SLOTERDIJK Peter. O Desprezo Das Massas

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o desprezo das massas

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Peter Sioterdijk

o desprezo das massas

ensalo sobre lutas culturais

na socledade moderna

Traducao de

Claudia Cavalcanti

Esta~6a liberdade

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Titulo original: D ie V e ra c h tu n g d e r Ma s s en : V e rs u ch f ib e r K u lt u rk i im p j e

i n d er m o de rn e n G e se ll sc ha ft

© Suhrkamp Verlag Frankfurt am Main , 2000

© Editora Estacao Liberdade, 2002, para esta r raducao

Preparacdo de textoRevisiio

Pro je to grd f ico

Composiiiio

Capa

Ilustraaio da capa

Tessa Moura LacerdaFabio Goncalves

Edilber to Fernando Verza e Antonio Kehl

Pedro Barros I Estacao Liberdade

Antonio Kehl

Kasimir Malevitch, P la no d e e le m en to s d e um architectone.

Lapis e aquarela sl ca rr ao , 12 x 12 em, c a . 1 9 23- 1 932 .

Centro Pompidou, Paris. © CNAC/MNAM/Dist RMN.

Foto Bertrand Prevost

Angel Bojadsenditor

Dados Internacionais de Catalogacao na Publicacao (CIP)

(Camara Brasileira do Livro, SP. Brasil)

Slorerdijk. Peter. 1947-

Desprezo d l > massas :ensaio sobre lucas culrura is ria

sociedade moderns I Peter Sloterdijk ; r r aducao de Claudia

Cavalcanti. - Sao Paulo: Esracao Liberdade, 2002.

Titulo original: Die Verachtung der Massen. Versuch

tiber Kulrurkampfe in decmodernen

Gesellschaft.

ISBN 85-7448-055-X

I. Antropologia social 2. Conf1ito social 3. Cultura-

Hisrona 4. Cultura popular I.Titulo.

02-1404 CDD-30G.09

f nd ic e p ar a catdlcgo sistematico:

1.Culrura :Antropologia social : Sociologia ;

Historia 306.09

Todos o s d i r e it o s d e st a e d ir i io r e se r va d o s it

Editora Estacao Liberdade Lrda,

Rua Dona Elisa, 116 - 01155-030 - Sao Paulo-Sf'

Tel.: (11) 3661 2881 Fax: (11) 3825 4239

[email protected]

http://www.estacaoliberdade.com.br

I I I i J I 1 1 1 - - 1 ilil I i i i i I l i i il l " i li i l i :I i > : l ii ' iii ill I i i ; I: 1 1 1 1 ,

Sumario

1 Pretume de gente 11

2 Desprezo como conceito 37

3 Feridas duplas 77

4 Sobre a d.ferenca antropologica 85

5 Identidade na massa: a indiferenca 105

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Ii I ill iI!I iii i ill i Ii illI;Iii jj IiI I:ii ;iii ,i iii i i II i: I~II i.

"Amassa e uma aparicao tao enigmatica

quanto universal,que, de repente, esta h i onde

antes nada hav i a , Algumas poucas pessoas

podem rer estado reunidas, cinco ou dez ou

doze, nao mais. Nada foi anunciado, nada

esperado.De repente,ficatudo preto degente."

EliasCanetti, M as sa e p o de r

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I I I II I I I I ! II i l l ' I II '111'l i i Iii i IXIii;Iii -:Iiiii ul II , i i i 1 1 1 1

PRETUME DE GENTE

1

Imimeros autores do seculo xx, inclusive aqueles

dt' grande prestfgio, incluiram 0ingresso das mas-

\;IS 11;1Historia entre asmarcas de nossa era. Isso aeon-

Irccu devido aos melhores conhecimentos que, com

.ipoio do mais sugestivo pensamento filosofico, foi

Ihdo aos seculos mais recentes conceber. 0 que Hegel

11;1 via apresentado como seu programa Iogico, a saber,

,lcscnvolver a substancia como sujeito, se comprovou

.10 mesmo tempo como a mais poderosa maxima po-

lit ira da epoca que parece ainda ser a nossa - des-

dohrar a massa como sujeito. Ela afirma 0conteudo

politico para aquilo que, na modernidade, pode ser

plojcro. Dele derivam suas ideias-rnestras: a epoca

u.uionalis ta , que para nos e passado, assim como a

('1 .1 social-dernocrara, na qual vivemos como cida-

d.los, sern alternativa. Para as duas epocas vale a rno-

IIV;I(;:tode cui d ar para que todo poder e todas as

I, 1IIIIa5 validas de expressao partam de muitos. 11

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o DESPREZO DAS MASSAS

Quando a massa se torna sujeito e recebe uma

vontade, assim como uma hist6ria, entao termina a

era mundial da condescendencia idealista, na qual

a forma acreditou poder cunhar a materia como bernlhe aprouvesse. Tao logo a massa seja considerada

capaz de uma subjetividade pr6pria ou de soberania,

os privilegios metafisicos do senhor - vontade, sa-

ber e alma - infilrram-se naquilo que antes parecia

mera materia, e conferem a parte subjugada e in-

compreendida direitos as dignidades do outro lado.

o grande tern a dos tempos modernos, a emanci-

pacao, abrange tudo 0que nas 16gicas e relacoes de

dorninacao antigas se chamava 0 inferior e 0outro,

a materia natural quase nao sendo outra coisa que a

multidao humana. 0 que era material disponfvel

deve tornar-se forma livre; 0que virou prestacao de

services deve cornpreender-se como sua finalidade

pr6pria . S6 0fato de que a multidao moderna, ati-

vada e subjetivada, passa a ser insistentemente cha-

mada de massa pelos seus porta-vozes e pelos que a

desprezam, ja aponta para que a ascensao a sobera-

nia do maior numero possa ser percebida como urn

processo inacabado, talvez inacabavel, 0 desenvol-

vimento da substancia como sujeito se realiza mais

facilmente na prosa de Hegel do que nas mas e su-

burbios das metr6poles modernas.

Entre os grandes autores da modernidade so

existe urn, salvo engano de minha parte, que vis-2

11111111111l ll ll il ii li li ll ll li il ll li h i III Ii " Iii I l i i J •

PRETUME DE GENTE

lumbrou a prosperidade da massa e sua invasao na

Ilist6ria completamente desprovida de apoteoses

[ilosofico-progressistas e sem supersticoes de ascen-

x.io dos jovens hegelianos. Estou falando de Elias( .anetti, 0 qual, em analogia a George Steiner, que

Sl' descrevia como um anarquista platonico, poder-

sc-ia chamar de anarquista do pensamento antro-

IJOlogico.A ele se deve 0livro mais duro e engenhoso

dcste seculo a respeito de sociedade e dos hom ens,

M assa e poder, uma obra que, desde a sua publica-

\:io em 1960, desperta desconfianca, desprezo e si-

It'flcio na maior parte dos sociologos e fil6sofos

xociais, porque se baseia na recusa de fazer 0 que

xociologos ex officio e quase sem excecao fazem,

.1 saber, adular, sob formas da critica, a sociedade

.uual, 0seu objeto, que e ao mesmo tempo sua clien-

u-. 0 vigor de Canetti e sua permanente descortesia,

Iundamentada na capacidade de sempre voltar a

vvocar sua experiencia-chave da sociedade como

III;JSSaiolentamente ativada atraves dos seculos. Em

1')27 ele, entao com 22 anos, se viu em meio a

uma revolta de trabalhadores vienenses e vivenciou

II}110 descambou a energia da ardente multidao

.lvida por descarrega-la no incendio do Palacio da

[usrica. A partir de entao 0 tema que se manifesta

Ill} dtulo de sua obra tardia tornou-se virulento nele,

'"I 'JCIa inesquecfvel intuicao para a cinetica de agi-

I,I\OCS coletivas que ele, tornado pelo entusiasmo, 13

 

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o D ES PR EZ O D AS M AS SA S

sentira na propria pele. Em sua confissao: "Tomei-

me uma parte da massa", expressa-se a consciencia,

que se obriga a justificar aquela experiencia vergo-

nhosa e inspiradora. Podemos ousar a suposicao deque 0 livro tern esse titulo porque 0autor renunciou

a nornea-lo diretamente a partir de suas experiencias

pessoais, pois se tivesse escolhido esse carninho, entao

sua obra teria de se chamar "Massa e motim", "Massa

e explosao", "Massa e arrebatamento". Para ele, nao

obstante, torna-se claro, como em nenhum outro

lugar, 0tema sociopsicologico basico do seculo xx,

que diz: arrebatamento atraves do ruim e errado.

Sem essaformula nao sepode dizer que riscos sepren-

dem ao ser-rnassa. Tendo Marx ensinado que toda

critica come<;:acom a critica da religiao, resta aprender

com Canetti que a critica nao avan<_;:aealmente se nao

desembocar numa diferenciacao dos arrebatamen-

tos ou numa triagem das boas e mas abnegacoes.

A fenomenologia do espirito das massas de

Canetti segue, em seus primeiros passos, como tudo

leva a crer, 0 programa de epoca do jovem hegelia-

nismo, que seria desenvolver a massa como sujeito;

e na cristalizacao da massa que ela reconhece 0 sur-

gimento de urn poderoso e suspeito ator na cena

polftica. A certeza de que ao drama da massa auto-

rizada pertencem as maio res cotas de futuro torna

inevitavel sua diferenciacao. Desde 0 infcio, nas ob-

servacoes de Canetti a ideia rnistura-se ao carater4

1111 i ll lI ll ll f" i il ll ! I lI ii l l l i i i i l l i ill iI I

___________________ P___:_RETUM EE GENTE

insuperavelmenre indolente e impenetravel dessa

formacao do sujeito.

"Algumaspoucas pessoaspodem ter estado reuni-das, cinco ou dez ou doze, nao mais. Nada foi anun-

ciado, nada esperado. De repeme fica tudo preto de

gente."

Canetti parece saber que, com tal Iorrnulacao,

ultrapassou os limites do sociologicamente normal

L' bern-vindo, po is toda teoria da sociedade empre-

gada pela opiniao publica, sobretudo quando se

pretende critica, deve falar de tudo 0 que e possf-vel, nao apenas desse escandalo do pretume huma-

110. Ao insistir nessa evidencia mal vista, a arte

clcscritiva de Canetti da 0melhor de si. Onde fica

rudo preto de gente, la se revela a essen cia da massa

«omo pura succao. A via da succao leva para baixo

l' para 0meio.

"Muitos nao sabem0que aconteceu, nao ternnada

a dizer diante de perguntas, mas tern pressa de estar

onde estaa maioria (...).0 movimento deum, diz-se, e

comunicado aos outros, mas isro nao e tudo: eles tern

um objetivo. Esca aiantes que tenham encontrado uma

palavra para ele:0 objetivo e 0 que ha de mais preto

- 0local onde a maioria das pessoas esta reunida."

15

 

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a DES PREZO DAS MASSA S

De repente fica tudo preto de gente: para quem

se importa com a causa das ernancipacoes - a su-

blevacao das massas a categoria de sujeito - ocorre

nessa forrnulacao uma afronta desagradavelmenteressoante. Nessa expressao entra em colapso a visao

rornantico-racional do sujeito dernocrarico, que po-

deria saber 0 que quer; dissipou-se 0 sonho do co-

letivo autotransparente, 0 fantasma sociofilosofico

de urn abraco entre espfrito do mundo e coletivo

despedaca-se num bloco de indissohivel escuridao:

pretume humano. A intuicao de Canetti salient a mal-

dosa e daramente a circunstancia de que ja na pri-

meira constituicao do sujeito da massa prevalecem

os motivos opacos. Pois na massa reunern-se os ex-

citados indivlduos nao para aquilo que a mitologia

da discussao chama de publico - mais do que isso,

condensam-se numa mancha, formam nodoas hu-

manas, afluem para 0 local onde esta 0mais preto

deles mesmos. 0 prindpio no ajuntamento humano

mostra que ja na cena primaria da formacao coletiva

do eu existe urn excesso de materia human a, e que a

ideia nobre de desenvolver a massa como sujeito a

priori e sabotada por esse excesso. A expressao "mas-

sa" nas exposicoes de Canetti passa a ser urn termo

que articula 0bloqueio da subjetivacao no mornen-

to de sua propria realizacao - razao pela qual a

massa, compreendida como massa-ajunramento, nao

pode ser encontrada em outro lugar senao no estado6

' ' ' _ ' . " , " " " " ' . . I I ' ~ " " ' " " " ' " l i i " I ' ' ' ' ' ' I I I " " ' ' , - I I I I I I I l l I i " , ' 1 I - , ' 1 1 , 0 1 l J i , I H i l l i , I I I I ; i i , i i i - i l i l i i , l i i i i l i l l " ' I , : i i l i i l l i l h i l l i i i i l i i i H i i l i ' i m l i i I f, m m m I m , I 1 1 I I I

PRETUME DE GENTE

da pseudo-ernancipacao e da semi-subjetividade-

como algo vago, fragil, desdiferenciado, conduzido

por correntes de irnitacao e excitacoes epidernicas,

algo faunico-feminino', pre-explosive, que em suareal averiguacao registra gran des semelhanc;:as com

os retratos que dele fizeram os velhos mestres da

psicologia de massas - Gabriel Tarde, Gustave Le

Bon, Sigmund Freud.

Tambem Canetti nao deixa de enfatizar 0cararer

regressivo da cristalizacao das massas: ele saliema

que nas situacoes burguesas urn sistema irnplacavel

das distancias do eu isola os individuos e cada urn

por si confere lJosse ao solitario esforco do dever-ser-

si-rnesmo. "Ninguern pode chegar perto, ninguern a

altura do outre.'? No ajunramento, ao contrario, caem

as distancias. Onde 0pretume humano e mais denso,

L i comec;:a a agir a succao de uma desinibicao mila-

grosa. A massa-ajuntamento vive, como pode ares-

tar nosso autor, da vontade de descarga:

"Somente todos juntos podem libertar-se de seus

fardos de distancia, E exatamente isto que acontece

na massa. Na descarga sao eliminadas as separacoes e

todos se sentem iguais. Nessa densidade, ja que quase

nao ha lugar entre des, urn esta tao proximo do outro

I. De acordo com uma caracterizacao de Tarde.

) M asse und M acht, p. 16. [Ed. bras. : Mas sa e p o d e r. Sao Paulo,

Companhia das Letras, 1995.] 17

 

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o DESPREZO DAS MASSAS

quanto de si mesmo. E monstruoso 0 alivio que se

tern com isso. Por causa desse feliz momenta em que

ninguem e mais, ninguem e melhor do que 0outro, as

pessoas se tornam massa." 3

Parece util, necessario e atuallembrar essa de-

rivacao tao desagradavel quanto heterodoxa do igua-

litarismo: uti! porque ela se subtrai do consenso

individualista da dominante sociologia da cornuni-

cacao e da adulacao: e necessario porque nao pensa

o motivo da igualdade a partir da igualdade de di-

reitos, mas do concomitante deixar-se-ir da maio-

ria - uma opcao que contrasta nitidamente com

as rotinas do pensamento juridico do j us te m il ie u,

que atualmente, mais do que nunca, se infiltra nos

discursos das filosofias academicas da moral e, de

forma crescente , modela tambern as relacoes entre

os individuos, assim como os seus reflexos na midia.

De repente fica tudo preto de gente. Nao me

escapa, de fato, que nessa reviravolta vibre um tom

que nao e de hoje, embora nao chegue a ser anacro-

nico. A expressao de que Canetti se serve envelhe-

ceu por se basear numa fase da rnodernizacao social,

na qual 0novo sujeito das massas, nao importando

que se 0 chame de povo ou a plebe ou 0proletaria-

do ou a opiniao publica, ainda pode reunir-se e

18 3. Masseund Macht, p. 17.

i ll I 1 lJ il il ll i 1 I Ii II ii il ll ii il iU ; i- li ll il i ,I ,1 I I

PRETUME DE GENTE

aparecer diante de si mesmo como multidao pre-

sente - com um tom singular, uma excitacao sin-

gular e um ato singular. Tudo preto de gente -

essa figura de linguagem faz parte de uma era dasmassas-ajuntamento, ou, como tambern se poderia

dizer, das massas da reuniao e da presens:a, cuja carac-

teristica consiste no fato de que grandes numeros

de pessoas, milhares, dezenas de milhares, centenas

de milhares, milhoes no casu mais extremo, viven-

ciam a si mesmas como uma grandeza apta a reu-

niao, na medida em que vao confluir num local

que a todos acolhe, e nessa reuniao macica ganham

uma enorme auro-experiencia como coletivo reque-

rente, exigente , usuario da palavra e que emana vio-

lencia. E merito de Canetti ter fixado teoricamente

esse estagio da modernizacao, no qual 0 Ienomeno

da rnultidao capaz de se reunir diante de si mesma

c para si mesma esteve presente nas cenas cruciais

do espas:o psicopolftico moderno.

Se, em suas analises, percebemos um aspecto

ao qual nao podemos atribuir tras:os completamente

conternporaneos, entao 0motivo disso deve ser pro-

curado sobretudo na circunstancia de que no meio

scculo decorrido entre a concepcao de Ma ss a e p od er

C0 presente, ocorreu uma mudanca radical da so-

ciedade moderna, que modificou fundamental-

mente seu estado de agregas:ao como pluralidade

organizada, A s massas atuais pararam essencialmente 19

 

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o DESPREZO DAS MASSAS

de ser massas de reunioes e ajuntamentos: elas en-

traram num regime no qual 0carater de massas nao

se expressa mais na reuniao fisica, mas na partici-

pacao em programas de meios de cornunicacao de

massa. Por isso os muitos nao mais "pululam", "ape-

nas fluem livrernente"." Atraves de uma especie de

"cris ta lizacao" des sed istanciaram de urn estado no

qual sua aglomeracio era uma possibilidade cons-

tanternente ameacadora ou promissora. A massa de

ajuntamento tornou-se uma massa rdacionada a urn

programa - e esta se emancipou, de acordo com a

definicao, da reuniao fisica num local comum a to-

dos. Nela, como indivlduo, se e massa. Agora se e

massa sem que se veja os outros, A conseqiiencia

disso e que as sociedades de hoje - ou se pode

dizer: as pos-rnodernas - nao mais se orientaram

primariamente pelas suas proprias experiencias cor-

porais, mas se observam apenas por meio de sfrnbo-

los das cornunicacoes de massa, de discursos, modas,

programas e celebridades. Aqui 0 individualismo

de massa ' de nossa epoca tern 0 seu motivo siste-

mico. E 0reflexo daquilo que hoje, mais do que

nunca, e massa, tambern sem se reunir como tal.

20

4. Hans Freyer, Theorie des gegenwartigen Zeitalters. Stuttgart,

1955, p. 224.

5 . A expressao ja aparece ern 1924, usada por Werner Sornbart

ern "Der Proletarische Sozialisrnus", Sozialismus und soziale

Bewegung, n. 10, v. 2, p. 103.

PRETUME DE GENTE

Para lembrar 0psicologo social David Riesman: the

l on e ly c rowd sao os indivfduos constantemente des-

ligados do corpo coletivo, cercados por campos de

Iorca da mfdia, em sua multiplicidade ilimitada.Em seu "abandono organizado" - como Hannah

Arendt chamou a situacao psicossocial do inicio das

dorninacoes totalitarias -, eles formam a materia-

prima de todos os experimenros antigos e futuros

da dorninacao totalitaria e midiatica,

A massa nao reunida e nao reunfvel na socie-

dade pos-modema nao possui mais, pOl'essa razao,

urn sentimento de corpo e espa<;oproprios: ela nao

sc ve mais confiuir e agir, nao sente mais sua nature-

za pulsante; nao produz mais urn grito conjunro.

I)istancia-se cada vez mais da possibilidade de pas-

xa r de suas rotinas praticas e indolentes para urn

;tgu<;amento revolucionario. Seu estado corresponde

.io de urn grupo gaseiforme, cujas partfculas oscilam

cada uma por si em espa<;os proprios, com respec-

t ivas cargas proprias de forca de desejo e negativi-

dade pre-politica, e cada uma por siresistindo diante

dos receptores de programa, renovando a dedica-

I,;io a tentativa solitaria de elevar-se ou divertir-se.

1\ cada decada por que a nova massa passa nesse seu

rxr.ido "decomposto" ou desagregado, ela continua

Ixrdendo todo sentido para 0lado impulsivo, infec-

t iosamente borbulhante e arrebatadoramente pani-

( C ), do estar-af [Dasein] em conjuntos que secontam 21

 

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o DESPREZO DAS MASSAS

em milhoes e milhoes. Mas, se observamos bem,

em tais milhoes de individuos isolados aparecem

ao fim e ao cabo mais os traces comuns que os in-

dividuais, mesmo que jamais se aglomerem emmassa urgente e mesmo que entao cada um deles

permanec;:a imbuido pelo sentimento de sua singu-

laridade e de sua disrancia de todos os outros. Mas-

sas que nao se reunern mais efetivamente tendem

com 0 tempo a perder a consciencia de sua poten-

cia polfrica. Elas nao sentem mais como antes sua

forca de combate, 0 exrase de sua confluencia e de

seu pleno poder de exigir e tomar de assai to , como

nos tempos aureos dos ajuntamentos e concentra-

c;:oes.A massa pos-moderna e massa sem potencial ,

uma soma de microanarquias e solidoes que mal

lembra 0 tempo em que - incitada e conscien-

tizada pelos seus porta-vozes e secretarios-gerais-c-

deveria e queria fazer historia como coletivo pre-

nhe de expressao.

o que Canetti sabe sobre pretume de gente,

esse perigoso fundamento de juizos sobre ajunta-

mento e descarga, sobre demagogias e ser-arrebatado,

sobre crescimento e paranoia - tudo isto hoje deve-

ria ser reformulado num exame sobre a participacao

de inumeros individuos isolados em programas de

meios de cornunicacao de massa. Uma sociedade

por demais midiatizada vibra num estado no qual

os milhoes nao podem mais aparecer negra, densa e2

.... ·W iiil lililii il.I;i;;,,;:li:ld .::.dl .;1 ,;,1 .1 :1 ',,,,.::· ': '.

PRETUME DE GENTE

impetuosarnente como totalidade efetivamente reu-

nida, nao mais como seres vivos de um coletivo que

conspira, conflui e irrompe. Mais do que isso, hoje a

massa vivencia a sipropria somente em suas partfcu-las, os individuos, que como parrfculas dementares

de uma vilania invisivel se entregam exatamente aos

programas nos quais e pressuposto seu carater de

massa e vilania. A maioria dos sociologos contempo-

raneos deixa-se seduzir por essa averiguacao achan-

do que teria passado a epoca em que a direcao da

massa representaria 0 problema central da polftica

c da cultura modernas. Nada poderia ser mais erro-

nco do que essa visao, Entretanto, as massas da midia,

sob a inlluencia das midias de massa, tornaram-se

massas coloridas ou moleculares. Por isso, faz senti-

do que tanto a sumaria quanto a elaborada crftica

cultural de nossos dias se organize sobretudo com a

rcciprocidade das massas da televisao e televisoes

de massa. Mostraremos a seguir, no entanto, onde

cxsa crftica nao atinge seu objeto.

Onde ainda acontece que os muitos esbarrem

[isicamenre em si mesmos, como massa de horario

de pico e engarrafamento, como rnultidao em reu-

ni. io involuntaria , des mostram em cada um de seus

.irornos a tendencia de passar apressados por si mes-

1lJ()S como por um obstaculo, e se amaldicoar, qual

(111la impertinencia, um excesso, como materia no

Iligar errado. Aqui des sao dominados pela evidencia 23

 

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o DESPREZO DAS MASSAS

da desgraca de serem muitos. 56 em raros mornen-

tos, quando em festivais populares a massa de feli-

cidade e fundida num corpo coletivo extatico, ainda

brilha atraves da apatia p6s-moderna uma cente-

lha dos dionisos polit icos e das reuni6es da multidao

lucida despertada por si mesma - especialmente

tao logo uma tonificante musica pop, pronta para

o uso, proporcione aos reunidos sua excitacao e

descarga.

Caso se queira definir a diferenca entre a epo-

ca de Canetti e 0presente, entao se poderia dizer 0

seguinte: como hoje a massa ultrapassou 0 estagio

de capacidade de reuniao, 0prindpio do programateve de subsrituir 0 prindpio do lider. Por conse-

qiiencia, e suficiente explicar a diferenca entre urn

lider e urn programa para evidenciar 0que diferen-

cia a massa preta class ico-moderna reunida da mas-

sa pos-moderna midiatizada, estilhacada e colorida.

Trata-se aqui da diferenca entre descarga e entrete-

nimento. E rambern ela que determina a diferenca

entre 0modo fascist6ide e 0dernocratico de massa

da direcao de afetos que vivenciam asgrandes socie-

dades de comunicacao intensa.

Historiadores e sistematizadores concordam

que 0prindpio do lider faz parte das caracterfsricas

constitutivas da direcao social fascista, Fascismo e

urn estagio relativamente provavel, mesmo que nao

inevitavel, na execucao do programa de desenvol-4

PRETUME DE GENTE

ver a massa como sujeito - pela razao tao cornpli-

cada quanto plausfvel de que as massas ativadas e

em busca de descarga podem fantasiar em seus 11-

deres sua propria subjetividade inacabada como sen-

do acabada. 0 tornar-se sujeito por meio do outro

que se sobressai se apresenta, nessa visao, como urn

interstfcio para a real autocornpreensao. Nao foi por

acaso que a maioria dos regimes fascistas, mas tam-

bern os populistas de esquerda, estavam possufdos

pela motivacao da popularesca assembleia geral, e

de tudo tenham feito para mobilizar as massas nu-

mericas, atraves de cuja aclamacao esses regimes se

.ifirrnam como Iormas legftimas de ordem polit ica,como massas unidas fisicamente reais. Os cornfcios

do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores

Alernaes (NSDAP) do Terceiro Reich perseguiram

cssa motivacao ate as mais extremas consequencias,

Se alguma vez a ideia de uma assernbleia nacional,

como a convencao popular de fato realizada, se apro-

xirnou de sua concretizacao foi nesses desfiles do par-

lido identificado com 0povo, partido no qual urn

quase-socialismo de direita mostrou sua representa-

(,;10 para si mesmo e para a esfera publica dos meios

de cornunicacao. Aqui 0 espectro de uma malign a

iIidefinis:ao de classe psfquica tornou-se uma reali-

(htle Hsica. Em virtude de sua presenca na espla-

11.1l1a de Nurembergue, os reunidos desencadeavam

.1 liu,:ao basica de gran des sociedades nacionalizadas: 25

 

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o DESPREZO DAS MASSA S

que a entidade popular e capaz e necessita de uma

auto-experiencia periodicamente repetida como

totalidade reunida de momento. Nessas prociss6es

rijas e pesadas as massas "molares" formadas se en-

tregavam a ideia de que se lhes defrontava, em pes-

soa e visivelmente, 0apice de si mesmas na forma do

Fuhrer. Durante a "missa hipnotica'" pretendia-se

a fusao entre massa e Fuhrer como 0 eficaz selo do

projeto de trazer para si a massa como sujeito. Nesse

arranjo, no en tanto , a massa exrraia de si mesma

seu foco ideal do sujeito, mas era plausivel essa exte-

riorizacao do melhor de si com edificantes analogias

com 0culto cat6lico aos santos e com a criatura-genio cultur.J-burguesa. De fato, autores con tempo-

raneos ja reconheceram no fascismo uma variedade

da religiao da arte e dos her6is burguesa - assim,

por exemplo, Robert Michels, que em 1924, num

brilhante artigo sobre a ascensao do fascismo na Ita-

lia, escreveu:

"0 fascismo e absolutamente carlylico. Raramente

a longa e confusa historia do sistema partidario mo-

demo nos deu urn exemplo tao prototlpico das neces-

sidades internas da massa para 0 hero worship como

26

6. A expressao e de Serge Moscovici, Das Ze itaL te r d e rMas s e n. E in eh i sto ri s ch e AbhandLung ub er d i e Mas se nps y cbo lo g ie . Frankfurt,

1986, p. 182. [Ed. francesa: L 'Age d e sJou le s . Un t r ai t ! b i sto riqu e

depsycho log ie des masses.Paris, Fayard, 1981.J

: : i I" i I II I ' . . l h ~i U •

PRETUME DE GENTE

oferece 0fascismo. Confianca absoluta, cega, e adora-

<;:aoardente levam esse partido de encontro ao seu

lider, 0Duce."?

Com a referencia de Michels ao ideologema

de Thomas Carlyle do herofsmo e adoracao aos he-

rois na Historia, copia-se expressamente uma ca-

racterist ica da subjetividade de massa moderna. Pois

o que aqui se diz sob a expressao hero worsh ip [culto

.io heroi] nao passa da confissao de que no pretume

humane existe algo que nao para de sonhar com

maior daridade. De fato, as massas desenvolvem

xua propria forma de idealismo e imp6em sua von-

I.ule de fazer sobressair 0heroi, as vezes sem se des-

«oncertar com qualquer percepcao.

Absolutamente carlylico: todo 0sistema da cul-

IIIra de massas midiatizada e atingido por esse pre-

dicado. Com 0 modo midiatico de adoracao aos

hcrois entramos no regime de afetos do desfraldado

n.ircisismo de massa. Venerar a celebridade de modo

(:l rlylico, dpieo de massas e de aeordo com a mfdia

isto significa subordinar radiealmente a pereep-~a() a projecao e, sem considerar as qualidades do

nhjcto admirado, concretizar 0desejo subjetivo por

idl'aliza<;:ao, transfiguracao, superestimacao. Que

, Robert Michels, M as se , F uh rer , I nt eL Lek tu el Le . P o litisch-

sozioloyische Au fi at ze 1 9 06 - 19 3 3. Frankfur t e Nova Iorgue,

I()87, p. 293. 27

 

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o DESPREZO DAS MASSAS

28

Michels qualificasse a adrniracao e veneracao como

"necessidades internas da massa" expressa 0jufzo

de que a massa tambem e justamente, em seu estado

gregario de semi-subjetividade confluence e em bus-

ca de descarga, insiste em ver refletido de fora seu

proprio resultado na confirrnacao transfigurante.

o mecanismo de identificacao une-se, assim, a re-gressao do espectador treinado, no aspecto cultural

de massa, para produzir discipulos suficientemente

narcotizados. Nesses tipos de admiracao, a ilusao

avida de felicidade toma-se violencia polfrica no des-

vio por meio de urn ideal primitivo inapto ao con-

senso.La onde e venerado dessamaneira,0objeto deadoracio nao e procurado na vertical, mas encon-

trado na mesma altura, ins-a-vis. Sem conhecimento

dessas aliancas narcopolfticas, as batalhas-fantasmas

e guerras de mfdia do seculo XX permanecem para

sempre apenas turbulencias irracionais, a s quais uma

pesquisa ripicamente burguesa anexara 0predicado

"incompreensfvel" .

Para nenhum culto a personalidade deste seculo

vale mais a formula da idealizacao horizontal do

que para a hitlermania, que, de acordo com a sua

substancia, nunca foi outra coisa senao uma auto-

adoracao da mais lasciva mediocridade, com ajuda

da figura do lfder como urn meio publico de culto.

Tambem 0culto a personalidade e uma fasedo pro-

grama de desenvolver a massacomo sujeito. Por isso,

1 'I~ i I:; ; i

PRETUME DE GENTE

pode-se conceber os herois da era burguesa e de

massas, tanto os crassicos quanto os ditadores po-

pulares, como testemunhas do fato de que na cornu-

nicacao duradoura em surgimento nos estados

nacionais tam bern puderam atuar indivlduos e

mfdias de massa- razao pela qual 0culto ao genio

c culto ao hder puderam temporariamente rnisturar-

se sem demasiado esforco." No entanto, era preciso

o talento especial dos alernaes pela auto-hipnose

coletiva para encenar aquelas luas-de-rnel entre idea-

Iismo e brutalismo, que nos extaticos primordios

da "revolucao nacional" de 1933 produziram urn

singular dima de alienacao de massa.Thomas Mann

rcpresentava 0 jufzo de uma minoria quando, em

sctembro de 1939, ja decidido a emigrar para os

Estados Unidos, diagnosticava os alemaes como urn

povo que tinha passado a "venerar a ignorancia e a

rudeza'l.? Essaveneracao, contudo, era apenas uma

Iorrna teimosa do desejo de reconhecimento. Quem

quiser entender 0 efeito-Fuhrer de uma distancia

liistorica suficiente, deve deixar de tentar pesquisar

lima demonizacao pessoal do ditador. A aptidao deIlirler para 0 seu papel no psicodrama alernao nao

H. E isto em ambas as duas direcoes: nao apenas Hitler po d e

deixar-se celebrar como arr is ta , como tarnbem 0 idolo pop

Madonna acredi tava encont rar sua chance (ainda que apenas

midiatica) de assumir 0papel da lady fascista Evita Peron.

'I. Neue Rundscbau , 1999, 4Qcaderno, p. 177. 29

 

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o DESPREZO DAS MASSAS

se baseava em capacidades incomuns ou carismas

brilhando ao longe, mas em sua vulgaridade inatin-

givelmente evidente e na disposicao resultante de

berrar do fundo da alma para grandes multidoes.

Hitler parecia remeter os seus ao tempo em que 0

berro ainda ajudava. Desse ponto de vista, ele foi 0

artista de acao de maior sucessodo seculo xx.

Em ressonancias horizontais do tipo citado

fundamenta-se a continuidade funcional entre 0

culto ao lfder pelas massas em descarga da primeira

metade do seculo XX e 0 culto ao estrelismo pelas

massasdo entretenimento na segunda metade. 0 se-

gredo do Fuhrer de antes e dos astros de hoje con-

siste no faro de que sao tao semelhantes aos seus

mais apaticos admiradores como nao 0ousaria su-

por qualquer envolvido. Semesmo eminentes inte-

lectuais alernaesparticiparam do "salta mortale rumo

ao primitivismo"!", issonao desmente absolutamen-

te estas conex6es, e sim deixa visfvel a superffcie de

contato a partir da qual foi possfvel a "alianca en-

tre populacho e elite". II De acordo com Hannah

Arendt, eo ponto em que a impotencia desorgani-zada de inumeros individuos passa para 0 "abando-

no organizado" dos muitos que se deixam tomar

30

10. Rudiger Safranski, E in Me is te r a u sDeu t sc h la n d. He id e gg e r u n d

se in e Ze i t. Munique, 1994. p. 272.

11. Hannah Arendt. Elemente und Ursp runge t o ta l er Herr scha fi .

Munique, 1986. p. 702-25.

PRETUME DE GENTE

ranto pelos movimentos totalirarios como pelos

cntretenimentos totais.

No que diz respeito as qualificacoes de Adolf

Hitler, os resultados sao conhecidos: na medida em

que se entregava como lfder, ele nao era absoluta-

mente urn contraente destacado das massas por ele

conduzidas, mas 0 seu subordinado e sua essencia,

Ele possufa quando queria a ordem imperativa da

vilania. Ele nao entrou em campo em funcao de

alguma extraordinariedade, mas por sua inequfvo-

ca rudeza e pela rnanifestacao de sua trivialidade.

Sc havia alguma coisa de especial nele, isto residia

SOmente na circunstancia de que parecia ter inven-

r.ido em tudo a sua propria vulgaridade, como se

losse 0primeiro a ter reconhecido na vilania em si

IIIII objetivo que sepodia perseguir ate 0 fim. Neste

scnrido, a autoconsciencia de Hitler de ser a encar-

lIa<;aode urn destino era adequada ao seu papel his-

uirico na midia. Nele 0narcisismo vulgar tornou-se

proprio para os palcos. 0 sonho do grande sucesso

scmrnerito tornou-se verdadeiro nele e, arraves dele,

Ilara imimeras pessoas. Por ser capaz de reunir emsi as infamias sonhadoras dos mais variados gru-

1 ) ( 1$, ele provocava atracao nas mais diversas partes.

,I)omente como urn meio multivulgar, era capaz

( I t - formar 0denominador comum de sua particula

dl' scquazes. [rrnao Hitler estendia a mao para todos

t IIIC queriam realizarfatalidades em seuproprio favor. 31

 

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o DESPREZO DAS MASSAS

32

Quem sempre estivesse pronto para extinguir a per-

cepcao para melhor poder fantasiar 0 Salvador, ate

mesmo 0 "Salvador da cultura" anunciado pelos

georgianos, poderia enganar-se como quisesse com

essa mascara. Mas mesmo se as massas nao pudes-

sem reconhecer sem ajuda que tinham diante de si

uma marionete perversa, um filhinho-de-mamae

encouracado, coprofilo, impotente e com explfcitas

tendencias suicidas, seus traces de carater histeri-

cos, ordinariamente megalomaniacos e cornicos

estavam desde 0 inicio direta e publicamente evi-

dentes. Por isso os documentos fotogdficos ainda

hoje dizem mais sobre ele do que biografias de cen-tenas de pa;inas. Ele e sempre visto posando para

as ilusoes das massas; quando falta a pose, resta so-

mente a nulidade do furioso meio desprovido de

carater, Hitler, 0 cole tor de ilusoes e politico hip-

notizador, nao era absolutamenre talentoso, sob ne-

nhum aspecto uma personalidade criadora. Para 0

seu exito bastava que pudesse ser um receptor po-

pular. Ninguern que Fossepaciente 0 bastante para

um segundo olhar poderia confundi-lo com uma

pessoa talentosa, mesmo que Winifred Wagner, a

viuva nada alegre, calculadamente tenha preferido

jogar-lhe belos olhares nos anos criticos. A conspi-

racao contra a percepcao sabia exatamente 0 que

nao queria ver. Esse homem foi 0miasma em for-

ma de gente da pequena burguesia mais ignorante

-------------' " " " " : " " : " " " " " ' " , , '

PRETUME DE GENTE

de espfrito das mais sombrias provincias da Aus-

Iria, um lange espasmo de suburban ice e vinganca,

ou como Winston Churchill disse certeiro e com

11m odio quase fraternal mente clarividente, um

"aborto de inveja e vergonha". Ele foi 0 desejo de

rcconhecimento que se tornou maligno. Mas como

as mass as psiquicamente famintas e as partes fra-

gcis da elite farejaram nesse homem publico sua in-

confundfvel pessoalidade; como nao era necessario

nguer os olhos para ele para esgora-lo: como basta-

va ligar igualitariamente a propria vulgaridade ran-

corosa e a putrefata incapacidade para a vida a dele

para acredita-Io <ublime e elevado por si mesmo ate.1 gloria; como nao era senhor, mas alguern oriundo

.lc onde era ampla a base; como era um delegado

horizontal, 0 ativista, 0 animador do odio, 0 bern-

.ornpreensfvel vociferante da vizinhanca, que se

olcreceu como conteiner das frustracoes da massa'?

,ou seja, somente por isso: como ele nao era dife-

nure demais, nao era superior, nao era realmente

r.ilcntoso, nao era bonito e sobretudo como nao agia

.listinramence, pode estar certo da concordancia de

numerosos muitos para as suas rudezas e perulan-

I.' () teorerna dos poliricos como "conteineres emocionais" rerne-

I,'a Lloyd de Mause. Ver tambern Thomas Macho, "Container

.lcr Aufmerksamkeir. Reflexionen tiber Aufrichtigkeir in der

l'olirik", in Peter Kemper (Org.), Op fe r d e r Ma c h t. M i is se n Poli-

filer ehr li ch s e in i , Frankfurt e Leipzig , 1994, p . 194-207. 33

!'

 

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... " -tii iilllil i!iiiil iil,:. if::! ;.1

o DESPREZO DAS MASSAS

cias, para a sua biologia ruidosa e seu grunhido de

crueldade e grandeza. Hans Pfitzner compreendeu

definitivamente 0 fenomeno Hitler quando, quase

acidentalmente, falou do Fuhrer como urn "Pro-

meteu desacorrentado" - uma palavra na qual 0

caso de amor das massas com seu heroi e mostrado

com 0seu titulo correta, definitive e suficientemen-

te cornico. De fato, Hitler foi 0 inconfundivel pro-

duto de uma invencao de figuras do modo de

projecao horizontal dos meios de cornunicacao de

massa - e justamente nessa qualidade, como es-

pectro carlylico, ele permanece reconhedvel como

portador de uma Iuncao que tam bern, depois daconversao l~adescarga polftica para 0entretenimento

nao-polftico, permaneceu caracterfstica da adrninis-

tracao dos afetos de democracias de massa liberais .

Com 0programa carlylico, cornecou a fase aguda

da cultura de massas: de introduz a refunciona-

lizacao da ten sao vertical para 0 reflexo horizontal.

Sob esse signa corneca a destruicao de hierarquias ,

cuja arnbivalencia se desenvolve de forma crescente

no experimento da modernidade.

Quando as massas agitadas correram arras de

seu heroi, equipararam-se as pessoas na succao do

ajuntamento, sobre as quais Canetti disse: "( . .. ) elas

tern urn objetivo. Ele existe antes que tenham

encontrado palavras para de: 0objetivo e 0mais ne-

gro ... ". Urn individuo unico tambern pode apre-4

P RE TU M E D E G EN TE

xcntar 0 estar-af [Dasein] da massa de forma tao

concisa que pode rornar-se cerne do ajuntamento.

Num unico individuo, num tal Fiihrer, num astro

da midia, de fato fica tudo preto de gente.

35'I I

I

 

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DESPREZO COMO CONCEITO

2

No projeto da modernidade de desenvolver a

massa como sujeito, acumulam-se, tanto quanto

pudernos entender, material explosivo psicopolftico e

lacilmente inflamavel. Ele pode detonar por meio

de faiscas tanto de cima como de baixo.

Como todos os programas de desenvolvimen-

to, este tambern deve ofender seu destinario tao logo

o laca entender que de ainda nao e 0que deve ser.Bruno Bauer ja notara ironicamente: "Para termos

:tlgo grande, recentemente a massa foi icada ao cartaz.

(~uer-se leva-la para cima, como se ela entao Fosse

milagrosamenre ... destacada para cirna!'" Eviden-

t cmente, nao se pode ter desenvolvimento sem aolcnsa do que esta a ser desenvolvido, pois quem

quer desenvolver, condescende com 0 nao-desen-

volvido. Caso se queira distanciar-se dessa implicacao

Bruno Bauer, "Die Gattung und die Masse, 1844", in Hand

Martin Sass (Org.), Fe l d zuge de r r e inen Kr it ik . Frankfurt, 1968,

p.213. 37

 

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o DESPREZO DAS MASSAS

precaria do pensamento de progresso, ascensao e

elevacao, entao deve-se imediatamente absolver a

massa das exigencias de desenvolvimento e assegurar-

lhe ter ela, assim como e , atingido a sua meta. Na

alternativa entre desenvolver e mimar movem-se os

discursos modernos sobre 0 homem como urn fim

em si mesmo. Por isso a modernidade e a arena de

urn confli to, em prindpio interminavel, entre evolu-

cionis tas, que prometem esforcos, e sedutores , que

doutrinam 0 fim do esforco, Nao importa quem se

intrometa na fabricacao de discursos sobre os atuais

sistemas sociais e suas populacoes, as elites e as mas-

38

. . .. .

sas, os 19uals e os mars 19uals, os muitos e os multomuitos, ja se ~ecidiu, esteja-se ciente ou nao, se quer

desenvolver ou ofender urn grande nurnero de pes-

soas, ou adula-Ias e seduzi-Ias. 0 que na moderni-

dade se percebe nas lutas culturais enos combates

partidarios ideologicos, na maior parte das vezes nao

passa de disputa entre ofensores e aduladores. E uma

luta que se trava pela prerrogativa de fazer especial

jusrica com os reais e verdadeiros interesses de mui-

tos, quando nao de todos.

La onde se deve escolher em relacao a urn cole-

tivo entre comunicacao vertical (ofender) ou comu-

nicacao horizontal (adular), existe algo que se deve

chamar de problema objerivo de reconhecimento.

No conceito de massa estao incluidas caracterfsticas

que per se tendem a uma retencao do reconheci-

DESPREZO COMO CONCEITO

mento. Reconhecimento recusado chama-se despre-

/'0 - assim como contato [{sico recusado e repu-

diado se chama nojo. Se 0mundo moderno, como

alguns interpretes de Hegel expuseram com bons

argumentos, e uma arena de lutas generalizadas por

reconhecimento, entao inevitavelmente ele deve

levar a uma forma de sociedade na qual 0 desprezo

se torna epidemico - por urn lado, porque re-

conhecimento, assim como atencao, e uma fonte

cujo valor esta correlacionado com sua escassez; por

outro lado, porque os pretendentes a reconhe-

cimento, na medida em que se multiplicam inin-

rerruptamente, necessariamente se superexigem deforma redproca; e por fim porque a massa como

tal representa urn pseudo-sujeito com 0qual nao se

pode travar relacoes sem trazer a baila urn elemen-

to de desprezo, e incluo a adulacao como urn des-

prezo invertido.

Pouco se conhece sobre a historia e a logica

desse drama do desprezo que adere aos tempos mo-

dernos em seu redo como uma doenca hereditaria

Intima, A filosofia academicamente organizada

afastou-se do tema, e a esfera publica e constante-

mente escarpada demais devido a lutas por reconhe-

cimento, assim como correntes de desprezo e nausea,

para conseguir uma visao livre sobre 0 campo de

batalha , Certo e somente que com 0 infcio dos tempos

modernos aumentaram os sacrificios. 0 desprezo 39

 

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o DESPREZO DAS MASSAS

deixa de ser urn afeto reservado para quem esra no

escuro, os excluidos e desconhecidos; de nao vale

por muito tempo apenas para os barbaros ou outras

irritacoes em forma humana, percebidos sob 0"em-

blema da inferioridade cosrnica". 2 Ele tam bern nao

permanece por muito tempo limitado a s quedas bilio-

sas de individuos arrogantes, que, como Leonardo

da Vinci, foram da opiniao de que as pessoas, em

sua enorme maio ria, nao passariam de "preenche-

doras de fossas sanitarias". 0 roteiro dos tempos

modernos preve, mais do que isso, que sujeitos co-

letivos que nao pertencem a alta nobreza - pri-

meiramente a nobreza media e a cortesa, depois aburguesia, a pequena burguesia, a dasse trabalha-

dora e as chamadas minorias - sucessivamente, co-

mecem a manifestar uma paixao da dignidade,

historicamente inedita, e para a sua satisfacao, se

dirijam a arena polftica e literaria. Nao secompreen-

de 0suficiente acerca do conceito "partido", com 0

qual os atores de coletivos politicos se autodeno-

minam 0 mais tardar desde 0 seculo XlX, se forem

entendidos apenas como partidos de interesses. Os

grupos autenticamente polit icos sao sempre ao rnes-

mo tempo campos de forca nos quais se formam

paixoes da dignidade. Desde entao des querem

40

2. Ver Niklas Luhmann, Die Gesel ls cha f t de r Gesei ls cha f t. Frank-

fur t, 1997, p . 956.

DESPREZO COMO CONCEITO

cncher OS livros de historia e ser enaltecidos como

grandezas publicas, as quais logrou a evolucao da

indolencia ofend ida para a subjetividade de expres-

sao poderosa. Deve-se notar que os grupos em ascen-

sao dos tempos recentes nao apenas manifestam urn

pathos autobiografico; des desenvolvem, tambern

sern excecao, urn afeto filantropico, mais exatamente

autofilantropico, Nao esquec;:amos que tam bern os

Estados nacionais dos seculos XI X e xx so puderam

rornar forma como experimentos de dignidade co-

letiva e auto-elevacao conduzidos pela midia de

massa - e que a chamada politica extern a foi sern-

pre necessariarnente dramatizada entre essas tensoesde atencao e desprezo, con tanto que incluissern con-

correncias no irnaginario. Ninguern menos do que

Max Weber atestou-o numa nota epistolar de 1906,

ao escrever ao seu amigo e correligionario Friedrich

Naumann, a respeito de Guilherme II:

"0 volume de desprezo que nos e manifestado

como nacao no exterior (Italia,America, em toda par-

te!!!)(.. .) - e com razaol, isto e decisivo -, porque

aceitamos este regime desse homem, pouco a pouco

virou um fator de poder de significado politico mun-

dial de primeira grandeza (...)"3

.1 . Citado em: Golo Mann, Wissen l ind Trai ler .His tor i sche Port rai t s

l ind Sk iz z en . Leipzig, 1995, p. 115. 41

 

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o DESPREZO DAS MASSAS

Mas 0atalho da dignidade do sujeito para todos

parece antes levar mais para baixo do que para cima.

}inos prirnordios da nova psicopolltica, naquele

seculo XVII no qual, concornitante a guerra civil moti-

vada pela religiao, tarnbem surgiu a ideia do ele-

mento polit ico como uma esfera artfstica autonorna

e tecnico-estatal, Thomas Hobbes se propos a tare-

fa promissora de desenvolver a massa como sudita,

Ao seu genio reorico e sua dureza pratica somos gra-

tos pela ideia de que subjetividade e servidao conver-

gem tanto etimologicamente quando na realidade

- urn est ado de coisas que ainda hoje se manifesta

inequivocamente no subject ingles e no sujet frances,enquanto em alernao nos satisfazemos com 0Subjekt

oficial e filosoficamente suspeito. A massa a ser de-

senvolvida como sujeito, consequentemente, surge

na tribuna teorica dos tempos modernos na Figura

de uma multidao homogeneizada de suditos sob

urn soberano estatal e tecnicamente modernizado.

Sua primeira caracteristica e a submissao racional

em interesse proprio ou a passividade voluntaria no

Estado." 0 interesse de Hobbes na qualidade do

42

4. Resta notar aqui que a construcao absolutista do sudito esta

preconfigurada nas instrucoes para a formacao carequetica e

escolar, que ganharam validade a partir da metade do seculo XV I

em consequencia da Reforma. Aqui ocorre 0nascimento da

pollt ica interna a partir do espfriro de adestramento religioso.

A autoridade deve e tern de engajar-se clerical e polit icamente a

partir dessa epoca. Pot volta de 1556 urn teologo luterano adverte

DESPREZO COMO CONCEITO

subject e do sudiro das massas se fundamentava em

seu propos ito de reconstruir radicalmente a rnaquina

estatal do feudalismo tardio destruida pela guerra

civil, e de forma que os indivfduos, como partida-

rios e como particulares, nunca mais pudessem ter

condicoes de dar a sua paixao da dignidade -

Hobbes provavelmente diria: a Furia da confissao e

do orgulho - apreferencia pelo bern de uma common-

wealth . Para alcanca-lo, pareceu necessario a Hobbes

castrar politicamente todos os pretendentes a reco-

nhecimento, praticamente toda a populacao do

Estado absolutista, em particular a alta nobreza e a

nobreza rural, a fim de marcar a todos com 0criteriodistinto da capacidade estatal , da submissao solfcita,

: 1 qual inicialmente pertence a subrnissao em ques-

toes religiosas - e isto significa, lancando urn olhar

nos dramas do seculo XVII , a rernincia a fUria sagrada

da confissao. Submissa e a consciencia burguesa,

que sabe que, pela pacificacao do espa<;:opublico,

deve renunciar as proprias pretensoes a soberania.

o submisso ideal seria aquele que finalmente entendeu

Ios prfncipes locais , juntamente com seus funcionarios e seu

gtUpo docenre, que se tornem "reologos policiai s" , para que

"seitas nao (descncadeern ...) revolra e desprezo", "Desprczo",

portanto , pode denominar pr imei ramente urna dispos icao

anarquoide e ant inomica. Com opiniao semelhante 0 jurista

Oldendorp ensina em 1530: ''A descrenca traz desprczo de Deus

e do proximo . .. ". Ver Hans Maier, Die altere deutsche Staats-

undVerwaltungslehre. Munique, 2" ed .• 1980, P: 102 e 107. 43

 

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o DESPREZO DAS MASSAS

que ainda so deve existir urn unico soberano, 0por-

tador realmente em exerdcio de to do poder legi-

t imo, e que de, como sudito confesso, sensatamente

entregou suas ernocoes rebeldes e "protestantes" ao

soberano artificial. Conseqiientemente 0cidadao,

que se sub mete em interesse proprio, so pode con-

templar a soberania fora de si mesmo. Ele a avista

na figura do principe, que deve encarnar sublime-

mente e concretizar com mao de ferro 0 potencial

de poder tornado racional- psicanaliticamente fa-

lando: 0 superego dos suditos,

Hobbes entende que essa sua reconstrucao do

campo politico nao deve convir a teimosia da maio-ria dos detentores de velhas liberdades e novas preten-

soes. Razao pela qual de se ve impelido a consolidar

sua maquina estatal em fundamentos que vao mais

fundo do que toda vaidade nobre, ainda que lutadora,

e todo credo burgues, Quem procura 0sudito deve

entender 0 homem em sua raiz. Para que todos se

submetam a urn soberano, serve ao logico do Estado

uma reducao antropologica de todas as individuali-

cladessob uma base de motivo estavel, natural e com urn.

Pois a submissao geral e hornozenea so pode ser garan-

tida seexistir algo na natureza do homem que, sob to-

das as circunstancias, aja mais poderosamente do que

aquda paixao do desejo de prestigio, honra e apres:o,

da qual os conternporaneos das decadas de guerras

civis deram provas tao evidentes quanto fatais.4

DESPREZO COMO CONCEITO

Como teorico do Estado, Thomas Hobbes era

suficientemente otimista para poder mostrar na na-

tureza humana um tal motivo que tende a levar a

submissao, porque, como antropologo, era suficien-

temente pessimista para atribuir a todos os homens

pressupostos comuns de baixeza ou ordinariedade.

Como mais tarde Espinosa, de parte da suposicao

de que todos os individuos estao plenos de uma

irrenunciavel ambicao de autoconservacao, Claro

que para de essa ambicao ainda guarda, por fim,

uma tendencia defensiva. Pois mesmo que as agres-

sivas e expansivas paixoes, impulso por prestigio,

ciurne e cobica Lievantagens pessoais, facarn parte

dos agentes mais poderosos da ambicao por auto-

conservacao - como podemos verificar no mal-

afamado 13Q capitulo da P parte do Leuiatd: Da

condicdo natural do genero humano no que concerne

a sua filicidade e a sua desgraca -, mesmo assim

cssas paixoes sao superadas por uma motivacao

conservadora de todas as motivacoes: 0medo, mais

cxatamente 0fiar of death, que prevalece mais po-

derosamente do que todos os apetites positivos. Nele

deve ser buscado 0 fundamento universal de sub-

rnissao como cuidado racional por si mesmo em

vista de ameacas de destruicao manifestas ou laten-

res. Hobbes nao deixa de enfatizar que e a igual-

dade das pessoas que constitui a Fonte da guerra

continua entre das. Razao pela qual os natural mente 45

 

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o DESPREZO DAS MASSAS

iguais precisam de uma lei sobre si arneacadora que

a todos convens:a uniformemente e que os impeca

de causar reciprocamente 0que intencionavam:

"Anatureza fez os homens tao iguais, quanto as

faculdades do corpo e do espfrito que, embora por

vezes se encontre urn homem manifestamente mais

forte de corpo, ou de espfrito mais vivo do que outro,

mesmo assim, quando seconsidera tudo isto em con-

junto, a difercnca entre urn e outro homem nao e su-

ficientemente consideravelpara que qualquer urn possa

com base ne!a reclamar qualquer beneficio a que ou-

tro nao possa tambern aspirar, tal como ele. Porque

quanto a rorca corporal 0mais fraco tern forca sufi-

ciente para matar 0mais forte, quer por secreta rna-

quinacao, quer aliando-se com outros (...).

Desta igualdadequanto a capacidade derivaa igual-

dade quanto a esperanc;:ade atingirmos nossos fins.

Portanto se dois homens desejam a mesma coisa, ao

mesmo tempo que e irnpossfvel e!a ser gozada por

ambos, e!es tornarn-se inimigos."5

o homem que nao e ameacado nao e salvo -

este e 0 fundamento oculto da arte absolutista : for-

s:ar pessoas a coexistencia pacifica em associacoes

46

5. Thomas Hobbes, Leviatii . Trad. Joao Paulo Monteiro. Sao Paulo,

leone, 2000.

DESPREZO COMO CONCEITO

cstatais. Por isso 0 potencial decisivo do poder nos

tempos modernos consiste em conseguir ameas:ar

autenticarnente, quer dizer, mostrar aos inimigos e

suditos 0 seu regente, a morte. Nesse fazer-se terrf-

vel do Estado do infcio dos tempos modernos e do

barroco residem asorigens da intocabilidade em sua

acepcao moderna. A Fonte mais efetiva da conscien-

cia de igualdade e a arneaca, igual para todos, feita

por urn Estado potencial mente assassino de todos.

o que se chamou de seu monopolio de violencia

perrnanecera insuficientemente compreendido en-

quanto estiver separado do monopolio do medo que

o Estado intocavcl, como teatro das ameas:as intern asc externas, reclama para si. A intocabilidade e fixa-

da em interpretacoes rasas demais , quando, de acor-

do com 0exemplo de Burke e Kant, so se a apreende

110 estado que ela alcancou no fim do seculo X VIII -

quando a industria cultural que seestabelecia sepas a

cnvolver as sociedades burguesas em jogos de auto-

cstressamento de terror rornanrico. Nestes 0elemento

.imeacador e sublime ha muito perdeu a potencia e

sc transformou numa mera grandeza esterica: ele

oferece aos seus consumidores amostras bem-vindas

dc declfnio no monstruoso. Na distancia segura da

morte os espectadores se certificam de sua solidarie-

dade reciproca, na medida em que, em vista de be-

losjogos de morte, conciliam seus abalos. A primeira

;ll11eaya,ao contrario, eo ato cardinal da linguagem 47

 

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o DESPREZO DAS MASSAS

do poder, que da aos seus suditos e vizinhos urn

ultimato de ate quando tern de tornar-se racionais.

Assim, falam aqueles que acreditam ter de decidir

em casos reais ou em jogos de ideias. Nao por acaso,

os teoremas da filosofia polftica e policialesca dos

tempos modernos orientados pela ordem e pelo

consenso - de Hobbes, passando por Robespierre

ate Carl Schmitt - evidenciam uma grande afi-

nidade com estilos autoritarios-exclusivos do trato

com seus adversaries e diss identes. Com isso, ares-

tam que, no poder de ameac;:ar que almeja ser

cornpletado pelo poder de avancar para a realiza-

c;:ao,reconheceram sua base existencial verdadeira-mente eficaz.

A operacao basica hobbesiana, a reducao do

comportamento humano a urn ultimo movel, 0

medo, libera consequencias de epoca. Com ela co-

mec;:a uma era que torna "0 homem" sistematica-

mente suspeito e por isso 0pens a a partir de baixo.

Porque seu proposito e compreender a natureza hu-

mana como calculavel teoricamente, tanto quanto

educavel e manipulavel na pratica, 0 novo mundo

das "policeias" racionais se ve obrigado a construir

a coletividade polfrica a partir do plano de impul-

sos inferiores . Nao estamos em vao na era dos cons-

trutores de maquinas, tanto polfricas quanto civis,

e dos anatomistas, tanto fisicos quanto morais. Para

compreender como funciona a maquina de forca8

I II I II i I. u

DESPREZO COMO CONCEITO

"homern", e necessario conhecer seu mecanismo de

propulsao - mas os propulsores, as rnocoes, as pai-

x6es, os apetites, jamais podem ser diferentes, nessa

visao, do tipo mais elementar. Se e vilania, entao

tern merodo - durante toda uma era explicar, com-

preender e difamar dado no mesmo no que diz res-

peito ao homem. Conseqiienternente estariam dadas

as condicoes sob as quais a Frase "Tout compreendre

c'est tout pardonner" seria verdadeira, sem ressalvas?

Nao inteiramente, pois deve-se acrescentar que tudo

compreender em verdade significa tudo desprezar."

A era da desverricalizacao comec;:a com 0 fato de

que se busca 0nomem sempre embaixo. Uma ten-dencia rnetodicamente controlada de urn desprezo

de todos por todos infiltra-se nas premissas da dou-

rrina polftica moderna do homem. Do interesse por

subjetividade uniforme do sudito surge diretamen-

rc0interesse por uma base confiavel de vilania ge-

neralizada. Se a vilania e a base, como superestrutura

deve aparecer a distincao. Quem, numa epoca escla-

rccida, nao concordaria que meros fenomenos de

superestrutura deveriam ser levados de volta a sua

verdadeira base? A respeito dessas relacoes pode-se

(,. A maxima idealista concorrente: "tudo compreender significa

tudo transfigurar" (quer dizer, transferir para Deus), que se da

a partir de suposicoes pansofico-pantefstas dos tempos moder-

nos, nao poderia se irnpor contra a tendencia da racionalizacao

por baixo. 49

 

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I o DESPREZO DAS MASSAS

norar, alern disso, que igualdade pes-crista nunca

significou urn valor em si, mas representou urn meio

de 0 Estado moderno dinamizado se organizar na

base de uma natureza humana comum e confiavel,firmemente abracada,

Ha de se objetar que Hobbes era urn excentrico

que nunca pode tornar-se verdadeira autoridade.

Considerar-se-a que ele era urn advogado "gnomico"7,

com tendencia a exageros, de urn forte Estado fieri-

cio, urn absolutismo no papel, que nao encontrou

correspondencias na realidade, e considerar-se-a tam-

bern que nao nos vemos instados a respeitar 0 autor

de Leuiatd como precursor da democracia moderna.

Explicar-se-a CJ..Iele ficou prisioneiro de seu tempe-

ramento fobico e que nao conseguiu pensar alem das

traumaticas fixacoes da propria era. Nao obstante,

pode-se mostrar que com Hobbes come<;am as an-

tropologias especificamente modernas e polfricas.

Mais do que outros, ele contribuiu para fundamen-

tar 0 igualitarismo antropologico - aquela convic-

<;aoda natureza igualitaria psicologica das pessoas,

na qual a idade moderna polftica alicerca urn de seus

criterios.

Com 0hobbesianismo se inicia a abolicao teo-

rica da nobreza. Mais de cern anos antes da terreur

da Revolucao Francesa manifestar a vontade de cortar

50 7. De acordo com uma carac te ri zacao de Leo Strauss .

Ii

DESPREZO COMO CONCEITO

toda cabeca que queria erguer-se mais alto do que

as de estatura burguesa, a incipiente antropologia

politica derruba a ideia da distincao como urn

todo, na medida em que, com argumentos psi colo-gicos, prova a partir da natureza que todas as pes-

soas vivem a partir das mesmas bases de afeto e que

todas as diferencas polfticas ou corporativas entre

elas sao quase insignificantes em vista das semelhan-

cas rnacicas no que diz respeito aos seus impulsos

internos.

o que a destruicao teorica da nobreza em

Hobbes faz regredir mais rapidamente e a tese de

que, em ultima instancia, os homens, sem excecao,

<io movidos pelo medo. Pois quem prodama 0medo

como motor universal abole a tradicional autofun-

damentacao da nobreza - seu repiidio do medo da

morte - e relega tambern os aristocratas que des-

prezam 0 demasiadamente humano a uma huma-

nidade interrnediaria, que se fundamenta na alianca

por interesse entre razao, medo e autoconservacao,

Nessa situacao interrnediaria a modernidade esta

consolidada como programa e empreendimento.

Aqui, todo excesso humano para cima a priori e

rcpudiado. 0 dever de se manter no centro consti-

t ui a impronunciada sobre-regra do ser-no-mundo

como cidadao, sudito e homem. Alern disso, a re-

IIIacao psicologica da nobreza e de seu excesso pos-

"Iii seu equivalente na refutacao do sagrado ou do 51

I'

 

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o DESPREZO DAS MASSAS

homem born demais, com a qual se distinguirao os

moralis tas franceses do seculo XVIII. Assim como

Hobbes corta a propria ideia da vida distinra com 0

motivo/terna radical do medo, os moralistas des-

troem as premissas do ideal excessivo de altruismo

- no qual a concepcao de uma vida sagrada tern

sua fonte - com 0motivo/terna radical do arnor-

proprio. Porque a modernidade nao pode mais pre-

cisar de diferencas tao patericas como aquelas entre

o santo altrufsta e a multidao pecadora e autocen-

trada, ela inventa, com a psicologia do arnor-proprio

e do sentido para 0 egoismo, uma plataforma de

humanidade sobre a qual podem encontrar-se os

novos iguais numa especie de neglige moral, sem se

senti rem ernbaracados. A sociedade moderna in-

veste em normalidade burguesa e por essa razao quer

ver em toda parte pessoas em cujos motivos egois-

tas se pode confiar.

Caso se possa reconhecer em Hobbes 0 senhor

da antropologia politica dominante ate hoje, entao

Espinosa pede ser considerado 0descobridor filo-

sofico da massa. Espinosa e 0 primeiro antropolo-

go da democracia moderna visto que originalmente

propos a questao de como 0 auto-governo da rnul-

tidao seria possfvel diante do fato de que esta -

seguindo a tradicao, ele a chama de vu lg us - se

orienta constantemente por nocoes morais, imagens

e sensacces, em imaginationes, assim como por2

I II III III

DESPREZO COMO CONCEITO

manitestacoes como avidez, ira, inveja e anseio por

honra, e nao por ideias racionais." Espinosa nao per-

de tempo com a teoria da adulacao, que mais tarde

alcancou tanto sucesso, a de querer alcar a multi-

dao sob 0ponto de vista da razao ou da maioridade

logica. Espinosa e 0 eterno antijornalista. Ele tam-

bern nao mente para 0grande publico. Por essa ra-

zao, para ele nao se trata jamais de desdobrar a massa

como sujeito; mais do que isso, todos esses aparen-

res sujeitos, dos quais ela se constitui, devem ser

reconduzidos para a substancia divina, em cujos

modos eles respectivamente aparecem para sempre

justificados assirn como sao. 0 vulgus tambern re-presenta uma rnoditicacao da substancia divina -

razao pela qual para 0 sapiens apenas se trata de fa-

zer jusrica a caracterfstica essencial da multidao, a

vida em imaginacoes. Apreciar essa caractenstica sig-

nifica nada menos do que conceitualizar sua real ca-

pacidade de poder. Mas se urn dia a multidao ganhar

poder sobre si mesma - e nao significa outra coisa

que a enaltecida exigencia vanguardista de Espinosa

pela forma democratica de Estado -, entao deve ser

csclarecida a questao de como seria possfvel um

autogoverno dos muitos baseado em imaginacoes.

Para tal e necessario supor que entre as imaginacoes

1.1

I'

X. V er Y irmiy a hu Y ov el , Spinoza. Das Abenteuer der lmmanenz:

Gottingen, 1994, p. 167-195. 53

 

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o DESPREZO DAS MASSAS

existam aquelas capazes de substituir tao bern a ra-

zfio como essa pode entao ser substituida em outro

registro. A democracia espinosiana e aquela ordem

social que pode abastecer a multidao com eficazes

analogias da razao ou simulacoes caritativas. Ela

precisa substituir por imagens 0que 0discurso para

os rnuitos nao logrou - urn postulado que ate

hoje segue agindo em reflexoes sobre a forca unifica-

dora e diretriz dos mitos na democracia baseada

em nacoes,

Trata-se aqui, com estas reflexoes, de urn gene-

roso pressentimento da cultura de massas , porque

Espinosa nao repudia 0 reconhecimento ao modusvivendi dos muitos como tal, conduzido por irna-

ginacoes para-racionais. No entanto, 0 filosofo nao

pode converter-se a ilusao de que esse modus seria

oprimido ou abolido com educacao, porque mesmo

a mais abrangente pedagogia de massas sempre

somente poderia substituir aquelas imaginacoes

pelas outras . Mais do que isso, ele perguma por pos-

sibilidades de proporcionar a rnultidao, em seu pro-

prio plano, uma forma de vida limitada - e em

sua maneira, cornpleta, sirn -, menos irracional,

menos seviciada por afetos, e por isso menos auto-

danosa. Para a sua doutrina ele reclama 0 merito

de fomentar a vida social na medida em que habi-

tua seus adeptos a "ninguern odiar, ninguern des-

prezar, de n inguern fazer troca, com ninguern se4

I I IIII I il "Ii Iii'ilii' i l i i !i i i Ii! ,JI ,

DESPREZO COMO CONCEITO

enfurecer, ninguern invejar".? De fato, a teoria da

multidao de Espinosa representa urn testemunho

quase singular do fato de que pode existir tambern

urn trato nao-hipocrita com as formas mais li-

rnitadas da formacao humana - urn trato que

reconhece a vida que permanece no plano das irna-

ginayoes, como justamente aquilo que e, como

uma cristalizacao local do infinite ou da natureza-

Deus. A historia do efeito do espinosismo eviden-

temente mostra que pessoas nao apenas podem

ofender-se com 0 reconhecimento recusado, mas

rarnbem podem ernbaracar-se com 0 reconheci-

mento concedido.Se Espinosa pode ser considerado 0 descobri-

dor do problema politico da multidao em seu sig-

nificado moderno de massa, ele ao mesmo tempo e

o autor que primeiramente explicitou 0 embaraco

estetico e moral que surge com 0tornar-se perceptfvel

do nao-digno de ser perceprfvel no espa<;o publico.

Em suas definicoes dos afetos Espinosa determina

o desprezo (contemptus) como 0 fracasso de urn ob-

jeto em sua tentativa de conquistar 0 respeito da

mente.

"Desprezo e a irnaginacao de uma coisa que toca tao

poueo a mente, que a mente, pela presen'fa da coisa, e

( ). E ti ca , parte II, proposicao 49, esc6lio. 55

 

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o DESPREZO DAS MASSAS

rnaisrnovida antes a irnaginar aquila que nao esta na

coisa do que aquila que esta."IO

Se nessa formula se emprega para "coisa' a ex-

pressao "rnassa", entao esta estaria definida pela im-

possibilidade de atrair para si 0interesse da mente,

porque a massa, na medida em que - primeira e

geralmente - encarna 0 nao-particular, e 0 nao-

percebivel como tal. A descoberta da massa acar-

reta a elevacao do desinteressante ao plano do

interessante. Nisso, aquele pode rnostrar-se como 0

interessante ate entao desconhecido - ou como

um desinteressante superexposto. 0 desinteressante,que como tal ~c torna visfvel, e portanto a forma

logica do desprezfvel - nele avanc;:apara 0 campo

visual a nulidade realmente exis tente. Pela presen-

c;:ade objetos desse tipo a mente se ve obrigada a

lhes "privar de tudo 0 que po de ser a causa de ad-

miracao, amor, medo, etc.".'! No prolongamento

dessa rellexao se en contra a evidencia de como a

56

10. Etica, parte Ill, definicao 5, Dos Afetos. Apreende-se na defi-

nicao de Espinosa um eco da f rase de Hobbes: "Those things

which we neither Desi re , nor Hate, we are said to Contemne:

CONTEMPT being nothing elsebut an immobility, orcontumacy

of the Heart, in resisting to the action of certain things; and

proceeding from that the heart isalready moved otherwise, or by

morepotent objects;orfrom want afexperience afthem". Leuiatd,

parte J, cap. 6.

11. Etica, parte III, proposicao 52, esc6lio.

DESPREZO COMO CONCEITO

cultura de massa estara sempre ligada a tentativa de

desenvolver 0 des interessante como 0mais percep-

tivel. Ela permanece presa as estrategias de forcar a

atencao porque tem a intencao de colocar objetos

triviais e pessoas em primeira plano - portanto,

objetos sobre os quais Espinosa notou que neles

nada notamos que antes nao tivessernos visto tam-

bern em outros objetos" - faltando apenas 0 adi-

tamento: que vimos ate nos fartar. Observemos que

aqui tambern sao compreendidas pessoas ainda no

esquema das teorias da coisa. Nao e por acaso que a

cultura de massas, em toda parte onde prevalece,

aposta na ligac;:;iode trivialidade com efeitos es-peciais.

Nao hi como nao ver que a historia dos tem-

pos modernos apresenta uma sequencia de revoltas

de grupos antes aparentemente desinteressantes con-

tra 0desprezo ou nao-atencao. A historia social mais

recente tem sua substancia - melhor dizendo, seu

roteiro - numa serie de campanhas para a eleva-

<;:aoda dignidade, na qual sempre novos coletivos

ousam tomar a dianteira com suas reivindicacoes

de reconhecimento." Violencia e idealismo sao as

12 . Etica, parte III, proposicao 52, demonstracao,

13 .Se Descartes t inha defin ido que a paixao do mespr is seria uma

tendencia da alma a enfatizar a baixeza ou pequenez (bassesse au

petitesse) daquilo que despreza, os novos rnovirnenros sociais

apostam na tese de que 0 baixo nao e t ao baixo e ()pequeno 57

 

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o DESPREZO DAS MASSAS

linguas universais nas quais os novos grupos for-

<;:amos novos interesses; des sao os efeitos especiais

que no moderno palco polit ico inevitavelmente des-

pertam a atencao. Cada novo sujeito politico que sur-

ge alcanca irnportancia e consideracao, por urn lado

na medida em que se mostra como centro da acao,

que como urn senhor tambem pode amea<;:ar e de-

cretar emergencia, e por outro, na medida em que

atribui a si mesmo uma posicao elevada de verda-

deiro humanitarismo. Com isso torna-se claro que,

em tais reclarnacoes, sempre nos deparamos com a

tomada de assalto dos elevados de ontem - para a

conquista da posicio que ate entao despertava atencaoem abundancia e por essa razao tinha atencao a dar.

Nos lugares em que se ousam tais ofensivas e

onde ja esta no ar a inversao das relacoes tradicio-

nais entre alto e baixo. 0 jovem Goethe, em seu poe-

rna "Prometeus", chegou ate a subverter 0 desnfvel

entre deuses e homens, transformando seu rita re-

belde em desprezador de deuses: "Nao conheco algo

mais pobre / sob 0 sol, do que vos, deuses!" Com a

questao dos titas humanitarios em seu proprio cora-

<;:ao:"Tu mesmo nao concluiste tudo .. . ?" atesta-se

ao mundo ultrapassado 0seu enfraquecimento. Dele

58

nao e tao pequeno, que ele nao poderia reivindicar a vraye

Generosite, qui foit qu'un hommc s'estimeau plus haut point. Ver

Rene Descartes, Lespassions de lame (em alemao: Die Leiden-

schaften der Seele).Hamburgo, 1996, p. 236 e 238.

DESPREZO COMO CONCEITO

nao se pode mais esperar ajuda, mas 0que nao tern

mais forca para ajudar, tambern nao mais se pode

admirar como foco da distincao. 0 que antes era 0

mais elevado e distinto, a partir de agora nao mais

possui uma honra que pudesse transmitir. De urn

so golpe os deu ses se tornaram desinteressantes, e

as pessoas titanicamente protegidas curvam-se com

urn novo e legitimo interesse sobre a abundancia

de enigmas no proprio peito.

Com urn movimento de pensamento serne-

lhante, em sua analise da dialetica entre senhor e

servo Hegel mostrara como a parte subjugada e des-

prezada de onrcrn pode tornar-se a parte dorninan-

te e auto-estimada de hoje. No inicio 0 contraente,

que deveria cair a posicao de servo, tremera na luta

por reconhecimento de vida e morte; na morte, que

estava diante dele no final do primeiro duelo, de

encontrara seu limite, e naquele que pode dar-lho,

avistou seu senhor. Em consequencia de seu estre-

mecimento, 0perdedor se submetera e aprendera a

rezar ao implorar pela sua vida, e, com a reza, a

lingua dos escravos como sendo 0elogio do senhor,a obediencia solfcita e sem vontade e os sinais da

maior humildade possivel diante dos vencedores,

dos poderosos e dos herdeiros importantes. Mas na

medida em que entao 0 servo executa 0 trabalho

verdadeiro sob rernincia ao autodesfrute direito

durante toda uma era, cresce nele 0 poder pratico 59

 

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o DESPREZO DAS MASSAS

que the revel a 0mundo. Ele conquista 0 plene po-

der que consiste no poder-ajudar e no saber-como,

enquanto 0senhor cada vez mais se tranca num

desfrute impotente de resultados de meritos alheios,

no qual perde 0 alcance imperativo das coisas. No

fim resta do senhor apenas urn involucre sensua-

lista; e 0 servo politecnicamente ativo que, como

novo mestre do mundo e de si mesmo, se disp6e ao

prazer. Quando Hegel, invertendo a doutrina de

Espinosa, quer desenvolver a substancia como su-

jeiro, esse empreendimento tern a fonte de sua plau-

sibilidade na incessante emancipacao do servo.

Onde havia servos, hayed engenheiros, Iunciona-

rios, ernpresarios, eleitores; onde havia senhores

devem ser definidas novas tarefas. 0 senhor de on-

tern, que nao encontra urn novo papel, transforrna-

se no vampiro, isto e , na versao metaHsica de uma

pessoa superflua do a ncie n re gim e - movida por

uma arrogancia ultrapassada condenada a sede in-

saciavel. Nao sem razao escreveu Boris Groys: "Para

o publico de massa ha muito tempo urn vampiro

era a ultima encarnacao, mesmo que dernonfaca e

feia, da alta cultura aristocratica no meio dernocra-

tico dos viVOS."14

A parte obscurecida da substancia anterior, a

massa serva, nao sera por muito tempo desprezfvel

60 14. Kursbuch 129, 1997, p. 143.

DESPREZO COMO CONCEITO

se, por meio da elaboracao e do dornfnio de todas

as materias, tomar 0poder. Pode ela, no inicio das

lutas que fazem historia, ter cafdo para a posicao

aviltante, po is quem implorou pela sua vida nao e

mais capaz de satisfazer-se, entao no final da his-

toria ela quer tornar-se uma dasse universal que se

auto-satisfaca. A razao da igualdade de todos agora

aparece como a sua ascensao conjunta a partir da

desinteressancia rumo a "luz da opiniao publica".

Quem trabalhou, tarnbern pode deixar-se ver. Mas

justamente com essa possibilidade de uma evidencia-

<_;:aoeral faz-se notar uma nova diferenca gritante,

decisiva para 0 rnundo do futuro: em consequencia

do esdarecimento abre-se aquilo que aponta para

alern do esclarecimento - a clareira politica, 0 es-

pa<_;:oe empreendimento, a lacuna de mercado e a

chance hisrorica daquilo que ousa para ganhar, e

ganha porque segurou firme a sua sorte quando ela

se mostrou favoravel por urn unico segundo. Nin-

guem compreendeu mais daramente a logica da

prosperidade no espa<_;:oe chances da situacio mi-

diatizada de massas do que Napoleao, que argumen-taria junto a Madame de Rernuzat: "A ideia de

igualdade, da qual so podia esperar elevacao, tinha

para mim algo de atraente."15

15.1m Schatten Napoleons . Aus den Erinnerungen der Frau von

Remuzai. Leipzig, 1941, p. 104. 61

 

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o DESPREZO DAS MASSAS

o fato de que a auto-satistacao pos-servil nao se

de imediatamente, mas tern como pressuposto a his-

toria do trabalho e 0 trabalho da Historia, ta l exorta-

<;:ao paciencia historica ja aparece na investigacao de

Hegel. A massa que se auto-satisfaz e separada pelo

definitive autodesfrute por meio de uma inevitavel

prorrogacao. As relacoes ainda nao sao inteiramente

maduras, ainda devem ser cumpridas premissas para

o desfrute. Diante do desfrute, a redistribuicao: dian-

te da redistribuicao, 0dominic da maioria . Para esse

programa e necessario tempo, e somente nesse tem-

po objetivo definido, 0 verdadeiro perfodo de pro-

gresso, a paciente impaciencia com os motivos que

forcam a prorrr-gacao pode tornar-se a razao das con-

tinuadas acoes da Historia. 0 tempo deve arnadure-

cer para aquilo que deve vir, mas simultaneamente

aquilo que vira so pode ser levado a introduzir-se

pela impaciencia com 0existente. De fato, ensina-se

a insatisfacao no seculo XVlII e, no XIX, ela se torna

militante; com ajuda daqueles que, porta-vozes

da indignacao informada, se chamam intelectuais,

ela apresenta uma disposicao ofens iva. Quase nin-guem contribuiu mais para isso do que 0jovem Karl

Marx, ao formular a proposicao da pratica radical-

progressiva na sociedade insatisfeita:

62

"Ser radical e compreender a coisa em sua raiz.A raiz

para 0 homem, porern, e 0 proprio homem. A prova

DESPREZO COMO CONCEITO

evidente do radicalismo da teoria alerna (...) e seu ponto

de partida (...) da abolicaoda religiao, A crftica da religiao

termina com a tesede que 0homem seria 0 ser supremo

para 0 homem, portanto com 0 imperatiuo categdrico

de derrubar todas as relacoes nas quais 0homem e urn

ser rebaixado, servil, abandonado, desprezivel (... )"16

Nessa frase expressa-se mais perfeitamente a eti-

ca hegeliana jovem, que hoje chamarfamos de social-

dernocratica. Ela se fundamenta na exigencia de

abolir todo 0sistema das relacoes que leva ao rebai-

xamento de pessoas e ao seu reflexo no desprezo.

Nao seria sustado 0 desprezo subjetivo do homem

pelo homem, isto e, depois da liquidacao da nobre-

za como a dasse em decadencia, quando houvesse

desagravo para a multidao infeliz em sua busca por

integridade, mas somente quando os motivos reais

para a desprezabilidade de sua condicao fossern com-

pletamente abolidos.

Tornadas desprezfveis ou desurnanas, as maio-

rias nas tradicionais sociedades de dasse, segundo

Marx, sao divididas de duas formas: polit icamente,em ordens de dominacao em processo de defer-

macae, cujo resultado e 0hornem oprimido, servil;

16. K. Marx, "Zur Kritik der Hegelschen Rcchtsphilosophie", In-

rroducao, in S. Landshut (Org.) , Die Fruhschr if ien . Stuttgart.

1968, p. 216.63

 

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o DESPREZO DAS MASSAS

e socialmente, no sistema de trabalho esvaziante,

cujo resultado e a psique proletaria. As duas de-

forrnacoes, porern - isto os autores iluminados

da burguesia e da esquerda nao souberam ou nao

quiseram saber -, confluem, numa necessidade

insaciavel, para cornpensacao e vinganca - uma

necessidade para cuja satisfacao surgiram as in-

dustrias do entretenimento e do rebaixamento do

seculo xx. A terceira forma de desprezo do homem,

sua exposicao no sistema de cornunicacoes vul-

garizantes, prostituintes e flexibilizantes - esse

cancer interativo da era da midia - ainda esta

fora do campo de visao dos revolucionarios do

seculo XIX; sornente alguns artistas eminentes ,

Baudelaire e Mallarrne sobretudo, reagiram com

profetica veernencia a crescente fixacao do homem

no rebaixamento por meio de cornunicacoes tri-

viais. Marx nao deixou faltar clareza em mornen-

to algum. No que diz respeito ao primeiro motivo,

a hurnilhacao e deforrnacao polfticas do ser hu-

mana amedrontado. Numa carta a Ruge, de 1843,

ele diz:

64

"A unica ideia de despotismo e 0desprezo do ho-

mem, 0 homem desumanizado (.. .) 0 despota sern-

pre vi: aspessoas degradadas. Elas seafogam diante de

seus olhos e para ele na lama da vida comum, da qual

elas rambern, como os sapos, sempre ressurgem (.. .)

I

d

i i II ! i , J\ . . • It,

DESPREZO COMO CONCEITO

o principio da monarquia e 0 homem desprezado,

desprezfvel, 0 homem desumanizado ..."'7

Com respeito a segunda forma de desprezo, que

surge do cativeiro das maiorias no sistema de traba-

lho alienado, Marx permaneceu preso a uma ambi-

valencia sedutora, porque sua doutrina era incapaz

de decidir se queria defender 0 abrandamento ou 0

agravamento da miseria proletaria. Ela estava por

demais interessada na ilusao da furia de classe auto-

redentora, fiiria que so poderia ascender partindo

do mais profundo empobrecimento. 18 Para 0 jovem

Marx, todavia , em seu imperativo categorico da re-volucao, ainda importava a completa revolta antro-

pologica, 0 retrocesso da substancia que se esvazia,

explorada, para a forma total do sujeito. Somente

ele desfruta como 0 verdadeiro senhor do futuro,

que, sem limites e sem resto, consome 0 seu pro-

prio produto, rezava a maxima do autentico mar-

xismo, que, justamente com isso, nao podia negar

17. Ibidem, p. 162-163.

18.Sobre esse projeto marxiano diz Walter Benjamin, felizmente

no tom do parceiro de ilusao: "Da massa amorfa, a qual, na-

quele tempo, urn sociali smo com beleza e csplr ito procurava

adular, faturar a noiva do proletariado, essa tarefa se colocou

diante dele [projero marxista] desde rnuito cedo". "Obcl"cinigc

Motive bei Baudelaire", in Walter Benjamin, CharlesBaudelai re .

E i n L y ri ke r i m Z e it al te r d e sH o c hk a pi ta li sm u s. Lw e i F r a gm e nt e.

Frankfur t, 1969, p. 126. 65

 

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o DESPREZO DAS MASSAS

suas origens nas figuras do idealismo. Consumo do

todo pelo todo e 0 derradeiro pensamento da filo-

sofia classica - de deu ao conceito do seculo, re-

volucao, seusmetalisicos tons superiores e ao mesmo

tempo a referencia a nocao de urn tempo final ter-

reno, no qual se teria fechado 0drculo do produzir

e desfrutar. A essas mudancas filosoficas responde,

do Extremo Oriente, a doutrina de Mao Tse-Tung,

de que a verdade deve ser haurida das massas e de-

volvida as massas; 0 que perturba esse circulo vai

extinguir-se, pretensamente com razao. Mas ja nos

tempos deMarx asforcaspragmaticas do movimen-

to dos trabalhadores se empenharam em rambern

defender cor.stantes e pequenas mdhoras da situa-

c;:aoproletaria como exitos no projeto de longo pra-

zo do refinamento das massas. Ninguem contestara

os momentos de verdade do pragmatismo social-

democrata. Contudo, da satisfacao "prernatura" com

os pequenos passos para 0 consumo limitado nasce

para a massa e seusprotetores teorizantes uma nova

situacao de perigo: mas como, se tal progresso esti-

vesse no plano apenas da mudanca de estrutura dadesprezabilidade?

66

Foi nesseestagiode desenvolvimento que Fried-

rich Nietzsche retomou a problematica. Foi de

quem levou para a fasedecisiva0ainda sempre atual

trabalho de aguc;:amento. 0 autor de Zaratustra

JII

,I 1,1 1'1: 1 ,1

DESPREZO COMO CONCEITO

tarnbern insistiu - nisso mais semdhante ao real-

idealista Hegd do que admitem a maioria dos exe-

getas de ambos - que desprezo Fossealgo objetivo

que nao pode ser abolido pelo mero terrnino sub-

jetivo da desprezabilidade. A benevolencia social-

democrata nao pode solucionar 0 problema do

conflito entre verticalidade e horizontalidade na luta

por reconhecimento. Sim, a presuncao aparente-

mente livre de desprezo do ultimo homem e deter-minada por Nietzsche justamente como a essencia

do objetivamente desprezivel.

"Oh, cnega 0 tempo em que 0 homem nao dara

mais 11luz uma estrela ( .. .) chega 0 tempo do rna is

desprezivel dos hom ens, que nao pode mais desprezar

a si proprio.

Vejam! Mostro-lhes a ultimo homem.

'0 que e amor? 0 que e criacao? 0 que e nostal-

gia? 0 que e estrela' - assim pergunta a ul timo ho-

mem, e pisca."

Nao foi a auto-satisfacao como tal que mereceuaqui ser caracterizada como desprezivd; despre-

zibilidade e a limitacao demasiadamente satisfeita e

cxposta na auto-satistacao. 0 ultimo homem aos

olhos de Zaratustra e desprezfvel porque quis parar

nos"desejozinhos"profanos, finitos,esgotadosna hori-

zontal. Para de, despreziveissao os ultirnos homens 67

 

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o DESPREZO DAS MASSAS

porque seu prazer nao esta aberto para cima. Eles lhe

parecem dignos de desprezo sobretudo porque decla-

raram ser um devaneio as paix6es aristocraticas, as

paix6es da auro-superacao e 0 esgotamento criativo,

e com isso comecaram a tornar despreziveis os padr6es

da vida desafiada e elevada conjuntamente em nome

de uma razao agora saudavel da planicie. Para as "na-

turezas comuns", diz Nietzsche, 0 homem movido

por morivos distintos e considerado uma especie de

louco; "elas0desprezam em sua alegria e riem do bri-

lho de seus olhos", "E a desrazao ou razao transversal

da paixao que despreza 0 comum no que e nobre."J9

Portanto, despreziveis parecem aqueles desprezado-

res embotados contra rodo movimento que ultrapasse

valoracoes, desejos e procedimentos de compreen-

sao do centro auto-satisfeito. Zaratustra toma a seu

cargo desprezar 0ultimo homem porque sua simpa-

ria 0proibe aprovar uma vida humana que exige tao

pouco de sipropria que ja perdeu a mera possibilidade

de autodesprezo. Quem continua a almejar 0homem,

mantern a possibil idade de ainda poder despreza-lo.

A incorrigivel provocacao de Nietzsche consis-te no fata de que ele transforma 0desprezo da rnul-

tidao por tudo 0que ultrapasse sua organizacao no

horizonte em material e massa de resistencia para

um desprezo corretivo, potencializador. Com a inter-

68

1 9 .D i e F r o hl ic b e W i ss en s r: ha ft , n. 3. [ A g a ia ciencia. Sao Paulo,

Companhia das Letras, 2001.]

DESPREZO COMO CONCEITO

vencao de Zaratustra 0desprezo ganha uma consti-

tuicao complexa: no segundo desprezo, um despre-

zo anterior e dirigido e revalorado contra simesmo.

o teorema de Nietzsche acerca do ressentimento

como fuga da fraqueza rumo ao desprezo moraliza-

dor da forca e a pista logica dessa inversao, Ate hoje,

e 0 instrumento mais poderoso para a interpreta-

c;:aodas relacoes sociopsicologicas da cultura de mass a

- evidentemente, uma ferramenta sobre a qual

nao e muito facil dizer quem poderia ou deveria

manipula-la. Ela fornece a descricao mais plausrvel

do comportamento da maioria nas sociedades mo-

dernas e ao mes.no tempo sua mais polimogenea

interpretacao - polirnogenea, porque descreve a dis-

posicao psiquica de indivrduos que atestam a si

proprios motivos moralmente primorosos, ate 0

nivel de seus impulsos Intimos como mecanismos

reativos e detrativos da antiverticalidade - com 0

que entre "verdade" e "admissibilidade" surge uma

relacao de exclusao redproca; plausfvel , nao obstan-

te, porque certifica a necessidade de rebaixamento

da autoconsciencia rebaixada justamente a quase-onipresenca que de fato the cabe do ponto de vista

empirico. Pode-se ate afirrnar que sao as lutas de

revaloracao do tipo apontado por Nietzsche que

dinamizam 0 campo publico da sociedadc moder-

na, e quanto mais avanca a rnodernizacao cultural

de massa, mais veemente sera este avanc;:o. 69

 

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o DESPREZO DAS MASSA S

70

Necessariamente aparece duas vezes tambern a

segundo desprezo, au desprezo composto, uma vez

de baixo, como desprezo ofensivo das elites par par-

te das novas massas flexibilizadas , que fazem de seu

modo de vida a medida de todas as coisas e querem

libertar-se de seu observador que asdespreza; e como

desprezo das mass as e de seu amplo idioma par meio

dos ultimos elit istas, que sabem desprezados seus ob-

jetivos pela massa e pressentem que na culrura de

massas em organizacao acabou de uma vezpar todas

aquila com que se importam. No que diz respeito a

segunda posicao, pelo resto dos tempos sera quase

impossivel arrumar-Ihe urn defensor mais eloquente

do que Friedrich Nietzsche. Ele contrap6s a ideal

social-democrata da satisfacao universal de necessi-

dades humanas basicas a auto-elevacao dos poucos

que sao criativos em sua obra, e que vivem sob ten-

soes gran des e rnaxirnas, embora a sociedade a sua

volta ha muito tenha decretado a palavra de ordem

"deixe estar", Faz tempo que nao e mais possfvel ter-

mas duvida do carater rninoritario e cultural e poli-

t icamente sem perspectivas dessa opcao - de temposem tempos, porern, e citada para que se volte a rir

dela. Os adeptos do primeiro posicionamento, do

qual parte a ataque popular, encontram-se desde a

Segunda Guerra Mundial entre as inumeros intelec-

tuais do hegelianismo de esquerda e da corrente

pragmatista principal, recentemente fortalecida par

DESPREZO COMO CONCEITO

jovens aristotelicos e novas religiosos eticos. Nesse

campo, hoje em dia, obtern destacados exitos a fllo-

sofa Richard Rorty, que sem rodeios se coloca no

lugar dos ultimos homens - pressupondo que estes

sejam americanos - e chama cruamente seus crfticos,

de Kierkegaard e Nietzsche a Heidegger, Adorno e

Foucault, de esnobes cansativos, desagradaveis, hero i-

cos, embora continuem a fazer parte, em posicao privi-

legiada, de sua lista de leitura . Como desprezador de

baixo dos desprezadores de cima, a liberal Rorty, que

as ares da Virginia transformou em social-democrata,

prega uma nova versao do sonho americana - a

andar aprumado rumo a banalidade e sepreciso uma

segunda separacao com relacao a Europa."

20. Rorty fala de uma "ascetica casta sacerdotal de intelectuais es-

nobes", aos quais se deveria contrapor a confi ssao da utopia

(mesmo que banal) de uma sociedade mais justa. De qualquer

modo, Rorry util iza aqui, de forma evidente, tam bern onde se

separa de Nietzsche, a propria linguagem de Nietzsche. Isto 0

diferencia do anrinietzscheanismo global e amargurado de urn

Habermas ou de urn Luc Ferry; pois enquanto 0 filosofo arne-

ricano, destemidamente, da a protocolar que 0genero humano

nao mais signi ficaria mui ro se perdesse a capacidade de dar it

luz estrelas dancanres, esses autores seguem uma linha que tern

em mira a subrnissao da arte pela moral, 0 domfnio absolute

da desconfianca e 0controle do pensamento atraves do con-

senso . No principio l iberal de Rorry forrnula-se como que urn

pendant filosofico it exigencia ao arrisra moderno (conhecida

atraves deThomas Mann) de resisrir it tensao entre os mornen-

tos anarquistas da existencia artfstica e 0mandamento da auto-

insercao na comunidade dernocrarica. II fout hre absolument

soc ia ldemocra te . Nesse ponto deve-se concordar com Rorty . 71

 

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o DESPREZO DASMASSAS

A ultima contribuicao eminente para 0proces-

so filosofico em torno do desprezivel e seu contra-

rio foi dada por Martin Heidegger em seu famosa

capitulo acerca do Man" ["a impessoal"] em Ser e

tempo, paragrafo 27. Aqui se exp6e, com uma niti-

da rnudanca com relacao a filosofia do espfrito de

Hegel, uma interpretacao moderna do ser humano:

"a ' substancia'do homem nao e 0espfrito (. . .) mas a

existincia"," Para Heidegger, porern, a existencia e

inevitavelmente 0 palco de uma separacao entre

aqueles que incorrem na vulgaridade da "rnanobra'

externa, e aqueles que sao alcados ao verdadeiro

vigiar-e-refletir do ser. Consequenternente, essaclassificacao seria 0 acontecimento secreta basico

da Historia que se faz par meio de nos e dele se deve-

ria falar expressamente. Primeiramente, porem, com

72

Ciracoes a pa rtir de: Richard Rorty, "Keine Zukunft ohne

Traume", S ii dd eu uc be Z ei tu ng a m W o ch en en de , 30-31 de janeiro

de 1999, p . 1. No mais , 0 autor ilustra a acima mencionada difi-

cuIdade no trato com 0argumento do ressentirnento, na rnedida

em que, friamente, recorre ao proprio Nietzsche, com a tese de

que este nao teria superado se u ressentimento com a massa.

* Em S er e t em p o, Heidegger substandva a palavra alema Man a

par tir do sent ido do pronome "se" usado impessoalmenre -

como em "diz- se que". Mas a locucao "0 se" soa estranha e

empregaremos em seu lugar "0 impessoal'', cf. He ide gger : b i st o -

r ia e v er da de e m Ser e tempo, deJonathan Ree (Sao Paulo, Unesp,

2000, p . 31. Trad. Jose Oscar de Almeida Marques). (N.E.)

2 1. S ein u nd Z eit, p. 117. [Ed. bras. : S er e te m po . Sao Paulo, Vozes,

2001.]

I I

Il!'SPREZO COMOCONCErTO----------------------------------urn retrato extraordinario, Heidegger revelou para a

teoria 0palido selbst [si mesmo] do "impessoal",

o que especialmente salta aos alhos do retratis-

ta, no "impessoal", e a ausencia de todos as traces

nos quais se pudesse apontar a caracterfstico, 0 radi-

calmente individual e insubstitufvel de uma existen-

cia decidida por si mesma. Em referencia a massa do

"impessoal" sempre se considera, segundo 0 seu

fenomenologo, "inopinadamente a dominio ja as-

sumido dos outros. 0 proprio 'impessoal' faz parte

dos outros e consolida seu poder", A quem, porern,

foi dada 0seu "si mesrno" dessa maneira "impes-

soal" e rnacica - e sao, segundo Heidegger, "pri-

meira e primordialmente" todos, sem excecao -,

este nao pode sentir esse nivelamento.

"Nessa impossibilidade de cornprovacao e incapaci-

dade de constatacao, 0Man ["0 impessoal"] desenvolve

sua verdadeira ditadura. Desfrutamos enos divertimos

como Man desfruta; lemos, vemos e julgamos literatu-

rae arte como Man vee julga; mas tambem nos retira-

mos do 'grande monte ' como Man se rerira; achamos

revoltante 0 que Man acha revoltante (.. .) A opiniao

publica escurece tudo e entrega 0assim oculto como 0

conhecido eacessivela cada urn ( ) Cada urn e 0outro

e nenhum de mesmo. 0 Man ( ) eo ninyuem ..."12

2 2 . I b id e m , p. 126-28. 73

, m i i ! . ! 1 1 j ! ! I ! ii,! 1 I ! 1 I f i l l i Iii

 

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o DESPREZO DAS MASSAS

A evocacao astura de Heidegger acerca do

estar-af [Dasein] no modo "irnpessoal" inclui todos

os indivlduos, sem excecao, na desprezabilidade do

resulrado primeiramente valido: estamos mesmo a

tal ponto infiltrados pelos outros, de sua parte ja

minados, que sob nenhuma circunstancia esramos

em condicoes de ir ao encomro de nossa "propria"

existencia, A des-apropriacao antecipa-se a todo mo-

vimemo da autenticidade e propriedade. Sob tais

premissas 0 desprezo deve aparecer como urn exis-

tencial que esta fixado na existencia como tal, con-

tanto que primeiramente nao possa ser outra coisa

que a convivencia decaida com outros decaidos. No

Man-Selbst [proprio-impessoal] 0outro vulgar teve

precedencia diante do "autentico" "si mesmo", que

virtualmenre poderia ser distinto. Por isso, no inicio

e impossivel as pessoas nao viverem desprezivelmen-

te, nao viverem na forma "irnpessoal", nao viverem

dispersas na ditadura sem dono, porque todos che-

gam primeiro somente como "impessoal" e geral-

mente assim permanecem. E no entanto 0 sentido

do projeto filosofico de Heidegger e preparar a mu-danca para 0 nao-desprezo, para uma existencia

radicalizada e verdadeiramente nobre. Como esse

despertar para a excecao deveria acontecer, porern,

permanece incerto ate 0fim, apesar das invocacoes

de Heidegger ao medo e ao tedio como extases com

poder de transformacao, por urn lado, porque nunca4

I I~

DESPREZO COMO CONCEITO

se pode decidir com seguranc;:a se 0 desejo de so-

bressair-se do "impessoal" e tornar-se urn heroi do

ser-verdadeiro [Eigentl ich-Sein] nao apenas signifi-

ca 0 pretexto seguinte da vulgaridade; por outre,

porque nao pode existir urn procedimento objeti-

vamente valido para passar da vulgar situacao de

partida (do "primeira-e-primordialmente") para a

nobreza do ser. Certo e somente que aqui nao se

pode trarar de uma nobreza herdada, mas apenas

de uma forma hibrida de nobreza a service, mais

exatamente de uma nobreza por vocacao, pois os

guardioes do ser so podem ser alcados deste mesmo

para a posicao de guardioes. E como se Heidegger

tivesse antecipado 0 "observador", mais tarde alta-

mente honrado na teo ria do sistema de Luhmann,

como 0 desprezador geral, a medida que, atento a

sociedade moderna, notou que esta sempre - tanto

no Oriente quanto no Ocidente - so da atencao a

"espantosa organizacao da pessoa normal". Seu es-

tado caracterfstico seria a "suspeita odienta contra

tudo 0 que e criativo e livre".23 Esta tese soberba

alcancou 0apice de plausibilidade numa epoca emque a infamia totalitaria, seja na politica ou nos

meios de cornunicacao de massa, nunca precisou es-

perar muito por assistentes solfcitos.

23. Martin Heidegger, Einfohrung in die Metaphysik, TUbingen

1987, p. 29. [Ed. bras.: Introducdo a metaflsica. Sao Paulo,

Tempo Brasileiro, 1987.] 75

 

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FERIDAS DUPLAS

3

Caso se volte 0 olhar, em retrospectiva, para 0

desenvolvimento do mepris moderno e seu ocasio-

nal cintilar em discursos filosoficos, jornalisticos e

poeticos, e evidence que as luras generalizadas por

reconhecimento envolvem as sociedades de massa

mobilizadas em permanentes processos de dinarnica

de grupo selvagem. Estes sao mais poderosos quanto

menos possam ser expressamente discutidos e com-

preendidos em regras cenicas, Sua interpretacao,

moderacao e catarse, como se reconhece facilmente,

nao vao bern, porque sob condicoes ate hoje vali-

das sao percebidas intervencoes nesse campo mais

como parcialidades altivas do que como interrne-diacoes, como provocacoes inoportunas e nao como

chances de esclarecimento. Basta que alguem somente

aponte para a existencia de problemas de atencao e

desprezo no espac;:o da atual sociedade, e sera, se

tudo correr como normalmente, detido pelos meios

de cornunicacao de massa por gritos de urn reflexo 77

 

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o DESPREZO DAS MASSAS

quase infalivel - como se a mencao de urn proble-

ma ja Fosse a quebra de urn acordo geral de silen-

cio, e como se a lernbranca de urn ernbaraco ja Fosse

uma ofens a que exige revanche.

Constatar isso e apenas uma outra maneira de

dizer que todas as maneiras conhecidas de filosofia

social fracassam diante do problema nevralgico da

sociedade moderna: 0conflito entre horizontalidade

e verticalidade. Os filosofos so fizeram adular as so-

ciedades de modo diferente; trata-se mais bern de

provoca-Ias.

No entanto, ate agora quase nao se explicou

como urn uso terapeutico e esclarecedor das ten-

soes existente. e seus fluxos e escoamentos poderia

dar certo. Os prindpios de praticas descobridoras e

transformadoras de natureza estetica, terapeutica e

espiritual permanecem subculturalmente bloquea-

dos ate nova ordem. Indubitavel parece ser apenas

que sem ligacoes sensfveis do humor com a justica

perante nervosas massas de problemas nenhuma

catarse podera ser alcancada. A estrutura complexa

do proprio desprezo rnoderno, que sempre aparececomo desprezo desprezante e desprezo desprezado,

faz aproximacoes com 0 campo contaminado do

inseguro narcisismo de mass a e das arnbicoes feri-

das da elite, bern como de seus cruzamentos entre

si, tao diflceis quanto perigosos. 0 que psicotera-

peutas chamaram de intervencao paradoxal, aqui

I

78

FERIDAS DUPLAS

se poderia facilmente comprovar como intervencao

fatal. A "guerra fria" tern urn de seus modelos psi-

codinarnicos na luta permanente e obscura das ne-

cessidades de validade - nessa "guerra quente'" das

ambicoes e do inquieto desejo pela abundancia re-

conhecida. Contudo, nao esta excluido que urn dia

uma nova gera<;:aode tecnicos da opiniao publica, de

terapeutas da provocacao, de artistas politicos da con-

Irontacao e da cornpensacao inaugure, nesse campo,

uma era de novos jogos de esclarecimenro.i E uma

verdade irrestrita 0 que foi constatado num estudo

atual sobre 0 conflito entre h ig h a nd lo w c ultu re nos

E UA : "W hen ,0 igh m eets low tw o open w ounds are

f a ci n g e a ch o t he r. .. e a ch s i d e ,m ov in g b e tw e e n c on fi de n ce

a n d d es pa ir , s us pe ct s t h e o th er t o r ep re se nt i ts l ac k." ?

1. Ver Antje Vollmer . H e is se r F r ie de n. U b er G e wa lt , M a ch t u n d

Zivilisation. Colonia. 1995.

2. Insistemos que 0maior pensador da midia do seculo xx ,Marshall McLuhan, que tam bern produziu efeiros exrraordi-

narios como per former da teoria e retorico rerapeutico de mas-

sa, f racassou fr ente 11defesa em bloco da velha Europa. Na

A1emanha, atualrnente urn dos mais importantes ativistas nes-

se campo e 0 filosofo da per formance Bazan Brock, que nao

apenas apresenta uma pratica intervencionista bern dissernina-

da, como tarnbern disp6e de uma elaborada teoria da interven-

"ao simbolica, Ver B. B., D ie R e -D e ka d e. K u ns t u n d K u le u» d er

BOerJahre. Munique, 1990.

3. Bet tina Funke, T h e M a ss es L a ug h B ac k, palestra no simposio

do Crit ical Theory Fellows do Whitney Independent Study

Program 1998-1999, Whitney Museum of American Arts , 26

de maio de 1999, Nova lorque. 79

'._ I r. , ,;

 

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o DESPREZO DAS MASSAS

As feridas abertas atestam a penuria da dife-

renca vertical entre as pessoas, que ao mesmo tem-

po e indispensavel, inevitavel e insuportavel.

Cornplicacoes no campo psicopolftico da so-

ciedade moderna como aquelas a que aludimos aqui

sao teimosamente ignoradas por grande parte da

mais recente pesquisa no campo da historia das ideias,

Esta pesquisa se especializa em reunir manifesta-

c;:6eselitis tas de artistas e intelectuais do firn do se-

culo XI X e inicio do xx - como John Carey, que

com seu livro Os intelectuais e as massas deu urn

exemplo solido e sintornatico de uma sociologia tri-

vial da literatura, na qual0

ressentimento popularaparece como modo de exito cerro da ciencia do es-

pirito politicamente correta. Essencialmente, so se

Ie em tais livros 0 que ja se sabia: que Baudelaire

repudiava a fotografia por ela ter entregue nas maos

da "ordinariedade" urn meio de "observar [sua]

propria imagem trivial" , e que esnobes britanicos

escarneciam, sem apresentar os motivos, de casas

geminadas, brinquedos de baquelita e comida em

conserva. Autores de tais escolas costumam nao ter

a minima ideia da tradicao de discursos aristocrati-

cos e da alta burguesia entre Maquiavel e Hegel so-

bre a "plebe" e sua transforrnacao em "povo". Em todo

caso, e a voz do arquiiluminista Voltaire que ouvi-

mos na Frase politicamente duvidosa: "Se a canaille

se intrometer nos negocios da razao, tudo estara0

FERIDAS DUI'LAS

perdido". E a voz do defensor da republica alerna,

Heinrich Heine, que escutamos no suspiro de ar-

tista: "A aborrecida mentalidade do dia util dos

modernos puritanos ja se alastra por toda a Euro-

pa, como urn entardecer cinzento que precede urn

rigoroso inverno .. .". E e a voz do iluminista Freud

que se pode perceber discretamente quando lemos

no seu texro de 1921, chamado Psicologia de massas

e analise do eu:

"Nossa alma (...) nao e uma unidade pacifica, que

se auto-regula. Ela e mais cornparavel a urn Estado

moderno no qual uma plebe avida de divertimento e

destruicao deve ser violentamente detida por uma clas-

se sensata, superior."

Por mais empobrecidos que possam ser os

mencionados textos "preferidos dos jovens" no que

tange seu estilo e forma de pensamento, eles se de-

duzem, por algumas etapas de decadencia, de urn

modelo espiri tuoso, mesmo que problernatico, cujas

Fontes remontam ao idealismo alernao. Foi Johann

Gottlieb Fichte que, como criador da teoria da alie-

nacao de tipo moderno, deu ao mundo uma inter-

pretacao sugestiva e de graves consequencias de por

que de tantas pessoas sem miseria reconhecivel per-

manecerem abaixo de suas possibilidades, e como e

possivel que irnimeras nao facam disso uma infla- 81

 

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o DESPREZO DAS MASSAS

macae interna. Fichte comprovou que no fundo de

cada existencia indecisa e trivial e cometido urn erro

eIementar de pensamento, urn erro, teimoso e incor-

rigivel como a vida alienada, surgido daquela ir-

refutavel tendencia dos sujeitos de esquecer sua

espontaneidade e produtividade originais e de se

compreender como coisas entre coisas, consequen-

temente como viti r na de poderes externos. Nao e

suficienternenre conhecida a opiniao de Fichte de que

a maio ria das pessoas seriam mais facilmente con-

vencidas de que sao "urn pedaco de lava da lua do

que urn eu" - uma frase que torna ilustre 0modo

de operacao do pensamento vulgar-ontologico: eIe

descreve a alianca nao-crista de auto-reificacao e auto-

rebaixamento, confirrnada pelo naturalismo e em-

belezada pela vaidade.

Como se sabe, a nocao de alienacao fez escola

em sua versao hegeliana e, por meio do marxismo,

setornou urn fator historico do seculo XIX. Ademais,

onde quer que os momentos filosoficos do esquema

de protoproducao, autoperda e reapropriacao esrao

empalidecidos, ou nao sao mais levados muito aserio, a formula idealista-ativista serviu a imimeros

autores para articular uma consciencia de que aspes-

soas, da forma como aparecem, em regra nao estao

no alto. 0 barateamento do homem peIo homem e

anotado peIo idealismo como sendo urn escandalo

cronico.2

FERIDAS DUPLAS

A ideia de alienacao torna plausivel a nocao de

que nas pessoas toda atividade e toda virtude de

certa forma existem duas vezes, ora em apresenta-

<;iovertical, ora em horizontal; ora autentica, ora cor-

romp ida; ora como espontaneismo distinto, ora como

replica barata. George Bernard Shaw, em sua co-

media H om em e s up er-h om em [M an a nd S up erm an ],

que tarnbern poderia muito bern sechamar "Adomes-

ricacao do super-homem pelo casamento", provo-

cou a figura do historico Don Juan para confiar-lhe

a tarefa de denunciar a impropriedade da vida eter-

na no inferno. Em Shaw, todos os mortos escolhem

seu lugar no alem, e naturalmente escolhem-no da

forma que massas alienadas costumam escolher. Por

isso 0 inferno, que oferece urn compromisso entre

cultura de mass as e h i gh s o ci et y, e sempre muito vi-

sitado, enquanto 0ceu fica quase vazio, porque a

maio ria dos recern-chegados no alern teme seu clima

ascetico e sua luminosidade minimalista. Como urn

futuro diretor de programa da TV privada, 0 diabo

recomenda as simulacoes humanistas superficiais,

que tornam sua esfera atraente para todos os drcu-los, enquanto Don Juan, candidato a alta cultura

celestial, evoca a diferenca entre h igh an d low :

"Seus amigos (isto e dito para 0diabo) - sao os

mais enrediantes cachorros que conheco. Nao sao boni-

tos, sosao ornados. Nao sao puros, somente aparados e 83

1 11 _, 1I !. 1 1. , I,

 

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o DESPREZO DAS MASSAS

fortalecidos. Nao sao dignos, apenas vestidos na moda.

Nao sao formados, s6 terminaram 0 college. Nao sao

religiosos, sao apenas inquilinos de uma cadeira de

igreja. Nao sao morais, apenas convencionais. Nao tern

virtudes, sao somente covardes. Nao sao sequer

malvados, sao somente fracos. Nao sao artis tas, sao

somente cobicosos (...). Nao tern dignidade, sao uni-

camente vaidosos ..."

o diabo, evidentemente, como se tivesse lidoRorty, nao se deixa mais levar por essas diferencia-

coes, Como senhor da cultura de massas, ele tern

na ponta da lingua a resposta adequada: isto tudo

e somen te con versa fiada, repeticao de coisas ha

muito ditas, frasesdistintas, das quais 0mundo nao

tomou conhecimento. E mesmo que os vivos te-

nham se decidido contra a diferenca vertical, 0 in-

ferno nao pode considera-lo de outra forma.

84

______________ .:.:.:SO::B::_Rl::_::~DlITHI'N~'A ANTI()I'(H.t)( il<'A

4

Em seu texto A situadio intelectual da epoca,

que em 1931 foi publicado considerando a ja nao

controlavel reacao fascista de massa na Alemanha,

o fil6sofo Karl Jaspers notou: "Hoje comeya a ulti-

ma campanha contra a nobreza (...). [Ela] e condu-

zida nas pr6prias alrnas."! Se Jaspers chama de

ultimo 0mais atual ataque naquele tempo, no que

nao diz deixa soar que uma longa epoca precedente

preparara os meios e impulsos para 0pretenso ata-

que final. Entretanto entendemos a que discussao

de situacao pertence a Frasedo fil6sofo: os ultimos

elitistasabertos, diante da derrota certa, reiinern seus

argumentos para arquivo.

Apresentemos a situacao em outro contexto: a

deslegitimacao da nobreza politica foi e permanece

1. Die gezStigeSituation t i e r Zeit. B ed im e N o v a I or qu e, 1 97 9, p . 1 7 7. 85

,ltI,i!II:jil!i,r !I!IL)I,,. ' . 1 , i i i i i

 

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o DESPREZO DAS MASSAS

sendo a primeira paixao burguesa que se impoe, so-

brepondo epocas, como exigencia de mentalidade

polftica: ela distribui a ordem do seculo, a qual se

subordinam as ordens do dia da cultura. Acima da

terce ira classe nao devem estar mais a primeira e a

segunda - a nova era mundial quer fazer valer un i-

versalmente a equacao entre homem e cidadao, Se

houvesse nobreza, como eu suportaria nao ser urn

nobre? Portanto, nao ha nobreza! - a doutrina

polftica do homem no tempo burgues tern seu fun-

damento nesse silogismo de afeto. E se ainda exis-

tissem clero ou espiritualidade - mais claramente:

formas de espiritualidade e intelectualidade distan-

ciadoras e por isso outorgantes de liberdade -, onde

futuramente teriam seulugar no sistema dos iguais?

Onde estaria a altura aberta, pela qual se sabe do-

minado sem que 0 reflexo de revolta a turve?

Por meio do afeto igualitario e expresso infini-

tamente mais do que apenas a capacidade do narci-

sismo plebeu e pequeno-burgues de aticar epidemias

psiquicas. Ele tambern ultrapassa em muito 0mero

ressentimento antiaristocratico. Nele articula-se 0

postulado de epoca de que todo tipo de diferenca

antropologica teria de ser declarado irreal e invalido

- e isto porque as distincoes desse tipo radical-

hierarquico no homem estavam a ponto de tornar-

se, na sociedade funcionalmente diferenciada em

surgimento, nao apenas superfluas como tam bernIj

n

86

SOIlRE A DIFEREN<;:A ANTROPOLOGICA

indecentes.' Como ciencia de uma e universal na-

tureza humana, a antropologia, que surge no seculo

XVI I e a partir do seculo XVIII triunfa, torna-se ao

mesmo tempo a ciencia da supressao da nobreza e

do clero, e mais ainda a ciencia da abolicao de todas

as supostas diferencas essenciais entre as pessoas .

Essa primeira ciencia humana engajada nao esque-

ce sua missao em tempo algum. Com seriedade

metodica e fineza estrategica ela persegue seu ob-

jetivo pretendido: se for necessario suprimir a pro-

pria essen cia - por causa das diterencas essenciais

a serem negadas -, ela tambern pagad esse pre<;:o.

Anriessencialismo nao e por acaso 0elemento logico

da cultura de massas, a qual estruturalmente perten-

ce a sociedade diferenciada em subsistemas. A dife-

renca essencial - este 0vestigio do An ci en R eg im e

que deve ser eliminado: a igualdade essencial- in-

dica a respublica vindoura 0 caminho. Aqui a an-

tropologia deve prestar ajuda: como a velha nobreza

procurou fundamentar sua diferenca essencial a

partir do nascimento elevado e seus direitos exclu-

sivos, agora a burguesia lanca urn discurso sobre 0

nascimento igual e 0direito natural de todos, porem

2. Ver a esse respeiro Nikla s Luhmann, "Interakrion in Ober-

schichten: Zur Transformation ihrer Sernanrik im 17. und 18.

jahrhundert", in N. L., Gesellschaftsstruktur und Semantik,

Studien zur Wissenssozi%gie der modernen Gese//schaft, vol. I.

Frankfurt , 1980, p. 72-161. 87

1 1 !) t " _ _' 1 , 1 1 " !!, i ii ,l i . , I ! i l . , _ j Ii ill

 

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o DESPREZO DAS MASSAS

desta vez nao para atestar diferencas essenciais, mas

igualdades essenciais, casualmente tambern a nao

essencialidade do igual ou a nao obrigatoriedade do

inato. 0 tom de tais discursos foi corroborado por

Beaumarchais quando, em sua provocadora pe<;a

L a f oll e [ ou rn ee [0 d ia l ou eo ], faz com que 0 servo

Figaro, agora segurode si,no dialogo consigo mesmo

rerneta ao seu senhor uma provocacao profetica:

"0 que 0senhor Conde ja fez para ser urn homem

assim tao grande? Ele sedeu ao trabalho de nascer -

e tudo."

(Ato V, cella 3)

Seurn estadodemundo - expressaodeHegel-

pudesse perecer numa unica Irase,deveriamostrar-se

nessaspalavras: " Qu 'a ve z- vo u s f oi t p o ur t ou t c el a? V o us

vou s etes d on ne la p ein e d e n aitre - et rien d e plus!"

o trabalho de nascer: na superficie esta e a palavramais forte do mundo da igualdade - pois quem

aqui nao a teria tornado para si? - e, ao mesmo

tempo, e a incompreendida palavra basica de umaarte, ainda nao aprendida, de expor as diversidades

indisponiveis das pessoas a luz de seu trabalho para

nascer e suas projecoes biograficas e politicas.

Mas de inicio nao sefala de diferencas entre os

facilmente e os dificilmente nascidos na fixacao do

discurso dos sujeitos burgueses. 0 fato de 0proprio8

SOBRE A D1FEREN<;A ANTROPOL6GICA

acontecirnento ser motivo da diferenca e uma ideia

que, ate prova em contrario, nao pode ser pensada.

Nascimento e nascimento - com tal conviccao os

atores das coisas vindouras arrombam a porta de

acessoao futuro da especie, Toda igualdade tern seu

rnotivo na igualdade diante do acaso de ter sido

gerado e nascer. Sobre isso ninguern falou com mais

clareza do que Pascal, em seu D is eu rs o a o s G r an d es :

"Vosso nascimento depende de urn casamento -

ou, mais do que isso, de todos os casamentos daqueles

de quem descendeis. Mas do que dependem esses ca-

samentos? 0,_ uma visita ocasional, de uma conversa

ao ar livre, de milhares de ocasioes imprevistas."3

A grande cadeia de casamentos e forjada de

puros acasos, e quem descende do acaso nunca tera

nascido privilegiado." I nt er f oe es e t u ri nam n a se im u r,

este nao sera por muito tempo 0antigo suspiro pe-

los precarios primordios fisiologicos do tornar-se

pessoano afunilamento materna; a sentenca torna-se

3. Pensees,Secao 1,Artigo 12: D i sc o ur s s u r fa c o nd it io n d e s g r a nd s .

[Ed. bras.: Pensamentos . Sao Paulo, Martins Fontes, 2001.]

4. Nietzsche foi0primeiro a ver urn caminho de como 0acaso pode

ser reabilitado como motivo de nobreza: "Von' Mais-ou-Menos

- estc e 0 mais antigo nobre do mundo, a todas as coisas 0

devolvi , eu assalvei da servidao da f inalidade ' ' . [Ed. bras.: Assirn

F a lo u Z ar at us tr a I I! , A n te s do N as ce r d o S ol . Sao Paulo, Martin

Claret, 1999.J 89

 

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o DESPREZO DAS MASSAS

agora axioma antropologico e lema na campanha

contra nascimentos desiguais. Os acasos da procria-

craoe os canais de nascimento sao resumidos numa

unica contingencia comum. Vir a luz e tudo. Agora

ter nascido se apresenta como motivo suficiente do

direito universal do nascimento, que em todo caso

so se deixa dizer expres si s verb i s na Declaracao Uni-

versal dos Direitos Humanos de 1948 como uma

"dignidade" que a todos cabe, sem excecao. Nessa

expressao condensa-se 0 paradoxo, que fundamen-

ta os tempos modernos, de urn p riu il eg io p ar a t od os .

Realiza-se a dernocratizacao da disrincao. Porque a

todos cabe dignidade humana, todos podem levan-

tar os olhos i,ara todos. 0 homem tern em si mes-

mo a diferenca vertical.

La onde, pela primeira vez na historia da huma-

nidade, a democracia inclusiva deve ser ousada, ela

evidentemente nao pode renunciar as suas garan-

tias ginecologicas. Titulo hereditario e direitos ex-

clusivos ficam de lado onde medicos burgueses

assumem 0 trabalho. Rousseau recebe de Hobbes 0

bastao no escalao da subjetivacao. 0 homem nascelivremente e mesmo assim em toda parte atado a

correntes; em toda parte as pessoas sao partejadas

de modo quase igual, e mesmo assim todos nao de-

vern ter nem mais nem menos liberdade do que

bebes que, depois da separacao do cordao umbilical,

sao entregues aos seus educadores , os verdadeiros0

SOBRE A DIFERENC;A ANTROPOL6GICA

formadores de pessoas. Por isso, a epoca pertence

aos professores e ginecologistas, que definern seus

campos de atividade de modo tao extensivo como

nunca. Ninguern deve poder privar-se de sua com-

petencia nas questoes de producao humana: da feto-

gogia para a pedagogia rumo a antropologia.?

Devido, inclusive, a efidcia quase contfnua des-

ses especialistas em gente, a epoca burguesa co-

meca como epoca das nacoes, isto e, como era

mundial dos grandes coletivos de natalidade, nos

quais as pessoas entendem sua igualdade como

igual-partejados, como recern-nascidos naruralrnente

identicos no rr-esmo espa<;o natal." Uma nacao e

antes de tudo urn posto de maternidades, depois

disso, primeiro uma rede de reservistas, em segui-

da uma rede de escolas primarias e secundarias, e

5. Ja no secu]o XVI I novos pedagogos tambern estendem sua rei-

vindicacao de formacao humana a nobreza, cujas praricas deeducacao de manei ra alg llma seadaptam aos modelos e meto-

dos morais da formacao burguesa, 0 teosofo e teorico do Estado

Johann Joachim Becher, em urn texto de 1669, atribuiu direta-

mente aos nobres 0 faro de educarem seus filhos merarnente

para serem "bestas nobres" , A Becher tambern remonta a ex-pressao "antropogogia", teoria da criacao humana.

6 . Sobre a relacao ent re nacionalidade e natal idade, ver deste au-

tor: Versprechenauf Deutsch. Rede auf das eigene Land, Frank-

furt, 1990, p. 53-67, capitulo 4: "Civilizacao de cima c de

dentro. Introducao a teoria da irnigracao geral", assirn como:

Zur Wel t kommen. Zur Sprachen kommen. Frankforter Vorle-

sungen. Frankfurt, 1988, p. 99-143, capitulo 4: "Poetica do

parto". 91

! ! . . . ' 1 ! T f 'l F!I! i ! i ! l ,!I'! !ll ,:1,/ . J ! , ! ,! , l in i iii i ll : :

 

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o DESPREZO DAS MASSAS

por fim de bancas de jornal e teatros. Mas a nacao e

sobretudo urn posto de genialidade: aqui nascem

grandes homens que nao precis am mais de arvore

genealogica que remonte ate hero ise deuses, porque

eles mesmos pertencem diretamente a natureza. A sreacoes entre essas instancias - e algumas outras,

sobretudo economicas - de moldagem e forjadura

humanas/ produzem 0 efeito "sociedade moderna".

Caso queira experimentar nessa era 0 modo

como os novos iguais pensam sobre sua igualdade,

entao basta dar uma olhada nos livros de texto dos

auto res e compositores abalizados, onde alguern

conclamado a senhor de si justamente aprende a

produzir os S0'1S naturais da ernancipacao. Se in-

dagado sem rodeios "quem e voce?", ele responde

sem pestanejar com Papageno: "Urn homem como

voce!" Caso se queira saber do que ele por fim gos-

taria, entao retruca com Leporello: "Vogliofar il

gentiluomo / e non vogliopiu servir". Ser pessoa sig-

nifica agora se demitir do service e, com 0 service,

da diferenca encontrada." 0 homem democratico

descobre em si, sob 0 efeito do principio da serne-

I

7. Ver Walter Seit ter, Mensehen fa s sungen . S t ud i en zur Erkenn tn i s-

polit ikwissenschaft . Munique, 1985. 0 autor, em referencia a

Michel Foucault, lembra a nocao-condutora da moderna "cien-

cia policial": fazer de genre pessoas.

8. No inicio do seculo XVIII Jonathan Swift, em suas satfricas Precei-

to s para 0 us o do pessoaldomest ico, ja havia elaborado regras, que

lireralmente entendidas, levam 0 criado 11sabotagem do service.2

SOBRE A D1FEREN!;:A ANTROPOLOGICA

lhanca de todos em relacao a todos, reservas quase

infinitas de misericordia para com aqueles que sao

sobrecarregados e muito abastados. "Quanto menos

ele se deixa ofuscar, tanto mais deixa que 0 toquem.

Quanto menos respeitoso e, tanto mais causara im-

pressao."? A simpatia substitui a condescendencia,

Atraves do repiidio da diferenca encontrada, a

antropologia polftica moderna entra em urn esta-

gio no qual- como se costuma dizer na linguagem

do jovem Hegel- segue as massas. Recentemen-

te, Alain Finkielkraut, em seu livro A humanidade

perdida, encontrou uma feliz expressao para esse mo-

mento. Desde que 0 grande misterio das pessoas ,

diz 0 autor, 0 misterio de sua igualdade medrosa-

mente guardado pelos senhores, foi difundido a

partir do seculo XVII entre outros pela indiscricao

arrependida do grande Pascal, os conternporaneos

comes:am "a viver sua desigualdade de outra for-

rna". Creio que nunca houve melhor definicao para

o experimento da democracia moderna. "Vivre

autrement l'inegalite ."10 Com essa formula diante

dos olhos pode-se reperir a pergunta sobre 0 que a

era mundial democratica tern em vista para mim as

pessoas, esperando por uma resposta acertada.

9. Alain Finkielkraut. L' Humanite p er d ue . E s sa i s u r 1 e : X : X siecle.

Paris, 1996,p. 33. [Ed.bras.: A bumani dade perdida. Sao Paulo,

Atica, 1998.]

10 . Ib idem , p. 31. 93

~ . ea ! ! !! !. . m k i i i h H l l l i m i 1 ! i , l I I i m n , f H i l l l i! i i 1 I . , l l I Ii ! i J i iI . m I l I I i , j, i i , m I l I I , !! : i i m l l ll J I , i i i 1 W ; r t L l ' !m ' l , : m m n _ l l l i ! o . ! f fi m l l l l f f lf f l l 1 l l i! 1 ' f f l I r i Im J ! I ! I m , \ l l f 4 ! 1 ! 1 m I H I ! I I I I , Ii i l l ! :: : ; ; , u 1 l l l 1 . . L"'"""c"'""",,,."' ...........l i l I n H H " i i i ll i f l l f i1 D i I f t l H D " f i i i l n m : : ii h l I m M l h l i i i i! l I i M M l l l l i i t l i i ll i i 1 J i i I i i l l 2 i 1 I I I i I I I

 

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o DESPREZO DAS MASSAS

o projeto democratico baseia-se na deterrni-

nacao de interpretar de outra maneira a alteridade

das pessoas - de modo que as diferencas achadas

entre elas caduquem e sejam substituldas por dife-

ren<;:asfeitas. Entre achar e Jazer sao gerados no fu-

turo os limites mais veementemente disputados:

aqueles entre interesses de conservacao e progredi-

mento, entre submissao e autodeterrninacao, entre

percepcao onrologica e 0 Irnpeto construtivista de

tornar novo e diferente, e por fim tam bern aqueles

entre h ig h and low c ul tu re . Quando Jaspers, no ini-

cio dos anos 30, pode falar de uma ultima campa-

nha contra a nobreza, com isso ele expressava sua

avaliacao realist.; de que, a partir de entao, os faze-

dores de diferenca chegariam ao ponto de arrancar

das maos dos supostos achadores de diferenca as

posicoes de retirada que lhe restaram - na filoso-

fia, na pedagogia, nas relacoes entre as sexos e por

fim e sobretudo na arte, 0foco da diferenca velho-

novo. Eles chegaram a esse ponto porque esclarece-

ram 0 argumento geral contra 0 achar diferencas

na natureza ate 0 ponto em que cada usuario pode

ernprega-lo apos pouco treino: nao importando 0

que seja apresentado como encontrado e existente

na natureza, pode ser desvendado como algo feito

ou interpretado pelos proprios interessados; toda

diferenciacao recai sabre 0 diferenciador. A partir

de agora realmente nao existem mais fatos, existem4

______________ SOIlRI' A IlIFERENt;:A ANTROrOL6GICA

apenas interpretacoes. Pluralidade de interpreracoes

significa disputa cronica na base sobre a senti do da-

quilo que em geral deve valer como basico - pois

tam bern nao existem mais condicoes externas da na-

tureza, so existem "construtos sociais". So existem

partidos em construcao no parlamento das ficcoes,

que chamamos opiniao publica.

Nele se pendura a cadeia de revis6es revolucio-

narias que se imp6em: nao ha senhores, so ha pro-

cessos de subrnissao: nao ha talento, ha somente

processos de aprendizagem; nao ha urn genio, ha

somente processos de producao, Nao ha autores,

ha somente prc.::essos de programacao - e progra-

mados programadores.

Tao logo essas correcoes na imagem classica da

natureza das coisas se generalizem num consenso,

todas as figuras tradicionais da diferenca antropolo-

gica sao anuladas, nao apenas nos jogos lingufsticos

da classe teorizante, como tambem no cotidiano da

sociedade mobilizada. Os idolos que a diferenca

metafisica entre as pessoas havia estabelecido sao

derrubados sem excecao - cornecando com os Ido-los teocraticos, Ha muito estamos tranquilarnente

convictos de que nada nos falta se a nos nao mais se

mostram reis-deuses, encarnacoes, avatares e ilu-

minados. Nossa cultura politica como urn to do e

construida sobre a negacao da primeira diferenca

antropologica - nao queremos mais ouvir nada

I

I

'1

95

,!III-,F_,n]!.:[, I ! ! ' ! II,

 

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. . . . . . . . . . U l l l l l i l i J l l l l l i t m n l l l l l f l i i i i i n f i t i l i i n id ii i 1 m m !f l l . i ! m m !i l j l ! I ! m m !l j l , l m ll l l ! ~ m , ! I ! I l i , l J in ,: J ,1 II I ! ! . i J im m !f " , ! l I I I ! f J ,l I I I I l i i ' l i i l m l! 1 .I ' f ! l l m l! i i i i J lI I ! i i i i i l l l ! , I l M T ll l i i ! I I I I I I I . . . _ .- , " " " " , " " " ' " , , _ ," ' " , , . " " • • ' . . . . l m II 1 II I n 1I l H II ! I I I I i l l l l l l l l l l l . . .

o DESPREZO DAS MASSAS

sobre deuses que poderiam estar persistentemente

presentes no homem e que em meio ao genera podem

condicionar uma diferenca entre pessoas-deuses e

meras pessoas. Simpatias sentimentais pelo Dalai

Lama nada mudam; interesses sentimentais por urn

certo Cristo e suas duas naturezas, das quais uma

perturba decisivamente, tampouco. A diferenca na

qual se baseavam os teocratas, nesse meio tempo

parece para a maio ria das pessoas, excluidas minus-

culas subculturas religiosas, tao ridicula que em prin-

cipio nao e preciso comprovar detalhadamente que

ela nunca pode ser uma diferenca realmente encon-

trada, mas somente e sempre uma diferenca incons-

ciente - ou ruais grave ainda: diferenca feita de

forma fraudulenta. Era 0sentido do atefsrno politico

destruir toda religiao historica, na qual puderam ser

encontradas aspremissas de uma diferenciacao seria-

mente realizavel entre homem e homem-deus.

Os modernos tambern nao tern muita pacien-

cia com a segunda forma da diierenca antropologica,

aquela entre 0santo e a rnultidao profana. Pois como

se pode mostrar facilmente que os chamados santos- quando nao foram meros projetos da rnultidao

- nao passaram neste caso de atletas que se sub-

metiam a rotinas espirituais de treinamento muito

pouco usuais - das quais as mais excessivas consis-

tiam em passar decadas sobre uma perna so ou amar

todas as pessoas sem restricoes as suas qualidades!

j

I

96

SOI lRE A DIFERENC;A ANTROPOL6olCA

- tais exercicios hoje praticamente pararam de des-

pertar urn interesse publico. A exortacao para espe-

rar por uma nova geracao de santos so encontra

credito ainda numa forma de jogo urn tanto atre-

vida do catolicismo intelectual. 11

A sociedade moderna, de acordo com sua logi-

ca, fez certo ao substituir os santos por atletas de

ponta - e a maioria pecadora por espectadores. Alern

disso, 0cristianismo ja desenvolvera a ideia do santo

para 0 coletivo e preparara na communio sanctorum

a figura imaginaria daquela "democracia crista", que

na modernidade deveria tornar-se uma fac<;:aoen-

tre outras, Nela e imaginada aquela "boa massa"

como conjunto de individuos obedientes, que deve-

ria retornar como a verdadeira massa de cooperado-

res revolucionarios nos textos canonicos da esquerda.

Os pintores do Renascimento italiano anteciparam

a transicao para 0humano homogeneo, quando, no

seculo xv , come<;:aram a representar as pessoas da

Historia Santa sem as aureolas, ate enrao obriga-

torias. Quem fala da perda da aura, trata desse refluxo

da transcendencia. Na modernidade0

alem tornou-se tao discreto que chegou ao ponto do irreconhe-

civel: agora Deus renuncia nao apenas a capacidade

,I

11. Para urn exemplo de apelos catolicamcnte motivados aos san-

tos como supos tas unicas f iguras futuras de Homo s ap ie n s, ver

Carl Amery, D ie B ots ch aft d es J ah rta use nd s. V on L eb en , T od u nd

Wurde . Munique e Leipzig, 1994. 97

 

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o DESPREZO DAS MASSAS

de encarnar-se numa pessoa singular, ele perde da-

ramente tam bern 0 interesse em brilhar atraues de

certos indivfduos,

No que diz respeito a figura mais universal da

diferenca antropologica, aquela entre 0 sabio e a

rnultidao - uma diferenca sem a qual nenhuma

das altas culturas historicas pode viver -, no solo

da Europa e dos EUA ela foi apagada em men os de

duzentos anos por urn esdarecimento duplo: 0pri-

meiro golpe contra 0 conceito do sabio foi dado

pela teoria da evolucao, que retirou 0 predicado

sapiens da oposicao ao termo i ns ip ie n s v u lg u s para

transforma-lo diretamente, e sem escrupulo peda-

gogico, em nome de especie: Homo s ap ie ns s ap ie ns .

Ve-se aqui como 0 igualitarismo cienticista cospe

duas vezes com uma expressao nos pes dos filosofos

elitistas. 0 outro golpe e dado pela moderna cultu-

ra da crfrica, na medida em que substituiu 0 sabio

pelo intelectual, cornecando com os philosophes do

seculo XVIII - Diderot: "Apressemo-nos em tornar

popular a filosofia!" - e terminando pelos ceticos,

convencionalistas e desconstrutivistas da atualidade,que em geral querem derrubar 0 conceito do saber

soberano e positivo baseado na evidencia. Onde 0

saber perde seu papel de fundamento baseado no

objetivamente real e nao deve significar mais do que

urn meio da suposicao superior e urn auxilio para a

escolha sempre dilematica entre males menores e8

i iii i i ,i i .l , ii L i ! , I i " j, 'I ,i iJ :i "i i. i/ "i .i ii !i . :: Ii .Ii

SOBRE A D)FEREN~'A AN'IH())(>I/)(;)eA

maio res, Ia a avancada democracia da inforrnacfio

fundamenta a si mesma como uma reuniao de ig-

norantes mais ou menos iguais, que numa penum-

bra geral, aquern do tragico, procuram por solucoes

relativamente melhores para seus problemas de vida

relativamente generalizaveis - Rorty pronuncia a

mudanca abertamente quando estabelece a "prima-

zia da democracia diante da filosofia". Por essa razao

em todo 0mundo crescem como erva daninha aque-

las comiss6es de etica que, como insti tutos da destro-

cada filosofia, querem substituir os sabios." Quem

nao quiser aderir a essa comunidade de trabalho dos

esdarecidamente nem-tao-sapientes, agora deve deixar-

se marginalizar sob a alcunha de fundamentalista.

De fato, medidos a partir do saber pos-rnoderno,

fundamentalistas sao na melhor das hipoteses demo-

cratas nao-concomitantes, que, de uma maneira

ultrapassada, acreditam em urn saber incondicional-

mente orientador - urn saber que nao esta a dis-

posicao deles, mesmo que 0mundo estivesse cheio

de convencionalistas.

Assim, resta resolver apenas a quarta figllra da

envelhecida diferenca antropologica, aqucla en trc

o talentoso e 0 nao-talentoso - lima dilcrcnciacfio

12. Por issoa exrincao do fi16sofo-autor do ripo Adorno c sua slIhs-

t iruicao pelo modelo do filosofo de congrl'SSO e comissao. 99

 

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o DESPREZO DAS MASSAS

cuja abolicao seria mais dificultosa para a sociedade

moderna do que outras diferenciacoes metafis ica-

mente codificadas sobre 0homem, porque com esta

ela toea 0seu proprio mito do estabelecimento. Mas

a cultura de massas em processo tampouco perdoa

seus estagios anteriores. Com certeza, quando a cam-

panha contra a nobreza e 0 indignante superior esta-

va no infcio, a mais importante estraregia da burguesia

ofensiva foi deslegitimar a nobreza feudal, na medi-

da em que se reportou a uma nobreza mais valida, a

aristocracia natural do talenro e do genio. "Nobreza

do espfrito" e urn lema de epoca, nao apenas urn

titulo ocasional de livro.P Ele explica por que imi-meros indivfduos no tempo burgues puderam acre-

ditar ganhar participacao, grac;as a formacao, nos

nobres bens humanistas. Alern disso, ficou visfvel

que a mera nobreza hereditaria, medida de acordo

com a formacao, muitas vezes nao passou de urn

barbarismo consciente de seus modos. No casu da

aristocracia inglesa, particularmente, seu carater pre-

alfabetico foi muitas vezes atestado. "Assim falou 0

Duque de Gloucester a Edward Gibbon por ocasiao

da publicacao de seu livro Declinio e q ued a d o Imperio

Romano: 'De novo urn maldito livro grosso, nao e,

Mr. Gibbon? Rabiscos, rabiscos, sempre rabiscos, nao,

. t

10 0

13. Ver Thomas Mann. Ade! des Geistes. Sechzehn Versuche zum

Problem der Humanitat: Estocolmo, 1948.

SOIlRI: A I>iFFlU:N~'A ANTIH>i'(>i ()(lUA-----------------------------Mr. Gibbon?"14 No que diz respeito a veneracao bur-

guesa diante da obra, no auge dos Estados nacionais

ela foi responsavel pela capacidade do publico -

hoje tao surpreendente para nos - de cuidar de

seus classicos dando 0melhor de si. Mas essa alianca

de atencao, como se reconhece posteriormente, foi

atada por urn laco cujo afrouxar e rasgar so podia ser

uma questao de tempo. Os grandes aurores e artistas

da era burguesa atuaram como condutores numa

revolta contra a nobreza hereditaria entao obsoleta

- nessa guerra of ens iva das novas contra as velhas

arnbicoes, que ha mais de duzentos anos atravessa

como urn corte todas as gerac;6es modernas.o que entao vern depois acontece de acordo

com uma legalidade sobre a qual ja surpreende que

nao se a tenha investigado com mirnicia muito

antes. Os partic ipantes de uma batalha nao sao mais

os mesmos depois dela; justamente 0 sucesso total

faz com que se cans em dos proprios estandartes do

front, Apos duzentos vitoriosos anos da religiao de

talento, para os agressores 0mundo parece mudado.

Urn dia caira diante de seus olhos, qual caspa, que

eles conceberam tam bern a natureza, essa grande

ali ada do levante burgues, como uma corte na qual

14. Marshall McLuhan, Die magischen Kana/e. Understanding

Media. Dusseldorf e Viena, 1968, p. 21. [Ed. bras.: Os meios de

comunicaiiio como extensors do bomem, Sao Paulo, Cultrix,

1998.] 10 1

t.* I I I I I I I I I I I I I I II I I I I I I I ! I i !I ! I ! I i !I ! I ! I ! I II ! I I I ! I ! Ii ! I ! ! II n ! I I I ! ! !I I ! ! I ! I !I I I I I I I I I I I !I I I I ! • • I I I ' + . · · · ' : - - ' . ' - ' I . I I I ! m ., , " m m I I 1 l l 1 1 " " " I " I I , · f I rm

n li ll l ' l : i : F l i T i : : : ' l ' ! ' ,' , i ; i I ; ; F " i : ! : i i ;! ' ; i : i i i . : !. ' I . i , . ; ! i. " . i ! l . " . " . ' " . , .l ! i ~ . , ~ , ~ . : . i l ~ . I . I I I . ' . ! r r m r J ! • . ! . [ I H . l I . r n. m . . -. , . • I , " I " ' 1 . " " ' I I I I I I I I I m m I I I I I I ! ! I I ! ! I I I I I I I I I I _.. "" "",' ' ' '' ' ' ' '' ' ' ' '' '."1 ",,, .. \1 .1 '1 .1 ,,1 .111 ..,. I.!iH n ',_ I.,,:m ;rllm :L ,.,.,II,;,II III_ I,H ."'U, . "'H" ,",. _ " . ." ." . .. ' __ ,',. T I.III· ! i ll!l lIil. 11 Il i ll lI~

 

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o D ES PREZO DAS MASSAS

existern protegidos e papeis favoritos. Portanto, ob-

servada a luz do dia, a natureza e tao injusta e ca-

prichosa quanto 0prfncipe absolutista, rna is ainda:

ela e 0 absolutismo do acaso em sua mais pura for-

ma. Com essa observacao, talento e genic tornam-

se indecentes para todos os que tam bern devem viver

de aparecer" - primeiramente e urn mal-estar, em

seguida 0 odio com seu corolario de boas razoes.

o desejo de extincao e nivelamento vern a tona nas

fendas do folhetim. A matilha instigada descrita por

Canetti aparece como centro instigado. Ela coloca

na ordem do dia das ideias politicas a liquidacao da

nobreza natural ou de talento. Agora nao se podemais ouvir 0 tom distinto, seja 0 recentemente ele-

vado ou 0mais antigo, e, pensando bern, de forma

alguma 0tom talentoso. 0 lema a partir de entao e:

primazia da democracia diante da arte!

Como confirma todo observador livre da his-

toria da arte atual, 0 drama da arte moderna e inti-

mamente perpassado por tensoes desse tipo; sem

consulta a ordem de executar a auroliquidacao do

genio nas formas da propria arte, amplas partes

do acontecimento artfstico permanecem intrans-

ponfveis no seculo decorrido. Ve-se 0 exemplo de

Joseph Beuys, que come<;a como genio e termina

como assistente social; ve-se Andy Warhol, que

102 15. A forrnulacao e de Niklas Luhmann.

; i i i iii nam h , .I I I, 1 , ; ' " r " : " ' . I · , _ ! Ii, 1 , 1 1 , I . i.1

SOBRE A DIFEREN<;:A ANTROrOL6GICA

transforma cedo dernais seu talento em fazer arte

para 0de fazer dinheiro, e com isso cumpre 0 crite-

rio da popularidade da maneira que pode Iaze-lo

urn astro da falta de sujeito; e ve-se sobretudo Marcel

Duchamp, sem concorrentes como 0artista do sin-

toma do seculo, porque emancipou do talento no

atelie a arte de expor quase-obras infiniramente

interpretaveis e, com maior presen<;a de espfrito do

que todos os outros, com urn sorriso budista nos

labios, forneceu a prova de que aquilo que agora

importa se alcanca melhor quando nao nos deixa-

mos iludir por muito mais tempo pelo fetiche do

talento. Talento, como ate agora foi entendido, so

incomoda. Para aquele que 0possui ele nao passa de

uma armadilha; para aquele que nao 0possui, somente

urn aborrecimento. G en iu s g o h om e. Assim que isso

foi escrito, em principio alcancamos clareza sobre

as premissas da cultura conternporanea e podemos

nos vol t ar agora as conclusoes, Entendemos que as

lutas culturais nas sociedades modernas eram mais

do que os reflexos sernanticos de conflitos sociais,

sejam eles lutas culturais e de sexo, sejam atritos en-tre culturas de maio ria e minoria ou tensoes entre

poderes eclesiasticos de mentalidade e secularismo

ofensivo." Elas tarnbern representaram mais do que

16. Pertencem ao mesmo plano aslutas culturais tambcm rcgistradas

ou prognosticadas por Peter Glotz no "capi tali smo digi tal",

especialmente no front entre a "classe" rapida e a lcnta. [03

 

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o DESPREZO DAS MASSAS

as projecoes culturais da guerra civil mundial " en-

tre os partidarios da ideia de liberdade e os da ideia

de iguaIdade, guerra que constitui 0mais abrangente

acontecimento conflituoso do seculo xx. Mais do

que isso, mostra-se que 0fenomeno da lura cultu-

ral como tal e a disputa na qual se discure sobre

legitimidade e origem das diferencas em geral. As-

sim como a metaHsica religiosa viu-se perturbada

pela questao sobre a origem do mal, a sociedade

secular viu-se perturbada por saber de onde deve

tomar suas diferencas.

I

II

I

104 17. No sentido da reconst rucao de Dan Diner .

IDENTIDADE NA MASSA: A INI lI I 'I 'HI 'N ':A

5

E a vinganca da Historia contra nos, iguaIitaris-

tas, que tambern nos precisemos fazer nossas expe-

riencias com a obrigacao de diferenciar. Essa obrigacao

de aprendizado e inseparavel do programa politico-

antropologico do homem moderno de viver diferen-

temente sua desigualdade. Como mostramos, depois

da revolucio construtivista todas asdiferencas encon-

tradas devem ser reelaboradas em diferencas fabrica-

das. A s anti gas diferencas, a s quais nos submetfamos,

cedem a s novas, que nos mesmos produzimos - para

revisa-las com a freqiiencia necessaria.

o projeto de desenvolver a massa como sujei-

to alcanca seu estagio enrico tao logo pronuncie-mos a regra de que todas as diferenciacoes devem

ser realizadas como diferenciacoes da massa. E evi-

dente que a massa nao empreende ou faz valer difc-

renciacoes por meio das quais ela pendesse para 0

lado ruim - ela diferencia, tao logo imbufda dos

poderes para tanto, sempre e sem titubcar a seu favor. 105

- . . - . ' · · ' . · · . - ' 1 ' l 1 l i , " " ' I i I I I I II ! I T I " " l l l r l , I ', I ' , , n , . l n : , lr , , W ' , : r " , j ' , i i l :i i i j : i I T ; ; ' : '; ; " ' i T i : ' : i ' i '- ' I " i , r : i ,i i ; I " I : : ,' I " , ' I ' r ,1 ' , r , ' ! " , I , O , ' , ', ! ' I , ' I I, I I , I I ," , " , I I I ! 'I , ' I ' , r " I, 1 , 1 ' " I I ' , ! I I 'I I , I I , " II " , I I , - I I" , r , I ' , l II I I m , " I I ! m i ! 1 ' , l r " o o n , r r I l l l ! l I Mrl l l , r " " I I I " " , I I I I I £ , a I l l l Z , I I I , " . _

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o DESPREZO DAS MASSAS

I'

Ela anula todos os vocabularios e criterios que se

prestem a manifestacao de suas limitacoes: ela des-

legitima todos os jogos de linguagem que nao ganha.

Ela esti lhaca todos os espelhos que nao the assegurem

ser ela a mais bela em todo 0pais. Seu estado normal

eo de uma votacao originaria sobre 0prolongamen-

to da greve geral contra a reivindicacao mais alta. Nesse

sentido, 0projeto da cultura de massa e nietzscheano

de uma forma radicalmente antinietzscheana: sua

maxima chama-se revaloracao de todos os valores

como transformacao de toda diferenca vertical em

diferenca horizontal.

Mas ja que, como foi visto, todas as diferencas

sao efetuadas com base na igualdade, portanto em

uma impossibilidade preestabelecida de diferenciar,

todas as diferenciacoes modernas estao em maior ou

menor medida gravemente ameacadas pela indife-

rens;a. 0 culto a diferenca da sociedade atual, expan-

dindo-se da moda a filosofia, tern seu motivo no fato

de que sesente todas asdiferencas horizontais, e com

razao, como sendo fracas, revogaveis, construidas. Por

enfases veementes elas sao intensamente ratificadascomo se agora tambern valesse para diterencas a lei

da sobrevivencia dos mais fortes. Mas todas essas

manobras realmente nao fazem efeito, poisos formi-

daveis designers e pensadores da dilerenca em ponto

algum instituern uma diferenciacao, mas uma pate-

tica nao-diferenciacao, por sinal com 0axioma igua-06

_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ : : : I D _ : : _ E NI D A _ : : _ D; ~ N A M A S S A : A I N I l I I ' l 'l ( I 'N ( :A

li tario que pretendente que toda diferenciacao parta

da massa, que por sua vez e indiferenciada per de fi n i-

tion em - desde que seconstitua de particulas homo-

geneas que supostamente se esforcaram igualmente

para nascer. 0 principio da identidade, no qual se

baseava a filosofia classica, continua existindo, visto

por esse angulo; chega ate a adquirir validade mais

poderosamente do que nunca, s6 que mudou de

nome e aparece mais secundario, mais negativo, mais

reflexivo em uma dimensao, Onde havia identidade,

deve aparecer indiierenca, ou melhor, inditerenca di-

ferente. Diferenca que nao faz diferenca e 0 titulo

logico da massa. De agora em diante identidade eindiferenca devem ser entendidas como sinonimos,

Mais uma vez, sob as premissas aqui esrabele-

cidas, ser massa significa diferenciar-se sem que faca

alguma diferenca, Indiferenca diferenciada e 0mis-

terio formal da massa e sua cultura, que organiza

urn centro total. Por essa razao, seu jargao nao pode

ser outro senao 0de urn individualismo afiado.

Quando juramos que tudo 0 que fazemos para ser

diferente em verdade nada significa, podemos fazer

o que sempre nos vern a mente. "Hoje a cultura

bate em tudo com a sernelhanca."' Somente por

1. Theodor W Adorno, Gesamme l te S c h ri f ie n 3. D i al et ik d e r A u jk li i-

r un g . P h il os op h is ch e F r agm en te . Frankfur t, 1984, p . 141. [Ed.

bras.: D i al et ic a d o e sc la rc c im e nt o. F r agm en to s j il os 6j ic o s. Rio dc

Janeiro, Jorge Zahar, 1985.] 10 7

 

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o DESPREZO DAS MASSAS

isso, no decorrer do ultimo meio seculo pudemos

sair de uma massa preta ou molar para uma mole-

cular colorida. A massa colorida e aquela que sabe

ate onde se pode ir quando se vai longe demais -

ate 0limiar da diferenciacao vertical. Como no espa-

c;:ogualitario nao somos objetivamente provocado-

res entre nos mesmos, olhamo-nos reciprocamente

em nossastentativasde nos fazerinteressantes,mais ou

menos agradaveis, ou despreziveis.A cultura demas-

saspressup6e 0 fracassode todo fazer-se-interessante,

e isto quer dizer fazer-se-melhor-do-que-os-outros.

E isto com razao, po is e seu dogma que somente

nos diferenciemos entre nos sob 0 pressuposto deque nossas diferencas nao fac;:amdiferenca. A massa

compromete.

Uma simples lembranca mostra por que a rno-

dernidade aposta na indiferenca: sea fonte de nossas

diferencas Fossetranscendente, portanto verfamo-nos

objetiva e normativamente diferenciados em termos

de alto e de baixo pelos oHciosde Deus ou da natu-

reza, entao nossas diferencas teriam sido instituf-

das antes de nos e so poderfamos encontra-las,

respeita-las, elabora-las, destaca-las: so os satanistas

se insurgiram, e ja faz tempo, contra a ordem obje-

tiva do cosmo da essencia e das categorias. Pensar

assim ja era fato para a Idade Media e ainda quase

natural para a era do classicismo burgues. A socie-

108 dade de ordens precisava de vantagens ontologicas

~

. . ' C • . •::

Ii Ii hi if, I II IJ I II I I i i i , . I , .J ii i, j' ; : i

IDENTIDADE NA MASSA : A INl li FEREN~ 'A

para as suas hierarquias e delimitacoes. Mas agora,

apos a grande investida rumo a igualdade e a nova

capacidade demoldagem de tudo, queremose deve-

mos existir antes de nossas diferencas, contanto que

sejam feitas diretarnente, e nao achadas. A priori-

dade de nossa existencia ante nossas qualidades

e obras desencadeia a indiferenca como primeiro e

unico principio da massa.

Mas onde a massa e seu principio de indife-

renc;:aformam 0 ponto de partida, la se bloqueia a

arnbicao moderna por reconhecimento por si so,

porque sob essas condicoes 0 reconhecimento nao

pode mais significar alta estima ou homenagem, mas

- falta em nossa lingua a expressao - baixa esti-

rna ou igual estima no espac;:oneutro, justa conces-

sao de uma insignificancia que nao se contesta de

ninguern. Claro que se evita, 0 quanto se pode, 0

jufzo de que igual estima ou alta estima seexcluem

reciprocamente. Mas asevidenciasatmosfericas falam

por si: a luta geral por reconhecimento, ou somente

por lugares privilegiados, produz urn engajamento

van por urn soberano banal que nao oferece reconhe-cimento algum alern de urn aplauso ocasional -

por aquela opiniao publica nao espectfica que se de-

nomina geral e sobre a qual agora sabemos ser

composta como plenario irnaginario dos nao-dife-

renciados. Quem logra diante desseforum, nao pode

mais estar certo seseu exito,medido por velhasideias 109

 

,

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o DESPREZO DAS MASSAS

de alta estima, nao e mais inconsolavel do que pode-

ria ser todo fracasso. Nessa situacao, e inconsolavel

o papel igualmente exercido pela critica. Triste-

mente inserida em seu espayo de manobra, ela acha

no mais das vezes born e muito born tudo 0que nao

obtern exito especial na tentativa de diferenciar-se

vantajosamente, enquanto separa por instinto 0que

e realmente especial e julga com condescendencia,

ou mais do que isso, ja que mira de baixo 0elemen-

to superior, com cortante intransigencia.

Ao olhar para as premissas explicadas, enten-

demos por que isso nao pode ser diferente. Depois

que Deus morreu e a natureza foi desmascarada comoconstruto, caem por terra as unicas instancias que

poderiam ter feito boas excecoes. As excecoes de

Deus revelaram -se casos de graya; as excecoes da

natureza, monstros ou genies. Quem quisesse se

dar ao trabalho inoportuno de folhear os tratados

sobre a graya do tempo dos doutores, veria confir-

mado 0 resultado de que os discursos medievais

sobre os carismas, as excecoes das miseric6rdias de

Deus, representam 0mais amadurecido sistema ja-

mais inventado para reproduzir as diferencas, enig-

maticamente profundas, entre pessoas em bases

transcendentes. As grayas eram as leis de excecao de

urn deus que nao apenas governava, como tambern

dominava ate 0minimo detalhe. Por forca dessas leis

as diferencas entre os homens, tanto os disponfveis

I

11 0

' ~ h ~ ; : , t r " M l I I ! \ I ! \ m l l l ! \ l i I H i f l l l ! \ l i h i U m ! \ ' i . I \ l I I ! \ I " " I , i m I I , l J l ! ! ! l i L i i , I ! I ! I U ' i ! l ! I ! I j , i . U I ! ' r ! ! ! J ! ! ! ! i I ' ! ' , J " l I I ! \ I , . ; , L l I I ! \ I , ; , j l l l ! \ l L L . l I I ! \ I , , , J A l I I ! \ I l i 4 J I ! ! ! ! I . , , , l I I ! \ I _ ; : ! l l ! l f t U i ! l l ! l f t M i l il t . . L._ .

IDENTIDADE NA MASSA: A INlll I' l'HI 'NC;A

quanto os indisponfveis, foram esclarecidas num

nivel mais alto, porern de suposicoes obscuras para

dados vivenciaveis. Embora todos os seres abaixo de

Deus estejam reunidos no status de criatura, e nesse

sentido parec;:am iguais, her6is sagrados liberaram

de altas instancias decretadas a perspectiva de urn

sis tema intransponfvel de excecoes, Com sua prer-

rogativa de conceder e reter grac;:as,Deus rejeitou to-

das as expectativas de igualdade no sentido social e

exigiu dos fieis que se contentassem que, de modo

obscuro, na desigualdade aparecia a mais elevada

justica, Sem esse enigma majestatico da desigual-

dade, 0Deus cristae nao teria passado desde 0 inicio

de urn simulacro humanista. Urn resto desse numino-

so ainda hoje e sentido nos momentos irracionais

do mercado de arte, que destaca inconcebivelmente

alguns e empurra os outros para a escuridao da in-

vendabilidade. Na velha ordem justamente os mais

elevados talentos foram rambern interpretados como

oficios abaixo de Deus, oficios confiados a seus por-

tadores para a fiel adrninis tracao em ascensao. Ne-

les tornou-se visivel como convergiam servico egrac;:a.A cultura medieval era multicarisrnatica -

assim como a moderna e multipretensiosa.

Nesse ponto quero apenas indicar uma consc-

qiiencia inevitavel do enfraquecimento moderno das

diferencas, A sociedade conternporftnea rarnbcrn

nao pode deixar de formar em todas as areas possf- 11 1

i " ' ; ; ' ; - ! " - " ' I : ! q i ' ! ' ! ' t ' ! ! ; ! ~ l i : ! I I ' r ! ' I : ! I ; I ! [ ~ I ! ! ! ' r . r ! ! ! I ! l m m ~ l ! I n n m m n l m m l m ! i n i i i r i i l l l l l l h m i l l l l l l i ll i d . I l l ! l i 1 M i l l l l l l i i n M I I I I I I I I I ! l l ! l f tU A • • : : : . . . .

 

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o DESPREZO DAS MASSAS

veis escalas de valor, categorias, hierarquias - como

sociedade de concorrencia confessa, nao pode fazer

diferente. Mas ela deve conceder seus lugares sob

premissas igualitarias - e condenada a supor que a

diferenca entre vencedores e perdedores nos merca-

dos enos estadios nao produz e ocasiona diferencas

essenciais, mas representa tao somente uma conti-

nua lista hierarquica apta a revisao,

Aqui se anuncia urn ato de forca psicopolitica

sem precedentes na historia: a tentativa de conser-

var massas ageis, ciumentas, pretensiosas, que em

permanente competicao se esfalfam por posicoes

privilegiadas. Sem urn esforco permanente de saris-

fazer os coloca.los, uma sociedade de massas subje-

tivadas iria quebrar por suas tens6es endogenas de

inveja. Ela seria implodida pelo odio daqueles nos

quais fracassa 0procedimento civilizador empenha-

do em transformar vencedores nao colocaveis em

perdedores colocaveis , Dai, na sociedade modern a,

o esporte, a especulacao financeira, sem esquecermos

o empreendimento artfstico, deverem se tornar re-

guladores psicossociais cada vez mais significativos,pois nos estadios, nas bolsas e nas galerias os con-

correntes colocam-se amplamente pelo seu proprio

exito e reconhecimento atraves de seus resultados.

Como tais colocacoes sao diferenciacoes auto-reali-

zadas, elas agem como redutoras de odio, quando

11 2 nao reconciliadoras. Elas nao abolem a inveja ele-

I

i . Z ! i i i i l U i . i _ i M i l m m f f i l , [ f , i. i i h ) t l~ " . I " _ ! l _ ! H , ; ! " U A \ l J ,i..U ' d/ 1i T: :

IDENTIDADE NA MASSA: A INI lI ITHI'N( , 'A-----------------------------------mentar, mas the dao uma forma na qual possa movi-

rnentar-se. Elas legitimam a crftica como discussao

dos que estao a frente gra<;:asaos que ficaram para

tras - essa, a mais incontornavel instancia da venti-

lacao social. Colocacoes servem a informalizacao do

status e tornam verticalmente moveis sistemas sociais

estrarificados. Elas revogam a antiga ideia de hierar-

quia da velha Europa ao ranking conternporaneo.

Em lugar algum isto e tao desejavel e ao rnes-

mo tempo tao arriscado quanto no chamado setor

cultural e em seu funcionamento - desejavel, por-

que sob as condicoes atuais a novidade artfstica

pode, como nunca antes, esperar por uma recepcao

favoravel por parte de seus interessados; perigoso,

porque a diluicao dos criterios leva asartes para cada

vez mais perto do limiar do niilismo, e, alern disso,

as proprias obras se multiplicam e VaGate 0 limite

do lixo, ultrapassando-o. No sis tema artistico mo-

demo - como na democracia avancada em geral

- trata-se de desconectar 0patrimonio da afetivi-

dade feudal, sobretudo a submissao e 0 falso elogio,

mas de forma que nisso os sentimentos verticais, 0

sentido para mais alto e mais baixo, para mais valioso

e men os valioso sejam discretamente regenerados

num campo informal e, em constante abertura para

o novo, sejam reincorporados de maneira suficiente-

mente segura. As avaliacoes do artisticarncntc prirno-

roso ou notavel na situacao dernocratica se realizarn 11 3

" " " ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' t l ' I ' , ! " , ! ! I ! W !t l 1 : I I I ' l l l l I I l l n l l l l ' l l H l I I I I I I I i l l m l l l l ~ l I l t t 1 1 1 1 1 1 1 1 m "

 

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o DESPREZO DAS MASSAS

114

inevitavelmente de uma maneira que nao conhece

capacidade judicial de reclarnacao numa aptidao

para a objetivacao, e no entanto, quando nestas co i -

sas se perde 0compasso, 0diferenciar e valorizar de

forma geral deveriam dissolver-se,

Vis to desse ponto de vista, 0justa ou injusta-

mente assim denominado "Projeto da Modernidade"

e definitivamenre 0mais admiravel ernpreendimen-

to observado na hist6ria da humanidade. E sempre

born lembrar que a democracia apela, de modo ine-

dito, para a discricao de seus membros - para a

discricao no duplo senti do da palavra: como forca

de diferenciacao e como sentimento de compasso,

como sentido iJara inescritas relacoes de categoria e

como respeito por ordens informais do born e do

menos born - em constante consideracao as ne-

cessidades de igualdade e habitos de cornparacao,

A virada para 0 informal contem toda a aventu-

ra da cultura sob condicoes modernas. Os mundos

feudal e da sociedade de ordens puderam regula-

mentar, nestas como nas outras coisas, 0 que dizia

respeito a penachos, bras6es, costumes; quanto acategorias e prioridades, tudo apontava para visi-

bilidade e demarcacao publica. Cultura na demo-

cracia vive de uma heraldica invisivel. Ela pressup6e

a disposicao dos cidadaos para 0reconhecimento

nao-forcado do potencial mais elevado, da tenta-

tiva lograda e do esforco persistente, 0 que porern

i i im n m i i i M l i i 1 L i l iU J i , I , i l! f ! ! m ! l n m ~ ~ l ! m l t ~ m ! J " i ' i, . J ! J J , ~ _ f ' ; , _ . [ " I , , i i ii i 4 i. i ; ,i

IDENTIDADE NA MASSA: A INI lI I I'HI 'N( , 'A

ainda hoje e "rnerecido" no campo da cultura -

aqui nao ha uma moeda objetiva, nem creditos

que estivessem protegidos de revalorizacao, infla-

s:ao e falsificacao. Os artistas vivos mais significa-

tivos nao puderam queixar-se formalmente de umasociedade que acreditaram nao ter dado 0 devido

valor a seu rnerito. Eles dependem de que 0siste-

ma das discricoes informais, que cresce em meio a

decadas de paciencia e constante esforco cultural,

o saber do nivel, 0 senti do para a nuanca voltem a

se incorporar de forma suficienternente vivaz nos

novos e adicionais parceiros do jogo cultural.

Nesse campn, nos ultirnos tempos crescem, de

forma inquietante - mas como aludido, vindos

de muito longe -, erros de compasso, disparates,

desinibicoes e deselegancias, Isto e 0 que, com mi-

nha polernica contra 0"sintorna de Munique" em

fevereiro de 19992, sugeri no calor da hora. Se ali se

tratasse apenas de habitual dialetica de geracao e

efeito-escandalo, com os quais debutam talentos ,

entao nada mais haveria a ser dito. Mas 0que esta em

jogo nao concerne muito a arte como tal e a sua dina-

mica de rejuvenescimento movida pelo conflito, mas

a s suas mais recentes formas de funcionamento, apro-

veitamento e administracao. Todas elas querem ago-

ra ban car 0 senhor e nao mais servir, os Leporelli nos

2. Sicddeutsche Zeitung, 15 de fevereiro de 1999. I 15

 

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o DESPREZO DAS MASSAS

degraus do service publico, sendo eles assessores cultu-

rais ou exercendo outras funcoes em proveito proprio.

Os colarinhos brancos, os moderadores e crfticos

cresceram em quase toda parte a custa dos criativos

e deixam-se festejar como os verdadeiros criadores.Vejo em tudo isso vestigios de urn odio que sc

torna cada vez mais seguro de si, para com a excecao

que ainda representa uma excecao no sentido mais

antigo, vestigios de rancor daquilo que em sua rna-

neira nunca podera ser substirufdo e que justamente

por isso se quer substituir de forma tao rapida e in-

digna quanto possivel- porque somente 0permu-

ravel preenche a norma da indiferenca: alem disso,

vejo ainda ve~dgios de urn desespero ernbaracado,

que se move sobretudo em vista daquilo que lembra

o reino perdido da grac;a.Talvez, por menos oportu-

no que possa parecer, se devesse dizer mais uma vez:

no mundo que sucedeu a gracra, a arte foi 0asilo das

excecoes que restaram. Ela foi urn campo no ceu no-

turno, no qual de tempos em tempos nascia uma

estrela. Exposta a analise, a quem admiraria se a cul-

tura da uniformidade em franco progresso, que so

suporta determinadas diferencas diante do pano de

fundo de indiferenciabilidade, agora prepare os pro-

ximos golpes da derradeira e sem data marcada cam-

panha contra 0extraordinario?

Emile Cioran deu a urn volume com ensaios

116 sobre autores do passado e do seculo xx 0 seguintc

Ii II" ,. I +_ " nr ; : ) ,1 , j , " j j

IDENTlDADE NA MASSA : A IND IFERENC; :A

titulo: Exerc lc io s de admiracdo . * Confesso que nao co-

nheco uma expressao que pudesse articular mais per-

feitamente a funcao de urn trabalhador da cultura em

nossa epoca do que essaformula concisa, modesta, in-

teligente. Exercicios de adrniracao - de fato, em tudo

o que cornpoe a cultura, como a entendo aqui, tra ta-

se de urn esforco de nao perder completamente 0

rumo medindo 0 admiravel. A admi r ac ao referente

ao objeto concede asilo tambern ao talento, ao qual

nao nos equiparamos. Ela e urn sofrimento volunta-

rio de obras que nos mesmos nao somos capazes de

produzir, mesmo que tivessemos trinta e seis vidas.

Ela eabertura para a i luminacao da diferenca indisponi-

velmente maior. Com tudo isso, ela eo oposto daque-la critica que se reune no centro roralirario e so elogia

o que e como este. Quando muito, a formulacao de

Cioran teria de ser estendida a expressao "exerdcios

de provocacao", Somente pela provocacao surgem

ocasi6es para nao nos deixarmos afundar ainda mais.

Cultura no sentido normativo, e mais do que

nunca necessirio lembrar, abrange a quintessencia das

tentativas de provocar a massa em nos mesmos para

decidir-se contra si mesmo. Ela e uma diferenca para

melhor que, como todas as diferenciacoes relevantes,

somente perdurara enquanto e sempre que for feita .

* Ed. bras.: Exerc icios de admira ido. Ensaios eper fo . Rio de Janeiro.

Rocco,2001. 117

 

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Outras obras de Peter Sioterdijk

editadas no Brasil

A d ru ore m dg ic a. 0su rg im en to d a p sic an dlise n o a no d e 1 18 5,

tentativa epica c om r el ac ii o a f il os of ia d a p si co lo gi a. Trad.

Andrea J. H. Fairman. Rio deJaneiro: Casa Maria Editorial,

1988.

M ob iliza cd o c op er nic an a e d esa rm am en to p to lo ma ic o. Trad.

Heidrun Krieger Olinto. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,

1992.

N o m es mo b arc o. E nsa io s ab re a h ip erp olftic a. Trad. Claudia

Cavalcanti. Sao Paulo: Estacao Liberdade, 1999.

Regraspara 0p arq ue h um an o. U m a r esp os ta a c a rt a d e He id eg g er

sabre 0 human ismo . Trad. Jose Oscar de Almeida Marques.

Sao Paulo: Estacao Liberdade, 2000.

S e a E u ro pa d es pe rt ar . R e jl ex iJ es s ob re 0p ro gra ma d e u ma p otin -

c ia m un dia l a o fin al d a e ra d e su a le ta rg ia p olitic a. Trad. Jose

Oscar de Almeida Marques. Sao Paulo: Estacao Liberdade,

2002 .