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1 Juventude e consumo: novas formas de significados no espaço socioeducativo. 1 Izabela Jatene de Souza/ UFPA/Pa RESUMO O conceito de juventude deve ser compreendido a partir de diversas e distintas marcações teóricas, pois em tempos pós-modernos, esse segmento vem se construindo e se transformando de forma bastante significativa. O desejo, a oferta de bens variados, a linha que separa simbolicamente ricos e pobres, o crescimento de espaços onde ricos e pobres transitam, levam o jovem, mesmo inconscientemente, a perceber que as diferença e os desejos podem facilmente ser alcançados, e para isso diferentes métodos podem ser usados, inclusive o roubo, furto, entre tantos outros. Partindo do pressuposto que juventude, violência e pobreza não estão, obrigatoriamente, na mesma matriz de abordagem, a pesquisa parte da análise sobre desigualdade para entender esse movimento da juventude em busca de algo que o consumo pode, aparentemente, suprir. Nasce uma nova classe de consumo que está relacionada ao nível de distinção social, no qual o jovem deseja e pode assumir, ou verdadeiramente consumir, à medida que a relação entre cidadania e consumo torna-se cada vez mais dependente. Diante dessa perspectiva teórica em que o jovem se coisifica nessa sociedade, realizou-se entrevistas com alguns adolescentes e jovens da Fundação de Amparo Socioeducativo do Pará (FASEPA), onde foi possível constatar uma identidade juvenil profundamente marcada pelo consumo e uma relação estreita entre os objetos de consumo e status social, criando a simbologia da forma de reconhecimento e de construção de diversos grupos. Palavras- Chaves: Juventude. Consumo. Medida Socioeducativa. 1. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES INICIAIS: O universo do consumo foi por muito tempo analisado, de modo fortemente vinculado à questão material do capital, assim como as mazelas por esse produzidas, como pobreza, desigualdade, exclusão, violência, criminalidade e diversos outros problemas. A compreensão é de que só se tem acesso ao consumo aquele que ultrapassassa a linha tênue que demarca espaços, símbolos, mensagens, linguagens, despertam o desejo de ter sem distinção, pois a mídia garante o acesso a todos. O consumo é abordado, por Canclini, como um novo signo de prestígio, o que é consumido também é uma forma de distinção social. Desse modo, as identidades e as diferenças vão assumindo um novo papel e o que nos satisfaz fica cada vez mais distante, como afirma o autor em “Consumidores e Cidadãos”:“procurar bens e marcas 1 Trabalho apresentado na 29ª Reuni ão Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN.

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Juventude e consumo: novas formas de significados no espaço

socioeducativo.1

Izabela Jatene de Souza/ UFPA/Pa

RESUMO

O conceito de juventude deve ser compreendido a partir de diversas e distintas

marcações teóricas, pois em tempos pós-modernos, esse segmento vem se construindo e

se transformando de forma bastante significativa. O desejo, a oferta de bens variados, a

linha que separa simbolicamente ricos e pobres, o crescimento de espaços onde ricos e

pobres transitam, levam o jovem, mesmo inconscientemente, a perceber que as

diferença e os desejos podem facilmente ser alcançados, e para isso diferentes métodos

podem ser usados, inclusive o roubo, furto, entre tantos outros. Partindo do pressuposto

que juventude, violência e pobreza não estão, obrigatoriamente, na mesma matriz de

abordagem, a pesquisa parte da análise sobre desigualdade para entender esse

movimento da juventude em busca de algo que o consumo pode, aparentemente, suprir.

Nasce uma nova classe de consumo que está relacionada ao nível de distinção social, no

qual o jovem deseja e pode assumir, ou verdadeiramente consumir, à medida que a

relação entre cidadania e consumo torna-se cada vez mais dependente. Diante dessa

perspectiva teórica em que o jovem se coisifica nessa sociedade, realizou-se entrevistas

com alguns adolescentes e jovens da Fundação de Amparo Socioeducativo do Pará

(FASEPA), onde foi possível constatar uma identidade juvenil profundamente marcada

pelo consumo e uma relação estreita entre os objetos de consumo e status social, criando

a simbologia da forma de reconhecimento e de construção de diversos grupos.

Palavras- Chaves: Juventude. Consumo. Medida Socioeducativa.

1. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES INICIAIS:

O universo do consumo foi por muito tempo analisado, de modo fortemente

vinculado à questão material do capital, assim como as mazelas por esse produzidas,

como pobreza, desigualdade, exclusão, violência, criminalidade e diversos outros

problemas. A compreensão é de que só se tem acesso ao consumo aquele que

ultrapassassa a linha tênue que demarca espaços, símbolos, mensagens, linguagens,

despertam o desejo de ter sem distinção, pois a mídia garante o acesso a todos. O

consumo é abordado, por Canclini, como um novo signo de prestígio, o que é

consumido também é uma forma de distinção social. Desse modo, as identidades e as

diferenças vão assumindo um novo papel e o que nos satisfaz fica cada vez mais

distante, como afirma o autor em “Consumidores e Cidadãos”:“procurar bens e marcas

1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os

dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN.

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estrangeiras era um recurso de prestígio e às vezes uma opção por qualidade.”

(CANCLINI, 2010,p.31).

Diante dessa perspectiva, a pesquisa analisa a busca da juventude por algo que

só o consumo pode, aparentemente, suprir a partir do mundo dos signos e símbolos, que

se conectam, de acordo com Canclini, e que geram ansiedade segundo Larreta (passim),

despertam um enorme desejo de ter, que vem imediatamente seguido ao intuito da busca

de caminhos para ter. O que fazer para alcançar o objeto desejado? Os questionamentos

de “por que ‘eles’ têm e ‘eu’ não tenho?” não passam mais como uma tomada de

consciência coletiva.

2. A CULTURA DE CONSUMO COMO SISTEMA DE SIGNIFICAÇÃO

Cotidianamente somos massacrados por informações que nos envolvem,

transmitindo e despertando sensações que só através do consumo seremos capazes de

viver. É um jogo psicológico que gera uma enorme confusão entre o "ser" e o "ter".

Mary Douglas e Baron Isherwood (2013) em sua obra "O Mundo dos Bens", ressaltam

que os bens de consumo são um sistema que, se tirados da interação humana são

completamente desmantelados. É nesse sentindo que Everardo Rocha no prefácio à

edição brasileira da referida obra, lembra que o consumo é como um código que traduz

as relações sociais.

Mike Featherstone (1995) aponta três perspectivas fundamentais sobre a cultura

de consumo.

A primeira é a concepção de que a cultura de consumo tem

como premissa a expansão da produção capitalista de

mercadorias, que deu origem a uma vasta acumulação de cultura

material na forma de bens locais de compra e consumo (...) Em

segundo lugar, há a concepção mais estritamente sociológica de

que a relação entre a satisfação proporcionada pelos bens e seu

acesso socialmente estruturado é um jogo de soma zero, na qual

o status dependem da exibição e da conservação das diferenças

em condições de inflação (...) Em terceiro lugar, há a questão

dos prazeres emocionais do consumo, os sonhos e os desejos

celebrados, no imaginário cultural consumista e em locais

específicos de consumo que produzem diversos tipos de

3

excitação física e prazeres estéticos. (FEATHERSTONE, 1995,

p.31)

A cultura de massa é um outro elemento importante na discussão sobre

consumo. "A cultura de massa - mídia, marketing, publicidade - interpreta a produção,

socializa para o consumo e nos oferece um sistema classificatório que permite ligar um

produto a cada outro e todos juntos às nossas experiências de vida" (ROCHA apud

DOUGLAS; ISHERWOOD, 2013, p.17)

Rocha (2006) parte da premissa de que é necessário estudar o consumo2 para

entendermos melhor a respeito da cultura moderna - contemporânea, pois seu

entendimento possibilita a compreensão sobre a cultura que vivemos. O autor acredita

num sistema classificatório e de diferenciação que o consumo traz.

O consumo tem poder coercitivo, uma vez que constrói um

sistema de representações que, coletivamente compartilhado,

atua como força social em relação ao indivíduo. Força externa

efetivamente, pois existe fora das consciências particulares,

definindo uma espécie de arena onde circulam e se traduzem

significações coletivas. O consumo é também geral, espalhado,

socializado, extenso - no limite obrigatório-, na medida de uma

dada cultura. Sua tendência de extensão é planetária, atingindo

quase todas as culturas contemporâneas. O consumo não é só

fato social no plano das práticas, pois também é experimentado

na cultura como um sistema de representações coletivas, cuja

matéria-prima está além das representações individuais.

(ROCHA, 2006,p. 25)

Acima, podemos interpretar a lógica do consumo de acordo com a teoria

Durkheimiana de fato social, que apresenta as seguintes características: exterioridade,

2 Para Everardo Rocha, os autores referenciais para o início do estudo do consumo, são: Mary

Douglas, em “Antropologia do consumo”; Veblen, “ a teoria da classe ociosa”; Mauss, “ensaio

sobre a dádiva”; e Lévi-Strauss, “o pensamento selvagem”. O autor entende que a análise

minuciosa dessas obras tem colaborado grandemente para a análise do consumo em seu aspecto

cultural.

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coercitividade e generalidade. O consumo gera as representações coletivas que, por sua

vez, afetam as decisões individuais, reificando o indivíduo e enfraquecendo a

subjetividade e reforçando a separação que constrói a diferença. Na obra de Mauss,

“Ensaio sobre a dádiva” (2003)3 nota-se a importância das trocas simbólicas, como

forma de exemplificação, de que esta não está ligada somente à questão econômica, mas

à posição social e à legitimação das relações sociais.

Utilizando a teoria de Levi-Strauss, Rocha (2006) desenvolve a relação

natureza- cultura e produção-consumo, a partir da interpretação do

(...) sistema totêmico – como código que converte mensagens

entre natureza cultura- tem seu lugar ocupado pela publicidade,

que converte mensagens entre produção e consumo. A esfera da

produção precisa ser revestida da dimensão simbólica que vai

lhe dar sentido. E o consumo é a arena onde, efetivamente, esse

sentido ocorre. (ROCHA, 2006,p. 30)

Diante disso, o autor atribui várias características ao consumo, tais como: um

sistema de significação, um código, a tradução das relações sociais, à medida que

ressignifica essa relação ao classificar coisas e pessoas. Os códigos do consumo são

propagados através da mídia que exerce essa nova função, “fazendo com que nos

socializemos para o consumo de forma semelhante” (ROCHA, 2006, p.32).

3No potlatch existe a obrigação de redistribuir tudo que vem dele, não gerando acumulações

individuais ou pessoais, é a forma arcaica de troca, onde Mauss identificou "a circulação das

coisas nessa sociedade com a circulação dos direitos e das pessoas. Poderíamos a rigor ficar por

aqui. O número, a extensão e a importância desses fatos nos autorizam plenamente a conceber

um regime que deve ter sido o de uma grande parte da humanidade durante uma longa fase de transição, e que ainda subsiste noutros povos além dos que acabamos de descrever. Eles nos

permite conceber que esse princípio de troca-dádiva deve ter sido o das sociedades que

ultrapassem a fase da "prestação total" (de clã a clã e de família a família), mas que ainda não chegaram ao contrato individual puro, ao mercado onde circula o dinheiro, à venda

propriamente dita, e sobretudo, à noção de preço calculado em moeda pesada e reconhecida"

(MAUSS, 2003, p. 246). A sociedade moderna construiu suas bases no capital, onde a troca é desenvolvida a partir de

uma moral bem distinta, onde os grupos se relacionam a partir das relações de trabalho, gerando

relações de classes e consequentemente a luta das mesmas. A moral profissional e o direito

corporativo entram no cenário, as sociedades se complexificam, indivíduo, capital e Estado, precisam encontrar a moral que os norteiam para além do universo conflituoso, pois os excessos

são prejudiciais, e Mauss ressalta, tanto de generosidade, quanto de egoísmo, os quais levam ao

individualismo de nossas leis.

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O universo do consumo pode trazer na contemporaneidade uma ambiência

espetacular, onde os espaços são construídos para inebriar e formar novos consumidores

como ressalta Baudrillard. Contudo, Mary Douglas e Baron Isherwood fazem uma

análise extremamente sensata, ao lembrar que a noção de valor de cada coisa depende

do seu lugar e dos objetos complementares, e a construção da realidade deve ser

distinguida da construção da fantasia.

A teoria do consumo tem que ser uma teoria da cultura e uma

teoria da vida social. Separar a cultura da organização é flutuar

em direção ao mar do relativismo. Se a organização funciona

suficientemente bem, pode dotar os objetos de valor; dizer de

um objeto que ele está apto para o consumo é o mesmo que

dizer que o objeto está apto a circular como marcador de

conjuntos particulares de papéis sociais. (DOUGLAS;

ISHERWOOD, 2013, p.41)

O valor signo e o valor símbolo de um objeto, que se referem ao processo de

significação distingue socialmente o indivíduo. Assim, os objetos possuem um sentido

dinâmico dos seus significados ao longo do tempo, um processo de recodificação, por

isso a necessidade de uma abordagem “sociossemiotica de cultura, que integre o

processo de produção, circulação e consumo de significações” (CANCLINI, 2005,

p.43), ou seja, a imbricação entre o cultural e o social.

Há, de certa forma, uma oposição entre cultura e sociedade, ou entre prática

social e estrutura social, como afirma Bourdieu, que permite conceber a sociedade

“(...) como o conjunto de estruturas mais ou menos objetivas que organizam a

distribuição dos meios de produção e do poder entre os indivíduos e os grupos sociais, e

que determinam as práticas sociais, econômicas e políticas” (CANCLINI, 2005, p.39).

A cultura de consumo e a cultura do consumidor são pontos de extrema

importância que precisam ser analisados, pois traz à tona a reflexão sobre o exercício do

poder. Segundo Livia Barbosa (2004, p.32), “a cultura de consumo é a cultura do

consumidor em uma sociedade de mercado” A autora avança no sentido de que a

cultura do consumidor é impessoal, universal, e contraditoriamente identifica liberdade

com escolha e vida íntima, subjetiva: “o ato de consumo é um ato privado”

(BARBOSA, 2004, p. 33).

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É possivel que o consumo tenha uma dimensão que o relacione

com as mais profundas e definitivas questões que os seres

humanos possam se fazer, questões relacionadas com a natureza

da realidade e com o verdadeiro propósito da existência –

questões do “ser e saber”. (CAMPBELL, 2006, p.47)

Essa dimensão ontológica do consumo abre uma discussão muito importante

abordada por Campbell, o qual discute que além de toda lógica de satisfação, de desejos

e de necessidades, o campo de emoções e sentimentos tem forte conexão com o

individualismo. “Compro, logo Existo” frase trazida por Campbell, e como o próprio

autor afirma,

(...) obviamente plagiada de Decartes “Penso, longo Existo”

indica algo diferente. Sugere que a atividade de comprar não é

só meio pelo qual as pessoas descobrem quem elas são, como

fornece a elas a comprovação básica da sua existência.

(CAMPBELL, 2006, p.54)

Além do campo existencial, onde o indivíduo é o maior foco de análise nesse

patamar do consumo, analisá-lo como alternativa, como mecanismo para alcançar novos

espaços também deve ser um universo investigado. Por meio do consumo, os espaços

passam a fazer parte das agendas cotidianas e a sociabilidade amplia, ganhando novas

dimensões.

3.CONSUMO COMO ALTERNATIVA PARA ALCANÇAR NOVOS ESPAÇOS

A construção de vias de acesso por meio consumo para alcançar espaços que por

muitos momentos eram vedados física e simbolicamente por regras que pareciam

imutáveis, é um fenômeno muito próprio da contemporaneidade. Não existe mais

nenhum constrangimento em revelar o desejo, em ser, em estar na condição de

consumidor e cidadão, os espaços estão e são disponíveis a todos que possam consumi-

los.

Em “Consumidores e Cidadãos: conflitos culturais da globalização” (2005),

Canclini procura compreender como a participação social é organizada mais através do

consumo, do que pelo próprio exercício da cidadania. O exercício da cidadania não está

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restrito ao processo de participação política, mas também está associado à capacidade

de consumo do indivíduo. Isso ocorre devido à descrença nas instituições e ao processo

fraco de participação política da democracia representativa. Ao poder de consumo e ao

exercício da cidadania também está atrelada a questão da diferença e da desigualdade. A

primeira se manifesta na prática cultural, enquanto a segunda está associada à questão

econômica. (CANCLINI, 2005)

Refletindo o consumo para além da esfera econômica, reforçando acima de tudo

o universo cultural e seus símbolos, o autor define cultura como “o conjunto dos

processos sociais de significação, ou, de um modo mais complexo, a cultura abarca o

conjunto de processos sociais de produção, circulação e consumo da significação na

vida social.”(CANCLINI, 2005, p.41). Portanto, os símbolos culturais dão sentido à

vida social, refletindo a organização social e econômica de um povo.

Os símbolos culturais de um determinado povo são adaptados ao uso do

mercado, é o que Canclini chama de reestruturação simbólica e econômica que agrupa o

tradicional e o moderno, a hibridação, necessária para uma nova atuação das ciências

sociais nômade, da antropologia e da comunicação. Isso constitui a relação entre o

próprio e o alheio, defendida pelo autor, que consiste na diferença do espaço de

produção e circulação dos bens, sejam eles materiais ou culturais.

Bauman (2008) ressalta a transição da concepção da “sociedade dos

produtores” para a nova configuração da sociedade que apresenta uma mudança

extremamente significativa no comportamento e nos desejos do indivíduo. Bauman

destaca que este ambiente existencial tornou-se conhecido como “sociedade de

consumidores” e distingue-se por uma reconstrução das relações humanas a partir do

padrão, e a semelhança, das relações entre consumidores e os objetos de consumo.

Mas se os meios de produção são responsáveis, também, pelas práticas culturais,

é o processo de globalização e internacionalização que é diretamente proporcional à

velocidade com que os símbolo culturais rompam as fronteiras geográficas dos países,

fazendo com que se consuma a submissão das manifestações culturais à lógica do

mercado.

A relação entre consumo, cultura e cidadania se expressa a partir do significado

dado aos bens simbólicos. O consumo está ligado ao alcance de determinado status

social, a cultura da sociedade capitalista legitima esse status a partir do momento que

vincula a cidadania ao poder de consumo, que traz a ideia de pertencimento à tona,

definindo o cidadão como aquele que não somente tem os direitos reconhecidos pelo

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Estado, mas também aquele que consegue satisfazer suas necessidades pelo viés do

consumo, pois através dele marca seu lugar para si e perante o outro, ultrapassam a

linha que poderia fazer a distinção.

Douglas e Isherwood (2013), ressaltam que os bens fornecem “serviços de

marcação” nos “rituais de consumo”, onde cada evento, em cada situação, existem

“marcações” que devem ser respeitadas e cumpridas, pois isso também permite o

ingresso do cidadão no espaço, seja em uma festa, seja em um funeral, seja em um ciclo

de amizade, seja em um novo universo que pretende se integrar.

O adolescente W.F., 18 anos, que cumpre medida sócio-educativa por

homicídio, na Fundação Sócio Educativa do Pará (FASEPA) via no tráfico de drogas o

meio mais fácil de alcançar os bens materiais que o satisfaziam:

Entrevistador: E aí o que era que tu fazias? Tu roubavas e

vendias pra comprar drogas ou tu vendias pra comprar coisas,

materiais pra ti?

W.F.: Eu vendia pra comprar roupa pra mim, uma roupa bacana

a e tal.

Entrevistador: Era roupa de marca?

W.F.: Era roupa de marca

Entrevistador: A tua mãe não podia te dar?

W.F.:As vezes ela podia me dá, aí quando ela não podia eu ia lá

traficava alguma coisa, ou roubava alguma coisa.

Diante do trecho acima, o consumo pode ser visto como uma forma necessária

de distinção social entre os adolescentes, reafirmando o que Bourdieu aborda a respeito

do acesso aos bens e ao que Canclini afirma a respeito do que é considerado

desconectado e marginalizado.

O excerto acima e a posição do adolescente em relação ao seu pertencimento ao

grupo e a necessidade de se reafirmar a cada momento, nos conduz à reflexão sobre o

acesso aos bens simbólicos, que traz o social e o econômico como fatores de

diferenciação no acesso ao consumo. “A vida social é uma questão de alinhamentos, a

favor e contra, e para assinalar os alinhamentos os bens são como bandeiras.”

(DOUGLAS; ISHERWOOD, 2013, p.43)

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O adolescente, A.S., 17 anos, durante entrevista contou que seu primeiro roubo4

serviria para vender o objeto, mesmo já tendo trabalhado, e que o incentivo do roubo

veio de um colega de infância.

Entrevistador: Tu ias pegar esse celular e ia vender? Era

isso que tu fostes fazer?

A.S.: Era

Entrevistador: Trabalhavas em algum lugar ou já

trabalhastes antes?

A.S.:Já trabalhei

Entrevistador:Onde ?

A.S.: Numa oficina aí.

A.S.: Trabalhei numa oficina aí, alguns meses,

Entrevistador: Oficina de que?

A.S.: De bicicicleta

No decorrer da entrevista, o mesmo afirmou que o roubo o ajudaria a obter

dinheiro de forma rápida e, assim, ele poderia fazer o que quisesse com o lucro da

venda do objeto, ou seja, o roubo foi a forma encontrada de garantir o acesso a um bem,

criar alternativas para consumir.

Bourdieu reflete a respeito da construção das diferenças socioculturais no

consumo, quando reflete sobre o público dos museus e chega à conclusão de que o

acesso às obras de arte é privilégio de uma classe. Dessa forma, Bourdieu parte de dois

questionamentos para fundamentar sua análise: “1) Como são estruturadas-econômica e

simbolicamente- a reprodução e a diferenciação social?; 2) Como se articulam o

econômico e o simbólico nos processos de reprodução, desigualdade e construção do

poder?”(CANCLINI,2013, p.72). O segundo questionamento, quanto o acesso ao bem

simbólico, para o adolescente entrevistado, o roubo torna-se, não apenas, um meio de

alcançar status e poder dentro de um grupo social, mas também legitima a desigualdade

4De acordo com o Código Penal, roubo é : Art. 157: Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para

outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio,

reduzido à impossibilidade de resistência; enquanto que furto é : Art. 155-subtrair para si ou

para outrem, coisa alheia móvel:

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à medida que a busca por aceitação e reconhecimento dentro de um grupo social parte

da premissa do poder de possuir símbolos materias que possam distingui-los.

Canclini analisa como as gerações vêem o desejo do ter de modo diferente, o

que instiga uma reflexão sobre o conflito, e ao mesmo tempo, sobre a facilidade com

que os adolescentes o solucionam, quando os mesmos se vêem impedido de ter a

camisa, o tênis, o boné, da marca que desejam, pois a mãe acha muito "caro", e

realmente está acima do patamar daquela renda familiar, não sendo possível comprar, o

adolescente encontra o caminho do roubo, do tráfico, da "saidinha" de banco, ou da

parceria com alguém para atingir o objetivo.

Em outra entrevista, o adolescente, L.S. de 18 anos relata a importância do

dinheiro para o consumo do que ele acha necessário, apesar da atenção dada pela

família, a mesma não é satisfatória.

Entrevistadora: E me conta uma coisa, além desse momento, pra

que que tu querias o dinheiro? Se alguém dissesse assim: L. tu

vais trabalhar e tu vais ter teu salário, pra que que esse salário é

importante, pra que esse dinheiro é importante pra ti?

L.S.: As vezes quando eu tava lá fora, eu ajudava a minha mãe

e, as vezes, eu gastava meu dinheiro. Porque quando a pessoa tá

lá fora, as vezes a pessoa não quer saber, mas quando a pessoa

tá, não quer saber, a vezes a pessoa tá num lugar numa festa, tá

bebendo.

Entrevistadora:Mas me conta um pouco disso. Quando tu fostes

pro tráfico, tu chegastes a comercializar ou não? Tu tinhas

quantos anos?

L.S.: 17 anos

Entrevistadora:E quanto tu ganhavas, tu lembras L.?

L: quanto eu ganhava?

Entrevistadora: Era por mês? Como era que tu recebias?

L.S.: porque era dividido, se eu pegasse uma caixa, aí era

dividido, 150 pra cada, era dividido uma caixa.

Entrevistadora: 150 reais. Era 150 reais? A caixa valia 300 reais,

era isso?

L.S.: acho que era uns 300 reais.

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Entrevistadora: Era dividido o que tu vendias, era teu 150 reais.

Quanto voltava para o outro que te fornecia a caixa?

L.S.: Quanto voltava? Eles se resolviam pra lá, eu só tirava a

minha parte

Entrevistadora: Os teus 150?

L.S.: Era

Entrevistadora: Isso era por semana? Tu lembras quanto era?

L.S.: por semana?

Entrevistadora: Era por mês? Era por quanto tempo?

L.S.: Era por semana, era.

Entrevistadora: Ou seja, tu fazia por mês uns 600 reais.

L.S.: Eu fazia? Acho que fazia em dois dias.

Entrevistadora: 600 reais?

L.S.: Não 600 reais não, era 150 eu pegava só a meia caixa

Entrevistadora: Só meia caixa.

L.S.: Eu pegava uma, aí eu vendia primeiro meia e depois mais

meia.

Entrevistadora: Pegavas outra meia e vendia. Fazias isso quantas

vezes por mês isso?

L.S.: Por mês?

Entrevistadora:É

L.S.: Ei, era por semana que eu fazia.

Não ficou muito claro, em termos de valor monetário, quanto o adolescente

ganhava com o tráfico por mês, entretanto, o valor era nitidamente suficiente para que

a sua necessidade de consumo, fosse viabilizada, não importava se a atividade era

lícita ou não. O que importa é ter o dinheiro para comprar, como Campbell (2012)

ressalta - “Compro, logo existo”.

O ponto durável das mercadorias é descartado por essa nova sociedade e não

existe mais lealdade aos objetos que obtêm com a intenção de consumir, há “um

volume e uma intensidade de desejos sempre crescentes"(..) (BAUMAN, 2008, p.44).

Os consumidores, segundo Bauman (2008), são bombardeados de todos os

lados por sugestões de que precisam se equipar com um ou outro produto fornecido

pelas lojas se quiserem ter a capacidade de alcançar e manter a posição social que

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desejam desempenhar, suas obrigações sociais e proteger a autoestima. É o

consumismo, entendido como

Um tipo de arranjo social resultante da reciclagem de vontades,

desejos, anseios humanos rotineiros, permanentes e, por assim

dizer, “neutros quanto ao regime”, transformando-os na

principal força propulsora e operativa da sociedade, uma força

que coordena a reprodução sistêmica, a integração e

estratificação sociais, além da formação de indivíduos humanos,

desempenhando ao mesmo tempo um papel importante nos

processos de auto-identificação individual e de grupos, assim

como na seleção e execução de políticas individuais.

(BAUMAN, 2008, p.41)

O poder de consumir estabelece diferenças entre as classes, a arte é uma forma

que pode mostrar não apenas os privilégios econômicos da burguesia, mas também o

acesso restrito dessa classe em determinados setores, refletindo a diferença entre os

signos e os bens. A busca por um mercado ampliado, a divulgação, que é ao mesmo

tempo restrito, a distinção, é uma necessidade da sociedade moderna que se diferencia

pelos signos, pela distribuição desigual dos recursos simbólicos.

Se a diferenciação do consumo não está apenas na compra de

bens materiais, mas no acesso a bens como as obras de arte, a

definição do que seria cidadania se modifica. Na América

Latina, em particular, os papeis desempenhados pelos

movimentos sociais contribuíram para uma modificação do que

seria a cidadania, na busca por um equilíbrio entre os interesses

do Estado e do Cidadão. A cidadania ganha novas formas de

modificação, seja a cidadania cultural ou cidadania racial. O que

é certo é que ambas exigem “uma concepção estratégica do

Estado e do mercado que articule as diferentes modalidades de

cidadania nos velhos e novos cenários, mas estruturados

complementarmente.” (CANCLINI, 2010, p.37)

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Os meios tecnológicos contribuíram para a mudança no exercício da cidadania,

estabelecendo novas formas de pertencimento e direitos e novo redimensionamento do

aspecto sociocultural, assim como das instituições. Se a definição de cidadania se

modifica, não sofrem mudanças as formas de exclusão, seja ela de forma simbólica,

como o acesso a determinados bens artísticos, seja ela somente no que diz respeito ao

consumo de bens materiais. Forma-se um novo tipo de indivíduo que Canclini chama de

desconectado, aquele que está marginalizado, citado anteriormente.

Os conectados são os que estão dentro do processo de globalização, com acesso

à informação, dinheiro, cartão de crédito, etc. “Esta mudança da problemática da

diferença e da desigualdade para a da inclusão/exclusão não se observa só nos discursos

hegemônicos” (CANCLINI, 2005, p.93.) Agora, os novos termos a serem utilizados-

incluídos e excluídos, referem-se, também, ao que está ligado ao global ou não, o que

nos remete às diversas formas de exclusão e à mercantilização dos meios materiais.

Bourdieu nos leva a questionar a relação entre a expansão do mercado, uma das

metas do capitalismo e o poder de consumir. A busca por um mercado ampliado, a

divulgação, que é ao mesmo tempo restrito, a distinção, é uma necessidade da sociedade

moderna que se diferencia pelos signos, pela distribuição desigual dos recursos

simbólicos.

Além dessas novas cidadanias, os meios tecnológicos contribuíram para a

mudança no exercício da cidadania, estabelecendo novas formas de pertencimento e

direitos e novo redimensionamento do aspecto sociocultural, assim como das

instituições.

O vínculo entre consumo e cidadania e sua reestruturação nos fornece um novo

sentido daquilo que é participação. Não há como desvincular a cidadania do poder de

consumo. Além do mais, a sociedade civil é que legitima as demandas e reivindicações

de determinados grupos sociais, governamentais e indivíduos, forçando a construção de

uma política cultural e trabalhando o conceito de identidade, a partir de uma perspectiva

territorial e linguística, assim como o conceito de cidadão a partir da construção de sua

identidade local.

A universalidade da cidadania é a condição preliminar de

qualquer 'política de reconhecimento' significativa . E

acrescento: a universalidade da humanidade é o horizonte

pelo qual qualquer política de reconhecimento precisa

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orientar-se para ser significativa. A universalidade da

humanidade não se opõe ao pluralismo e permite que o

pluralismo sirva à causa da humanidade - que viabilize e

encoraje 'a discussão contínua sobre as condições

compartilhadas do bem'. Tal teste só pode ser superado se se

realizarem as condições de vida republicana. (BAUMAN,

2003, p, 123)

Buscar no consumo a “felicidade” ou o “prazer” é algo recorrente quando se

trata de adolescentes ou jovens, que vêem nele um meio de expressar sua opinião ou de

tentar deixar de ser invisível na sociedade em que vivem. A sociedade estreita, cada vez

mais, a relação entre consumo e cidadania e a apropriação e uso dos produtos a partir de

um processo sociocultural, como pontua Canclini em “Consumidores e Cidadãos”.

Essa relação pode se tornar ainda mais diretamente proporcional e acentuada com as

intensas propagandas que vinculam o consumo à felicidade, e coloca os objetos

desejáveis como fáceis de serem alcançados e consumidos e que apenas um esforço

individual é o bastante para que o sujeito o possua, criando a falsa ideia de que tudo está

ao alcance sem precisar fazer muito esforço, além de que novos produtos surgem para

suprir a "novas" necessidades.

No decorrer do trabalho de campo, ainda em andamento, notou-se um discurso

comum entre os adolescentes e jovens: a utilização e a exaltação de roupas de marcas

como forma de garantir o status tão desejado dentro do grupo social que vivem. Para

Rocha, uma forma de manifestação da perda da subjetividade devido à cultura de

consumo é a utilização de nomes de marcas como nomes próprios, nos caso de nomes

como Armani ou Porsche, mais uma vez legitimando que “a ideologia do consumo pode

ser um ótimo pretexto para a produção ou transformação das

subjetividades.”(ROCHA,2006, p.19). Nesse rol, os programas reallity shows de TV

proporcionam a remodelação e a reprogramação da vida e dos corpos das pessoas, tudo

deve se adequar ao novo formato dessa sociedade, pois o antigo é defeituoso e deve ser

substituído.

A superprodução de signos e a reprodução de imagens e

simulações resultam numa perda do significado estável e numa

estetização da realidade, na qual as massas ficam fascinadas

15

pelo fluxo infinito de justaposições bizarras, que levam o

espectador para além do sentido estável (FEATHERSTONE,

1995,p. 34).

Em entrevista com L. , 19 anos, é visível o uso do dinheiro ganhado com o

tráfico para fins de entretenimento, principalmente em festas de aparelhagens, como

afirmou o adolescente:

Entrevistadora: Me conta uma coisa, com esse salário que tu

trabalhavas, o que era que tu fazias com que tu ganhavas?

L.: Ás vezes eu ajudava a minha mãe. As vezes, eu não vou

mentir né, as vezes eu chegava lá tomava meu banho, às vezes

eu almoçava e ia beber. Lá com os irmãos lá, lá no bar.

Entrevistadora: E tu gostas de música? Que tipo? Me conta.

L.: Melody. Marcante.

Entrevistadora: Melody?

L.: Sim, marcante também..

Entrevistadora: Marcante? Como é marcante? Aqueles mais

antigos, é isso?

LU: Porque tem o passado e tem o marcante né.

Entrevistadora: Me conta isso que eu não conheço. Me fala um

pouco do melody.

L.: Tem esse de 2013 aí já tem os de 2010, de 2011, aí esse que

são os marcantes.

Entrevistadora: Quem do Melody tu gostas mais?

L.: Lá de Santa Izabel, lá. Viviane batidão e o Marlon Brandon

Entrevistadora: Eu conheço os dois, sei quem são. E essa

história "ah eu recebia o meu dinheiro, tomava umas às vezes..."

L.: Eu ia, às vezes, pra festa também.

Entrevistadora:: Tinha muita festa em Santa Izabel?

L.: Tinha.

Entrevistadora: De que? De aparelhagem?

L.: De aparelhagem

Entrevistadora:: Qual era a melhor de lá?

L: Super Pop

16

As roupas de marca tornam-se uma espécie de ingresso simbólico nos universos

de convivência, como nas festas. O empoderamento por meio da utilização da marca

como um objeto que garante valor ao indivíduo no meio. "Nada tem valor por si

mesmo: qual a vantagem de um sapato sem o outro? Um pente para a calvície? Como o

valor é conferido pelos juízos humanos, o valor de cada coisa depende de seu lugar

numa série de outros objetos complementares." (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2013,

p.41)

Os rituais de consumo levam à integração, que geram relações comunitárias.

Contudo, como os consumidores acabam por fazer seleções deliberadas entre seus

pares, essa seleção tem como consequência alguns princípios de exclusão que devem ser

analisados. No caso dos jovens, se tornarem consumidores de marcas que os insiram no

universo de seus pares, é condição si ne qua no para o exercício da sociabilidade ampla.

A maior dificuldade apontada pelos adolescentes está em ter renda para

satisfazer seus desejos de consumo. Contudo, a vontade de trabalhar raramente é

compatível com a sua realidade, pois a dificuldade de acesso aos postos de primeiro

emprego, jovem aprendiz ou "bico" legalmente falando, contribuem para o adolescente

ingressar no mundo do crime.

Autores como Calheiros e Soares (2007) colocam a precarização do trabalho nos

países periféricos, como um dos fatores que contribuem para uma desvalorização da

mão-de-obra, logo um aumento do desemprego e uma dificuldade de inserção da

juventude no mercado de trabalho, tornando-os excluídos dos postos de trabalho e de

seus direitos básicos de cidadãos. Se não trabalha, não consome, se não consome, não se

é inserido no meio em que vive, portanto, “ (...) nem todos podem satisfazer à mera

necessidade, e o que representa primordialmente prazer e desejo revela-se inacessível.

Aparece então a figura do subconsumidor” (CALHEIROS; SOARES, 2007, p.115)

Os adolescentes e jovens que cometeram ato infracional, tiveram como

motivação principal a satisfação de necessidades pessoais e o reconhecimento grupal,

esse fator foi perceptível na maior parte das entrevistas. A maioria dos jovens

entrevistados enxergava no roubo, no furto ou no tráfico de drogas o caminho mais

curto para alcançar a “felicidade” e realizar seus desejos imediatos. A falta do dinheiro

para a satisfação dos desejos, que não estão na linha da sobrevivência, é que os leva

para um “caminho fácil”, como fala D.J.,16 anos que cumpre medida socioeducativa no

sistema semi-aberto:

Entrevistadora: o que te trouxe aqui, para cumprir medida?

17

D.J.: Foi tráfico.

Entrevistadora: O que tu vendias ?

D.J.: pasta.

Entrevistadora: Tu começastes a vender há quanto tempo?

D.J.: Fazia umas duas semana

Entrevistadora: Te pegaram logo!

D.J.: Foi.

Entrevistadora: Mas tu nunca tinhas tentado vender antes?

D.J.: Não.

Entrevistadora: Mas tu tinhas um ponto, um local para a venda?

D.J.: Vendia na rua mesmo.

Entrevistadora: E quem foi que te apresentou esse novo tipo de

trabalho?

D.J.: Um moleque lá da rua que mexia com isso e me ofereceu

pra eu vender, é que eu tava trabalhando, aí fiquei três semanas

parado, foi a semana que tinha pegado isso pra vender. Aí foi

que aconteceu isso.

Entrevistadora: E o que tu fazias com o dinheiro?

D.J.: O primeiro que eu peguei eu comprei uma roupa pra mim.

Eu gostava muito de ir pra praia e pra praça.

Finalizada a entrevista com o adolescente J., em conversa a posteriori, o mesmo

relatou que precisava do dinheiro para comprar suas "coisas" sem deixar muito claro o

que são tais "coisas", mas a compra, a aquisição dos bens, sejam eles inclusive drogas,

fazem parte do universo do consumo e possibilitam a integração. A fala do adolescente

retrata a tríade apontada por Trajano (2007): violência, tráfico de drogas e juventude

como um dos grandes desafios para a sociedade democrática. Ilustra a cooptação de

jovens para o mundo do tráfico, demonstrado por Trajano que ressalta “devemos

aventar com maior atenção a possibilidade de que a participação do tráfico, ainda que

decisiva, não é suficiente para lidarmos com a vitimização letal dos jovens”(SANTO-

SÉ, 2007,p.213). A afirmação de Trajano é comprovada no trecho de umas das

entrevistas

W.F.: Quando eu comecei a roubar, eu comecei com coisa

pequena

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Entrevistadora: Tinhas quantos anos?

W.F.: Tinha uns 14 anos. Muito pequeno, um dinheirinho por aí

e tal. Ia no comércio se tinha alguma coisa que eu quisesse eu

roubava, roubava na escola. Ninguém me influenciava pra

roubar, eu mesmo que queria.

Entrevistadora: Foi uma iniciativa própria

W.F.: Foi iniciativa minha. Comecei a roubar celular na escola,

quem “marcava” pra mim eu roubava, pegava da bolsa.

Comecei a entrar no tráfico na influencia de um amigo e tal que

falou pra mim: “hei, um cara tá a fim que a gente venda um

bagulho aí pra ele”, já fui entrando, tinha dinheiro, eu não queria

mais roubar e fui pro tráfico. Quando a pessoa não quer mais

roubar ela vai pro tráfico. Comecei a traficar pedra, cocaína,

maconha.

Entrevistadora: E tu vendia muito

W.F.: vendia muito, cerca de R$100,00 por dia.

Entrevistadora: Era metade-metade?

W.F.: metade pra mim e metade pro traficante.

Outros adolescentes entrevistados expressaram o mesmo desejo: trabalhar para

satisfazer as suas necessidades. Alguns adolescentes afirmaram que cometeram o crime

por iniciativa própria, e que a mãe ou pai buscavam alternativas de lhes oferecer outro

tipo de vida, contudo o tipo de vida proposto não está no campo dos desejos e sonhos do

adolescente. A pobreza já não é a responsável pelo envolvimento dos jovens e

adolescentes na criminalidade há algum tempo, isso fica muito claro nas entrevistas.

4. CONSIDERAÇÕES.

Para compreender a lógica do consumo, a intensa luta entre ser e ter, também

nos permite a entender a lógica da cultura. O consumo, como coercitivo que é, e que

influencia as decisões dos indivíduos, legitima a divisão das classes, tanto pela forma

mais pura de entender o que é consumo quanto através de signos e símbolos que podem

modificar a realidade.

19

A relação, muitas vezes colocada de forma diretamente proporcional entre

consumo e cidadania, coloca em xeque a perspectiva de abordagem apenas num viés

econômico, ou seja, em sua forma tradicional, e exige um olhar além dessa esfera que

deve demonstrar as diversas outras visões sobre a prática do consumo, mas que ao

mesmo tempo contemple os efeitos que não se pode ignorar do processo de globalização

e, consequentemente, das tecnologias que caracterizam os conectados e os

desconectados.

A busca pela legitimação social ocorre de diversas formas, como mostram as

entrevistas realizadas com adolescentes. Entretanto, se a satisfação efêmera causa

diversos transtornos sociais, além, lógico, do impacto negativo nas famílias desses

adolescentes, o trabalho de campo possibilitou o rompimento com uma abordagem

menos ampla sobre a temática do consumo, mas exigiu uma reflexão mais apurada

sobre a necessidade de consumir.

Se as teorias sociológicas e antropológicas sobre consumo divergem em seu

aspecto de abordagem, a experiência com adolescentes que cumprem medidas

socioeducativas, em maior parte dos entrevistados, pelo fato que buscar pertencimento,

reconhecimento e legitimidade de um grupo social, leva a uma análise mais holística

sobre as perspectivas desses adolescentes e a forma de abordagem sobre os mesmos.

Diante desse quadro, os consumidores, os conectados e os desconectados ainda

se encontram na busca de um espaço que possam solidificar a sua existência e o seu

papel no grupo social a que pertence. Se consumir é uma forma de demonstrar que o

sujeito existe numa determinada sociedade, talvez os meios para este consumo não seja

o mais importante para este indivíduo, o que o leva à busca pela integração através de

métodos que desafiam as políticas públicas e a moral sociedade.

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