Sociolinguística e tradução de português do Brasil ... · Às minhas universidades e mestres,...
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UNIVERSIDADE DA CORUNHA
FACULDADE DE FILOLOGIA
DEPARTAMENTO DE GALEGO-PORTUGUS, FRANCS E LINGUSTICA
Sociolingustica e traduo de portugus do Brasil:
problemas de norma e repercusses didticas
Tese de doutoramento realizada por
Sandra Mara Prez Lpez
Dirigida pelos professores
Dr. Xos Ramn Freixeiro Mato e
Dr. Xos Manuel Snchez Rei
A Corunha, setembro de 2015
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II
Sociolingustica e traduo de portugus do Brasil:
problemas de norma e repercusses didticas
Sandra Mara Prez Lpez
Tese de doutoramento UDC/2015
Visto e praze
________________ _________________
Xos Ramn Freixeiro Mato Xos Manuel Snchez Rei
Departamento de Galego-portugus, Francs e Lingustica
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III
As palavras tambm tm a sua hierarquia, o seu protocolo,
os seus ttulos de nobreza, os seus estigmas de plebeu.
Com as palavras todo cuidado pouco, mudam de opinio como as pessoas.
Saramago, J. (2005:196, 65)
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IV
AGRADECIMENTOS
s minhas universidades e mestres, pelo que lhes devo, e em especial ao professorado
de galego-portugus da Universidade da Corunha, que me ensinou um estar respeitoso
sem o qual no h caminhos. Muito obrigada.
Ao Professor Freixeiro, pela disposio, a simpatia e a clareza. Muito obrigada.
Ao Professor Snchez Rei, pela gentileza.
Universidade de Braslia e ao Brasil, que to bem me receberam sempre, pelo apoio
para a realizao desta pesquisa.
A colegas e estudantes, que de longa data me mostraram como a dificuldade das coisas
as faz mais interessantes.
Um abrao especial ao Danilo e Ivone, ao Jlio, Magali e Lucie, como tambm
Carol, Jana e Gabi, e ao coletivo de estudantes de Traduo Espanhol da
Universidade de Braslia. Sem o seu tempo e sagacidade, no teria sido possvel este
trabalho.
Aos tradutores e tradutoras que so ou viro, por continuarem na luta com a palavra.
minha famlia e amizades, na Galiza e no Brasil, e ao Lus, com amor, pela pacincia
e o olhar atento.
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V
RESUMO
Esta tese discute implicaes sociolingusticas relacionadas comunidade tradutria e
s tenses configuradas pela situao de padronizao do portugus do Brasil no sculo
XXI. Aps acompanhar discursos sobre essa variedade, num percurso scio-histrico,
apresentam-se contribuies da Sociolingustica como base do arcabouo terico
adotado: as comunidades de prtica (Eckert 2000, Wenger 1998, 2006), as interaes
virtuais (Herring 2013) e a higiene verbal (Cameron 1995). Localizando a pesquisa em
mbitos como as primeiras e afirmando a relevncia do estudo da avaliao lingustica
explcita ou higiene verbal, analisa-se como so representados (Moscovici 2015)
conflitos sobre norma lingustica por profissionais, docentes e estudantes da prtica
tradutria numa lista de discusso TRAD-PRT e num curso superior de Traduo
brasileiro. Os resultados mostram que a insegurana que esses sujeitos declaram se
relaciona tanto atividade tradutria, quanto a problemas de norma lingustica,
geradores de interaes tensas onde frequentemente se negam as implicaes
ideolgicas na atividade linguageira e se recorre a termos religiosos indicativo do
componente emocional presente nas ideologias lingusticas. Aps anlise, conclui-se a
necessidade de elaborao didtica de problemas de norma lingustica na formao em
Traduo numa perspectiva crtica, que reconhea ainda fatores alheios racionalidade,
mas de base social, como inerentes ao fazer lngua.
Palavras-chave: portugus do Brasil, norma lingustica, traduo, formao.
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VI
RESUMEN
En esta tesis se discuten implicaciones sociolingsticas relacionadas con el mbito de
la traduccin y las tensiones derivadas de la situacin de estandarizacin del portugus
de Brasil en el siglo XXI. Tras acompaar discursos sobre dicha variedad, en un
recorrido sociohistrico, se presentan contribuciones de la Sociolingstica como base
del marco de referencia terico adoptado: las comunidades de prctica (Eckert 2000,
Wenger 1998, 2006), las interacciones virtuales (Herring 2013) y la higiene verbal
(Cameron 1995). Localizando esta investigacin en mbitos como las primeras y
defendiendo la relevancia de estudiar la evaluacin lingstica explcita o higiene
verbal, se analiza cmo representan (Moscovici 2015) los conflictos sobre norma
lingstica profesionales, docentes y estudiantes de la prctica traductora en una lista de
discusin TRAD-PRT y en un curso superior de Traduccin brasileo. Los resultados
muestran que la inseguridad que declaran sentir estos sujetos est relaciona tanto con la
actividad traductora, como con problemas de norma lingstica, los cuales dan lugar a
interacciones tensas donde con frecuencia se ven negadas las implicaciones ideolgicas
de la actividad lingstica y se recurre a trminos religiosos indicativo del componente
emocional que se hace presente en las ideologas lingsticas. Tras el anlisis, se
concluye que resulta necesaria una elaboracin didctica de problemas de norma
lingstica en la formacin en Traduccin desde una perspectiva crtica, que tambin
tome en cuenta factores ajenos a la racionalidad, aunque de base social, como inherentes
al hacer lengua.
Palabras clave: portugus de Brasil, norma lingstica, traduccin, formacin
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VII
ABSTRACT
In this thesis, sociolinguistic implications related to translation and to tensions arising
from the situation of standardization of Brazilian Portuguese in the XXI century are
discussed. The theoretical framework adopted in this study was Sociolinguistics,
namely from a socio-historical perspective. The concepts of communities of practice
(Eckert 2000, Wenger 1998, 2006), virtual interactions (Herring 2013) and verbal
hygiene (Cameron 1995) were applied in order to analyze speeches about the
aforementioned variety. By locating this research in areas such as those mentioned
above and by defending the importance of studying the explicit language assessments or
verbal hygiene, analysis was carried out in order to find out how conflicts concerning
linguistic norms are represented (Moscovici 2015) by professional translators,
translation teachers and translation students. The corpus for the research consists of
information from a Brazilian Translators' forum TRAD-PRT and of interviews with
students and professors from a Brazilian Translation Studies undergraduate degree
course. The results show that the insecurity that these subjects feel is related to both the
translation activity and linguistic standards, which lead to tense interactions where
ideological implications of linguistic activity are frequently denied and religious terms
indicative of the emotional component in the linguistic ideologies are often found.
After the analysis, it became evident that there is a need to pay attention to standard
language problems in Translation training from a critical perspective, as well as to take
into account factors beyond rationality and its social base.
Key-words: Brazilian Portuguese, linguistic norms, translation, training
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VIII
PRINCIPAIS SIGLAS MENCIONADAS
ABL - Academia Brasileira de Letras
Abrates - Associao Brasileira de Tradutores
ALiB - Atlas lingustico do Brasil
ANECA - Agencia Nacional de Evaluacin de la Calidad y Acreditacin
ARPA - Agncia de Projetos de Investigao Avanada
CMC - Comunicao Mediada por Computador
CT - Competncia Tradutria
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica
IHGB - Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro
ITU - Unio Internacional de Telecomunicaes
LIBRAS - Lngua Brasileira de Sinais
PNAD - Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclios
Projeto NURC - Projeto Norma Urbana Culta
NGB - Nomenclatura Gramatical Brasileira
OCDE - Organizao para a Cooperao e Desenvolvimento Econmico
PALOP - Pases Africanos de Lngua Oficial Portuguesa
PISA- Program for International Student Assessment
RAE - Real Academia Espanhola
TRAD/ESP - Traduo Espanhol
UnB - Universidade de Braslia
USP - Universidade de So Paulo
VOLP - Vocabulrio Ortogrfico da Lngua Portuguesa
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IX
TABELAS E FIGURAS
Tabela 1: Exemplos de atividades das comunidades de prtica (Wenger 2006) .......... 157
Tabela 2: Promdio mundial de acesso Internet em 2013 e 2014 (Relatrio ITU 2014)
...................................................................................................................................... 174
Tabela 3: Categorias de Comunicao Mediada por Computador (Baron 2013)......... 176
Tabela 4: Quantidade de mensagens/ano em TRAD-PRT de 1998 a 2014.................. 196
Tabela 5: Mensagens de TRAD-PRT arquivadas de 1989 a 1996 ............................... 197
Tabela 6: Piso conversacional e ratificaes por gnero em TRAD-PRT no dia
16/10/1998 .................................................................................................................... 244
Tabela 7: Participantes e mensagens por gnero na linha conversacional de TRAD-PRT
iniciada por 161765 (de 19/09/2005) ........................................................................... 247
Tabela 8: Quantidade de participantes e mensagens por gnero e dia na mesma linha
conversacional .............................................................................................................. 248
Tabela 9: Rtio diria de mensagens por participante e gnero na mesma linha
conversacional .............................................................................................................. 248
Tabela 10: Perodo compreendido e horrio da primeira e da ltima postagem por dia na
mesma linha conversacional ......................................................................................... 249
Tabela 11: Quantidade de mensagens e promdio de minutos entre elas por dia na
mesma linha conversacional ......................................................................................... 249
Tabela 12: Nmero de participantes, mensagens e palavras por gnero e dia na mesma
linha conversacional ..................................................................................................... 250
Tabela 13: Mensagens mais longas por dia e gnero na mesma linha conversacional 251
Tabela 14: Nmero de participantes por gnero segundo a quantidade de mensagens
enviadas mesma linha conversacional ....................................................................... 252
Tabela 15: Participantes por gnero que enviaram os maiores nmeros de mensagens e
palavras mesma linha conversacional ........................................................................ 252
Tabela 16: Quantidade de concordncias e discordncias por gnero na mesma linha
conversacional .............................................................................................................. 253
Tabela 17: Turnos no ratificados por gnero na mesma linha conversacional ........... 254
Tabela 18: Turnos ratificados mais duma vez por gnero na mesma linha conversacional
...................................................................................................................................... 254
Tabela 19: Identificao de quem teve um turno ratificado mais duma vez por gnero na
mesma linha conversacional ......................................................................................... 255
Tabela 20: Exemplos da famlia lxica de (CON)SAGR- em TRAD-PRT ................. 327
Tabela 21: Exemplos da famlia lxica de (CON)SAGR- com conotao pejorativa em
TRAD-PRT ................................................................................................................... 328
Tabela 22: Exemplos de higiene verbal sobre contraes em TRAD-PRT ................. 333
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X
Tabela 23: Objetivos de aprendizagem para formao em traduo sobre a primeira
lngua estrangeira (Albir 1999:64) e a denominada lngua materna (Albir 1999:90)
...................................................................................................................................... 342
Tabela 24: Argumentos mnimos e mximos de ingresso na Universidade de Braslia e
em Letras/Traduo Espanhol, do 1 semestre letivo de 2010 ao 2 de 2012 .............. 369
Tabela 25: Demanda mnima e mxima de ingresso na Universidade de Braslia e em
Letras/Traduo Espanhol, do 1 semestre letivo de 2010 ao 2 de 2012 .................... 369
Tabela 26: Depoimentos sobre escrita e traduo extrados do instrumento 3 em 1/2010
...................................................................................................................................... 393
Tabela 27: Depoimentos sobre escrita e traduo extrados do instrumento 3 em 2/2010
...................................................................................................................................... 395
Tabela 28: Depoimentos sobre escrita e traduo extrados do instrumento 3 em 1/2011
...................................................................................................................................... 397
Tabela 29: Depoimentos sobre escrita e traduo extrados do instrumento 3 em
2/2011 ......................................................................................................................... 398
Tabela 30: Depoimentos sobre escrita e traduo extrados do instrumento 3 em 1/2012
...................................................................................................................................... 399
Tabela 31: Redes semnticas sobre Redao de 1/2010 a 1/2012 ............................. 400
Tabela 32: Redes semnticas sobre Traduo de 1/2010 a 1/2012 ............................ 400
Tabela 33: Mensurao da distncia entre Redao e Traduo percebida por
participantes de 1/2010 a 1/2012 ............................................................................... 401
Tabela 34: Nmero de participantes por curso/rea e gnero ...................................... 433
Tabela 35: Nmero de participantes de Traduo Espanhol com matrcula noutros
cursos, concludos ou incompletos ............................................................................... 433
Tabela 36: Idades mxima, mdia e mnima de participantes por curso/rea .............. 434
Tabela 37: Adaptaes em instrumento de pesquisa sobre concordncia .................... 435
Tabela 38: Adaptaes em instrumento de pesquisa sobre pronomes complemento ... 436
Tabela 39: Outras adaptaes em instrumento de pesquisa ......................................... 436
Tabela 40: Total geral de intervenes e de intervenes selecionadas por curso/rea 437
Tabela 41: Mdia geral de intervenes e de intervenes selecionadas por participante
e rea/curso ................................................................................................................... 438
Tabela 42: Quantidade de intervenes por rea/curso sobre concordncia ................ 438
Tabela 43: Quantidade de intervenes por rea/curso sobre pronomes complemento 453
Tabela 44: Quantidade de intervenes por rea/curso sobre presidenta ................. 457
Tabela 45: Quantidade de intervenes por rea/curso sobre o Acordo Ortogrfico de
1990 .............................................................................................................................. 461
Tabela 46: Quantidade de intervenes por rea/curso sobre outros assuntos
selecionados .................................................................................................................. 462
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XI
Figura 1: Grfico da quantidade de mensagens/ano em TRAD-PRT de 1998 a 2014 . 196
Figura 2: Seo inicial da tela de abertura de TRAD-PRT .......................................... 199
Figura 3: Grfico com o nmero de participantes por gnero segundo a quantidade de
mensagens enviadas mesma linha conversacional..................................................... 252
Figura 4: ndice de frequncia de consagrao em Barbosa (2012) segundo o
concordanciador AntConc ............................................................................................ 325
Figura 5: Grfico de distribuio de ocorrncias de consagrao em Barbosa (2012)
segundo o concordanciador AntConc ........................................................................... 326
Figura 6: Grfico de distribuio de ocorrncias de consagrada em Barbosa (2012)
segundo o concordanciador AntConc ........................................................................... 327
Figura 7: Grfico da distncia percebida entre Redao e Traduo de 1/2010 a 1/2012
...................................................................................................................................... 401
Figura 8: Grfico de Nmero de participantes de Traduo Espanhol (com outros
estudos, concludos ou incompletos), e de estudantes doutros cursos, por faixa etria 434
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XII
NDICE
PARA INCIO DE CONVERSA ................................................................................ 15
JUSTIFICATIVA ......................................................................................................... 30
METODOLOGIA DE PESQUISA: OBJETIVOS, PERGUNTAS E ASSERES
........................................................................................................................................ 32
CAPTULO 1. PARA APRESENTAR O CONCEITO DE NORMA: O CASO DO
PORTUGUS DO BRASIL ........................................................................................ 43
1.1. REVISITANDO O CONCEITO O CONCEITO DE NORMA .......................... 44
1.2. NORMA LINGUSTICA: PENSANDO NO PORTUGUS DO BRASIL ....... 60
1.2.1. Mapeando pontos duma histria discursiva da norma lingustica no Brasil . 62
1.2.2. Estudos lingusticos e a norma lingustica no Brasil ................................... 109
CAPTULO 2. PROBLEMAS NA PESQUISA (SOCIO)LINGUSTICA:
ESPAOS, LIMITES E CONTEXTOS NAS LTIMAS DCADAS .................. 142
2.1. PROBLEMAS (SOCIO)LINGUSTICOS: CONCEPES ENTRE O
INDIVIDUAL E O SOCIAL .................................................................................... 144
2.2. ABORDAGENS SOCIOLINGUSTICAS E LCUS DE ANLISE:
DIRECIONANDO O FOCO .................................................................................... 147
2.3. PESQUISANDO IDEOLOGIAS LINGUSTICAS EM COMUNIDADES DE
PRTICA: O DESCONFORTO NA (SOCIO)LINGUSTICA .............................. 158
2.4. AS INTERAES VIRTUAIS E A PESQUISA (SCIO)LINGUSTICA .... 170
2.5. SOCIOLINGUSTICA E TRADUO: CONTATO DE LNGUAS ............. 184
CAPTULO 3. PROBLEMAS DE NORMA NA LNGUA PORTUGUESA:
AVALIAO LINGUSTICA POR TRADUTORES E TRADUTORAS
PROFISSIONAIS ....................................................................................................... 189
3.1. LISTAS E COMUNIDADES DE PRTICA VIRTUAIS: UM HISTRICO DE
TRAD-PRT ............................................................................................................... 192
3.2. TRAD-PRT: MAPEANDO DOMNIOS E IDENTIDADES ........................... 197
3.2.1. Domnio em TRAD-PRT: fazendo recortes ................................................ 202
3.2.2. Posies-sujeito em TRAD-PRT: fazendo identidade na lista.................... 209
3.2.3. Prticas em TRAD-PRT: a construo duma comunidade ......................... 239
3.3. FAZENDO (SOCIO)LINGUSTICA: A LNGUA PORTUGUESA EM TRAD-
PRT ........................................................................................................................... 258
3.3.1. Panorama geral das questes abordadas: macro-eixos de anlise ............... 259
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XIII
3.3.2. Norma lingustica: categorias enunciadas em TRAD-PRT......................... 264
3.3.3. Avaliando a variao lingustica: diferenas geoletais ............................... 271
3.3.4. A passagem do tempo e a variao lingustica em TRAD-PRT ................. 291
3.3.5. Retomando discursos construdos pela Comunidade de Prtica: o consagrado,
o tabu e preconceito lingustico em TRAD-PRT .................................................. 318
CAPTULO 4. AS LNGUAS NA FORMAO TRADUTRIA: JUZOS
AVALIATIVOS DA VARIAO DO PORTUGUS POR ESTUDANTES DE
TRADUO ............................................................................................................... 338
4.1. LNGUAS, SOCIOLINGUSTICA E FORMAO TRADUTRIA ............ 338
4.2. A GERAO DE DADOS E A RELEVNCIA DO CONTEXTO: OS
CURSOS DE TRADUO DUMA UNIVERSIDADE BRASILEIRA DO
CENTRO-OESTE ..................................................................................................... 357
4.3. FORMANDO AGENTES DA PRTICA TRADUTRIA DE PORTUGUS
DO BRASIL: DOCENTES EM CONTEXTOS DE AVALIAO LINGUSTICA
.................................................................................................................................. 361
4.3.1. A professora formada em Letras, entre a traduo e o ensino .................... 365
4.3.2. O professor formado em Traduo e o predomnio da reflexo no campo
literrio .................................................................................................................. 377
4.4. DISCENTES DUM CURSO DE TRADUO: O LUGAR DA
INSEGURANA ...................................................................................................... 385
4.5. CONFLITOS DE AVALIAO DE NORMA LINGUSTICA EM
TRADUTORES E TRADUTORAS BRASILEIRAS EM FORMAO. .............. 404
4.5.1. Retratando tenses nos ltimos estgios da formao: concepes sobre
avaliao lingustica de trs tradutoras brasileiras num Projeto Final de curso de
graduao .............................................................................................................. 404
4.5.2. Panorama da avaliao lingustica por integrantes do corpo discente dum
curso superior de formao tradutria no Brasil ................................................... 431
RESULTADOS E CONCLUSES. IMPLICAES SOCIOLINGUSTICAS NA
FORMAO TRADUTRIA EM PORTUGUS DO BRASIL .......................... 472
1.1. RESULTADOS: ASSERES INICIAIS RETOMADAS .............................. 472
1.2. CONCLUSES: REPERCUSSES DIDTICAS E NOVOS CAMINHOS
POSSVEIS ............................................................................................................... 497
BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................ 515
ANEXOS ......................................................................... Erro! Indicador no definido.
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XIV
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15
PARA INCIO DE CONVERSA
No dia seguinte ningum morreu. O facto, por absolutamente contrrio s normas da vida, causou nos
espritos uma perturbao enorme, efeito em todos os aspectos justificado, basta que nos lembremos de
que no havia notcia nos quarenta volumes da histria universal, nem ao menos um caso para amostra,
de ter alguma vez ocorrido fenmeno semelhante, passar-se um dia completo, com todas as suas
prdigas vinte e quatro horas, contadas entre diurnas e nocturnas, matutinas e vespertinas, sem que
tivesse sucedido um falecimento por doena, uma queda mortal, um suicdio levado a bom fim, nada de
nada, pela palavra nada. At meia-noite em ponto do ltimo dia do ano ainda houve gente que aceitou
morrer no mais fiel acatamento s regras, quer as que se reportavam ao fundo da questo, isto ,
acabar-se a vida, quer as que atinham s mltiplas modalidades de que ele, o referido fundo da questo,
com maior ou menor pompa e solenidade, usa revestir-se quando chega o momento fatal.
Saramago, J. (2005:11-2)
Muitas so as polmicas que perpassam hoje em dia o ensino da lngua falada
majoritariamente no Brasil. Assim, por exemplo, em relao ao artificialismo da
norma padro brasileira e a sua presena na escola, Araujo (2008:11) afirma que as
dificuldades apresentadas por alunos e alunas brasileiras na realizao de atividades
lingusticas
so tratadas como se estas ocorressem em funo de falta de capacidade, quando, na
verdade, esto relacionadas ao desconhecimento da escola em relao s variedades
lingusticas existentes no Brasil, que tenta trabalhar a lngua materna como se fosse
algo esttico, homogneo ou, at mesmo, intocvel; como, alis, defendem muitos
gramticos.
Na verdade, essas polmicas no divergem tanto como se poderia pensar das
relativas, por exemplo, ao portugus europeu e ao seu dialeto da escola,
especialmente no tocante s crticas dirigidas imposio coercitiva dessa variedade
como modelo exemplar de escolarizao desde os primeiros anos do processo. Ignora-
se, desse ponto de vista, o devido respeito diversidade lingustica trazida por
estudantes ao mbito escolar, que no sculo XXI vem merecendo uma ateno em
aumento na Europa em funo, especialmente, de fenmenos demogrficos ligados
aos movimentos migratrios contemporneos (Matos e Silva 1988:16). Entretanto,
como bvio, no poderia haver apenas coincidncias entre Portugal e o Brasil na
abordagem da norma lingustica, quer seja em mbitos escolares, quer em contextos
acadmicos.
De fato, segundo Matos e Silva (1988:16), at a atualidade os estudos da
variao diastrtica no portugus europeu tm sido menos desenvolvidos do que os da
diatpica, fato que parece decorrer, no apenas de uma tradio de estudos dialetais
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16
horizontais, mas tambm porque os problemas1sociolingusticos no devem ser to
marcados quanto os regionais. Essa ponderao da ilustre linguista brasileira resume
a percepo da natureza da problematicidade que rodeia outras variedades do
portugus, como a falada no Brasil, para diversos campos dos estudos lingusticos.
Como disse Teyssier (1982:79),
A realidade, porm, que as divises dialetais no Brasil so menos geogrficas que
socioculturais. As diferenas na maneira de falar so maiores, num determinado lugar,
entre um homem culto e o vizinho analfabeto que entre dois brasileiros do mesmo nvel
cultural originrios de duas regies distantes uma da outra. A dialetologia brasileira
ser, assim, menos horizontal que vertical.
Dita abordagem da variao lingustica no portugus do Brasil reflexo das
contradies duma sociedade marcada por uma intensa hierarquizao interna, com o
qual a avaliao lingustica um elemento especialmente polmico e sensvel. isso
que pe de relevo Teyssier (1982), consoante o qual no Brasil [e]xiste uma zona em
que a vulgaridade ainda normalmente aceitvel e que podemos considerar como um
grau avanado na familiaridade. (...) Outros brasileirismos so nitidamente mais
marcados e, por isso, sentidos como incorretos. Neste caso, o estranhamento em
relao aos brasileirismos pode provir do fato de serem olhados com um certo vis
externo, como a existncia do prprio termo parece ilustrar. Porm, as tenses
derivadas da avaliao sociolingustica de variantes do portugus do Brasil tambm
so perceptveis para um olhar dirigido a elas a partir do seu interior, como pe de
relevo o processo de delimitao do localmente correto, encarnado na descrio da(s)
norma(s) urbana(s) culta(s) brasileira(s) em que se encontram submersos no Brasil
estudos sociolingusticos, geolingusticos e instrumentos de gramatizao, em especial
desde finais do sculo XX.
Seja l como for, cada vez mais se faz presente a relevncia da contribuio dos
estudos da Sociolingustica na forma de (re)pensar o ensino das lnguas, campo no
qual de grande importncia o espao e formulao concedidos reflexo sobre o
conceito de norma lingustica. No dicionrio Aurlio (Ferreira 1999:1415), o verbete
correspondente ao vocbulo norma apresenta as seguintes acepes:
norma. [Do lat. norma] S. f. 1. Aquilo que se estabelece como base ou medida para a
realizao ou a avaliao de alguma coisa: norma de servio, normas jurdicas, normas
diplomticas. 2. Princpio, preceito, regra, lei: Tem como norma no deixar carta sem
1 O negrito da que escreve.
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17
resposta. 3. Modelo, padro: norma de conduta, de ao. 4. Bibliogr. Ttulo abreviado
de obra, que acompanha a assinatura (q. v.). 5. E. Ling. Numa comunidade, o ideal
lingstico de correo. 6. Filos. Tipo concreto ou frmula abstrata do que deve ser, em
tudo o que admite um juzo de valor (...)2.
O verbete anterior ilustra o cerne por volta do qual se articula a constelao de
ideias organizadas em torno dum conceito nuclear associado com avaliao,
preceito, modelo, padro, ideal lingustico de correo, do que deve ser.
No entanto, conforme lembra Rey (2001:116), por trs do termo norma lingustica
se escondem dois conceitos diversos e, em ocasies, conflitantes: um atinente
observao, o outro elaborao dum sistema de valores; um correspondente a uma
situao objetiva e estatstica, o outro a um feixe de intenes subjetivas.
A abordagem lexicogrfica acima reproduzida coincide, contudo, com a ideia
popularmente (pre)dominante no senso comum sobre norma lingustica, a qual remete
em especial para a segunda acepo, imbuda por um esprito prescritivo passvel de
associao com a sua origem etimolgica. Tanto norma (do grego gnomon,
esquadro, pelo latim) como rgua (proveniente, como regra, do latim regulam)
uma reta materializada que permite a criao de outras retas conformes (Rey
2001:117) tm assim a sua origem em modelos geomtricos. J um terceiro
vocbulo, lei, amide vinculado aos anteriores, acrescenta, primeiramente, num
contexto religioso, o elemento imperativo, a obrigao ditada pela vontade do juiz
(Rey 2001:117).
Tudo aponta de incio, portanto, para o universo do modelar, duma rigidez
conceitual, dum padro avaliativo. Foi somente pela influncia do adjetivo normal,
transportado por um uso teimoso do domnio tico para o da quantidade, que norma
pde passar do bom e do justo para o habitual e freqente; do desejvel para o
usual (Rey 2001:117). Mas no deixam, por isso, de ecoar com fora nos sentidos
de norma o discurso da matemtica, que lhe deu origem, mas tambm o do direito e,
ainda, da religio, todos eles padres sociais por antonomsia.
E, embora possa resultar surpreendente, esses ecos dum suposto misticismo que
parece afetar o conceito de norma, como ilustra a sua ligao com lei, seguem a,
resultado duma sacralizao maior que atinge, em ltimo caso, a lngua e os seus
usos. Segundo Bagno (2002:22), abordando a sua transcendncia histrica, a lngua
2 Seguem, a partir deste ponto, outras acepes tcnicas que no interessam aqui.
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18
concebida, desde a Grcia antiga, como se no estivesse neste mundo, como se fosse
um objeto mstico a ser buscado sem jamais poder ser alcanado. No que tange
avaliao da variao lingustica, Lucchesi (2011:172) afirma que:
Impressiona o nvel de ignorncia que se observa em pleno sculo XXI em relao
lngua. Qualquer pessoa minimamente informada j ouviu falar de Freud, Lvi-Strauss
e Max Weber, tem alguma idia sobre o que seja o Complexo de dipo e o Tabu do
Incesto e no ousa falar em raas superiores e inferiores, ou que um criminoso possa
ser reconhecido pelo formato do seu crnio, mas fala com naturalidade de lnguas
simples e complexas e se refere a formas lingusticas correntes como aberraes.
A lngua como campo de reflexo do saber consensual, constantemente
colocada nos limites dos seus modelos do dever ser, faz-se prtica comum nos mais
diversos estratos sociais, no sendo considerada como uma arena de debates de acesso
restrito apenas a especialistas na rea. Isso resulta facilmente compreensvel, j que o
conhecimento da lngua, para o coletivo de falantes, percebido como algo natural,
passvel de reflexo e, se for o caso, de coero sobre outrem. A autorizao para
tecer disquisies e avaliao sobre os usos lingusticos se d de forma automtica,
despercebida, uma vez que a competncia lingustica sobre o seu falar a toda a
comunidade pertence.
Como Lucchesi (2011:172), j em 1972 Rey (2001:139) apontara que parece
impor-se
uma explicao psicolgica profunda do purismo. Sua agressividade mobilizada para
defender a lngua materna suprimindo as impurezas, a noo de proteo, de
defesa contra os contatos estrangeiros no seriam de natureza edipiana? As relaes
lcitas entre a lngua materna e a norma (fantasma do incesto autorizado e garantindo
paradoxalmente a pureza da lngua), a defesa contra as agresses por eliminao
(fantasma da castrao), esse simbolismo ainda demasiado superficial, decerto, mas,
em seu nvel, pouco contestvel.
Estes comentrios acerca da norma encontram-se explicitamente (a)tingidos por
ecos duma matriz psicanaltica, com projees, desde a sua emergncia, em diversos
campos do saber. No foi por acaso que as pesquisas acerca das representaes
sociais3 vieram luz em dilogo com esse campo, ou que tenha se desenvolvido no
Brasil a uma linha nos Estudos da Traduo centrada na abordagem de questes
ligadas psicanlise, da qual fazem parte trabalhos de destaque como Frota (2000) e
Lages (2002). Curiosamente, no entra no foco de interesse de nenhuma dessas
3 O termo, cunhado por Moscovici (2015), remete para o conhecimento correpondente ao senso comum
e ser apresentado com mais detalhe na seo 2.3. deste trabalho.
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19
pesquisadoras o conceito de tabu, o qual ser mencionado a seguir em relao a
duas contribuies diversas, originrias dos campos da Antropologia e dos Estudos da
Traduo, e elaboradas por Douglas (1976) e Robinson (1996), respectivamente, pela
sua potencialidade heurstica para a explicao de questes que ordem
sociolingustica.
O caminho do conceito do tabu longo. O termo, registrado pela primeira vez
pelo navegador ingls James Cook, na sua visita a Tonga, na Polinsia, em 1771, foi
introduzido na lngua inglesa, a partir da qual ela se difundiu para outros idiomas. No
dicionrio Aurlio (Ferreira 1999:1914), definido como:
tabu [Do polinsio tabu, sagrado, intocvel, proibido, pelo ingls taboo.] S. m. 1.
Em certos povos e sociedades, proibio ou restrio de natureza ritual e religiosa, que
determina que certos objetos, indivduos, lugares ou atos, por serem considerados
sagrados ou esp. imundos e perigosos, sejam evitados, e que como instituio social
ger. est associada a fortes sanes e crena de que sua violao traz castigo
sobrenatural. 2. P. ext. Proibio convencional imposta por tradio ou por costume a
certos atos, modos de vestir, temas, palavras, etc., tidos como impuros, e que no pode
ser violada, sob pena de reprovao e perseguio social: tabus alimentares. 3. Aquilo
que objeto de alguma dessas proibies: O incesto um tabu em todas as sociedades.
4. P. ext. Aquilo cujo uso, prtica ou meno objeto de forte censura, ger. por pudor,
vergonha, etc.: Para eles, sexo ainda um tabu. 5. Escrpulo sem justificativa ou
fundamento positivo: uma pessoa cheia de tabus. Adj. 2g 6. Que tem carter sagrado,
sendo interdito a qualquer contato: armas tabus. 7. Que proibido, perigoso, por ser
considerado impuro, impudico. 8. Fig. Que objeto de forte censura; que interdito,
proibido: assuntos tabus. [Sin. ger. (lus.): tabo]
Se, na Psicanlise, Freud editara Totem e tabu j em 1921, Sahlins (2008)
retoma em 1981 os estudos sobre o assunto na Antropologia, uma constante entre a
comunidade de especialistas na rea, com Metforas histricas e realidades mticas.
Nesse volume, acompanhando a histria dos ingleses no Hava, desde a chegada do
capito Cook em 1779 at a sua morte pelo chefe local, Sahlins discute a forma como
os momentos de crise e de confronto entre culturas constituem contextos privilegiados
para a observao das mudanas histricas. J no ano de 1966, tambm no campo da
Antropologia Cultural, e ainda dum ponto de vista eminentemente estruturalista,
Douglas (1976), em Pureza e perigo, desenvolvera a ideia do paralelo entre a religio,
o sagrado e o puro, e conceitos a princpio ligados ao campo higiene: limpeza e
sujeira.
Douglas (1976), nas suas anlises de rituais religiosos, alm doutros espaos
como mecanismos de estruturao social, defende que a sujeira essencialmente,
desordem. No h sujeira absoluta: ela existe aos olhos de quem a v (Douglas
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20
1976:12). Trata-se, portanto, duma conveno, de algo relativo ao lugar de fala
(Douglas 1976:19). Embora pudesse parecer no existir relao entre a sujeira e o
sagrado, ela perceptvel inclusive do ponto de vista etimolgico: A prpria palavra
sacre, por exemplo, tem este significado de restrio totalmente pertencente aos
deuses. (...) Similarmente, a raiz hebraica de k-d-sh, que usualmente traduzida como
Santo, baseia-se na idia de separao (Douglas 1976:21).
Limpeza e sujeira so, portanto, categorias simblicas que organizam o mundo,
ao condenar os elementos capazes de confundir ou contradizer classificaes, pois
sujeira no nunca um acontecimento nico, isolado. Onde h sujeira h sistema
(Douglas 1976:50). No continuum do mundo, categorias supostamente estveis so
construdas, conformando um padro em relao ao qual certos elementos se
encaixam, enquanto outros, as anomalias, podem ser ignorados, condenados, ou
servir de instrumentos para reorganizar o padro (Douglas 1976:54). Por isso eles tm
poder:
Admitindo que a desordem estraga o padro, ela tambm fornece os materiais do
padro. A ordem implica restrio; de todos os materiais possveis, uma limitada
seleo foi feita e de todas as relaes possveis foi usado um conjunto limitado. A
desordem simboliza tanto perigo quanto poder (Douglas 1976:117).
Portanto, a desordem, a variao lingustica, inerente natureza das lnguas,
encarna tanto perigo do caos, da anomia, da ausncia de normas, como o poder da
possibilidade, do que pode vir a ser, ambos componentes ineludveis do real da lngua.
O perigo/poder est nos estados de transio, simplesmente porque a transio no
nem um estado nem o seguinte, indefinvel (Douglas 1976:119). nessa luta pela
definio dum status quo que as dinmicas de poder que organizam a sociedade se
implicam, tentando manter separado o tabu, o sujo, aquilo que deve ficar afastado,
interditado, encapsulado, para no subverter estabilidades construdas.
Na lngua, a limpeza como metfora faz parte da interpretao das margens,
encarnadas na lngua literria:
O poeta um reciclador
Das palavras de todo dia
Do verbo de toda hora
Que usa e bota fora.
Separa o descartvel
Do reaproveitvel
E o belo da bobagem.
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A poesia
o lixo limpo4
Da linguagem.
Lus Fernando Verssimo, Limpeza pblica apud Neves (2010)
Pureza remete nitidamente para o purismo lingustico, fundamental para
entender a relao/sensao das sociedades no que tange (s) norma(s) lingustica(s) e
avaliao da variao. Se no campo da lngua a separao lembra as atitudes em
relao aos neologismos, no tradutrio remete para a viso da lngua em traduo e do
discurso traduzido como o separado: o no discurso, o discurso sem direito de
pertena, sem autoria, ameaado pela presena do Outro, pela hibridao com o
impuro, que deve, ou deveria ficar afastado para garantir a manuteno intacta do eu,
da Lngua.
Trinta anos mais tarde da publicao de Pureza e perigo por Douglas, o
conceito de tabu entra no campo dos Estudos da Traduo com Translation and
Taboo, de Robinson (1996), associando a sobrevivncia de antigos tabus relativos a
textos religiosos com a teoria e prtica da traduo em Ocidente. A natureza da
prtica tradutria est associada sua origem, milenar enquanto afazer cuja origem se
remonta no tempo, herdeiro de caractersticas ligadas ao seu carter originrio de
tcnica e no de techn.
Para Oliveira (2008:2), a tcnica, a techn e a tecnologia correspondem s
trs fases do desenvolvimento histrico da tcnica. A tcnica nasce com a
humanidade, como um saber fazer, um conhecimento procedimental imbudo por um
carter mgico e simblico. Segundo Vargas, (1994:19 apud Oliveira 2008:3),
[t]odas as tcnicas tiveram origem mgica. (...) [P]ode-se pensar a inveno das
tcnicas e a sua transmisso de gerao a gerao como baseado num instinto
esclarecedor inato ao homem a partir, talvez, do inconsciente. Abbagnano
(2000:939-40) confirma este vnculo entre a tcnica e o campo religioso, assim como
com a arte:
TCNICA (in. Technic; fr. Technique. ai. Technik, it. Tcnica). O sentido geral desse
termo coincide com o sentido geral de arte (v.): compreende qualquer conjunto de
regras aptas a dirigir eficazmente uma atividade qualquer. (...) Nessa esfera de
significado generalssimo incluem-se, portanto, os procedimentos mais dspares; estes,
porm, podem ser divididos, grosso modo, em dois campos diferentes: A) [Tcnicas]
4 O negrito da que escreve.
-
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racionais, que so relativamente independentes de sistemas particulares de crenas,
podem levar modificao desses sistemas e so auto-corrigveis; B) [Tcnicas]
mgicas e religiosas, que s podem ser postas em prtica com base em determinados
sistemas de crenas; no podem, portanto, modificar esses sistemas e apresentam-se
tambm como no-corrigveis ou no-modificveis. Essas [tcnicas] constituem um dos
dois elementos fundamentais de qualquer religio e podem ser indicadas com o nome
genrico de ritos (v.).
Cincia ou arte, os ecos da religio no imaginrio da traduo proviriam da
importncia do sacro desde a sua origem, cujas pegadas permaneceriam hoje sob a
forma duma relao peculiar com a formulao das suas dinmicas, no avessa ao
campo das crenas, do sistema prtico e simblico. Afinal, as tcnicas racionais
apenas so relativamente independentes de sistemas particulares de crenas, como
lembra Abbagnano (2000:939-40). A traduo herda ainda a sacralizao doutros
objetos legtimos com os quais mantm uma ntima ligao as lnguas , que
esto protegidos por sua legitimidade contra o olhar cientfico e contra o trabalho de
dessacralizao que o estudo cientfico dos objetos sagrados pressupe (Bourdieu
1983:206).
Para Oliveira (2008), uma techn um saber que precisa dispor duma
vocao prtica, destinada resoluo de problemas, um alto nvel de
desenvolvimento, ao longo das geraes, e ser transmitido atravs da educao,
chegando mesmo a ser apresentada e descrita em livros e compndios e no
simplesmente sabida quase em segredo como era a magia pelos profissionais. A
instituio da techn tira o mgico das tcnicas. Os tratados de medicina de
Hipcrates e os de arquitetura de Vitrvio nada tm de mgico (Oliveira 2008:5).
Mais um aspecto esse em que a traduo se encontra num limbo: o configurado
por uma prtica que oscila entre os espaos acadmicos e o dum fazer aprendido pela
simples realizao do ofcio, marcado tradicionalmente por um autodidatismo intenso
e a desregulamentao do mercado. Quem seria, ento, a comunidade tradutria?
Aqueles e aquelas que transitaram por espaos de formao especficos, e coletivos
por definio, ou pessoas que construram as suas competncias diretamente no
mbito do afazer profissional, em grande medida isoladas do coletivo que o pratica?
Na contemporaneidade, estaro tradutoras e tradutores numa situao to marcada
pelo isolamento como costumaram estar durante sculos?
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23
A originria vinculao entre a tcnica e o sagrado ir sendo proscrita, com o
advento da Modernidade, por causa da insero dum terceiro elemento na trade
composta, junto cincia e tcnica (relida como tecnologia), pela razo:
A razo se liberta da sobrenaturalidade e impulsionada pelas necessidades colocadas
pelos novos modos de se construir a vida, novos esquemas de pensamento
quantitativos e experimentais e novas prticas: tcnicas, financeiras, comerciais
foram criadas as condies para surgimento, tambm de novos mtodos e novos
saberes. O eixo epistemolgico que se estabelece pode ser representado da seguinte
maneira: cincia + tcnica = tecnologia (saber poder) (Oliveira 2008:6).
Oscila-se agora entre a mitificao da redeno pela tecnologia e a denncia do
problema da tcnica, com as suas consequncias sobre a vida individual e social
derivadas do seu desenvolvimento no mundo moderno (Abbagnano 2000:939). Alm
dos trs itens em que Abbagnano (2000:941) resume as influncias negativas da
tecnologia sobre o mundo natural, os dois seguintes retratam os seus efeitos sobre a
humanidade:
4
a sujeio do trabalho humano s exigncias da automao, que tende a transformar o
homem em acessrio da mquina;
5a incapacidade da T. de atender s necessidades estticas, afetivas e morais do homem;
portanto, sua tendncia a favorecer ou determinar o isolamento e a incomunicabilidade
dos indivduos.
A insero na contemporaneidade do ser humano e da sua maior tecnologia, as
lnguas naturais, vem gerando espaos de encontro e de conflito onde se reelaboram e
ressignificam ideias como as anteriores, quer seja acerca do que sejam as lnguas e de
como funcionam, quer, ainda, em relao s prprias interaes humanas. Sobre a
lngua no mais espelho da realidade, mas constitutiva dela enquanto instituio
social (Cameron 1995) se voltam discursos na ps-modernidade em novos mbitos
virtuais, percorrendo caminhos que constroem as formas idiossincrsicas conforme as
quais as comunidades se imaginam. Esse processo de criao se remonta
discursivamente aos primeiros movimentos de articulao das comunidades, nos quais
lngua e religio se entrecruzam. No mbito do Brasil (e no s, claro),
a relao lngua-nao (...) faz parte da colonizao lingstica em seu ideal
comunicativo de produo (...) de transparncias, uma srie de prticas linguageiras,
ou melhor, de rituais scio-discursivos oriundos, em sua maioria, de prticas religiosas
associadas manuteno do poder real. No entanto, [p]ara a igreja(...) o caminho mais
direto para a expanso da evangelizao realizava-se atravs da adoo do vernculo
local, no caso, da utilizao do tupi, a lngua indgena majoritariamente falada na costa
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24
do Brasil, e que nas primeiras dcadas da colonizao era chamado de lngua braslica
(...), eleita como geral pelos jesutas (Mariani 2008:34).
Neste processo homogeneizador, as comunidades indgenas, a populao local
no ndia e a de origem africana foram traduzidas pelo Imprio para o portugus,
dando uma lngua queles que, para o Imprio, no a tinham, e persuadindo-lhes os
proprios dictames da racionalidade, de que vivia privados. Assim reza no Diretrio
dos ndios, ordem rgia expedida com o aval do Marqus de Pombal que ordena o uso
exclusivo da Lngua Portuguesa na colnia brasileira (Mariani 2008:36), com o qual
se negou, em meados do sculo XVIII, o poder simblico atribudo pelos jesutas
lngua geral e se inaugurou uma segunda fase de homogeneizao
lingustico/discursiva, com as devidas distines de gnero, pois
haver em todas as Povoaos duas Esclas pblicas, huma para os Meninos, na qual se
lhes ensine aDoutrina Christa, a ler, escrever, e contar na forma, que se pratica em
todas as Esclas das Naoens civilizadas; e outra para as Meninas, na qual, lem de
serem instruidas na Doutrina Christa, se lhes ensinar a ler, escrever, fiar, fazer renda,
cultura, e todos os mais ministrios proprios daquelle sexo.
No entanto, o Diretrio ainda, e especialmente, bem conhecido pelo fato de
indicar que a comunidade indgena no poderia mais ser chamada negra, coisa que
no deixa de lembrar o decreto de San Martn, que, em 1821, determinar que: No
futuro, os aborgines no sero chamados ndios ou nativos; eles so filhos e cidados
do Peru e sero conhecidos por peruanos (Linch apud Anderson 2008:264). Trata-se
de mais um apagamento no processo de construo de comunidades imaginadas, nas
quais as comunidades indgenas no o sero mais, passando a fazer parte e a ter
obrigaes com os estados nacionais que se formavam na Amrica da poca.
Esta constituio duma nova homogeneizao de que se falava acima foi agora
implementada, ou melhor imaginada discursivamente, sobre a memria da lngua de
Portugal, que no comear a ser relativizada at o sculo XIX, com a independncia
poltica e a configurao de
trs regies de significao, marcadas por lugares enunciativos conflitantes em termos
de autoridade simblica sobre a lngua: o primeiro (...) o da lei com suas indefinies;
os outros dois lugares enunciativos referem-se ao de alguns fillogos, gramticos e
historiadores, e ao de literatos (...); dum lado, aqueles que falam sobre as lnguas, os
gramticos e os fillogos, pensando dominar um saber sobre estas e julgando-se no
direito de classificar, modelizar e avaliar os usos literrios e no-literrios; e, de outro,
os escritores que falam sobre a lngua que usam, comprometidos que esto com os
regimes enunciativo-literrios de sua poca, muitas vezes inseridos em projetos
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histricos e estticos opostos aos saberes hegemnicos em circulao (Mariani
2008:41).
Nesse caldo primordial que vem luz, diz Mariani (2008:43), a contradio
constitutiva da memria de nossa lngua, uma lngua que, se nos seus comeos foi
uma lngua de colonizao em luta com outras lnguas, para firmar-se como lngua
nacional apagou essas outras lnguas bem como sua heterogeneidade interna,
firmando a hegemonia dos colonizadores e a sua cultura sobre os povos nativos.
Qual a relao de tudo o dito acima com praticantes da traduo do portugus?
Tudo o anterior faz do coletivo tradutrio que tem o portugus do Brasil como uma
das lnguas de trabalho um caso intenso de utentes caracterizados pela insegurana
lingustica (Labov 20085), referida s reaes negativas (desprestgio) em relao aos
usos lingusticos, essenciais ao seu labor profissional.
Insegurana lingustica , precisamente, a descrio que Lucchesi (2011:179) d
para a sociedade brasileira no geral, derivada em grande medida da assuno, em
finais do sculo XIX, de fenmenos gramaticais que forjaram a atual norma culta
portuguesa (Pagotto 1998:54). Trata-se em especial da nclise dos clticos derivada
da reduo das vogais tonas que caracteriza a prosdia do portugus europeu
contemporneo, diferentemente da tendncia colocao pr-verbal que se encontra
no portugus clssico e apesar do fortalecimento das vogais tonas no Brasil.
Fenmenos como a prclise caracterstica dos usos cultos da lngua no pas, mas
contrria ao padro prescritivo adotado produzem um sentimento de insegurana
lingustica que afeta a todos os segmentos da sociedade brasileira, conforme deixam
transparecer afirmaes do tipo: o portugus muito difcil e brasileiro no sabe
falar portugus (Pagotto 1998:54).
Trata-se dum problema de legitimidade, a qual afeta no s s prprias formas
lingusticas, como s situaes de uso e aos interlocutores e interlocutoras que dela
participam, carregada ainda com o peso das hierarquizaes culturais cuja
organizao foi empreendida no processo de colonizao das Amricas. Para
Bourdieu (2008),
5 Em 1972, referindo-se aos dados obtidos em pesquisa com falantes de Nova Iorque sobre a pronncia
do r, Labov (2008:146) afirma que a insegurana lingustica posta de relevo pelo intervalo bastante
amplo de variao estilstica (...); por seu esforo consciente de correo; e por suas atitudes fortemente
negativas para com seu padro de fala nativo.
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[p]odemos, assim, enunciar as caractersticas que um discurso legtimo deve preencher,
os pressupostos tcitos de sua eficcia: ele pronunciado por um locutor legtimo, isto
, pela pessoa que convm por oposio ao impostor (linguagem religiosa/padre,
poesia/poeta etc.); ele enunciado numa situao legtima, isto , no mercado que
convm (no oposto do discurso do louco, uma poesia surrealista lida na Bolsa de
Valores) e dirigida a destinatrios legtimos; ele est formulado nas formas fonolgicas
e sintxicas legtimas (o que os lingistas chamam de gramaticalidade), salvo quando
pertence definio legtima do produtor legtimo transgredir essas normas.
As distintas lnguas, variedades e variantes usadas por uma sociedade esto
submetidas ao mercado lingustico, que lhes atribui valores diferentes, de modo mais
ou menos conscientemente conhecido por quem as usa, pois fundamental atuao da
lngua legtima o desconhecimento de sua verdade objetiva, princpio da violncia
simblica que se exerce atravs dela, acionando mecanismos de monitoramento e a
impresso dum modelo:
A disposio que leva a se vigiar, a se corrigir, a procurar a correo atravs de
correes permanentes nada mais que o produto da introjeo duma vigilncia e de
correes que inculcam, seno o conhecimento, pelo menos o reconhecimento da
norma lingstica; atravs desta disposio durvel (que, em certos casos, est no
princpio duma certa insegurana lingstica permanente), se exercem continuamente,
sobre aqueles que a reconhecem mais do que a conhecem, a vigilncia e a censura da
lngua dominante (Bourdieu 2003:159).
Essas formas de vigilncia vm sendo qualificadas no Brasil como formas de
preconceito lingustico, termo de extenso uso no Brasil desde a edio do volume
de Bagno (1999) sob esse ttulo, amplamente reeditado desde o seu lanamento. Sobre
esse conceito, Bagno (1999:40) diz: O preconceito lingstico se baseia na crena de
que s existe uma nica lngua portuguesa digna deste nome e que seria a lngua
ensinada nas escolas, explicada nas gramticas e catalogada nos dicionrios. Trata-
se, claro, duma crena, pois, de fato, todas as lnguas, como tambm o portugus,
constituem feixes de variedades e [a] esse entrecruzar-se de dialetos sociais,
espaciais e de normas lingusticas impem-se as normas especficas da lngua escrita
que neutralizam muitas das diferenas da fala quotidiana, mas esto longe de anul-
las (Mattos e Silva 1988:2).
Como qualquer outro conceito proveniente de espaos cientficos, o
preconceito lingustico vem sendo acolhido no seio das representaes sociais pelas
quais as pessoas encaixam categorias novas nas anteriores, de modo a elas no
entrarem em conflito com o seu habitus. Nesse sentido, na denncia do preconceito
lingustico no Brasil ecoa a criminalizao do preconceito racial, numa projeo de
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campos que pode ter tido uma consequncia ou efeito colateral, no sentido de tender a
integrar os juzos da avaliao lingustica no campo do que deve permanecer no
explicitado por proibido, por impuro. Embora a origem do preconceito lingustico
(Bagno 1999) no seja concebida como atinente a um fenmeno da ordem do
individual (posteriormente Bagno6 dir que no h preconceito lingustico, mas
social), termina sendo representado como tal, numa generalizao que nega a ao de
contradies sociais e de conflitos de poder como condicionantes da sua operao7.
Nesse movimento de representao, mulheres e homens sujeitos aqui agentes,
embora talvez inconscientes reduzem o preconceito lingustico como qui o
faam com qualquer outra modalidade de discriminao a uma recusa do respeito
pela diferena, qual se lhe nega uma igualdade que lhe pertence por direito.
apagada, ento, a conscincia de que o preconceito no distribudo socialmente de
forma equitativa; isto , nem todas as formas padecem idntico nvel de
estigmatizao (na verdade, muitas desfrutam dum status de privilgio, que com
frequncia se apresenta como natural ou inato).
Nesse cenrio, especialmente difcil a situao do coletivo de profissionais da
traduo, no apenas pelo fato de terem o portugus como uma das lnguas de
trabalho, mas tambm por se dedicarem a essa prtica. bem conhecido o adgio
traduttore, traditore, que denota nitidamente a descrena tradicional a que o saber
consensual condena a prtica tradutria. No mercado lingustico, pelo menos no
brasileiro, agentes profissionais da traduo raramente constituem locutores ou
locutoras legitimadas, como pem de relevo tanto as representaes sociais que
rodeiam o ofcio, quanto as prprias condies laborais a que o coletivo que o realiza
est com frequncia submetido.
6 A esse respeito, Bagno (2003:16) afirma: o preconceito lingustico no existe. O que existe, de fato,
um profundo e entranhado preconceito social. Se discriminar algum por ser negro, ndio, pobre,
nordestino, mulher, deficiente fsico, homossexual etc. j comea a ser considerado publicamente
inaceitvel (o que no significa que essas discriminaes tenham deixado de existir) e politicamente
incorreto (lembrando que o discurso do politicamente correto quase sempre pura hipocrisia), fazer
essa mesma discriminao com base no modo de falar da pessoa algo que passa com muita
naturalidade (...). que a linguagem, de todos os instrumentos de controle e coero social, talvez seja
o mais complexo e sutil, sobretudo depois que, ao menos no mundo ocidental, a religio perdeu sua
fora de represso e de controle oficial das atitudes sociais e da vida psicolgica mais ntima dos
cidados. 7 Ocorre, assim, um fenmeno semelhante ao tradicionalmente denominado auto-dio na Galiza:
atribuda a atitudes individuais anti-ticas a causa de atos de discriminao que no se verificam tanto
em funo do carter individual de quem os exerce, mas como produto duma discriminao gerada no
seio maior da sociedade. O sintoma , portanto, tomado pela doena.
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Aparecem, portanto, neste trabalho, dois campos (Bourdieu 1983) que se
entrecruzam: o tradutrio e o lingustico. Enquanto campos, ambos so microcosmos,
espaos em que so estabelecidas relaes conforme uma lgica prpria, irredutvel
doutros campos. Resultam de processos de diferenciao social organizados pela
criao dos diversos objetos (lingustico, tradutrio, artstico, educacional, poltico,
religioso, etc.), como tambm pela delimitao dos princpios que governam a sua
compreenso, segundo um campo de foras que constrange a atuao de agentes
neles envolvidos.
O campo tradutrio um daqueles por volta dos quais este trabalho se constri
abordado aqui enquanto uma prtica articulada por uma constelao de agentes
que abrange profissionais, estudantes e docentes da rea, num coral de vozes onde as
representaes do saber consensual dialogam com o conhecimento especializado. J o
campo lingustico implica outro fazer, com uma problematicidade dotada duns
contornos especficos, os do portugus do Brasil no sculo XXI, que sero
apreendidos pela anlise de formaes discursivas de agentes como os anteriormente
citados. Sendo o fazer lngua um fazer situado, ele ser estudado em relao a quem o
pratica sob formas socio-historicamente situadas a traduo e que, ao mesmo
tempo, constri coletivamente um dizer sobre ele, sobre o seu ser e o dever ser, em
certos loci em que as suas percepes so elaboradas (e, eventualmente,
reelaboradas).
Apesar da relativa autonomia de cada um dos campos onde ocorrem as
dinmicas sociais, eles se inter-relacionam, seja pelos conflitos existentes (que
implicam no mtuo reconhecimento), quer pelas homologias que possam manter entre
si. Pode haver algum tipo de paralelo entre as transformaes internas e externas aos
campos (Bourdieu 1983:156-7), mas
[c]ada campo tem suas prprias formas, de revoluo e, portanto, sua prpria
periodizao. E as rupturas dos diferentes campos no so necessariamente
sincronizadas. O que ocorre que as revolues especficas tm uma certa relao com
as mudanas externas.
sobre esse universo, organizado em torno do portugus do Brasil, da traduo,
da formao e das crenas de tradutoras e tradutores, que girar o texto que se
apresenta logo a seguir. Antes de comear, apenas uma tentativa de resposta a um
questionamento curioso: por que epigrafar com Saramago um trabalho acerca do
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portugus do Brasil? Deslize? Mera provocao? Lembre-se, apenas, que Saramago
comeou a sua vida profissional em grande medida como tradutor, revisor e poltico,
antes de escritor. Alis, a subverso que As intermitncias da morte opera
literariamente no campo religioso confirma a ferrenha resistncia desse campo em se
retirar das mentes, que ainda bebem das suas fontes o lxico de que se valem para
ancorar8 as suas experincias noutros campos da experincia humana. A obra de
Saramago nada mais do que um excepcional encontro da oralidade com a escrita.
Por isso, com a devida irreverncia: por que no Saramago, como poderia ter dito
Raimundo Silva?
8 Ancoragem consiste no processo que transforma algo estranho e perturbador, que nos intriga, em
nosso sistema particular de categorias e o compara com um paradigma de uma categoria que ns
pensamos ser adequada (Moscovici 2015:61).
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30
JUSTIFICATIVA
Ao princpio, como natural, houve invejas, houve conspiraes, deu-se um ou outro caso de tentativa
de espionagem cientfica para descobrir como o havamos conseguido, mas, vista dos problemas que
desde ento nos caram em cima, cremos que o sentimento da generalidade da populao desses pases
se poder traduzir por estas palavras, Do que ns nos livrmos. A igreja, como no podia deixar de ser,
saiu arena do debate montada no cavalo-de-batalha do costume, isto , os desgnios de deus so o que
sempre foram, inescrutveis, o que, em termos correntes e algo manchados de impiedade verbal,
significa que no nos permitido espreitar pela frincha da porta do cu para ver o que se passa l
dentro.
Saramago, J. (2005:74)
Em que pese a antiguidade do afazer tradutrio, pouco se tem produzido ao
longo dos sculos em que ele tem se desenvolvido, ou mesmo nas ltimas dcadas,
em relao ao ensino da traduo e, sobretudo, menos ainda no que diz respeito ao
ensino de lnguas para essa prtica. Mas o que so as lnguas para o afazer tradutrio e
quem o pratica? E, ainda, em que aspectos podem os estudos sociolingusticos
contribuir para um melhor entendimento dessa relao, aqui no caso de contextos
como a prtica tradutria em que o portugus do Brasil intervm como uma das
lnguas de trabalho?
Sobre certos campos, como o da traduo profissional, pesam contradies
socioeconmicas, sociolingusticas e relacionadas ao prprio senso comum que rodeia
dita prtica. Nele, o espao da formao s mais um cenrio, dentre outros possveis
onde localizar as consequncias da ao do poder sobre indivduos que a padecem.
Mas definitivamente o campo da traduo constitui um mbito onde ocorrem tenses
muito esclarecedoras da relao de falantes de portugus do Brasil com a sua lngua.
Com efeito, constitui j um lugar comum a afirmao de que as lnguas,
enquanto caracterizadas pela variao, so objetos instveis, dinmicas, aversas
esttica pela sua natureza, ou mesmo pelas concepes que especialistas tm sobre
elas. No entanto, apesar desse quadro, deve se destacar que a ideia de instabilidade e a
sua percepo esto atreladas em boa parte situao de padronizao e aos esforos
dedicados a esse processo. No tocante ao portugus do Brasil, o problema pode se
resumir no depoimento duma intrprete brasileira na presena da que escreve, ao
realizar uma pergunta onde mostra o desejo verbalizado dum dever ser, dum como
se comportar. Estas frases encerram as suas inquietaes: A questo : como que eu
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traduzo? Como eu escrevo ou como eu falo?. Colocaes desse tipo podem ser teis
como ponto de partida para elaborar o saber consensual das representaes sociais, ou
pelo menos os dramas em que se coloca, entre especialistas, a relao do coletivo
tradutrio com o portugus do Brasil. Outro dilema, derivado dessa macro-colocao,
remete para o fato de se inferir do questionamento acima que o coloquial/vernculo
pode ser percebido, por parte de tradutores e tradutoras de portugus do Brasil, como
um elemento que, ao ficar de fora da norma padro, no se encontra na e pela escrita
suficientemente representado, ou no aceito em determinadas esferas de distintas
camadas sociais e de usos formais. Nesse caso, como traduzir para portugus do
Brasil o vernculo de lnguas em que este fenmeno no se percebe dessa forma? Para
o portugus do Brasil, o vernculo dessas lnguas seria, ento, intraduzvel? Ou
traduzvel dentro dum campo imaginrio, tambm duma norma avessa ao uso, porm
estabelecida dentro duma perspectiva poltica, em prol da esttica ou dum novo
padro presumvel?
Esse espao de desconforto, de contornos seno desconhecidos, ao menos
flexveis e hoje polmicos o da avaliao dos usos lingusticos, intimamente
associado ao universo consensual do preconceito construdo de forma implcita na
prtica tradutria profissional e, j de maneira explcita, na formao de agentes da
traduo, a qual no tem como se furtar reflexo acerca do valor que lhes
atribudo, ou no, aos distintos usos lingusticos.
Assim, a vontade de pensar como capacitar tradutores e tradutoras reflexivas,
com autonomia para lidar com a heterogeneidade lingustica no contexto do portugus
do Brasil, que levar o pensamento a partir deste ponto. Trata-se de refletir sobre a
relao existente entre um campo aplicado mais rgido e singular dos usos da lngua
o tradutrio e as possibilidades expressas na pluralidade do dia a dia, mas tentando
fugir a esse afanoso e ingrato mister gramatical de catar pulgas em juba de leo
(Cunha 1981:40).
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METODOLOGIA DE PESQUISA: OBJETIVOS, PERGUNTAS E
ASSERES
as trs fotografias que levavam no bolso no deixavam dvidas de que a morte, se chegasse a ser
encontrada, seria uma mulher ao redor dos trinta e seis anos de idade e formosa como poucas. De
acordo com o padro obtido, qualquer delas poderia ser a morte, porm, nenhuma o era em realidade.
Depois de ingentes esforos, depois de calcorrearem lguas e lguas por ruas, estradas e caminhos,
depois de subirem escadas que todas juntas os levariam ao cu, os agentes lograram identificar duas
dessas mulheres, as quais s diferiam dos retratos existentes nos arquivos porque haviam beneficiado
de intervenes de cirurgia esttica que, por uma assombrosa coincidncia, por uma estranha
casualidade, haviam acentuado as semelhanas dos seus rostos com os rostos dos modelos
reconstitudos.
Saramago, J. (2005:128)
A emergncia nos anos 1920 do paradigma interpretativista, em reao ao
positivismo clssico herdeiro do sculo XIX, incentivou a ateno ao contexto scio-
histrico em que se inseriam as cincias humanas e sociais. D-se ento incio a um
movimento de transformao em elementos centrais dum paradigma que, a partir
desse ponto, passou a ser compreendido como superado, abrindo-se um caminho mais
amplo construo de modelos cognitivos e socioculturais de investigao. Isso
trouxe consigo mudanas tanto nas prticas de pesquisa em si quanto no pensamento
sobre elas, em especial pela reconsiderao da possibilidade de pesquisas neutras, e da
neutralidade dos e das agentes que as realizam. Afinal, nenhuma observao
possvel sem estar ancorada numa perspectiva determinada, nem que seja pela tomada
de deciso de ser levada a cabo. No h discurso nem ao que no partam dum certo
lugar de fala e dum ponto de vista alheio a valores ou intocvel a crticas.
Diversos mtodos e prticas fazem parte dos empregados na pesquisa
interpretativista, qualitativa, no intuito de determinar os significados atribudos a
aes na vida social, tangenciando a compreenso de distintas camadas discursivas e
referendando-se entre o senso comum e a norma acadmica. Trata-se de entender
fenmenos sociais cujo sentido emana do (con)texto em que esto inseridos e tentar
entend-los desde a sua localizao na complexidade das redes culturais de
significados nas quais se desenvolve a sociedade estudada.
A abordagem qualitativa no pretende alcanar a verdade, o que certo e
errado, posto que se ocupa prioritariamente com entender a lgica que permeia as
prticas que se do no dia a dia, envolvidas por atos, smbolos e discursos, tanto dos
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realizados quanto dos reprimidos, tanto do dito quanto do silenciado. Minayo
(1999:21) descreve as tessituras dessa extensa rede que forma o que se chama aqui
realidade, do ponto de vista da pesquisa qualitativa:
Ela se preocupa, nas cincias sociais, com um nvel de realidade que no pode ser
quantificado. Ou seja, ela trabalha com um universo de significados, motivos,
aspiraes, crenas, valores e atitudes, o que corresponde a um espao mais profundo
das relaes, dos processos e dos fenmenos que no podem ser reduzidos
operacionalizao de variveis.
Pelos objetivos que se almeja alcanar, esta que comea aqui uma pesquisa
social, que estuda imbricaes, nem sempre claras ou desprovidas de cortinas turvas
de fumaa, entre valores, crenas, representaes, atitudes e opinies. Remete para
uma realidade social que especfica, condicionada pelo momento histrico, pelo
lugar, pela organizao econmica, pelo imaginrio e as mentalidades do contexto
especfico em que est inserida. H, ento, historicidade, situando no tempo e no
espao cenrios e agentes em estudo, pois as especificidades dos eventos sociais
abordados marcam as cores e os tons da investigao nestes campos. Na abordagem
qualitativa, completa assim a autora:
[os] autores (...) no se preocupam em quantificar, mas, sim, compreender e explicar a
dinmica das relaes sociais que, por sua vez, so depositrias de crenas, valores,
atitudes e hbitos. Trabalham com a vivncia, com a experincia, com a continuidade e
tambm com a compreenso das estruturas e instituies como resultado da ao
humana objetiva. Ou seja, desse ponto de vista, a linguagem, as prticas e as coisas so
inseparveis (Minayo 1999:24).
Existem diversas formas de se buscar esse qualitativo que se espraia desde a
Filosofia Sociologia, desde os livros da antiguidade grega ao trabalho de campo
contemporneo. Uma das abordagens mais marcadas da pesquisa interpretativa a de
cunho etnogrfico de ethnoi, os outros, e graphos, escrita, registro , que vem
se desenvolvendo desde o final do sculo XIX. A etnografia tradicional moderna
implica a insero de pesquisadores e pesquisadoras durante um longo perodo na
vida numa comunidade, de cuja cultura se aproxima pela observao dum outro, a
inquirio e anotao de todas aquelas informaes consideradas relevantes na sua
caderneta de campo para a sua posterior interpretao, como, a partir dos postulados
de Lvi-Strauss em Regarder, Ecouter, Lire, props Roberto Cardoso de Oliveira
(2006:17), ao refletir sobre o mtodo etnogrfico no seu Olhar, ouvir, escrever.
Trata-se de encontrar a lgica do relativismo que rege a interpretao de cada cultura
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do ponto de vista do coletivo que a integra; quer dizer, de identificar formaes
discursivas e a forma como se encaixam em uma matriz social mais ampla, matriz
essa que as condiciona, mas tambm por elas condicionada (Bortoni-Ricardo
2008:49).
Do ponto de vista metodolgico, este estudo organizado a partir dos objetivos
geral e especficos que so expostos logo a seguir. A fim de explicitar as intuies
primeiras da pesquisadora, independentemente de se elas foram confirmadas ou no
aps a coleta e anlise dos dados, so formuladas tambm, j de incio, as asseres
subjacentes busca de possveis respostas implcita na questo de pesquisa.
Assumem-se, ento, as orientaes de Bortoni-Ricardo (2008:53), segundo as quais
[n]a pesquisa qualitativa, no se levantam hipteses como na pesquisa quantitativa, mas
aconselhvel elaborar asseres que respondam aos objetivos. A assero um
enunciado afirmativo no qual o pesquisador antecipa os desvelamentos que a pesquisa
poder trazer.
Em concreto, e dentro duma abordagem qualitativa, que no pretende ter
relevncia estatstica, recorre-se reviso de bibliografia e a tcnicas que implicam a
utilizao de diversos instrumentos de coleta de dados, como questionrios, guias de
entrevista semi-estruturadas e para grupo focal que se juntam nos anexos 1 a 10 ,
com os quais se objetiva alcanar distintas estratificaes dos discursos emitidos
sobre o tema em estudo. Como se ver, a perspectiva em ocasies longitudinal
(como na seo 4.4.). J em 4.5.2., a aplicao dos mesmos instrumentos a grupos
distribudos ao longo dos distintos semestres dum curso universitrio de Traduo
pretende oferecer subsdios para um panorama geral sobre a abordagem dos assuntos
pesquisados pelo corpo discente.
Por meio do leque de tcnicas de pesquisa adotadas, pretende-se embasar do
ponto de vista terico-metodolgico e colher informaes para refletir sobre a forma
como o coletivo responsvel pelo afazer tradutrio do portugus de Brasil se relaciona
com alguns dos fantasmas que o perseguem. A princpio, esse grupo de profissionais
deveria aprender, na prtica ou por formao, a lidar com a variao lingustica,
simplesmente ajustando o registro ao ponto em que o gnero textual traduzido se
localiza no continuum fala-escrita, do menos ao mais monitorado. Mas a possibilidade
da pergunta como que eu traduzo? Como eu escrevo ou como eu falo? ouvida
pela que escreve, como foi dito, duma tradutora brasileira, com curso superior
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completo na rea pe de manifesto que, ao menos no relativo a profissionais da
traduo de portugus do Brasil, a questo tem as suas peculiaridades e que, do ponto
de vista da sua formao, o problema no resolvido simplesmente obviando a sua
existncia.
Traando um panorama que problematiza questes de norma lingustica do
ponto de vista de praticantes da traduo de portugus do Brasil, este trabalho
pretende contribuir para que sejam melhor conhecidos dois universos pouco atendidos
at hoje pelas pesquisas acadmicas de diversas reas, ainda que por motivos
diferentes: o das tradutoras e tradutores em formao no Brasil, pela escassa insero
nos ambientes universitrios do pas que vem caracterizando tradicionalmente essa
rea; e o do coletivo de profissionais da rea, cuja tambm tradicional atomizao no
campo laboral dificulta o desenvolvimento de estudos sobre as suas concepes
acerca das prticas que desenvolvem. Agregada a isso est a pouca visibilidade do
trabalho de traduo, uma vez que o seu produto final praticamente naturalizado,
desde que no existam nele problemas graves o suficiente para chamarem a ateno
na hora da recepo. Fora em relao a especialistas, a agentes que participam
diretamente no processo de traduo ou a quem trabalha em reas de fronteiras
lingusticas ou em ambientes multilngues, a traduo, por via de regra, no aparece
aos olhos de quem recebe os seus produtos.
Assim, pela insero desta pesquisa em cenrios especficos, povoados por
pessoas que s vezes no falaro desde o anonimato, tenta-se retratar espaos que,
embora no pretendam ser definitrios da totalidade de agentes e ambientes que
poderiam fazer parte deles, dentro do macrocosmos da traduo do portugus do
Brasil, constituem microcontextos indicativos, isso sim, da problematicidade que
neles caracteriza a norma lingustica. De fato, consoante Bourdieu (1996:15),
no podemos capturar a lgica mais profunda do mundo social a no ser submergindo
na particularidade de uma realidade emprica, historicamente situada e datada, para
constru-la, porm, como caso particular do possvel.
Fica ressalvado, desde j, que tambm no se pretende aqui transformar em
propriedades necessrias e intrnsecas de um grupo qualquer (...) as propriedades que
lhes cabem em um momento dado a partir de sua posio em um espao social
determinado e em uma dada situao de oferta de bens e prticas possveis (Bourdieu
1996:18). Nem todo o coletivo de profissionais da traduo ser ouvido, nem todos e
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todas as aprendizas de traduo sero consultadas, no se diferenciando nesse aspecto
esta das demais pesquisas. Os informantes, homens e mulheres, que participam deste
estudo so seres cujas falas se configuram a partir das suas prprias concepes ticas
e da sua situao scio-histrica especfica. So, contudo, agentes duma prtica que
transita entre dois campos, ambos carregados hoje no Brasil duma tenso que
padecem, como elas e eles o entendem e declaram, em alto grau.
Em concreto as seguintes sero as questes, objetivos e asseres que orientaro
a pesquisa que neste ponto se inicia:
Questo de pesquisa:
Quais as concepes sobre norma lingustica de agentes da prtica tradutria,
profissionais e em formao, que tm o portugus do Brasil como uma das suas
lnguas de trabalho?
Objetivo geral:
Mostrar a problematicidade presente em concepes sobre norma lingustica de
agentes da prtica tradutria, profissionais e em formao, que tm o portugus do
Brasil como uma das suas lnguas de trabalho, levando em considerao pesquisas
sociolingusticas que colocam os problemas de norma dum ponto de vista no apenas
descritivo, dialetolgico, mas especialmente no que diz respeito sua avaliao a
partir dum processo, dum momento e dum lugar scio-histrico concretos.
Objetivos especficos:
1. Traar um panorama que pontue momentos relevantes nas concepes sobre
norma lingustica do portugus do Brasil, com especial interesse em pesquisas
geolingusticas, sociolingusticas e discursivas acerca dele, realizadas sobretudo desde
finais do sculo XX.
2. Descrever juzos avaliativos sobre norma lingustica de profissionais e
aprendizes da traduo que trabalham com o portugus do Brasil.
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3. Mostrar contribuies da Sociolingustica para pensar a abordagem didtica
das lnguas na formao tradutria, especialmente em relao a profissionais que
trabalham com portugus do Brasil.
Assero geral:
A problematizao explcita de questes relativas ao portugus do Brasil por agentes
da traduo, profissionais ou estudantes, est relacionada com a situao de
padronizao local, a qual precisa ser considerada nos processos de formao de
especialistas da rea.
Subasseres:
1.1. Se ainda nos anos 1980 Cunha e Cintra (1985:15) afirmavam que o
portugus do Brasil era menos heterogneo que o europeu, em especial desde os 1990
a Lingustica brasileira investe em ressaltar a heterogeneidade lingustica do pas.
1.2. A descrio da variedade lingustica do portugus do Brasil veio
acompanhada de debates acerca do ser e o dever ser, formulados em termos do par
dicotmico que contrape a Gramtica (com que se remete para a delimitao duma
norma padro, no para o sistema morfossinttico) e a Lingustica (que alude
descrio e defesa da variao lingustica e, fundamentalmente, das formas no
padro). Essas controvrsias podem ter sido representadas de formas peculiares no
Brasil por coletivos como o de estudantes de Traduo como o aqui estudado.
1.3. As polmicas acima citadas se unem a uma teia discursiva onde convergem
diversos momentos, no percurso scio-histrico do portugus do Brasil, em que a
questo da norma lingustica foi problematizada em termos da relao com o Outro, o
portugus.
2.1. No discurso de praticantes da traduo profissionais, estudantes e quem
forma esse grupo, podem ser encontradas problematizaes da norma que apontam
para uma insegurana lingustica relacionada com a situao de padronizao do
portugus do Brasil.
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2.2. Enquanto profissionais da lngua e apesar da sua heterogeneidade, interna
e entre ambas as categorias, a norma lingustica alvo de tensos debates por parte de
agentes da traduo de portugus do Brasil, tanto em formao como profissionais,
quando se integram em espaos de interao que se debruam sobre a prtica
tradutria.
2.3. Os ecos do campo religioso se fazem presentes no Brasil em relao
lngua e traduo, considerando os seus espaos de poder enquanto normas, pois
aluses a estas duas so formuladas no raro naqueles termos por aprendentes e
profissionais da traduo.
3.1. No Brasil, a possibilidade de se atribuir uma natureza preconceituosa
higiene verbal ou avaliao lingustica explcita (Cameron 1995)
independentemente de esse carter ser de fato adequado em todos os casos vem na
contramo da sua realizao por estudantes de traduo em contextos de ensino
formal. De fato, o tratamento de questes problemticas do ponto de vista da norma
lingustica parece ser evitado em contextos de formao tradutria, exceto naqueles
em que no h alternativa sua abordagem e onde ficam em grande medida
encapsuladas.
3.2. Como discurso racional e prtica no necessariamente coincidem, pode
existir um fazer contrrio ao dito, no tocante ao uso lingustico, por parte de agentes
da traduo, como de qualquer falante. Em contextos de ensino-aprendizagem, cabe
ao professorado criar espaos de verbalizao dessas contradies, nico mecanismo
para que sejam reelaboradas por estudantes de traduo, e tratadas no sentido em que,
enquanto agentes, decidirem.
Para dar tratamento suficiente s questes colocadas, a presente tese
organizada em cinco captulos. O primeiro deles destina-se a apresentar o conceito de
norma lingustica, para, a seguir, refletir mais precisamente sobre o caso do portugus
do Brasil, buscando um itinerrio scio-histrico e um cenrio em termos
geolingusticos, sociolingusticos e discursivos. O segundo captulo discute
contribuies da Sociolingustica na delimitao e abordagem de problemas de
norma. central nessa seo a reflexo acerca do lcus da pesquisa sociolingustica
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(da comunidade de fala, passando pelas redes sociais em direo s comunidades de
prtica), incluindo uma discusso acerca da insero das interaes virtuais dentro
desse campo, um ambiente importante no Brasil para a ocupao dum espao
anteriormente difuso e atomizado como o do afazer tradutrio. Disserta-se tambm
sobre o papel da avaliao explcita (ou higiene verbal, segundo Cameron 1995) no
tocante norma lingustica e sobre as relaes entre os campos da Sociolingustica e
dos Estudos da Traduo, observando o Brasil e o portugus como espaos de
pesquisa. No captulo terceiro, so mapeadas e analisadas concepes sobre norma
lingustica de agentes profissionais da prtica tradutria que trabalham com portugus
do Brasil. Para tanto, recorre-se a uma lista de discusso da Internet, TRAD-PRT
disponvel em http://br.groups.yahoo.com/group/trad-prt/ , a qual se apresenta como
a mais antiga em atividade dentre aquelas que renem profissionais do ramo, fundada
em 1995. So comentados ainda os resultados obtidos da anlise de duas entrevistas
sobre questes pertinentes a esta pesquisa, efetuadas com profissionais da traduo do
Brasil com reconhecimento no ramo, vinculao histria virtual da comunidade
tradutria do portugus, e cujos perfis formativos so contrapostos: Danilo Nogueira e
Ivone Benedetti. O captulo quarto traa um panorama de ideias sobre norma
lingustica colhido num contexto especfico de ensino pblico brasileiro de nvel
superior, destinado formao de profissionais da traduo. Para isso sero
considerados olhares de aprendentes e de membros do corpo docente inseridos no
ambiente pesquisado, que sero retratados atravs de informaes obtidas por meio de
instrumentos de coleta de dados como entrevista, grupo focal e questionrios. A
observao mais prxima, diria, vivenciada, e o mergulho no universo do Outro e do
eu professora e tradutora, com inspiraes etnogrficas, marcam o recolhimento de
dados do universo pesquisado neste estudo. No quinto e ltimo captulo, a modo de
consideraes finais, sero retomadas, como resultados, as subsasseres enunciadas
nesta seo, discutindo a sua confirmao ou no luz das informaes coletadas e
discutidas nas sees anteriores. A seguir, como concluses, defende-se a relevncia
de contributos da Sociolingustica no tocante ao melhor entendimento da configurao
das relaes que tradutoras e tradutoras, profissionais e em formao, mantm com a
norma lingustica do portugus do Brasil, para refletir sobre repercusses didticas
derivadas de se levar em considerao esse tipo de questes em contextos formais de
ensino-aprendizagem da prtica tradutria. Finalmente, outras problematizaes so
sugeridas no tocante a problemas de norma e formao em traduo do portugus do
http://br.groups.yahoo.com/group/trad-prt/ -
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Brasil, enquanto caminhos possveis para pesquisas posterior