, acho que tais discussões possam ter valor

homilético ou pedagógico — como auxílios que aduzem ou ilustram conclusões

assentadas em fundamentos exegéticos mais confiáveis. Podem até mesmo

reforçar subjetivamente práticas teológicas pré-concebidas, mas dificilmente

funcionam como prova objetiva num debate teológico, sujeito às regras comuns de

racionalização, eliminação de pressupostos, e exame público. Poythress não é hoje

o único autor que se deleita em escrever nesse estilo: alinhavando conjuntamente

um monte de ―conexões‖ frouxas num estilo ―fluxo de consciência‖, muitas vezes

com categorizações grandes o suficiente para incluírem quase qualquer coisa de

qualquer maneira, até que uma delas estipule que ele chegou a uma ―conclusão‖ —

que é em geral tão vaga e ambígua quanto carecem de apoio textual. Gostaria de

dizer que Poythress o faz ―melhor‖ que os outros, mas, realmente, não há muito

como julgar (poucos que são os critérios objetivos).217

Se os cristãos professos querem usar o conceito de sanção divina de Frame para

―provar‖ varias práticas no culto público, eles têm liberdade para isso. Deveriam,

entretanto, ser honestos, e admitir que a versão deles do princípio regulador nada tem a ver

com os Padrões de Westminster ou com a teologia reformada sobre esse assunto. A maneira

arbitrária e frouxa de Frame ―provar‖ pela Escritura várias práticas, deixa as igrejas

presbiterianas e reformadas sem limites reais para o culto, exceto o princípio da liderança

eclesiástica (i.é, episcopal-luterano) de que vale tudo, desde que não seja expressamente

proibido na Bíblia.

Quarto, Frame rejeita a doutrina da Confissão de Fé de Westminster sobre os

elementos ou as partes constituintes do culto. Ele escreve:

Em resposta a esse tipo de pergunta [i.é, o problema da generalidade e da

especificidade], os Puritanos desenvolveram a doutrina dos ―elementos‖ ou

―partes‖ do culto. Eles acreditavam que o culto é composto por certos elementos

claramente distinguíveis: oração, leitura da Escritura, pregação, e assim por diante.

O princípio regulador que eles defendiam exige de nós que encontremos

aprovação bíblica para cada um desses elementos. Para eles, isso respondia a

questão sobre o nível de especificidade. Precisamos encontrar um mandamento

bíblico para fazer esta ou aquela oração particular (assumindo que as orações em

questão sejam todas bíblicas em seu conteúdo e apropriadas à ocasião), mas

precisamos mesmo é de uma sanção bíblica para incluir a oração como um

elemento de culto.

Mas há sérios problemas com essa abordagem. O mais sério deles é que não

há confirmação bíblica para ela! A Escritura, em nenhum lugar, divide o culto

numa série de ―elementos‖ independentes, cada um deles exigindo uma

justificativa bíblica à parte. A Escritura não nos diz, em lugar algum, que o

217

Greg L. Bahnsen, No Other Standard: Theonomy and its Critics (Tyler, TX: Institute for Christian

Economics, 1991), 299-300.

Page 126: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

princípio regulador demanda tal nível particular de especificidade, mais que

qualquer outro.218

Observe (uma vez mais) que Frame prefere argumentar contra os Puritanos, não

contra a Confissão de Fé. Ele diz que a posição Puritana não possui sanção bíblica, quer

dizer, é antibíblica. Ele ignora os fatos de que: (1) os autores dos Padrões de Westminster e

os primeiros presbiterianos eram puritanos 219

e (2) a Confissão de Westminster (xxi.iii-v)

ensina claramente a posição Puritana que ele rejeita. Devido ao fato de dizer, à página xiv

do seu livro, que subscreve entusiasticamente a Confissão de Fé e os Catecismos, não é de

se admirar a sua indisposição para reconhecer como falsa a entusiástica subscrição, que ele

endossou com os dedos cruzados. É claro que Frame tem a liberdade de rejeitar o

ensinamento dos Padrões de Westminster; mas, em vez de trabalhar deliberada e

enganosamente para solapar um aspecto essencial da fé reformada, ele deveria ser honesto e

coerente e juntar-se a uma igreja episcopal.

À medida que examinarmos o ataque de Frame ao conceito confessional dos

elementos ou partes do culto, tenha sempre em mente que a sua estratégia, ao longo de toda

a análise que faz das regras de culto, é tornar a sanção divina dilatada o suficiente para

permitir inovações, sob o disfarce das aplicações criativas. Para isso, precisa eliminar a

doutrina confessional sobre os elementos de culto, onde cada um deles exige sanção divina

específica. Há vários argumentos a serem considerados na sua rejeição dos elementos de

culto. Primeiro, Frame diz que a Escritura não ensina em parte alguma ―que o princípio

regulador demanda tal nível particular de especificidade‖,220

e acrescenta que ―o problema

é que a Escritura não nos dá uma lista dos elementos exigidos para os cultos cristãos‖.221

Observe seu método dissimulado e contraditório de argumentar. Enquanto discorda da

visão confessional Puritana, requer uma prova crível. Ele quer um mandamento, uma

declaração explícita ou mesmo uma lista detalhada. Entretanto, quando se dispõe a provar

as suas próprias idéias sobre a sanção divina, não oferece qualquer argumentação exegética

sólida, apenas frouxas conexões bizarras e aplicações arbitrárias. Desce o princípio

regulador ao nível dos elementos de culto? É específico? Embora não haja uma lista

detalhada definida no Novo Testamento para os elementos de culto religioso, os seus vários

elementos ou partes são facilmente comprovados pelos imperativos divinos e pelas

descrições de atos de culto, ou por exemplos históricos aprovados encontrados na Escritura.

À medida em que considerarmos a sua próxima objeção à idéia de elementos específicos de

culto, os testemunhos bíblicos provarão que Frame está errado. Além disso, as passagens

bíblicas que ensinam o próprio princípio regulador requerem especificidade. Se os crentes

do Velho Testamento usassem a versão flexível genérica de Frame para o princípio

regulador, teria sido extremamente fácil para os judeus justificarem a lavagem ritual das

218

Worship in Spirit and in Truth, 52-53. 219

John Coffey escreve: ―Ao descrever escoceses como Rutherford como puritanos, estamos seguindo o

exemplo de seus contemporâneos. Quando Tiago VI visitou novamente a Escócia em 1617 ele lembrou-se

que muitos puritanos ingleses haviam se submetido à pressão real, e declarou, ‗vamos adotar o mesmo

procedimento com os puritanos aqui‘. Peter Heylyn também, não titubeou em falar da ‗facção presbiteriana ou

puritana na Escócia‘. O próprio Rutherford comentou que ‗somos apelidados de puritanos‘ e se queixou de

que ‗um rigoroso e preciso andar com Deus em tudo‘ era desdenhado como ‗puritano‘. O apelido foi dado, em

todo o mundo de fala inglesa, a pessoas cujo intenso desejo de obedecer à Escritura as colocou em conflito

com a política eclesiástica real repetidas vezes‖ (Politics, Religion and the British Revolutions: The Mind of

Samuel Rutherford [Cambridge, England: Cambridge University Press, 1997], 18). 220

Worship in Spirit and in Truth, 53. 221

Ibid.

Page 127: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

mãos, as práticas alimentares ascéticas (e.g., considere as justificativas dos Adventistas do

Sétimo Dia para várias práticas alimentares), o fogo estranho, etc.

Segundo, quer misturar os vários elementos de culto em categorias gerais. Ele

escreve: ―um outro problema com o conceito de elementos de culto é que as coisas que

fazemos no culto nem sempre são claramente distintas entre si. Cantar e ensinar, por

exemplo, não se diferenciam um do outro (Cl. 3:16). E muitos hinos são também orações e

credos. Orações de conteúdo bíblico contém ensino. Todo o serviço de culto é uma oração,

desde que articulado na presença de Deus, em Seu louvor. Todo o serviço de culto é ensino,

pois se baseia todo na Escritura. Talvez fosse melhor falar em ‗aspectos‘ de culto, em

preferência a ‗elementos‘ ou ‗partes‘‖.222

Frame acrescenta, ―como não podemos identificar

elementos, não podemos dizer que o cântico é um elemento, e que por isso exige

mandamentos divinos específicos governando o seu conteúdo. Mesmo se aceitarmos a

divisão do culto em elementos, não é plausível argumentar que o cântico é um elemento do

culto, independente de todos os outros. Conforme já vimos no capítulo precedente, o

cântico não é um elemento independente, mas, ao contrário, é uma maneira de se fazer

outras coisas. É um modo de orar, confessar, etc. Portanto, ao aplicarmos o princípio

regulador à questão do cântico, não deveríamos perguntar especificamente que palavras a

Escritura nos ordena cantar, mas que palavras a Escritura nos ordena usar no ensino, na

oração, na confissão, etc‖.223

Para Frame não existem elementos específicos de culto, mas

apenas grandes categorias que possuem aspectos diferentes. Por que é que Frame ataca a

doutrina confessional dos elementos de culto? O motivo principal é que isso lhe permite

aplicar as regras da Bíblia de um elemento em outro. Este é um dos argumentos comuns

contra o cântico exclusivo de salmos. Se alguém pode usar as suas próprias palavras para

orar e pregar, então (segundo o conceito de aspectos de Frame) pode usar as suas próprias

palavras para cantar louvores.

Embora seja verdadeiro que os elementos de cântico de louvor, pregação ou ensino

e oração possam ter certos aspectos comuns (e.g., muitos salmos contêm oração, oração

pode conter louvor e sermões podem conter louvor e súplica, etc.), a idéia de que esses

elementos distintos possam ser concatenados numa única categoria (e.g., ensino) ou de que

as regras específicas dadas pela Escritura para um único elemento sejam aplicáveis às

outras partes do culto, desmorona completamente quando se examinam as regras

específicas e o contexto que a Bíblia dá para cada ordenança em separado. Observe os

seguintes exemplos:

(1) Um dos elementos é a pregação da Bíblia (Mt. 26:13; Mc. 16:15; At. 9:20;

17:10; 20:8; 1Co. 14:28; 2Tm. 4:2). A pregação envolve o uso da razão para tirar

conclusões da Escritura (cf. At. 17:2-3; 18:4, 19; 24:25) e a explicação ou a exposição da

Palavra de Deus (cf. Mc. 4:34; Lc. 24:27; At. 2:14-40; 17:3; 18:36; 28:23). Os mestres da

Nova Aliança não falavam por divina interpretação, mas interpretavam a Escritura

divinamente inspirada. Do mesmo modo os mestres levíticos do Velho Testamento

explicavam e interpretavam a lei escrita ao povo da aliança (cf. Ne. 8:7-8; Lv. 10:811; Dt.

17:8-13; 24:8; 31:9-13; 33:8; 2Cr. 15:3; 17:7-9; 19:8-10; 30:22; 35:3; Ed. 7:1-11; Ez.

44:15, 23-24; Os. 4:6; Ml. 2:1, 5-8). Há regras bíblicas específicas que se aplicam à

pregação e que a diferenciam de outros elementos tais como louvor e oração. Conquanto

homens e mulheres possam ambos orar (At. 1:13-14, 1Co. 11:5) e cantar louvores (Ef.

222

Ibid., 54. 223

Ibid., 123-124.

Page 128: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

5:19; Cl. 3:16; Tg. 5:13), apenas os homens que foram chamados por Deus e separados para

o ministério do evangelho podem pregar (Mt. 28:18-20; At. 9:15; 13:1-5; Rm. 10:14-15; Ef.

4:11-12; 2Tm. 4:2, etc). Portanto, a idéia de que cantar louvores não é um elemento de

culto, mas um modo de ensinar, ou uma circunstância do ensino, é claramente antibíblica.

Se cantar louvores fosse apenas um dado método de ensino, então as mulheres seriam

proibidas de cantar louvores na igreja, pois são proibidas de ensinar nas assembléias

públicas. Além do mais, se cantar louvores fosse uma circunstância de culto, então seria

opcional e poderia ser também excluída completamente do culto público. Permite, o

presbiteriano conservador mediano, que as mulheres preguem nas assembléias públicas?

Não, ele não permite. Mas isso não é porque a Bíblia proíbe explicitamente às mulheres de

ensinarem ou mesmo de falarem na igreja? Na verdade, sim. O que isso prova é que aqueles

que aderem às teorias heterodoxas de Frame acerca do culto têm, na prática, que seguir a

distinção entre elementos de culto para realizarem um serviço de culto. A rejeição de Frame

à distinção de elementos ou partes do culto é simplesmente uma maneira astuta de eliminar

a especificidade do princípio regulador.

(2) Uma outra parte do culto é o cântico de Salmos (1Cr. 16:9; Sl. 95:1-2; 105:2;

1Co. 14:26; Ef. 5:19; Cl. 3:16). Diferentemente da pregação, onde os ministros usam as

suas próprias e não inspiradas palavras para exporem a Escritura, o cântico de louvor

envolve apenas o uso de canções inspiradas pelo Espírito. Na Bíblia a inspiração profética

era uma exigência para se escrever cânticos de adoração para a igreja (cf. Ex. 15:20-21; Jz.

5; Is.5:1; 26:1ss; 2Sm. 23:1, 2; 1Cr. 25:5; 2Cr. 29:30; 35:15; Mt. 22:43-44; Mc. 12:36; At.

1:16-17; 2:29-31; 4:24-25). No Velho Testamento escrever cânticos de adoração era tão

intimamente ligado à inspiração profética que 2Rs. 23:2 e 2Cr. 34:30 usam

intercambiavelmente os termos ―levita‖ e ―profeta‖.

(3) A leitura da Bíblia é também uma das partes do culto público (Mc. 4:16-20; At.

1:13; 13:15; 16:13; 1Co. 11:20; 1Tm. 4:13; Ap. 1:13). Obviamente, a leitura das Escrituras

exige que só a Bíblia seja lida. A leitura de apócrifos, Shakespeare, ou poesia cristã não

inspirada, ou livros de teologia não podem substituir esse elemento. A leitura da Escritura,

do mesmo modo que a pregação mas, ao contrário do cântico de louvores, está restrita aos

ministros do evangelho (Ex. 24:7; Js. 8:34-35; Dt. 31:9-13; Ne. 8:7-8; 13:1; 1Ts. 5:27; Cl.

4:16; 1Tm. 4:3).

(4) Outro elemento de culto é orar a Deus (Dt. 22:5; Mt. 6:9; 1Co. 11:13-15; 1Tm.

5:17; Fp. 4:6; Hb. 13:18; Tg. 1:5). Ao contrário dos elementos de cântico de louvor e de

leitura da Escritura, a Bíblia autoriza o uso de nossas próprias palavras na oração, desde

que sigamos o padrão ou modelo que nos foi dado por Cristo (cf. Mt. 6:9). Deus promete ao

Seu povo que o Espírito Santo os assistirá quando fizerem as suas orações (cf. Zc. 12:10;

Rm. 8:26-27).

Essa breve consideração quanto aos elementos do culto, acima observados, prova

que as regras que se aplicam a um elemento (e.g., oração) não podem ser aplicadas a outros

elementos (e.g., cântico de louvor ou leitura da Bíblia) sem que a Escritura seja

transgredida. A nossa consideração também provou que agrupar vários elementos em

categorias maiores também violenta a Palavra de Deus. A única razão pela qual as pessoas

constroem artificialmente essas categorias mais amplas é para evitar as regras específicas

que Deus instituiu para cada elemento particular de culto. As feministas o fazem para

permitir às mulheres que façam a leitura da Escritura [no culto público] e que preguem na

igreja. Outros o fazem para permitir que a representação teatral substitua o sermão. Há

ainda muitos que fazem assim para poderem substituir os salmos inspirados de Deus, pelos

Page 129: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

cânticos não inspirados dos homens.

Uma vez apresentado abundante testemunho bíblico para o conceito puritano de

elementos ou partes do culto, compreende-se por que os autores da Confissão de Fé de

Westminster não apenas nos deram categorias genéricas, mas definiram elementos distintos

de culto. Os nomes dados pela Confissão, ―oração com ação de graça‖ (xxi.iii), ―A leitura

das Escrituras, com santo temor; a sã pregação da Palavra e a consciente atenção a ela, em

obediência a Deus, com entendimento, fé e reverência; o cântico de salmos, com gratidão

no coração; bem como a devida administração e digna recepção dos sacramentos instituídos

por Cristo — são partes do culto comum oferecido a Deus, além dos juramentos religiosos,

votos, jejuns solenes e ações de graça em ocasiões especiais, os quais, em seus vários

tempos e ocasiões próprias, devem ser usados de um modo santo e religioso‖ (xxi.v). O

trabalho dos teólogos de Westminster sobre o culto foi a culminância de mais de uma

centena de anos de exegese reformada, debates e análise da questão. As suas declarações

eram simplesmente refinadas pelo acréscimo de alguns detalhes dos escritos dos

reformadores e dos símbolos reformados que precederam à sua autoria. O arrogante e

frívolo desprezo de Frame pelos reformadores e pelas confissões reformadas, sem mostras

reais disso, é perturbador. E ser um estimado ministro numa denominação que afirma

aderência aos Padrões de Westminster, além de ensinar num seminário reformado, é ainda

mais perturbador.

Terceiro, depois de rejeitar os Padrões de Westminster sobre os elementos e partes

do culto, Frame nos empurra o seu conceito de ―aspectos‖ do culto. O que é exatamente um

―aspecto‖ de culto? Embora não defina o seu significado para aspectos, ele parece querer

dizer ―coisas a serem feitas‖ que estão relacionadas às suas categorias gerais. Como o

dicionário inglês nos dá como uma das principais acepções de aspecto a palavra ―parte‖,

ficamos imaginando qual seja realmente a diferença entre ―elemento‖, ―parte‖, ―coisas a

serem feitas‖ e ―aspecto‖.224

―Talvez com a argúcia de um escolástico medieval, o Sr.

Frame possa nos explicar as sutis diferenças entre ‗coisas‘, ‗aspectos‘, e ‗partes‘ no

culto‖.225

224

Frame oferece mais alguns poucos argumentos contra o conceito confessional de elementos ou partes do

culto. Um é o que ele chama de ―argumento prático dos troncos submersos‖. Ele assinala que ao longo dos

anos não tem havido concordância sobre o que são ou não elementos (p. 53), mas deixa de apontar, entretanto,

que as discordâncias a que se refere são todas de origem recente e foram, a princípio, trazidas à tona para

driblar o cântico exclusivo de salmos. Em seguida levanta a questão de que os puritanos discordavam quanto

a assuntos como a leitura de orações e a recitação do Credo Apostólico, sem, contudo, considerar que essas

discordâncias eram individuais. Os puritanos e os presbiterianos concordavam unanimemente sobre as

declarações quanto ao culto dos Padrões de Westminster. O fato de cristãos professos discordarem a respeito

da vigência dos dez mandamentos significa que deveríamos descartá-los e substitui-los por alguma coisa

diferente? É claro que não. O fato de pessoas discordarem acerca de alguns artigos é irrelevante quanto a uma

posição teológica ser ou não correta. Esse artigo precisa ser determinado por uma sólida comprovação

exegética e não por uma hermenêutica alucinógena. Frame também levanta a questão do serviço de culto em

um casamento. Desde que, na Escritura, não há tal tipo de coisa como serviço de culto em casamento, as suas

declarações não são pertinentes nem se encaixam na discussão. Se Frame quer que rejeitemos os Padrões de

Westminster e mais de 400 anos de pensamento reformado sobre o assunto do culto, ele terá que nos oferecer

alguma coisa bem mais substancial. Um bom ponto de partida seria uma boa é velha exegese bíblica.

Continuamos esperando. 225

Kevin Reed, ―Presbyterian Worship: Old and New‖ in Brian M. Schwertley, Musical Instruments in the

Public Worship of God (Southfield, MI: Reformed Witness, 1999), 139.

Page 130: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

A Rejeição de Frame às Circunstâncias de Culto

Frame rejeita o conceito confessional de circunstâncias de culto em favor daquilo

que denomina de ―aplicações‖. Novamente o assistimos descartar os Padrões de

Westminster e mais de quatrocentos anos de pensamento reformado em troca de seu

próprio e ímpar conceito. Observe que, assim como antes, a meta de Frame é alargar

extensamente o conceito da sanção divina. Após citar a Confissão de Fé (―há algumas

circunstâncias, quanto ao culto de Deus e ao governo da Igreja, comuns às ações e

sociedades humanas, as quais têm de ser ordenadas pela luz da natureza e pela prudência

cristã, segundo as regras gerais da Palavra, que sempre devem ser observadas‖ — i.vi) ele

escreve:

Eles acreditavam que a Escritura era suficiente para nos informar das coisas

básicas que deveríamos fazer no culto. Mas ela não nos indica detalhadamente a

direção no âmbito das ―circunstâncias‖.

O que são essas ―circunstâncias‖? A Confissão não define o termo, exceto

para dizer que são ―comuns às ações e sociedades humanas‖. Alguns dos puritanos

e presbiterianos escoceses, na tentativa de aprofundarem a explicação dessa idéia,

ensinavam que as circunstâncias eram coisas seculares, sem nenhum significado

religioso verdadeiro. Mas, certamente, no mundo de Deus, nada é puramente

secular, nada é completamente isento de significado religioso. Isso decorre do fato

de que, em um certo sentido, tudo na vida é culto. A hora e o local da reunião, por

exemplo, não são religiosamente neutros. Decisões quanto a tais assuntos precisam

ser tomadas visando a glória de Deus. Os presbíteros de uma certa igreja não

estariam exercendo governo piedoso se tentassem forçar todos os membros a se

acordarem às 3h da manhã! As decisões sobre a hora e o local do culto podem

afetar grandemente a qualidade da edificação (1Co. 14:26). Embora seja ―comum

às ações e sociedades humanas‖ decidir quanto ao momento e ao local das

reuniões, tal decisão tem, contudo, significado religioso no contexto da igreja. Os

teólogos compreenderam isso, e portanto insistiram que todas essas decisões

fossem tomadas ―segundo as regras gerais da Palavra‖. Mas, então, como

poderemos diferenciar entre as circunstâncias e os elementos substantivos do

culto?

Além disso, parece haver algumas coisas no culto que não são ―comuns às

ações e sociedades humanas‖, a respeito das quais temos que exercer o nosso juízo

humano. Por exemplo, a Escritura nos manda orar, mas não nos diz que palavras

exatas usar em cada ocasião. Precisamos decidir que palavras usar, dentro dos

limites do ensinamento bíblico sobre a oração. Esta é uma decisão de grande

importância espiritual. Não parece correto descrever tal questão como uma mera

―circunstância‖. A oração não é ―comum às ações e sociedades humanas‖. Mas na

oração precisamos usar o nosso próprio juízo dentro das fronteiras bíblicas, senão

não estaremos orando de maneira nenhuma.

Concordo com a Confissão de que há um espaço para o juízo humano em

assuntos que são ―comuns às ações e sociedades humanas‖. Mas não creio que esta

seja a única esfera legítima do juízo humano. Na minha percepção, o termo mais

bem talhado para descrever a esfera do juízo humano não é circunstância, mas

aplicação. A Escritura tipicamente nos diz o que devemos fazer em geral, e nos

deixa determinar os específicos pela nossa própria sabedoria santificada, segundo

Page 131: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

as regras gerais da Palavra. A determinação de específicos é aquilo que chamo de

―aplicação‖.

Diferentemente do termo circunstância, o termo aplicação abrange ambos

os tipos de exemplos que mencionei. As aplicações incluem assuntos tais como

hora e local do culto: a Escritura diz para nos reunirmos, mas não quando nem

onde — portanto precisamos usar o nosso próprio discernimento.

Semelhantemente a Escritura nos manda orar, mas não nos dita todas as palavras

específicas que deveríamos usar — portanto precisamos decidir. Como se pode

ver, a esfera da aplicação inclui algumas coisas que são ―comuns às ações e

sociedades humanas‖ e algumas outras que não são.226

Há várias coisas, quanto a discussão de Frame sobre as circunstâncias de culto,

que precisam ser observadas. Primeiro, a alegação de Frame de que alguns puritanos e

presbiterianos escoceses (não mencionados) consideravam as circunstâncias como

seculares, é errada e enganosa. Eles não tinham as circunstâncias de culto como seculares

ou religiosamente neutras, mas como matérias que não eram especificamente determináveis

pela Escritura e que tinham aspectos comuns com os assuntos civis ou seculares. Por

exemplo, uma reunião civil teria um começo e um fim, cadeiras, luz, uma tribuna, um

edifício e um palestrante. Essas circunstâncias de culto deveriam, todavia, ser elaboradas ou

conduzidas ―segundo as regras gerais da Palavra‖. Frame (uma vez mais) estabelece uma

falsa bifurcação de pensamento entre certos puritanos e/ou presbiterianos (não nomeados) e

os teólogos de Westminster.

Segundo, Frame apresenta um conceito demasiadamente simplificado das

circunstâncias com a intenção de fazer o entendimento confessional parecer incompetente e

inexeqüível. Ele nos diz que como as palavras que usamos na oração são de ―grande

importância espiritual‖ e como a oração não é ―comum às ações e sociedades humanas‖,

precisamos, portanto, usar um conceito melhor e mais viável do que o termo

―circunstâncias de culto‖. A sua alternativa é ―aplicações‖.

O argumento de Frame suscita várias interrogações. Aquilo que os crentes fazem

ao orar é uma mera circunstância de culto? A oração é regulada somente pelas regras gerais

da Escritura? Conquanto seja verdade que os crentes têm a liberdade de utilizar as suas

próprias palavras para poderem atender às diversas circunstâncias e contingências da vida

diária, a oração é em si mesma regulada especificamente pela Escritura. Jesus mandou que

os discípulos orassem de uma certa maneira (Mt. 6:9). Ele lhes disse para não usarem de

―vãs repetições, como os gentios‖ (Mt. 6:7). Além disso, nos é assegurado que o Espírito

Santo nos assistirá ao orarmos (cf. Zc. 12:10; Rm. 8:26-27). A oração, estritamente falando,

não é uma circunstância de culto. Os teólogos de Westminster não consideravam o

conteúdo da oração do mesmo modo que um tipo de bancada, iluminação, estilo de púlpito,

assoalho, etc. Portanto, a idéia de que ao se escolher as próprias palavras ao orar no culto

torna o conceito das circunstâncias do culto algo inviável, não é verdade.

Ao se abraçar o entendimento confessional do princípio regulador, de que todas as

partes ou elementos do culto requerem aprovação divina, faz-se necessário explicar aquelas

coisas que são necessárias ao andamento do culto e que não são tratadas especificamente na

Escritura. Diz-nos a Bíblia em que tipo de edifício nos reunir, ou o tipo das cadeiras e

modelo de púlpito que devem ser usados? Será que não existem áreas relacionadas com o

serviço de culto público que não afetem diretamente o conteúdo ou as partes do culto

226

Worship in Spirit and Truth, 40-41.

Page 132: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

religioso? A resposta confessional de que existem algumas circunstâncias relativas ao culto,

que não são propriamente partes ou ordenanças do culto, é óbvia e inevitável. Se Frame

observa que em certas áreas ou aplicações o conceito de circunstâncias precisa ser

esclarecido, isso é uma coisa. Mas, por que insiste ele em jogá-lo fora em troca do seu

próprio conceito de aplicações? A razão principal está relacionada à rejeição de Frame da

doutrina confessional de elementos ou partes do culto religioso, onde cada um deles requer

sanção divina. Uma vez que se rejeite o conceito de elementos de culto, fica-se apenas com

as amplas categorias. Os crentes devem tirar do meio dessas amplas categorias as várias

―coisas a serem feitas‖ no culto. Segundo Frame, as ―coisas a serem feitas‖ podem ser

determinadas por mandamentos específicos ou de acordo com ―amplos princípios

teológicos‖. O sentido disso é que Frame pegou o conceito de ―segundo as regras gerais da

Palavra‖ que os teólogos de Westminster aplicavam apenas às circunstâncias de culto e

tem-no aplicado ao próprio culto. Essa incrível ampliação do conceito da sanção divina

torna a seção da Confissão que trata das circunstâncias do culto totalmente supérflua. Se

Frame já pegou ―as regras gerais da Palavra‖ da Confissão e a aplicou ao culto em si

mesmo, ele tem que redefinir as circunstâncias em aplicações. Por quê? Porque o termo

―aplicações‖ é amplo o suficiente para abranger tudo que está relacionado ao culto, sejam

as ordenanças do culto ou as áreas circunstanciais. De fato, tudo que fazemos na vida como

cristãos é, em um certo sentido, uma aplicação da Escritura. Frame prossegue em seu

caminho arrancando as distinções claras e cuidadosamente pensadas encontradas nos

Padrões de Westminster e substituindo-as por conceitos amplamente genéricos. Lembre-se

de que a meta do jogo é a autonomia humana no culto.

A Corrupção de Frame da Posição Puritana/Presbiteriana Relativa às Reuniões Formais

versus as Reuniões Informais

Frame acusa ―alguns teólogos‖ e os puritanos de aplicarem o princípio regulador

apenas aos serviços de culto ―formais‖ ou ―oficiais‖. Ele escreve:

Esta posição acerca do poder da igreja, entretanto, levou alguns teólogos a

distinguirem argutamente entre os serviços de culto que são ―formais‖ ou

―oficiais‖ (i.é, sancionados pelo corpo governante da igreja), e outras reuniões em

que ocorre um culto, tais como devoções familiares, cântico de hinos em casa, etc.,

que não são oficialmente sancionados. Alguns têm dito que o princípio regulador

aplica-se apenas apropriadamente ao serviço de culto formal ou oficial, não às

outras formas de cultuar.

Mas essa distinção é claramente anti-bíblica. Quando a Escritura nos proíbe

de cultuar segundo a nossa própria imaginação, não o está proibindo apenas

durante os serviços dos cultos oficiais. O Deus da Escritura certamente não

aprovaria as pessoas que O adorassem nos cultos formais, mas que, na privacidade

de seus lares, adorassem ídolos!

Na visão puritana, o princípio regulador pertence primariamente ao culto que

é oficialmente sancionado pela igreja. Nessa perspectiva, com o objetivo de

mostrar que, digamos, a pregação é apropriada para o culto, nós temos que mostrar

através de mandamentos bíblicos e exemplos o que Deus requer que seja pregado

nos serviços de culto sancionados oficialmente. Não basta mostrar que Deus se

satisfaz quando a Palavra é pregada nas multidões ou nas reuniões informais do

lar. Ao contrário, temos que mostrar que a pregação é ordenada precisamente para

o serviço de culto formal ou oficial. Infelizmente, é praticamente impossível

Page 133: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

provar que alguma coisa é divinamente exigida especificamente para os serviços

de culto oficiais.227

Esta é uma corrupção total da posição puritana. A verdade quanto a isso é que a

idéia de que o princípio regulador aplicava-se apenas ao culto público não foi amplamente

aceita senão até o final do século dezenove. Como as inovações de culto e a decadência

ocorreu ao longo de todo o século dezenove, e algumas práticas como o uso de

instrumentos musicais no culto familiar, a celebração do Natal nos lares e vários programas

de Escola Dominical onde se permitia às mulheres falarem, fazerem perguntas e até mesmo

ensinar aos homens tornou-se popular, houve uma concentração de esforços para se manter

tais inovações, pelo menos, fora do ―serviço de culto oficial‖. Na verdade, hoje um

presbiteriano ―ultraconservador‖ é definido quase sempre como alguém que deseja manter

fora do culto público a celebração papal-pagã dos dias santos, mas que acha que é

perfeitamente aceitável celebrar esses dias em casa decorando-a com as quinquilharias do

Anticristo e as parafernálias pagãs. Os puritanos e os presbiterianos nunca permitiram que

seus membros violassem o princípio regulador em casa. Quem celebrava o Natal ou a

Páscoa era disciplinado.

Embora os puritanos, presbiterianos e teólogos de Westminster aplicassem

estritamente o princípio regulador a todo culto — fosse público, familiar ou particular —

isso não significa que cada esfera tinha exatamente as mesmas regras. Por exemplo, no

culto familiar o pai deve conduzir o ensinamento e a leitura da Escritura (Dt. 6:7-9). Mas

não lhe é permitido dispensar ou participar das ordenanças públicas (i.é, batismo e Santa

Ceia) ou exercer disciplina eclesiástica. É muito importante que ao buscarmos a sanção

divina para uma prática no culto público, saibamos fazer a distinção entre mandamentos ou

exemplos históricos da Escritura que são aplicáveis a um indivíduo, ou família, ou reunião

pública, ou mesmo a um evento extraordinário. Frame adultera a posição puritana não

porque queira abolir as inovações no lar, mas para garimpar a Bíblia em busca de sanção

divina em passagens que claramente nada têm a ver com o culto público. Qual é a maior

justificativa que Frame apresenta para a representação teatral no culto público? Que os

profetas alguma vezes fizeram coisas dramáticas. Como é que ele justifica a dança litúrgica

no culto público? Apontando várias passagens que se referem a extraordinárias celebrações

de vitórias nacionais e locais (i.é, passeatas exteriores).228

A caricatura de Frame da posição

puritana monta o palco para a sua redefinição do princípio regulador e para seus textos de

abonação — piegas e sem conexão real — de várias inovações modernas.229

227

Ibid. 228

Veja Worship in Spirit and Truth, 131. 229

Do mesmo modo que desfigura o entendimento puritano quanto à meta do princípio regulador, Frame

também deturpa a Confissão de Westminster. Ele escreve: ―Estou consciente de que as declarações

presbiterianas tradicionais do princípio regulador traçam tipicamente uma distinção mais incisória do que a

que tenho definido, entre os serviços de culto e as demais coisas da vida. A Confissão de Fé, por exemplo,

declara que, na vida como um todo, estamos livres de quaisquer ‗doutrinas e mandamentos humanos‘ que são

‗contrários‘ à Palavra de Deus, mas declara ainda que em ‗matéria de fé ou de culto‘ também estamos livres

das doutrinas e mandamentos que ‗estão fora‘ da Palavra (xx.ii)‖ (43). Nesta seção sobre a liberdade da

consciência as frases ―contrários à Sua Palavra, ou que, em matéria de fé ou culto, estejam fora dela‖ vêm

juntas e são conectadas a ―doutrinas e mandamentos humanos‖ pelo verbo ―ser‖ (sejam). A Confissão não

está fazendo duas declarações estanques — uma que trata da vida como um todo e outra que considera apenas

assuntos de fé. Qualquer coisa contrária ou fora da Palavra de Deus, em matéria de fé ou de culto, não possui

autorização de Deus. Shaw escreve: ―Nesta seção, a doutrina da liberdade de consciência é apresentada nos

mais explícitos termos. A consciência, em todos as questões de fé e dever, está sujeita apenas à autoridade de

Page 134: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

O Caso de Frame Para a Contemporaneidade no Culto

À medida que consideramos o livro de Frame não podemos jamais perder de vista

o fato de que ele é uma apologia do estilo de culto carismático-arminiano em uso nas

igrejas ―Nova Vida‖. Esse tipo de culto é comumente denominado de culto

―contemporâneo‖ ou ―celebrativo‖. Como é que Frame justifica esse novo tipo de culto

com a Escritura? Seu argumento baseia-se no fato de que as línguas precisam ser traduzidas

numa linguagem inteligível. Ele escreve:

Por outro lado, a Escritura também nos diz, mais explícita e enfaticamente,

que o culto deve ser inteligível. Ele deve ser compreensível aos adoradores, e até

mesmo aos visitantes não-cristãos (1Co. 14 especialmente os vv. 24-25). E

inteligibilidade exige contemporaneidade. Quando as igrejas usam uma linguagem

arcaica e seguem a práticas que são pouco conhecidas hoje, elas comprometem

esse princípio bíblico... Outra consideração importante é que o estilo escolhido

precisa promover a inteligibilidade da comunicação. Temos visto que é esta a

ênfase principal de 1Coríntios 14, que é o tratamento mais abrangente de uma

reunião de culto cristão no Novo Testamento. A inteligibilidade da comunicação é

crucial para a Grande Comissão e para a demanda do amor, porque o amor procura

promover, não impedir, o entendimento mútuo.

A inteligibilidade requer de nós, primeiro, que falemos a língua do povo, não

latim, como enfatizaram os reformadores. Mas a comunicação é mais do língua,

em seu sentido estrito. O conteúdo é comunicado através da linguagem corporal,

estilo, a escolha de termos populares em vez de termos técnicos, estilos musicais

bem conhecidos, etc.230

O argumento de Frame para o culto contemporâneo é outro exemplo daquilo que

ele chama de ―aplicação criativa‖. Uma designação mais precisa seria ―aplicação

arbitrária‖. Quando o apóstolo Paulo tratou de um problema específico em Corinto (línguas

não interpretadas ou não traduzidas), fez também alguma declaração sobre os estilos

musicais, linguagem corporal ou estilos contemporâneos de culto? Não. Nem Paulo nem os

irmãos de Corinto nem qualquer outro comentarista do passado ou do presente (com a

exceção de Frame) crê ou ensina que Paulo estava dizendo à igreja para se assegurar de ter

a linguagem corporal apropriada. Frame está, mais uma vez, pendurando-se numa corda

podre. Esse seu conceito de inteligibilidade pode ser aplicado também à arquitetura da

igreja, ao vestuário cristão, ao carro e mobiliário do pastor, etc., porque é uma aplicação

arbitrária. Não está fundamentada na exegese protestante padrão.

Como foi que se iniciou o culto ―celebrativo‖ ou ―contemporâneo‖? Será que

houve um grupo de cristãos que pelo estudo sério da Escritura (e.g., 1Co. 14:24-25) chegou

à conclusão de que Deus exigia que o culto fosse modernizado para melhor falar à nossa

cultura infantil e degenerada? Não. Falando de modo geral, o aumento da sua popularidade

Deus, e é totalmente livre de toda e qualquer sujeição às tradições e mandamentos humanos. Acreditar em, ou

obedecer a qualquer mandamento, contrário à Palavra de Deus, em submissão à autoridade humana, é trair a

verdadeira liberdade de consciência‖ Exposition of the Confession of Faith, 205. A. A. Hodge escreve:

―Autoritativamente, Deus se dirigiu à consciência humana somente em Sua lei, a única revelação perfeita que,

nesse mundo, é a Escritura inspirada. Por isso o próprio Deus desobrigou a consciência humana de crer ou

obedecer a quaisquer de tais doutrinas ou mandamentos humanos, sendo eles contrários ou fora dos

ensinamentos dessa Palavra‖ The Confession of Faith, 265. 230

Worship in Spirit and Truth, 67, 83.

Page 135: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

deve-se à combinação de três desenvolvimentos históricos. Primeiro, o culto

contemporâneo tem as suas raízes no reavivalismo pragmático arminiano. Os reavivalistas

arminianos aprenderam que canções feminis, emotivas e chorosas ajudavam as pessoas a

fazerem uma ―decisão por Cristo‖. Aprenderam também que entretenimento, dramatizações

e interlúdios ao órgão traziam mais pessoas às tendas. Segundo, no final da década de 60 e

primórdios da década de 70 muitos maconheiros e hippies tornaram-se cristãos professos.

Muitos desses hippies convertidos (―o povo de Jesus‖) trouxeram para seus cultos o estilo

comunal, simplista e emotivo de cantar a que estavam acostumados. Esse novo estilo de

culto consistia muitas vezes de corinhos de um único verso que era cantado repetidamente

até as pessoas atingirem um frenesi emocional ou entrarem num tipo de transe meditativo.

Tristemente, esse emocionalismo e estado semelhante a transe eram e ainda são

equiparados com a presença especial do Espírito Santo ou com uma mística comunhão com

Deus. Os crentes precisam entender que esse novo tipo de culto, emocional e sem base

doutrinal, tem as suas raízes não na Bíblia, mas na contracultura do paganismo místico.

Peter Masters escreve: ―foi uma forma de culto moldada e concebida no ventre da

meditação mística hippie, em que eles, às centenas e aos milhares, sentavam-se nas

encostas das montanhas da Califórnia balançado-se para cá e para lá, com os olhos

fechados, em busca de uma experiência extática. Os ex-hippies trouxeram para a sua nova

causa o método de procurar alívio emocional ou sensações às quais estavam acostumados, e

ninguém lhes mostrou um caminho melhor‖.231

Terceiro, houve a ascensão do movimento de crescimento de igrejas que oferecia

uma justificativa de aparência piedosa, para o culto orientado ao entretenimento e centrado

no homem, mas que era totalmente pragmática. O fato da música ―celebrativa‖ ser

superficial, mundana e imatura não importa, pois o culto precisa ser ajustado à clientela;

precisa apelar às pessoas superficiais, mundanas e imaturas que estão à procura de algo.

Quer dizer, precisa ser atrativo à carne. Nesse paradigma não se considera primariamente

que o culto deve ser voltado para Deus, mas para o homem. O culto é tratado como mais

uma ferramenta de evangelização do movimento de crescimento de igrejas. Frame não

colocaria a questão de modo tão grosseiro. Mas o seu conceito de que ―inteligibilidade

requer contemporaneidade‖, mesmo para visitantes não-cristãos, diz exatamente a mesma

coisa. Assim, as igrejas hoje têm canções repetitivas e infantilóides associadas a bandas de

rock, grupos de teatro, pastores comediantes, dança litúrgica, vídeos e filmes.

Em um outro livro sobre o culto, Contemporary Worship Music: A Biblical

Defense [Música de louvor contemporânea: uma defesa bíblica], Frame argumenta em

favor de hinos super-simplificados (i.é, reescritos para uma audiência menos inteligente)

baseados nos santos do Velho Testamento, tais como Jó, Moisés e Isaías. Os longos e

detalhados pronunciamentos de Jó são comparados ao culto tradicional. Quando Jó,

finalmente, defrontou-se com Deus falou somente umas poucas e simples palavras.

Semelhantemente, quando Moisés e Isaías estiveram na presença de Deus foram tomados

de espanto e pouco tiveram a dizer.232

A análise que Peter Master faz desse livro de Frame

231

Peter Master, ―Worship in the Melting Pot: Is The New Worship Compatible with Traditional Worship?‖

in Sword and Trowel no. 3, 13 (London, England, 1998). O autor está em débito com Masters por suas muitas

percepções do ―novo culto‖. 232

Quando lemos as passagens em que um profeta entra na presença de Deus e, estarrecido, fala poucas

palavras, será que isso significa que Deus está nos dizendo por meio da ―aplicação criativa‖ que Ele gostaria

de que as letras dos cânticos de louvor consistissem de uma única linha? Não, de maneira nenhuma. A

aplicação legítima de tais textos seria a de que adoramos um Deus infinitamente santo e tremendo. Por isso,

Page 136: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

acerta o alvo em cheio. Ele escreve: ―Umas das muitas queixas de Frame acerca do culto

tradicional é que ele é muito complexo. É demasiadamente verboso, inteligente e erudito.

Não é para pessoas comuns. Para dar sustentação a essa queixa, o autor se diz favorável a

um mínimo de palavras. Ele quer suplantar a racionalidade, e fazer dos sentimentos o fio

condutor do culto. Também insiste que há uma dimensão física no culto, validando a dança

e outras atividades. Ele quer fazer vibrar as cordas dos sentidos e das sensações com o

objetivo de tocar a Deus. O motivo de mencionar o seu livro até aqui é mostrar como os

‗tradicionalistas‘ que adotam o novo louvor capitularão por fim à filosofia do culto

emocional-místico-estético‖.233

As origens e os argumentos em favor do moderno culto ―celebrativo‖ suscita

algumas perguntas muito importantes. Por que razão o culto moderno tem que servir de

instrumento e rebaixar-se à imaturidade e degeneração da cultura moderna? Se o rap vem a

ser a forma predominante de expressão musical na sociedade, será que os advogados da

―contemporaneidade‖ usarão a música rap no culto público? (Algumas igrejas já usam

grupos de rap ―cristãos‖ nos momentos de entretenimento dos seus serviços de culto).

Também, quando Frame e outros procuram na Escritura por comprovação e direção quanto

ao culto, por que apontam passagens que nada têm a ver com o cântico de louvor quando

Deus já nos tem dito exatamente o que quer? Deus já escreveu o seu próprio hinário — o

Livro dos Salmos — e colocou-o no meio de nossas Bíblias, e nos ordenou que o

cantássemos. A única razão possível para que os advogados do culto ―celebrativo‖ ignorem

o óbvio e se apóiem na ―aplicação criativa‖ é uma espantosa falta de conhecimento da

Escritura ou uma gritante desconsideração por ela em favor da autonomia humana no culto.

O fato de o próprio Deus ter escrito e dado à igreja um hinário (o Livro dos

Salmos) diz-nos uma série de coisas sobre o louvor que contradizem, todas, o paradigma do

culto ―celebrativo‖. Primeiro, observe que os Salmos são saturados de profunda teologia e

são doutrinariamente equilibrados, complexos, não-repetitivos, e freqüentemente longos.234

Davi e os demais profetas inspirados que escreveram os salmos não consideravam a

doutrina pesada e a complexidade de sentido como impedimentos aos cultos bíblicos. Isso é

porque o louvor bíblico não tenta desconsiderar o intelecto em favor de uma experiência

extática. A nossa fé em Jesus Cristo é fortalecida pelo aprendizado e entendimento da

doutrina bíblica, não pelo experimentar de um fenômeno emocional vazio de provimento

cognitivo. Nada há de errado, com certeza, em experimentar emoções. Os Salmos, muito

melhor que qualquer hinário não-inspirado, refletem todo o leque das emoções humanas:

ao aproximarmo-nos dele em adoração precisamos ser mui cuidadosos em fazer conforme Ele determina. O

nosso Deus é um fogo consumidor (Hb. 12:29). Portanto, o culto de um Deus assim (Jeová) precisa ser

prestado de maneira séria e solene. As igrejas que praticam o novo culto ―celebrativo‖ com piadas, esquetes,

entretenimento, cânticos infantilóides vãos e repetitivos, bandas de rock e trejeitos burlescos não são sérias,

nem respeitosas, nem solenes. ―Mas, irmão, essas pessoas são sinceras‖. De fato, muitos deles o são;

entretanto, a sinceridade que não se fundamenta na verdade não tem o menor valor. 233

Masters, 15. 234

As pessoas que argumentam em favor dos corinhos repetitivos apontarão algumas vezes para os Salmos

para justificar as frases curtas e repetidas nas canções de louvor. A verdade sobre a questão é que os Salmos

em nada se parecem com os corinhos modernos. Em lugar de corinhos que são repetidos incessantemente, os

Salmos possuem o que se chama de refrão. No Salmo 136 encontramos no final de cada verso o refrão

―porque a sua misericórdia dura para sempre‖. Diferente dos corinhos modernos, o refrão é repetido ao final

de cada pensamento diferente. Cada verso desse salmo é diferente um do outro. Desse modo a mente

concentra-se na ação de graças pelos atributos e atos redentivos de Deus, em vez das vãs repetições dos

corinhos modernos onde a mesmíssima coisa é repetida ininterruptamente, como um mantra hindu.

Page 137: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

das profundezas do desespero às alturas do gozo e da felicidade. Entretanto, as nossas

emoções precisam estar alicerçadas na verdade bíblica. O Espírito Santo usa a Palavra de

Deus para convencer do pecado e para santificar, não para incitar a algum tipo de

experiência mística e emocional.

Lembre-se de que o paradigma do culto ―celebrativo‖ é uma conseqüência do

movimento carismático, e que está filosoficamente enraizado numa espécie de cristianismo

existencialista. O que as igrejas carismáticas fazem reiteradamente é induzir as pessoas ao

frenesi emocional pelo uso de músicas estimulantes, programas visualmente apelativos,

líderes de torcida denominados de ―líderes de louvor‖ (cuja função primária é encorajar as

pessoas à excitação emocional), cânticos excessivamente repetitivos, etc. Então, quando as

pessoas estão tendo uma experiência maravilhosa lhe é dito: ―Agora, não estão sentindo a

presença do Espírito? Sentem o poder? Este local está em chamas!‖. Ensina-se a essas

pobres e iludidas almas a igualarem uma experiência emocional e ―cabeça-oca‖ induzida

pela música, à presença de Deus. Tal técnica irracional, sensória e emocional de

experimentar (o que eles pensam ser) a presença especial de Deus, é misticismo. É de se

admirar, então, que muitas igrejas carismáticas consideram a doutrina e a pregação

exegeticamente sólida como sem importância, e que o movimento carismático está

conduzindo muitos protestantes de volta a Roma? ―O culto místico, conduzido pela

emoção, é uma ilusão que produz adoradores intensamente emocionais e subjetivos, para

quem o prazer pessoal é a meta maior‖.235

Segundo, o fato de que Deus entregou os Salmos a uma sociedade primitiva,

agrícola e analfabeta em sua maioria, desaprova completamente a idéia de que precisamos

estupidificar o culto usando corinhos repetitivos, representação teatral e apresentação

musical. Se o argumento da ―inteligibilidade‖ de Frame tivesse sido aplicado aos israelitas,

o culto deles não haveria de ser ainda mais simples e menos complexo do que o dos

programadores de computador, engenheiros, pilotos e cientistas da computação de hoje?

Afinal, a grande maioria dos israelitas eram meros fazendeiros e criadores de gado.

Contudo, Deus lhes deu o complexo, altamente teológico, denso, e intelectualmente

desafiador Livro dos Salmos. Deus não esperava que os israelitas desligassem as suas

mentes, fechassem os olhos e repetissem as mesmas palavras sempre, e sempre, e sempre

como um hippie dopado ou um místico hindu. O culto bíblico exige uma mente atenta, que

pense, que compreenda e não seja dispersa. Uma filosofia de culto que (se consistentemente

aplicada) exija do povo de Deus que abandone o perfeito, suficiente e inspirado Livro dos

Salmos, não pode ser verdadeira.236

235

Ibid., 14. 236

Uma acusação freqüente contra o culto puritano ou verdadeiramente reformado levantada pelas igrejas que

seguem uma liturgia episcopal e os celebrantes do estilo carismático é que os puritanos viam o culto como um

exercício puramente intelectual. Argumentam que os puritanos negligenciavam o homem como um todo

(alma e corpo) no culto, e que precisamos é de uma ―visão cerimonial‖ de culto. Por isso, defende-se amiúde

que a visão holística exige, como acompanhamento e conseqüência necessários, gestos, dança, e que

cerimônia e ritual — com a eucaristia — seja o elemento central do culto cristão, não o sermão. Diz-se que

deve haver ação e também pensamento. Uma outra acusação é a de que o culto puritano é na verdade uma

conseqüência da filosofia grega, e não uma cuidadosa exegese da Escritura. Tais acusações correspondem

exatamente aos fatos? Não. Elas são uma pretensa e flagrantemente corrupta caricatura do culto Reformado.

Os puritanos viam o culto como um assunto puramente intelectual e mental? Não. Essa acusação

simplesmente não é verdade. Por exemplo, os puritanos criam e praticavam os sacramentos do batismo e da

Ceia do Senhor, onde os atos e os elementos específicos são sinais e selos de realidades espirituais. Na Ceia

do Senhor (por exemplo) todos os sentidos estão em operação. Ouve-se a Palavra, prova-se e toca-se no pão e

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Terceiro, o argumento da ―contemporaneidade‖ também é desaprovado pelo

princípio regulador. Para se certificarem de que o seu culto era culturalmente relevante,

foram os judeus da era da Velha Aliança atrás dos cananeus, filisteus, egípcios, ou assírios?

A igreja da Nova Aliança foi em busca da ―contemporaneidade‖ da cultura grega ou

romana? Não. Eles só podiam fazer precisamente aquilo que Deus ordenara, i.é, evitar o

sincretismo com a cultura pagã. ―Guarda-te, não te enlaces com imitá-las, após terem sido

destruídas diante de ti; e que não indagues acerca dos seus deuses, dizendo: Assim como

serviram estas nações aos seus deuses, do mesmo modo também farei eu. Não farás assim

ao SENHOR, teu Deus, porque tudo o que é abominável ao SENHOR e que ele odeia fizeram

eles a seus deuses, pois até seus filhos e suas filhas queimaram aos seus deuses. Tudo o que

eu te ordeno observarás; nada lhe acrescentarás, nem diminuirás‖ (Dt. 12:30-32). Embora

os americanos não estejam hoje sacrificando seus filhos a Moloque, muitos estão de fato

servindo no altar do hedonismo. A nossa cultura não se atem aos profetas de Baal, mas aos

esportes, Hollywood e Las Vegas. Essa atitude hedonista, auto-centrada e orientada para o

entretenimento penetrou completamente em muitas igrejas evangélicas modernas. A

moderna música celebrativa não é um modo melhor e mais bíblico de adorar a Deus. É um

culto sincrético. É a mistura dos elementos de culto com a cosmovisão hedonista

americana. O repúdio de Frame ao entendimento puritano/presbiteriano/confessional do

princípio regulador, juntamente com a sua alternativa de ―aplicação criativa‖ tem um

objetivo maior: a justificação do moderno culto sincretista.237

no vinho. Há a experiência sensório-visual de se olhar para os elementos. A questão entre os regulativistas

estritos e as igrejas que seguem uma liturgia episcopal não é a do culto puramente mental versus o culto do

homem-como-um-todo. Os pontos verdadeiros são: (a) os puritanos querem limitar o culto a apenas aquilo

que está autorizado pela Escritura, ao passo que os liturgistas querem os acréscimos humanos (e.g., pompa e

ritual); (b) Os regulativistas compreendem a centralidade da pregação da Palavra. Não é que os puritanos

tenham descartado as emoções e o ―homem-como-um-todo‖. Seguindo a Paulo e a outros eles reconhecem

que as emoções apropriadas e as ordenanças visíveis precisam fundamentar-se na fé e no entendimento; caso

contrário fica-se com ritualismo e misticismo vazios. Paulo diz que orar e cantar sem entendimento é inútil e

não leva à edificação (cf. 1Co. 14:12-19). O apóstolo pressupõe que, para poder ocorrer a santificação, a

mente precisa, antes de tudo, compreender.

E quanto à acusação comum de que os puritanos seguem à filosofia grega em sua concepção de culto?

Qualquer um familiarizado com a literatura de João Calvino, John Knox, John Owen, George Gillespie,

Samuel Rutherford e outros, sabe que tal acusação é totalmente falsa. Esses homens derivaram sua filosofia

do culto a partir de uma direta e cuidadosa exegese da Escritura. Observe também que os acusadores fazem as

suas denuncias sem que tenham a mínima prova. É irônico que a aplicação estrita do princípio regulador seja

a única filosofia que proíbe a intrusão da filosofia humana na esfera do culto. Pedimos a nossos irmãos, que

estão insatisfeitos com a simplicidade do puro culto evangélico (aquilo que eles denigrem como culto

minimalista), para que nos mostrem, baseados numa real exegese da Escritura (sem aplicações criativas e

hermenêutica alucinógena), onde foi que Calvino, Knox e os teólogos de Westminster erraram. Não seremos

persuadidos com truques de mágica. 237

As pessoas favoráveis ao culto ―celebrativo‖ descrevem algumas vezes os regulativistas estritos como

esnobes teológicos, desprovidos de amor e que são até mesmo influenciados pelo neoplatonismo ou pelo

nominalismo. A verdade sobre a questão é que os regulativistas estritos querem preservar o culto bíblico (i.é,

reformado) do culto que é idólatra, pelagiano e arminiano. Quando as pessoas ignoram ou descartam aquilo

que Deus ordenou em favor da autonomia no culto, elas estão dizendo implicitamente que, na adoração,

podemos nos aproximar de Deus nas condições humanos. Que o homem através da sua própria criatividade,

esforço, e experiência mística pode elevar-se até Deus. Tal tipo de pensamento é a essência do paganismo e

do catolicismo. A Bíblia, entretanto, ensina que somente Deus é que inicia a mediação e estabelece o culto

entre Ele próprio e o Seu povo. Jeová é quem define as regras e controla o culto. Para o homem pecaminoso,

aproximar-se de Deus em seus próprios termos, é o cúmulo da arrogância. Tais homens podem ser amigáveis

Page 139: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

Conclusão

Um dos debates mais importantes que ocorre hoje entre os presbiterianos

―conservadores‖ é sobre o princípio regulador e a sua aplicação no culto. Esse debate

teológico é crucial, pois a sua conseqüência afetará grandemente o futuro rumo do

presbiterianismo. A principal batalha que está ocorrendo, não é entre os tradicionalistas

defensores do status quo e os celebrantes do estilo carismático, mas entre confessionais

estritos (i.é, aqueles que permanecem firmes a um entendimento estrito, consistentemente

aplicado e histórico do princípio regulador) e todos os demais que rejeitaram ou

reinterpretaram o princípio regulador de modo não-confessional. Não há a menor dúvida de

que Frame é o principal apologista dos que rejeitaram a posição confessional e

estabeleceram um novo rumo consistente com aquilo que é popular no seio dos evangélicos

arminianos não-regulativistas. Embora vejamos em nossos dias um renovado interesse no

culto bíblico (e.g., o cântico dos Salmos à capela), atualmente, nas denominações

presbiterianas conservadoras, a principal tendência de culto parece voltar-se para novo

culto ―celebrativo‖ defendido por Frame. É de se esperar por tal tendência. Quando as

denominações afastam-se, na prática, do princípio regulador pelo uso de hinos não-

inspirados, instrumentos musicais e dias santificados extra-bíblicos, a tendência é ser

consistente. Noutras palavras: um pouco de fermento leveda toda a massa.

O propósito desta resenha é alertar a todos os que se consideram reformados ou

presbiterianos de que Frame está guerreando contra o culto bíblico e os Padrões de

Westminster. Ele é subversivo; usa de falsidade, ambigüidade e engano para persuadir os

outros a abraçarem a autonomia humana no culto. Observe que a sua subversão é

deliberada e bem planejada. Não é nenhum calouro ou teólogo amador que cometeu alguns

erros simplesmente por imaturidade e falta de conhecimento. Ele ensina teologia e

apologética, em seminários, há mais de 27 anos, e sabe muito bem que aquilo que propõe

em seu livro é um afastamento radical dos Padrões de Westminster. É um ministro

ordenado e professor de seminário que adota a Confissão de Fé com os dedos cruzados.

Frame e todos aqueles que em seus votos de ordenação juraram fidelidade aos Padrões de

Westminster, mas que agora os rejeitam, têm três opções: (1) podem honesta e

coerentemente resignar às suas posições como pastores, professores de seminário ou

presbíteros regentes e juntar-se a alguma denominação que seja calvinista em sua

soteriologia, mas que rejeite abertamente o culto reformado (i.é, o princípio regulador); (2)

podem ser desonestos, redefinir o princípio regulador de uma maneira não-confessional e

trabalhar para subverter um dos principais distintivos presbiterianos e corromper outros; ou

(3) podem arrepender-se, obedecer aos seus votos de ordenação e retornar ao culto bíblico

dos seus antepassados espirituais.

A subversão de Frame aos Padrões de Westminster, o endosso a seu livro por

professores de dois seminários reformados ―conservadores‖, bem como a sua publicação

por uma suposta editora ―Presbiteriana e Reformada‖ revelam duas coisas acerca dos dias

em que estamos vivendo. Primeiro, vivemos em dias de grande decadência. A maior parte

daquilo que hoje passa por presbiteriano conservador está verdadeiramente mais próximo

do evangelicalismo arminiano com tendências episcopais do que da proposta original da

Confissão de Fé. Na verdade é duvidoso que alguém como John Knox, George Gillespie ou

e parecerem muito piedosos, humildes e amorosos. Mas a sua falsa doutrina e atitudes revelam serem (pelo

menos na área do culto) falsos mestres e profetas da decadência.

Page 140: Sola Scriptura e o princípio regulador do culto.pdf

Samuel Rutherford conseguisse um emprego para ensinar em quaisquer dos seminários

presbiterianos ―conservadores‖ de hoje; e é praticamente certo que nenhum dos principais

editores presbiterianos jamais publicariam quaisquer de seus escritos sobre o culto. Por

quê? Porque os seminários presbiterianos ―conservadores‖, os principais editores

reformados e a maior parte das pessoas nas denominações presbiterianas não crêem

realmente no culto confessional. ―Coisa espantosa e horrenda se anda fazendo na terra: os

profetas profetizam falsamente, e os sacerdotes dominam de mãos dadas com eles; e é o

que deseja o meu povo‖ (Jr. 5:30-31).

Segundo, vivemos numa época em que a subscrição confessional é muito frouxa,

onde ministros e presbíteros podem repudiar e quebrar os votos da sua ordenação sem

praticamente qualquer conseqüência disciplinar. Esta situação suscita algumas perguntas

importantes: (1) Se um homem quebra abertamente os votos da sua ordenação e ensina

publicamente uma doutrina anti-bíblica de culto, podem, a denominação e o seminário que

se recusam a disciplinar tal homem, ser chamados de reformados? Não estariam, em sua

recusa, forçando seus próprios padrões à cumplicidade com a falsidade desse homem e com

o seu falso e corrosivo ensino? Não seria a sua falta de atitude a aceitação implícita de

pontos de vista heterodoxos? ―Se os presbiterianos levassem a sério os seus credos, o Sr.

Frame haveria de ser removido do seminário e do pastorado, e proibido de ensinar‖.238

(2)

Além disso, a recusa em se infligir uma sanção a uma tão gritante violação de nossos

padrões não seria também uma recusa pastoral de proteger os membros da igreja contra os

falsos mestres? Não seria uma rejeição implícita de um dos motivos principais de se adotar

um credo bíblico cuidadosamente elaborado? A análise de Gary North quanto ao conflito

presbiteriano dentro da PCUSA (c. 1880-1936) aplica-se aos nossos dias de laxa subscrição

e de impunes transgressores de alianças. Ele escreve:

Boa parte do conflito presbiteriano consistia do antiqüíssimo debate entre as

interpretações, uma rigorosa e outra frouxa, de um padrão. Para entender o que

estava envolvido, considere uma placa de limite de velocidade que diz ―35‖

(milhas ou quilômetros por hora). O que acontece se alguém dirige a 36? Será

multado pelo policial? É provável que não. O policial dispõe de pouco tempo para

perseguir os corredores, multá-los, e talvez ir à corte para defender as suas

autuações. Em um mundo de recursos limitados alguém que dirija à velocidade de

36 numa zona de 35 provavelmente seguirá impune; a segurança das pessoas

depende da interrupção da atividade dos corredores que ameaçam à vida. Mas a

comunidade só terá condições de multar os que correm a 36, se estiver disposta a

contratar muito mais policiais e juízes.

Considere agora alguém que dirige a uma velocidade de 55 numa zona

escolar para criancinhas com velocidade limitada a ―25‖. Será perseguido por um

policial? Sem dúvida. O corredor está colocando em jogo a vida das criancinhas.

Esse motorista é um sério infrator da lei. Ao se recusar a persegui-lo, o policial

estaria desprezando a própria essência da lei. Seu próprio emprego estaria em risco

por deixar de cumprir o dever. Uma cidade que não pune o emprego de um policial

que se recusa irredutivelmente a perseguir esses corredores está, na verdade,

afirmando: ―Nossas placas de trânsito não significam nada. Dirija tão rápido

quanto quiser, dia ou noite‖. Noutras palavras: ―É melhor que as suas crianças

cuidem de si mesmas; nós é que não cuidaremos delas‖.

238

Kevin Reed, ―Presbyterian Worship‖ in Musical Instruments in the Public Worship of God, 139-144.

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A subscrição estrita, do mesmo modo que os limites de velocidade, tem o

objetivo proteger as pessoas vulneráveis que estão sob a proteção da lei. Tão

certamente quanto uma criança de sete anos está protegida por uma placa de limite

de velocidade e um sistema legal preparado para fazê-la ser obedecida, assim

também o morador de um certo país está protegido pela estrita interpretação de

uma constituição civil escrita e um sistema legal preparado para fazê-la ser

obedecida, como também está protegido um membro de igreja pela subscrição

estrita a uma confissão de fé e um sistema legal preparado para fazê-la ser

obedecida.

Decorrem duas conclusões: (1) leis sem penalidade não protegem ninguém;

(2) leis interpretadas por meio de construções frouxas não protegem ninguém, com

toda certeza. Isso é tão verdadeiro para as questões eclesiásticas quanto o é para as

questões de segurança nas rodovias.

A criança está sob a proteção da lei, da placa que limita a velocidade, do

policial, da corte de justiça, mesmo que não tenha feito publicamente um

juramento para obedecer fielmente à lei. A placa indicadora do limite de

velocidade existe para a proteção dela: a pessoa que corre o maior risco por causa

dos corredores. Quando ela se tornar motorista, esperar-se que obedeça a lei.

Na Bíblia, a viúva, o órfão, e o estrangeiro são identificados como as pessoas

mais vulneráveis da comunidade. A lei civil deverá protegê-los. O menor de idade

ou o estrangeiro residente é protegido hoje pela constituição nacional, mesmo que

não tenha jurado publicamente fidelidade a ela, são elas as pessoas mais

vulneráveis em caso de tirania do governo.

O congregado e o membro não-votante da igreja estão protegidos pela

confissão de fé, mesmo que não tenham jurado publicamente fidelidade a ela. Ela

protege a sua alma dos lobos em pele de ovelha: falsos pastores. Mas caso algum

dia ele se torne um oficial da igreja, deverá fazer o juramento de defender e

sustentar a Confissão de Fé.239

Ademais, que sentido há em se aderir oficialmente a um credo, ou em se exigir nos

votos de ordenação que seus ensinamentos sejam defendidos e sustentados, quando homens

ordenados, que juraram ser fiéis a esse credo, podem negá-lo abertamente e subverter

algumas de suas doutrinas mais importantes? ―Todo o propósito do credo é ‗ancorar‘ um

ponto de vista teológico particular, protegendo-o da erosão das instáveis marés do

modismo. Conseqüentemente, um credo precisa ser entendido nos termos da sua intenção

original, caso contrário ele fracassará em seu propósito...‖240

Os homens são livres para

discordar da intenção original dos Padrões de Westminster. Entretanto, se juraram

fidelidade aos Padrões, têm o dever moral de fazer conhecidas as suas discordâncias,

renunciar as suas posições como pastores, presbíteros, mestres ou diáconos e mudar de

igreja. Do mesmo modo, as denominações e seminários que alegam ser fiéis aos Padrões, e,

contudo, ensinam em oposição a eles, têm a obrigação moral de (no mínimo) modificar os

Padrões conformando-os àquilo que realmente ensinam e praticam. Homens ordenados,

seminários e denominações que fingem aderência aos Padrões, o que verdadeiramente

239

Gary North, Crossed Fingers: How the Liberals Captured the Presbyterian Church (Tyler, TX: Institute

for Christian Economics), 10-11. 240

Ken Gentry Jr., ―In the Space of Six Days: On Breaking the Confession with the Rod of Irons‖ (Vallecito,

CA: Chalcedon Report, Abril 2000), 17.

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fazem, são culpados de quebrar o nono mandamento. São culpados de pregação enganosa.

O que ocorre hoje é fraude em grande escala. Como é que se pode estancar a decadência

quando a intenção original dos Padrões de Westminster é ignorada ou descartada para se

acolher pontos de vista heterodoxos sobre o culto, criação e ofício feminino? Gentry

escreve: ―Quando testemunhamos, diante de nós, a tentativa de se reinterpretar uma

linguagem clara, profundas e sérias preocupações vêm a tona. Que rumo tomará essa

metodologia? Que elementos da Confissão de Fé estão a salvo dessa hermenêutica re-

interpretativa? E por quanto tempo estarão seguros, uma vez que esse modo interpretativo

está à solta?‖.241

Por último, se seções cruciais dos Padrões de Westminster são ignoradas ou

totalmente redefinidas, a ponto de contradizerem o claro sentido histórico dos Padrões, isso,

por fim, não resultará na transferência da autoridade da intenção original dos Padrões para

um padrão arbitrário, não escrito, e historicamente relativo? Sim, com toda certeza. Todas

as organizações sofrerão algum tipo de sanção. Não é, portanto, uma questão de sofrer ou

não sanções (a longo prazo). O que ocorre, depois de um certo tempo, é que a interpretação

anticonfessional não-histórica torna-se o padrão dominante. Logo, discretas sanções são

aplicadas contra confessionalistas estritos (e.g., negam-lhes púlpitos, cursos, empregos,

lideranças em comissões, esquivam-se deles e indicam razões malignas para suas posições

teológicas — e.g., fulano só se preocupa com a teologia, não com as pessoas; ou, ele não é

amoroso; ou, ele é divisionista; ou, ele não se preocupa com o crescimento da igreja, etc.).

Depois de algum tempo, os confessionalistas estritos são até mesmo admoestados e

disciplinados abertamente. Observe que, quando sanções negativas não são impostas aos

oficiais da igreja que abandonaram os Padrões de Westminster, então virá um tempo em

que as ―sanções serão impostas nos termos de um outro padrão, e não segundo a Confissão

de Fé de Westminster e seus dois catecismos‖.242

Sem a rígida aderência aos Padrões de

Westminster a pergunta institucional será: Por Qual Outro Padrão?243

Virá o dia em que

aqueles que aderem ao culto bíblico da Confissão serão marginalizados e expulsos. Para

aqueles que acham que este cenário está muito longe, lembre-se que esse modelo tem se

repetido ao longo da história da igreja.

Nossa esperança e oração é que Frame — juntamente com todos os que se

chamam de presbiterianos e alegam aderência aos Padrões de Westminster, mas que atacam

o princípio regulador (i.é, o culto reformado) e promovem inovações no culto a Deus —

cessem os seus ataques contra o culto bíblico, e arrependam-se publicamente de mentirem,

quebrarem os seus votos, participarem da perversão do culto, e de fazerem outros

corromperem o culto a Deus.

241

Ibid. 242

North, Crossed Fingers, 9. 243

Ibid.