Simbolismo

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 Antologia Cruz e Souza  A GA TA De neve, de uma maciez de arminho e lactescência de ne ve , de uma nervosidade frenética, er a lu xu os a, principesca, de certo, essa orgulhosa gata. As esmeraldas de seus olhos cl aros fosforeav am se nsualment e, eletricamente, quando alguém, no conforto da casa, lhe acarinhava de manso o dorso, o focinho tenro, polposo, espiguilhado de prateados fios sutis; e, no seu lindo pêlo cetinoso e alvo, como numa fresca e virginal epiderme de mulher aristocrtica, perpassava um frisson de ternura, um estremecimento, como se em toda ela vi!rasse alguma !risa de esp iri tua l e amoroso. " era ent#o fidal ga nas sensa$%es, no ronronar apaixonado, ao luar, so! o cintilante cristal das estrelas, pelas caladas vastid%es da noite, ou, nas horas de sesta, nos quentes, enlanguescedores morma$os, pregui$osa e fatigada, anelando o repouso, numa onda de gozo e vol&pia, enroscada, serpenteada, torcicolosa e convulsa, como um organismo suave e dé!il que um vivo azougue eletriza e agita. Talvez fosse a alma de uma vaporosa rainha que ali vivesse nesse precioso animal, alguma misteriosa vis#o polar dentro daquele feltro !ranco, daquela pel&cia rica, daqueles focos eslavos; algum sonho, enfim, errante, vago, perdido nesse no!re exemplar felino de formas lascivas, flexuosas e delicadas. 's ve ze s, mesmo, ela erra va , como a n(made que perde a rota da cara va na pelo s desert os escaldados de sol, em !usca de alimento; e os seus olhos, penetrantes no verde &mido e agudo das luminosas pupilas, mais até fantasiosa a tornavam e mais nevoeiro davam ) sua lenda de fadas. " assim, arminho girante, que as quatro veludosas patas faziam fidalgamente caminhar, mi an do hi st éric a, er a como uma so n*m!ula id ea lizada e amante qu e solu $a va e ge mia implorativame nte a sua dor, através dos aposentos, na indiferen$a de quase todos. +m dia, porém, uma doce m#o feminina e perfumada quis têla -unto de si e elevoua consigo para a tepidez e a pompa das alcovas cheirosas, vivendo com ela ao colo, passandolhe os ntimos alvoro$os de seu sangue de /irgem 0 como se a gata fosse um profundo seio de afagos a que ela confiasse todos os seus mistérios e segredos de 1oiva ainda presa no claustro cerrado, como as mon-as normandas, da carne inquietante e alucinadora. Agora, com a formosa seda do pêlo vi!rando ) carcia, alta e feliz a ca!e$a art stica, vive nesse colo impoluto, em sonhos deliciosos e gozos infinitos de

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 Antologia

Cruz e Souza

 A GATA

De neve, de uma maciez de arminho e lactescência de

neve, de uma nervosidade frenética, era luxuosa,

principesca, de certo, essa orgulhosa gata. As esmeraldas

de seus olhos claros fosforeavam sensualmente,

eletricamente, quando alguém, no conforto da casa, lhe

acarinhava de manso o dorso, o focinho tenro, polposo,

espiguilhado de prateados fios sutis; e, no seu lindo pêlo

cetinoso e alvo, como numa fresca e virginal epiderme de

mulher aristocrtica, perpassava um frisson de ternura, um

estremecimento, como se em toda ela vi!rasse alguma

!risa de espiritual e amoroso. " era ent#o fidalga nas

sensa$%es, no ronronar apaixonado, ao luar, so! o cintilante cristal das estrelas, pelas caladas

vastid%es da noite, ou, nas horas de sesta, nos quentes, enlanguescedores morma$os, pregui$osa

e fatigada, anelando o repouso, numa onda de gozo e vol&pia, enroscada, serpenteada, torcicolosa

e convulsa, como um organismo suave e dé!il que um vivo azougue eletriza e agita. Talvez fosse a

alma de uma vaporosa rainha que ali vivesse nesse precioso animal, alguma misteriosa vis#o polar 

dentro daquele feltro !ranco, daquela pel&cia rica, daqueles focos eslavos; algum sonho, enfim,

errante, vago, perdido nesse no!re exemplar felino de formas lascivas, flexuosas e delicadas. 's

vezes, mesmo, ela errava, como a n(made que perde a rota da caravana pelos desertos

escaldados de sol, em !usca de alimento; e os seus olhos, penetrantes no verde &mido e agudo

das luminosas pupilas, mais até fantasiosa a tornavam e mais nevoeiro davam ) sua lenda de

fadas. " assim, arminho girante, que as quatro veludosas patas faziam fidalgamente caminhar,

miando histérica, era como uma son*m!ula idealizada e amante que solu$ava e gemia

implorativamente a sua dor, através dos aposentos, na indiferen$a de quase todos. +m dia, porém,

uma doce m#o feminina e perfumada quis têla -unto de si e elevoua consigo para a tepidez e a

pompa das alcovas cheirosas, vivendo com ela ao colo, passandolhe os ntimos alvoro$os de seu

sangue de /irgem 0 como se a gata fosse um profundo seio de afagos a que ela confiasse todos os

seus mistérios e segredos de 1oiva ainda presa no claustro cerrado, como as mon-as normandas,

da carne inquietante e alucinadora. Agora, com a formosa seda do pêlo vi!rando ) carcia, alta e

feliz a ca!e$a artstica, vive nesse colo impoluto, em sonhos deliciosos e gozos infinitos de

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orientalista, o !elo exemplar felino, voluptuoso e dolente como a lua em!alada e cismando,

imaculadamente, no seio azul das esferas. 2 3issal 4

 A5+671A89:

solid#o do 3ar, < amargor das vagas,

ondas em convuls%es, ondas em re!eldia,

desespero do 3ar, furiosa ventania,

!oca em fel dos trit%es engasgada de pragas.

/elhas chagas do sol, ensang=entadas chagas

de ocasos purpurais de atroz melancolia,

luas tristes, fatais, da atra mudez som!ria

De trgica runa em vastid%es pressagas.

>ara onde tudo vai, para onde tudo voa,

sumido, confundido, es!oroado, ) toa,

no caos tremendo e nu dos tempos a rolar?

@ue 1irvana genial h de engolir tudo isto,

mundos de 7nferno e 6éu, de udas e de 6risto,

luas, chagas do sol e tur!ilh%es do 3ar?B

6C6"" DAE A53AE

 AhB Toda a alma num crcere anda presa,

solu$ando nas trevas, entre as grades

do cala!ou$o olhando imensidades,

mares, estrelas, tardes, natureza.

Tudo se veste de uma igual grandeza

quando a alma entre grilh%es as li!erdades

sonha e sonhando, as imortalidades

rasga no etéreo "spa$o da >ureza.

almas presas, mudas e fechadas

nas pris%es colossais e a!andonadas,

da Dor no cala!ou$o, atroz, funéreoB

1esses silêncios solitrios, graves,

que chaveiro do 6éu possui as chaves

para a!rirvos as portas do 3istério?B

 A53AE 71D"67EAE... Almas ansiosas, trêmulas, inquietas,

fugitivas a!elhas delicadas

das colméias de luz das alvoradas,

almas de melanc<licos poetas.

@ue dor fatal e que emo$%es secretas

vos tornam sempre assim desconsoladas,

na pungência de todas as espadas,na dolência de todos os ascetas?B

1essa esfera em que andais, sempre indecisa,

que tormento cruel vos nirvaniza,

que agonias tit*nicas s#o essas?B

>or que n#o vindes, Almas imprevistas,

para a miss#o das lmpidas 6onquistas

e das augustas, imortais >romessas?B

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E71F:17AE D: :6AE:

3usselinosas como !rumas diurnas

Descem do acaso as som!ras harmoniosas,

Eom!ras veladas e musselinosas

>ara as profundas solid%es noturnas.

Eacrrios virgens, sacrossantas urnas,

:s céus resplendem de sidéreas rosas,

Da lua e das "strelas ma-estosas

7luminando a escurid#o das furnas.

 AhB por estes sinf(nicos ocasos

 A terra exala aromas de ureos vasos,

7ncensos de tur!ulos divinos.

:s plenil&nios m<r!idos vaporam...

" como que no Azul plangem e choram

6taras, harpas, !andolins, violinos...

BRAÇOS

 ra$os nervosos, !rancas opulências,

!rumais !rancuras, f&lgidas !rancuras,

alvuras castas, virginais alvuras,

latescências das raras latescências.

 As fascinantes, m<r!idas dormências

dos teus a!ra$os de letais flexuras,

produzem sensa$%es de agres torturas,

dos dese-os as mornas florescências.

ra$os nervosos, tentadoras serpes

que prendem, tetanizam como os herpes,

dos delrios na trêmula coorte ...

>ompa de carnes tépidas e fl<reas,

!ra$os de estranhas corre$%es marm<reas,

a!ertos para o Amor e para a 3orteB

ANTÍFONA

Formas alvas, !rancas, Formas claras

De luares, de neves, de ne!linasB

Formas vagas, fluidas, cristalinas...

7ncensos dos tur!ulos das aras

Formas do Amor, constelarmante puras,

De /irgens e de Eantas vaporosas...

rilhos errantes, mdidas frescuras

" dolências de lrios e de rosas ...

7ndefinveis m&sicas supremas,

Harmonias da 6or e do >erfume...

Horas do :caso, trêmulas, extremas,

équiem do Eol que a Dor da 5uz resume...

/is%es, salmos e c*nticos serenos,

Eurdinas de <rg#os flé!eis, solu$antes...

Dormências de vol&picos venenos

Eutis e suaves, m<r!idos, radiantes ...

7nfinitos espritos dispersos,

7nefveis, edênicos, aéreos,

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Fecundai o 3istério destes versos

6om a chama ideal de todos os mistérios.

2...4

Violões que Choram

 AhB plangentes viol%es dormentes, mornos,

Eolu$os ao luar, choros ao vento...

Tristes perfis, os mais vagos contornos,

ocas murmure-antes de lamento.

1oites de além, remotas, que eu recordo,

1oites da solid#o, noites remotas

@ue nos azuis da fantasia !ordo,

/ou constelando de vis%es ignotas.

Eutis palpita$%es ) luz da lua.

 Anseio dos momentos mais saudosos,

@uando l choram na deserta rua

 As cordas vivas dos viol%es chorosos.

@uando os sons dos viol%es v#o solu$ando,

@uando os sons dos viol%es nas cordas gemem,

" v#o dilacerando e deliciando,

asgando as almas que nas som!ras tremem.

Harmonias que pungem, que laceram,

Dedos nervosos e geis que percorrem

6ordas e um mundo de dolências geram,

Gemidos, prantos, que no espa$o morrem...

" sons soturnos, suspiradas mgoas,

3goas amargas e melancolias,

1o sussurro mon<tono das guas,

1oturnamente, entre remagens frias.

/ozes veladas, veludosas vozes,

/ol&pias dos viol%es, vozes veladas,

/agam nos velhos v<rtices velozes

Dos ventos, vivas, v#s, vulcanizadas.

Tudo nas cordas dos viol%es ecoa

" vi!ra e se contorce no ar, convulso...

Tudo na noite, tudo clama e voa

Eo! a fe!irl agita$#o de um pulso.

@ue esses viol%es nevoentos e tristonhos

E#o ilhas de degredo atroz, funéreo,

>ara onde v#o, fatigadas no sonho,

 Almas que se a!ismaram no mistério.

Litania dos pobres

:s miserveis, os rotos

E#o as flores dos esgotos.

E#o espectros implacveis

:s rotos, os miserveis.

E#o prantos negros de furnas

6aladas, mudas, soturnas.

E#o os grandes visionrios

Dos a!ismos tumulturios.

 As som!ras das som!ras

mortas,

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6egos, a tatear nas portas.

>rocurando o céu, aflitos

" varando o céu de gritos.

Far<is ) noite apagados

>or ventos desesperados.

7n&teis, cansados !ra$os

>edindo amor aos "spa$os.

3#os inquietas, estendidas

 Ao v#o deserto das vidas.

Figuras que o Eanto :fcio

6ondena a feroz suplcio.

 Arcas soltas ao nevoento

Dil&vio do "squecimento.

>erdidas na correnteza

Das culpas da 1atureza.

po!resB Eolu$os feitos

Dos pecados imperfeitosB

 Arrancadas amarguras

Do fundo das sepulturas.

7magens dos deletérios,

7mponderveis mistérios.

andeiras rotas, sem nome,Das !arricadas da fome.

andeiras estra$alhadas

Das sangrentas !arricadas.

Fantasmas v#os, si!ilinos

Da caverna dos DestinosB

po!resB o vosso !ando

I tremendo, é formidandoB

"le - marcha crescendo,

: vosso !ando tremendo...

"le marcha por colinas,

>or montes e por campinas.

1os areiais e nas serras

"m hostes como as de guerras.

6erradas legi%es estranhas

 A su!ir, descer montanhas.

6omo avalanches terrveis

"nchendo plagas incrveis.

 Atravessa - os mares,

6om aspectos singulares.

>erdese além nas dist*ncias

 A caravana das *nsias.

>erdese além na poeira,

Das "sferas na cegueira.

/ai enchendo o estranho

mundo6om o seu solu$ar profundo.

6omo torres formidandas

De torturas miserandas.

" de tal forma no imenso

3undo ele se torna denso.

" de tal forma se arrasta

>or toda a regi#o mais vasta.

" de tal forma um encanto

Eecreto vos veste tanto.

" de tal forma - cresce

: !ando, que em v<s parece.

>o!res de ocultas chagas

5 das mais longnquas plagasB

>arece que em v<s h sonho

" o vosso !ando é risonho.

@ue através das rotas vestes

Trazeis delcias celestes.

@ue as vossas !ocas, de um

vinho

>reli!am todo o carinho...

@ue os vossos olhos som!rios

Trazem raros amavios.

@ue as vossas almas trevosas

/êm cheias de odor das rosas.

De torpores, dJindolências" gra$as e quintJessências.

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@ue - livres de martrios

/êm festonadas de lrios.

/em nim!adas de magia,

De morna melancoliaB

@ue essas flageladas almas

everdecem como palmas.

alanceadas no letargo

Dos sopros que vem do largo...

adiantes dJilusionismos,

Eegredos, orientalismos.

@ue como em guas de lagos

<iam nelas cisnes vagos...

@ue essas ca!e$as errantes

Trazem louros verde-antes.

" a languidez fugitiva

De alguma esperan$a viva.

@ue trazeis magos aspeitos

" o vosso !ando é de eleitos.

@ue vestes a pompa ardente

Do velho Eonho dolente.

@ue por entre os estertores

Eois uns !elos sonhadores.

5K"E>IA16", >ierre >uvis de 6havannes