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    Os muitos livros que temos e que envolvem, de maneira descritiva, ensastica ou

    ficcional, o territrio chamado Brasil e o povo chamado brasileiro, sempre serviram a

    ns de farol (e no de espelho, como quer uma teoria mimtica apegada relao

    estreita entre realidade e discurso). Com a sua ajuda e facho de luz que temos

    caminhado, pois eles iluminam no s a vasta e multifacetada regio em que vivemos,

    como tambm a ns, habitantes que dela somos, alertando-nos tanto para os acertos

    quanto os desacertos administrativos, tanto para o sentido do progresso moral quanto

    para o precipcio dos atrasos irremediveis. So eles que nos instruem no tocante s

    categorias de anlise e interpretao dos valores sociais, polticos, econmicos e

    estticos que -- conservadores, liberais ou revolucionrios; pessimistas, entreguistas ou

    ufanistas foram, so e sero determinantes da nossa condio no concerto das

    naes do Ocidente e, mais recentemente, das naes do planeta em vias de

    globalizao.

    O interesse mais profundo e direto que esses livros manifestam no pelo

    habitante privilegiado desde a primeira hora. Aquele que, ao se transplantar de l para

    c, recebeu benesses, ou aquele outro que foi alvo de ato de nomeao para ocupar

    cargo oficial, auferindo altos proventos e jurando obedincia irrestrita Coroa

    portuguesa. Interessam-se, antes e quase que exclusivamente, pelo habitante que, j

    nascido nestas terras, buscava construir (ou inventar) um pequeno domnio de que seria

    proprietrio exclusivo, sem reconhecer os limites das amarras polticas e fiscais

    metropolitanas, ou ainda pelo estrangeiro que, ao adotar a nova ptria, queria coloniz-

    la sua prpria maneira, dela extraindo o que havia de mais rentvel para si prprio e

    para os seus descendentes. Todos eles procuravam se autodefinirem e definir as vrias

    regies do pas em palavras, gestos e ordens de independncia (sempre relativa,

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    claro) com relao aos pases europeus e, a partir do sculo XIX, com relao a todo e

    qualquer pas que questionasse a soberania nacional.

    Os que queriam se autodenominar brasileiros -- ou por serem autctones, ou por

    serem filhos brancos ou mestios da terra colonial, ou por viverem em terra

    desconhecida, modo como ela devia se apresentar para muitos imigrantes europeus,

    ou por serem filhos negros, transplantados contra a prpria vontade pela violncia dos

    grilhes do trabalho servil -- se sentiam desprovidos de um estatuto scio-econmico

    prprio. Este, quando definido pela metrpole apresentava-se precrio e recente,

    passvel de constantes revises crticas pelos donos do poder, como o caso da

    situao entre ns do escravo ou at mesmo do ndio, para no mencionar o imperativo

    legal de dar sentido s vrias levas de imigrantes brancos que povoaram estas terras

    do Novo Mundo, em particular a partir da dbcle do sistema escravocrata.

    De modo geral, viviam todos os brasileiros em pequenas comunidades, rurais

    na maioria dos casos, no de maneira completamente indiferenciada semelhana de

    animais num conglomerado, mas em situao social amorfa, que beirava muitas vezes

    o caos. Essa situao no deixava de ser preocupantemente negativa para os que

    tinham o ideal de nao.

    A situao confusa e complexa dos habitantes durante os dois primeiros sculos

    do perodo colonial propiciava aos que empunhavam a pena abordar, com firmeza e

    presuno, as questes relativas identidade colonial da regio, hierarquia fidalga

    dos poderosos e liderana poltico-econmica subalterna metrpole. Identidade

    nacional, hierarquia social e liderana poltico-econmica iam sendo reconfiguradas e

    impostas pelos portugueses-abrasileirados medida que um projeto de nao, j no

    terceiro sculo colonial, comeava a iluminar as cabeas mais revolucionrias,

    convencendo as elites (no tenhamos iluses) e, indiretamente, a populao das

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    cidades de maior projeo econmica a dar o chute inicial no processo de expulso do

    colonizador metropolitano, o portugus, ou de qualquer outro povo invasor.

    Nos trs casos levantados (identidade, hierarquia e liderana), a palavra escrita,

    os livros (tanto o descritivo, quanto o ensastico e o ficcional) serviro como mecanismo

    de abordagem dos problemas, definio de categorias de anlise e estabelecimento dos

    valores sociais, polticos, econmicos e estticos da nova terra e da sua gente. Valores

    estes que, mal lanados no minguado mercado de leitores exigentes, rapidamente

    serviriam para entronizara elite nativa como legtima, numa cpia flagrante do modelo

    metropolitano, vigente nos pases europeus, em particular em Portugal ou na Espanha.

    O fim bvio dos panfletos mais rebeldes colonizao lusa (e, nas entrelinhas,

    dos menos rebeldes) era o de apresentar o pas colonial como independente e o pas

    independente como nao. Era o de apresentar o colono (branco ou mestio e, bem

    mais tarde, o africano) como homem livre e o homem livre como cidado. Como

    documentos pblicos, esses textos representavam e representam o que se denomina

    uma fora nacionalista, ainda que toda a variada e multifacetada bibliografia sobre o

    assunto ainda tenha dificuldade em definir com clareza o que seja essa fora. Apesar

    da falta de definies convincentes e definitivas, apesar das crticas feitas pelos

    pensadores marxistas, grandes especialistas da questo, como Benedict Anderson, no

    sabem por que, at os nossos dias, movimentos nacionalistas inspiram uma

    legitimidade emocional to profunda 1.

    [espao]

    1Nao e conscincia nacional [Imagined comunities. Reflections on the Origin and Spread of

    Nationalism]. So Paulo, tica, 1989, p. 12.

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    A maioria dos primeiros textos que foram escritos para descrever terra e homem

    da nova regio levam a assinatura de portugueses. Respondem s prprias perguntas

    que colocam, umas atrs das outras, em termos de violentas afirmaes

    europeocntricas. A curiosidade dos primeiros colonizadores menos uma instigao

    ao saber do que a repetio das regras de um jogo cujo resultado previsvel. Os

    nativos eram de carne-e-osso, mas no existiam como seres civilizados,

    assemelhavam-se a animais. Na Carta de Pero Vaz de Caminha, escrita a El-Rei D.

    Manuel, observam-se melhor as obsesses dos portugueses, intrusos assustados e

    visitantes temerosos, que desembarcam de inusitadas casas flutuantes, do que as

    preocupaes dos indgenas, descritos como meros espectadores passivos do grande

    feito e do grande evento que cerimnia religiosa da missa, realizada em terra. No ,

    pois, por casualidade que a primeira metfora para descrever a condio do indgena

    recm-visto a tabula rasa, ou o papel branco 2. Eis uma boa descodificao das

    metforas: eles no possuem valores culturais ou religiosos prprios e ns, europeus

    civilizados, os possumos; no possuem escrita e eu, portugus que escrevo, possuo.

    Mas da tabula rasa e do papel branco trazia o selvagem, ainda dentro do

    raciocnio etnocntrico, a inocncia e a virtude paradisacas 3, indicando que, no futuro,

    aceitariam de bom grado a voz catequtica do missionrio jesuta que, ao imp-los em

    lngua portuguesa, estaria ao mesmo tempo impondo os muitos valores que nela

    2 [] os ndios so tanquam tabula rasa para imprimir-lhes todo o bem; [] poucas letras

    bastariam aqui, porque tudo papel branco e no h que fazer outra coisa, seno escrever

    vontade as virtudes mais necessrias []. Apud Mecenas Dourado, A converso do gentio. Rio

    de Janeiro, So Jos, 1958, pp. 62-63.3Consultar o clssico de Srgio Buarque de Hollanda, Viso do Paraso. Para maiores detalhes

    consultar a introduo a Razes do Brasil.

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    circulam 4 em transparncia. Ao fazer extenso levantamento, nas gramticas

    renascentistas, do topos da lngua companheira do Imprio, o fillogo e crtico

    espanhol Eugenio Asensio observou agudamente que os gramticos portugueses

    Ferno de Oliveira e Joo de Barros -- quando tomaram de emprstimo aquela idia do

    colega espanhol, Elio Antonio de Nebrija -- acrescentaram ao significado original do

    conceito, que era poltico e nacionalista, matizes afins de assimilao colonial e de

    misso crist. Escreve Eugenio Asensio: Lecturas posteriores me fueron revelando que

    el concepto [la lengua compaera del Imperio] derivaba de las Elegantiae, del

    humanista italiano Lorenzo Valla; haba sido resumido en frase muy parecida por el

    jurista aragons Geraldo Garca de Santa Mara antes de hallar hospedaje en las

    pginas de Nebrija para definir las ambiciones culturales de la expansin espaola; y

    que, cargado ya con el nuevo sentido que le daban los descubrimientos y conquistas,

    haba sido acogido por los gramticos portugueses [Ferno de] Oliveira y [Joo de]

    Barros, que, a su significado poltico y nacional, haban ido aadiendo los matices afines

    de asimilacin colonial y de misin cristiana 5.

    Somente uma leitura sintomal da Carta, para usar o termo e o mtodo de Louis

    Althusser 6, devidamente alicerada em um instrumental terico tomado de emprstimo

    Antropologia, que poder ir revelando ao leitor contemporneo nosso todos os

    valores indgenas que se encontram recalcadosno texto do escrivo portugus, tendo

    sido recalcados para todo o sempre no processo de construo da nacionalidade.

    Talvez o aspecto mais instrutivo para o nosso propsito atual seja o de rastrear no texto

    de Caminha o problema da (ausncia de) chefia indgena.

    4Cf.: [] por certo esta jente he boa e de boa sijnprezidade e enpremarsea ligeiramete neeles

    qualquer crunho que lhes quiserem dar[].A Carta de Pero Vaz Caminha. Rio de Janeiro, Agir,

    1965, p. 105 [grifo nosso].5Revista de Filologa Espaola, XLIII, 1960, p. 399.6Lire le Capital. Paris, Maspero, 1969, v. I, p. 16.

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    As vrias e ricas interpretaes do texto portugus salientam a encenao que

    Cabral faz em seu camarote para passar aos indgenas que o visitam uma imagem

    concreta da sua superioridade: Ocapitam quando eles [indgenas] vieram estaua

    asentado em huua cadeira e huua alcatifa aos pees por estrado e bem vestido c huu

    colar douro muy grande ao pescoo, e sancho de toar e simam de miranda enycolaao

    coelho e aires corea e nos outros que aqui na naao c ele himos asentados no chao

    por esa alcatifa (p. 89). As interpretaes menos comprometidas com o

    europeocentrismo acentuam tambm o propsito econmico do encontro. Atravs de

    linguagem gestual (no havia lngua humana comum entre eles, por isso o cdigo

    gestual constantemente verificado e aprimorado pelos dois grupos antagnicos), os

    marinheiros desejam obter dos indgenas informaes sobre as possveis riquezas da

    terra a que chegam.

    As interpretaes esquecem, no entanto, de assinalar que, um pouco mais tarde,

    o escrevente Caminha anotaao perceber que se os selvagens preferem permanecer

    ao lado do capito e no em companhia dos marinheiros que a preferncia fruto

    nico e exclusivo do acaso. Reconhece, sem meias palavras, que os indgenas se

    aproximam do capito n polo conhecere por Senhor ca me parece que n entendem

    ne tomau dysso conto (p.97), mas simplesmente porque os muitos marinheiros que

    estavam no camarote tinham se distanciado dos selvagens, tinham j atravessado o rio

    que, agora, os separava. Nesse sentido, aquelas interpretaes deixam de lado a

    preocupao que tem o grupo de marinheiros portugueses em encontrar um chefeentre

    os indgenas (ou seja, um correspondente simtrico ao capito da esquadra, ou melhor,

    para se valer do exemplo azteca, um Moctezuma ou um Cuauhtmoc).

    Diversas vezes os marinheiros portugueses parecem distinguir um lder indgena

    na multido dos seres inominados que os cercam ou os acompanham, mas todas as

    vezes o indivduo sobre quem recai o olhar classificador frustra o intento portugus. Um

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    rebate falso a mais. Logo depois da missa de domingo, um dos selvagens, com seus 50

    ou 55 anos, apontava para o altar e depois para o cu, conseguindo atrair em torno de

    si, com sua gesticulao, um bom nmero de companheiros. Caminha no o nico

    que acredita ser ele um organizador, para empregar o jargo poltico moderno;

    tambm o capito da esquadra assim pensa. Este imediatamente faz trazer sua

    presena o velho indgena, juntamente com o irmo [sic], e lhe dispensa muita honra,

    conforme se l. Cabral chega at a presente- lo com uma camisa mourisca e ao

    irmo, com uma comum, ou seja, destoutras, como diz o texto (pp. 107-108). Na

    qualidade intrnseca aos presentes oferecidos, estabelece-se uma hierarquia entre os

    dois irmos, possveis chefes. Eis o primeiro germe de uma estratificao poltica

    entre os indgenas, que se d pela diferena entre os favores feitos pelo capito

    portugus. Nem sempre a aparncia foi boa conselheira para os olhos lusos. Tomada,

    no entanto, ao p da letra pelo colonizador, acaba por suscitar o exerccio do poder

    indiscriminado e eficaz.

    Em um dos mais polmicos livros sobre o primeiro sculo brasileiro, La socit

    contre ltat, Pierre Clastres reabre a possibilidade de uma Antropologia poltica,

    aventando a hiptese de haver existido organizaes sociais que se estruturaram sem a

    violncia inerente ao poder coercitivo, isto , sociedades humanas que no

    conheceram processos de hierarquizao impostos pelo alto. Segundo ele, as

    organizaes sociais em que o poder obtido pelo mecanismo e exerccio de coero

    por parte de poucos e obedincia por parte de muitos so apenas um caso particular na

    histria das sociedades, e no o geral. Na Antropologia tradicional, em virtude da

    cegueira etnocntrica, era impossvel vislumbrar uma sociedade onde a organizao

    social no dependia do uso da fora e da violncia como causa da aglutinao. Torna-

    se importante constatar que Pierre Clastres vai encontrar, nos primeiros documentos

    descritivos da regio recm-descoberta pelos portugueses, os indcios certos de que o

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    modelo poltico no-coercitivo existe nas tribos da Amrica do Sul, sendo possvel para

    ele comprovar a tese de que il nous est pas vident que coercition et subordinnation

    constituent lessence du pouvoir politiquepartout et toujours 7.

    Tal preocupao do colonizador portugus em detectar o chefe indgena em

    meio multido inominada pode ser perseguida em outros textos do perodo colonial.

    Ainda a favor da tese de Clastres, cite-se esta passagem de Gabriel Soares de Sousa,

    no Tratado descritivo do Brasil em 1587: Em cada aldeia dos tupinambs h um

    principal, a que seguem somente na guerra onde lhe do alguma obedincia, pela

    confiana que tm em seu esforo e experincia, que nos tempos de paz cada um faz o

    a que o obriga o seu apetite" 8. A obedincia ao principal (curiosa a ausncia da

    palavra chefe) s se evidencia em tempo de guerra; cada indgena segue sua prpria

    vontade em tempo de paz.

    Pode-se ento levantar a hiptese (s hiptese, pois os textos dos indgenas

    que a comprovariam nos faltam por razes bvias) de que a liderana coercitiva s

    surge entre os selvagens no momento em que os portugueses (ou outros grupos

    europeus invasores) j no se do como meros visitantes desconhecidos, assustados e

    temerosos, mas como verdadeiros inimigos, pois passam a querer transformar o ndio

    em escravo. A violncia entra com o propsito da dominao e da explorao, vale

    dizer, com os ideais da colonizao renascentista. Como comprovao dessa hiptese

    basta perseguir o significante arcos no texto da Cartade Caminha.

    Desde o primeiro encontro entre portugueses e ndios, os olhos europeus

    percebem que os nativos esto armados, mas arcos e flechas so imediatamente

    neutralizados pela esperteza lusa. Acompanhemos o movimento interno ao texto. To

    7 La socit contre ltat. Paris, Minuit, 1974, p. 12. Ler, em particular, o captulo intitulado

    Copernic et les sauvages.8Tratado descritivo do Brasil em 1587. So Paulo. Editora Nacional/USP, 1971, p. 303.

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    logo os marinheiros lhes acenam para que depositem os arcos no cho, obedecem (p.

    87). No existe por parte dos indgenas o menor sinal de possvel revide armado. Tanto

    que, em pgina posterior, constata Caminha que o depor armas j algo ensinado

    pelos marinheiros: do emsino que dantestijnham poseram todos os arcos e acenauam

    que saisemos (p. 97) E na tera-feira, dia 28, quando os navegadores pisam de novo a

    terra, descobrem que os sessenta ou setenta selvagens j estavam sem arcos e sem

    nada (p. 102). Os conquistadores j se sentem completamente vontade, isto , sem

    medo, para andarem mesturados a eles. Duas vezes anota Caminha frases

    praticamente idnticas. Eis uma delas como exemplo: e [os indgenas] amdauam ja

    mais mansos e seguros antre nosdo que nos amdauamos antreles (p. 105).

    medida que recebem dos conquistadores uma imagem cordial e

    (aparentemente) pacfica e desinteressada, os indgenas vo tambm,

    sintomaticamente, se desarmando. So mansos -- eis a concluso a que chega o texto.

    Quanto mais os portugueses procuram detectar um lder no bando, tanto menos

    necessria a sua necessidade e premncia, tanto mais melflua teria sido a presena

    de um chefea demarcar o territrio dos seus comandados contra os invasores.

    No nosso interesse exclusivo -- nesta introduo geral s interpretaes do

    Brasil, posteriores data da Independncia, que esto coligidas nestes trs volumes --

    salientar as conseqncias desastrosas da nossa leitura dos textos escritos pelos

    portugueses para o melhor conhecimento futuro do problema da cordialidade como

    mediadora, na histria do Brasil, entre dois grupos antagnicos (metropolitanos x

    nativos, fazendeiros x escravos, colonos x independentistas, brancos x negros, patres

    x operrios, etc. etc.), neutralizando tanto manifestaes abertas de solidariedade

    comunitria que extravasassem os limites e as regras impostos pelo poderoso cl

    fazendeiro, quanto o estouro de conflitos citadinos, propriamente ideolgicos, marcados

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    seja pelo clamor contra as injustias tnicas 9 ou as de classe social. No nosso

    interesse exclusivo centrar o raciocnio na questo da conquista sem violncia, nos

    primeiros momentos dessa pseudo-histria incruenta, para retomar a palavra do

    historiador Jos Honrio Rodrigues 10, forma que foi se disseminando pelos manuais

    escolares de histria do Brasil, para se tornar dominante ideolgica na anlise, pelos

    donos do poder e intelectuais conservadores, de todo e qualquer conflito dentro do devir

    histrico brasileiro 11.

    Nosso interesse maior o de no desprezar, a partir do aprendizado que foi

    adquirido nos ltimos anos pelas metodologias de leitura, os textos que traduzem, como

    alerta sibilinamente Raymundo Faoro, o captulo original da histria brasileira, o cenrio

    9H exemplos de contradio que so sempre interessantes de serem analisados. O fazendeiro

    brasileiro no adotou, no trabalho escravo, o sistema norte-americano de task force, que

    permitia, como permitiu, que surgissem respostas individualistas opresso. Aqui foi adotado

    um regime de trabalho mais severo e mais policiado, tambm coletivo, mas mesmo assim a

    defesa da autonomia escrava podia manifestar-se tanto por meios acomodativos -- fugas,

    sabotagem de trabalho, preguia, etc. -- como expressar-se numa criminalidade violenta que

    atingia, preferencialmente, os senhores e seus prepostos. Maria Helena Machado, O plano e o

    pnico. So Paulo/Rio de Janeiro, Editora UFRJ/EDUSP, 1994, v. Introduo.10Nesse sentido indispensvel consultar a anlise histrica que Jos Honrio Rodrigues fez do

    problema: A Poltica de conciliao: Histria cruenta e incruenta, seo do livro Conciliao e

    Reforma no Brasil. Rio, Civilizao Brasileira, 1975.11 Em estudo sobre Iracema, a lenda de Jos de Alencar, salientamos o fato de que,

    literariamente, o conflito racial sempre tematizado pelo discurso amoroso. Essa tematizao do

    possvel conflito entre as duas etnias, atravs do erotismo dos personagens, visa a explicitar a

    unio cordial dos antagonismos pela cpula. Veja-se ainda o poema A Ilha de Mar, de Manuel

    Botelho de Oliveira, ou o oitocentista O Cortio, de Alusio Azevedo, ou finalmente o

    contemporneo Gabriela, cravo e canela, de Jorge Amado. Perceber-se- sempre que o

    elemento estrangeiro do gnero masculino, enquanto o elemento nativo do feminino. Cf.

    Nossa edio comentada de Iracema. Rio, Francisco Alves, 1975.

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    de outra epopia [grifo nosso], sem a projeo da outra [a europia], ornamentada pelos

    deuses latinos e pelas letras da Renascena 12.

    Por enquanto, tambm passaremos por cima do fato de que, oficialmente, toda e

    qualquer possvel liderana indgena foi sendo anulada para todo o sempre, sendo

    substituda pelo que poderamos chamar, com a ajuda de historiadores coniventes com

    a verso portuguesa dos fatos, de liderana da aristocracia rural, ou seja, dos chefes

    de cl, para retomar a expresso de Oliveira Vianna 13. E aqui voltamos ao nosso

    primeiro pargrafo, no sem antes acrescentar que a liderana (poltica, social,

    econmica, esttica, etc.) da regio estava para sempre em mos brancas (ou

    mestias) e que se expressava, como previam os gramticos renascentistas Ferno de

    Oliveira e Joo de Barros, em lngua portuguesa, a companheira do Imprio. A no ser

    que fosse importante lembrar, galhofeiramente, o projeto de lei, utpico e intempestivo,

    do funcionrio pblico Policarpo Quaresma, criao magistral do romancista Lima

    Barreto. Por desejo e crena dele, o presidente da Repblica decretaria o tupi-guarani

    como a lngua oficial destas terras 14. Nao toa que, na repartio pblica em que

    estava lotado, o apelido do personagem romanesco era o nome do pr-cabralino

    12Os Donos do Poder. Porto Alegre/So Paulo, Globo/USP, 1975, v. I, p. 154.13Esclarece Oliveira Vianna: O seu carter [do cl fazendeiro brasileiro] mais patriarcal do que

    guerreiro, mais defensivo do que agressivo, e a sua estrutura menos estvel, menos coesa,

    menos definida e perfeita, e mais flida; mas, pela sua origem, pela sua composio, pelo seu

    esprito, ele est dentro das leis constitucionais desse tipo de organizao social... V.

    Populaes meridionais do Brasil, cap. VIII, Gnese dos cls e do esprito de cl.14Vale a pena lembrar um trecho da petio: Policarpo Quaresma, cidado brasileiro, certo de

    que a lngua portuguesa emprestada ao Brasil; certo tambm de que, por esse fato, o falar e o

    escrever em geral, sobretudo no campo das letras, se vem na humilhante contingncia de

    sofrer continuamente censuras speras dos proprietrios da lngua [...], usando do direito que lhe

    confere a Constituio, vem pedir que o Congresso Nacional decrete o tupi-guarani, como lngua

    oficial e nacional do povo brasileiro. Lima Barreto, Triste Fim de Policarpo Quaresma. So

    Paulo, Brasiliense, 1970, p. 61.

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    Ubirajara. J Lima Barreto no lhe economiza elogios: raro encontrar homens assim,

    mas os h e, quando se os encontra, mesmo tocados de um gro de loucura, a gente

    sente mais simpatia pela nossa espcie, mais orgulho de ser homem e mais esperana

    na felicidade da raa (p. 63).

    Esquecendo galhofa e elogio, vale a pena lembrar que, at mesmo entre os

    letrados, a lngua oralportuguesa que domina entre ns at incios do sculo XIX, em

    virtude de vcio bsico na Ratio Studiorum dos jesutas. Leiamos a lio de Celso

    Cunha:

    Sem ncleos culturais capazes de irradiar um padro idiomtico, sem

    Universidades, com um nmero insignificante de escolas de primeiras letras -- as

    nicas que ensinavam o idioma [portugus] --, sem imprensa (lembre-se que o

    primeiro texto impresso no Brasil data de 1808, quando da transferncia da

    Corte Portuguesa para o Rio de Janeiro), com a populao realmente produtiva

    espalhada pelas fazendas e engenhos, a lngua oral passou a seguir os seus

    caminhos sem nenhum controle normativo.

    Lembra ainda o citado mestre que, at 1759, o sistema pedaggico adotado tanto em

    Portugal como em suas colnias, nos nveis que hoje chamaramos de secundrio e

    superior, no inclua o ensino de portugus, ensino que se restringia alfabetizao

    nas escolas menores. De acordo com as regras de ensino praticadas pelos jesutas, os

    alunos passavam da alfabetizao diretamente para o latim da Gramtica do Padre

    Manuel lvares, inteiramente escrita nessa lngua. Como se sabe o modelo jesutico de

    ensino vai receber condenao na Reforma Pombalina, em consonncia com os

    ensinamentos de Lus Antnio Verney, autor do Verdadeiro mtodo de estudar15, para

    15 Este livro, que deu lugar a uma violenta e demorada polmica, marca o fim do reinado da

    escolstica em Portugal. Verney escreveu-o para atacar as instituies pedaggicas, jesuticas e

    medievais, que subsistiam em Portugal, e para propor a sua substituio. Antnio Jos Saraiva,

    Histria da Literatura Portuguesa. Lisboa, Europa-Amrica, 1963, p. 92.

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    quem o primeiro princpio de todos os estudos deve ser a gramtica da prpria lngua

    16.

    Se a Reforma pombalina, ao tornar obrigatrio o uso oficial da lngua portuguesa

    em todo o territrio colonial e por todos os brasileiros, por um lado acaba de vez com a

    possibilidade do ressurgimento das lnguas indgenas entre ns como fora viva de

    comunicao entre povos no-europeus (como se pode ler nas coercitivas medidas

    tomadas pelo Diretrio de 3 de maio de 1757, aplicadas primeiro ao Par e Maranho,

    estendidas em 17 de agosto de 1758 a todo o Brasil 17), por outro lado, ela que, ainda

    na colnia, faculta a um pequeno pblico alfabetizado, a leitura das tradues dos

    filsofos enciclopedistas, que esto na base dos primeiros e dos vrios movimentos de

    Independncia. Lembra Paulo Prado no Retrato do Brasil: No Brasil, as primeira

    tentativas nacionalistas ligaram-se declarao da Independncia dos Estados Unidos,

    onde frutificava no campo prtico a propaganda iniciada pela Enciclopdiae pelos livros

    incendirios de Voltaire, de Brissot e de Raynal. precursores da prpria Revoluo

    Francesa 18

    [espao]

    Detenhamo-nos no cenrio dessa outra epopia, sem deuses latinos e sem

    sapincia renascentista, de que fala Raymundo Faoro. A definio poltico-social da

    16Cf. Celso Cunha. Um pouco de Histria,A questo da norma culta brasileira. Rio de Janeiro,

    Tempo Brasileiro, 1985, pp. 71-76..17 Cf.: [...] ser um dos principais cuidados dos Diretores estabelecer nas suas respectivas

    povoaes o uso da lngua portuguesa, no consentindo por modo algum que os Meninos e

    Meninas, que pertencerem s escolas, e todos aqueles ndios, que forem capaz de instruo

    nesta matria, usem da lngua prpria das suas naes ou da chamada geral {...]. Apud Celso

    Cunha, idem, p. 80.18Retrato do Brasil. cap. 4, O romantimo.

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    liderana econmica nativa dada, de maneira estruturada e hegemnica, desde o

    primeiro pargrafo de Cultura e opulncia do Brasil, de Andr Joo Antonil (1711). O

    recurso estilstico usado pelo autor ser, desde ento, o que tem determinado o padro

    lingstico no processo de configurao da arquitetura do poder brasileiro. Define-se o

    ser poltico-social brasileiro (por exemplo: o que o senhor de engenho?) pela

    comparao 19 da figura dele com a figura correspondente na organizao social

    europia, gerando como conseqncia um deslocamento semntico, geogrfico e

    temporal bastante significativos. Seria oportuno abrir antes um parntese, para lembrar

    um dos magistrais ensinamentos de Roland Barthes. Lembra-nos ele que toda frase

    hierrquica, e continua: elle implique des sujtions, des subordinnations, des rections

    internes. De l son achvement: comment une hirarchie pourrait-elle rester ouverte? 20

    Voltando ao texto de Antonil, observamos que as duas foras econmicas mais

    fortes no Brasil -- o senhor de engenho e o colono -- so dadas como semelhantes,

    respectivamente, do fidalgo e do cidado europeus. E, ao mesmo tempo em que

    19 O padro lingstico estabelecido pela comparao entre duas regies com posies

    assimtricas no tempo histrico j est na Carta de Caminha. Por no terem vergonha de suas

    vergonhas, os selvagens no conheciam nem o pecado nem o trabalho, e viviam numa poca

    pr-admica. Do ponto de vista da histria da humanidade, a comparao assinala o

    compromisso dos colonizadores com o monogenismo. Explica Ricaro Benzaquen de Arajo:

    Assim, o monogenismo termina por converter a histria da Europa numa espcie de

    prefigurao da marcha da humanidade, em um processo que tomaria essa histria como um

    modelo cujos diversos estgios forneceriam a chave para a compreenso dos momentos

    especficos -- mas de forma alguma singulares -- enfrentados por cada uma das vrias

    sociedades na realizao do seu destino comum. As diferenas geogrficas seriam assim

    drasticamente reduzidas pela sua incluso num mesmo eixo de tempo, o qual, transformado em

    uma linha que se movimenta sempre para a frente, confundindo-se com o progresso, parecia

    garantir que todas as raas teriam finalmente a mesma rota e a mesma sorte, s que ambas

    regidas por valores eminentemente ocidentais. Guerra e Paz. Rio de Janeiro, Editora 34, 1994,

    pp. 36-37.20Le plaisir du texte. Paris, Seuil, 1973, p. 80.

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    compara uma a uma as quatro figuras no tabuleiro da colonizao, estabelecem-se dois

    padres de hierarquia. Um que ditado pelo original e pela cpia, cpia esta que cpia

    sempre ser e que nunca almeje a ser original. E um segundo padro, que agora nos

    interessa mais de perto, que o que define a hierarquia na sociedade brasileira

    colonial. Assim como os cidados dependem dos fidalgos na Europa, assim tambm os

    lavradores, ou homens livres na ordem escravocrata, para retomar a expresso de

    Maria Sylvia de Carvalho Franco, dependem dos senhores de engenho no Brasil.

    Na medida em que a pirmide do poder estabelecida na colnia, fcil

    compreender a primeira frase de Cultura e opulncia do Brasil: O ser senhor de

    engenho ttulo a que muitos aspiram [...]. 21 No entanto, se na Europa, o ttulo

    nobilirquico concedido pelo Rei, ou pelo prprio status familiar do indivduo, aqui o

    ttulo [de nobreza nativa?] conferido pelo texto (ainda que ele no o delegue

    claramente a fulano e a sicrano mas a um determinado e minguado nmero de

    colonos). Ele conferido a um colono que se afirmou no governo dos homens e no

    trabalho da terra de que proprietrio, graas capacidade de explorar o trabalho

    servil, de modo semelhante ao que acontecia no regime feudal europeu.

    significativo que o terceiro e o quarto segmentos sociais encontrados na

    colnia (o senhor e o homem livre seriam os dois primeiros, pois estamos excluindo da

    nossa discusso o clero) se ligam, direta e respectivamente, uns pelas mos e os

    outros pelos ps, ao senhor de engenho. Surge uma outra srie de comparaes no

    tratado de Antonil. S que, neste caso, como total a dependncia do terceiro e quarto

    segmentos humanos ao senhor de engenho, o campo semntico das definies ficar

    restrito ao vocbulo corpo -- o corpo do senhor de engenho. De resto, desde que

    estabelecido o vrtice superior da pirmide -- o senhor e, abaixo, o homem livre -- as

    21So Paulo, Editora Nacional, s/d. Introduo e vocabulrio por A. P. Canabrava. P. 139.

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    comparaes com a sociedade europia moderna teriam de desaparecer do texto de

    Antonil, pois l na metrpole no existe mais a escravido negra. Trata-se de questo

    restrita colnia, ou seja: uma colnia dentro de uma colnia. Retome-se o ponto de

    partida. Da o senhor de engenho ser semelhante a um fidalgo, subalterno, mas ainda

    fidalgo.

    O terceiro e o quarto segmentos sociais so os feitores (governo da fazenda) e

    os escravos (trabalho servil). Vejamos como os feitores so descritos por Antonil: Os

    braos de que se vale o senhor de engenho para o bom governo da gente e da fazenda,

    so os feitores (p. 151). Repare-se, no entanto, que so braos que no podem

    aspirar condio de cabeas. O texto no deixa dvidas: se cada um deles [feitores]

    quiser ser cabea [senhor], ser o governo monstruoso e um verdadeiro retrato do co

    Crbero, a quem os poetas fabulosamente do trs cabeas. E continua: Eu no digo

    que se no d autoridade aos feitores; digo que esta autoridade h de ser bem

    ordenada e dependente, no absoluta, de sorte que os menores se hajam com

    subordinao ao maior, e todos ao senhor a quem servem (p. 151). Mais claro,

    impossvel.

    Se entre o primeiro segmento social e o terceiro h dependncia e subordinao

    cabea do senhor de engenho e a diferena reside no uso que um e o outro fazem

    com o brao, entre o terceiro e o quarto segmentos sociais so os ps que se ajuntam

    s mos, para configurar a figura e o papel, bem como a funo do escravo nas terras

    lucrativas do acar e do tabaco. Apesar de ser o escravo o ltimo na escala

    hierrquica, reza o texto de Antonil que o nico verdadeiramente indispensvel para a

    empreitada da colonizao (v. adiante, nota 44). Leiamos: Os escravos so as mos e

    os ps do senhor de engenho, porque sem eles no Brasil no possvel fazer,

    conservar e aumentar fazenda nem ter engenho corrente (p. 159).

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    Na verdade, a imagem de um corpo branco de senhor, com mos e ps de

    escravos negros, mais esdrxula do que aquela imagem do co Crbero. Mas a

    lgica retrica no o forte dos nossos primeiros e rudimentares pensadores polticos.

    Sem querer entrar no mrito duma questo que seria melhor explicitada por

    anlise e interpretao feitas por socilogos ou economistas, gostaramos de retomar

    novamente a importncia que tem, nestes textos que estamos lendo, o recurso

    comparao entre os valores europeus, j estabelecidos e consagrados, e os valores

    brasileiros, indefinidos at o momento da publicao de cada novo livro interpretativo da

    nova realidade.

    A justeza da relao entre a realidade europia e a realidade que se lhe ajunta

    por comparao, colonialmente, s pode tomada ao p da letra caso se aceite sem

    questionar o desgnio do texto, que o de estabelecer para a terra e o homem

    brasileiros (ndios e escravos y inclus) uma estrutura de poder convincente, paralela e

    subalterna. Uma estrutura de poder altamente hierarquizada e justa, cujo fim o de

    dar estatuto social condigno quele que, por sua situao econmica extraordinria, por

    sua posio de mando no local de que nico responsvel, se situa no alto da

    pirmide. Da mesma forma, a possvel coerncia dentro do sistema estabelecido de

    comparaes (cabea, mos, ps -- em ordem decrescente de poder, descendo para o

    cho e para o trabalho servil 22) dependeria ainda do fato de que tinha de se passar

    uma imagem verossmil da estrutura social brasileira e da maneira como esta prpria

    estrutura letrada ia, ao mesmo tempo, lendo, interpretando a realidade, fixando de

    maneira legal e livresca os diversos escales.

    Portanto, toda discusso sobre a adequao, ou no, da realidade comparada

    portuguesa realidade brasileira que se lhe ajunta, pode ser exata dentro de uma viso

    22Gilberto Freyre dedica pginas importantes ao cio do senhor de engenho. Casa Grande &

    Senzala. Rio de Janeiro, Jos Olympio, 1973, pp. 428-429.

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    europeocntrica, mas ser sempre frustrante como alimento para anlises futuras, pois

    apenas insistir na falsidade do recurso comparao, vale dizer, da interpretao,

    sem indagar o por qu dela. Disso, por exemplo, no pde escapar A. P. Canabrava,

    lcida comentadora de Cultura e opulncia do Brasil: Em to alta conta [Antonil] tem a

    qualificao de senhor de engenho, que a iguala a um ttulo de nobiliarquia dos fidalgos

    do Reino. Na Amrica Portuguesa esta nova fidalguia se acomodava aos padres de

    base econmica marcadamente mercantil. E continua mais abaixo: a comparao

    uma estranha transposio de um tipo de relao de mundo medieval, para formas de

    condio econmico-social de natureza completamente distinta que caracterizaram na

    Colnia o uso da terra (p. 41).

    Portanto, antes de mais nada a comparao tem a funo precpua e oficiosa de

    definir a hierarquia de poder no Brasil (ainda que o sistema utilizado e legitimado pela

    tradio histrica seja totalmente equivocado, caso se tome o sentido preciso dos

    conceitos europeus e o estgio histrico-econmico por que passam ambas as regies).

    Se, como diz na nossa poca McLuhan, os meios de comunicao so extenses do

    homem, naquela poca a fora-trabalho das mos e ps negros era uma extenso da

    cabea branca do senhor de engenho. A ociosidade das outras mos e dos outros ps

    -- os brancos -- do senhor s possvel por ter sido o seu trabalho delegado ao feitor

    (mando) e ao escravo (obedincia e labuta servil). Dentro dessa viso ampla e bicolor

    do corpo do senhor de engenho 23 que se justifica o seu governo e o seu prestgio

    23 A mesma atitude de ampliao do corpo do senhor de engenho como uma forma

    inquestionvel de poder se encontra at mesmo em autor modernista, como Jos Lins do Rego.

    Em Menino de Engenho, o corpo do senhor de engenho confunde-se magicamente com toda a

    extenso da sua propriedade. Leiamos um trecho significativo do romance: Ningum lhe [ao

    senhor do engenho] tocava num capo de mato, que era mesmo que arrancar um pedao de seu

    corpo. Rio de Janeiro, Jos Olympio, 1971, p. 38.

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    enquanto ser scio-econmico junto Coroa portuguesa e aos pares. De todos os

    habitantes da colnia, ele a cabea e o cabedal.

    O intento e a reflexo finais do texto de Antonil visam singularizao do senhor

    de engenho no topo da escala scio-econmica da colnia brasileira. Trata-se de ajudar

    a ele, que realmente o merece, a obter as graas do Rei e os favores burocrticos. No

    ltimo pargrafo de Cultura e opulncia do Brasil, l-se: Se os senhores de engenhos,

    e os lavradores de acar e do tabaco so os que mais promovem um lucro to

    estimvel, parece que merecem mais que outros preferir no favor e achar em todos os

    tribunais aquela pronta expedio que atalha as dilaes dos requerimentos e o enfado

    e os gastos de prolongadas demandas (p. 316). Nessa frase no encontramos a

    linguagem do mero tratado descritivo que o livro propunha a ser, mas a voz exigente e

    possante do lucro colonial e da reivindicao de favores junto ao poder metropolitano.

    No possvel jogo entre a empresa aucareira, que se quer semi-independente,

    agressiva, lucrativa e esguia, e a burocracia do Estado, que se d enferrujada e

    morosa, nesse jogo em que as pedras so marcadas pelo prprio texto laudatrio de

    Antonil, o rbitro mximo da partida, o Rei, ou o presidente da Repblica nos dias

    atuais, no poder ter dvidas em indicar o privilegiado. Ou as ter?

    A ratificar a nossa leitura vem em apndice a Cultura e opulncia do Brasil a

    Licena do Santo Ofcio, assinada na prpria Lisboa pelo Fr. Paulo de So

    Boaventura. Ali se l que, pelo livro em questo, sabero os que quiserem passar ao

    Estado do Brasil, o muito que custam as culturas do acar, tabaco e ouro, que so

    mais doces de possuir no reino que de cavar no Brasil (p. 135). Sintomtico que -- na

    presena do Rei -- a linguagem mais rebelde dos portugueses aquela que diz que os

    reinis devem ser preteridos aos que labutam no Brasil -- cerca-se sempre de um tom

    humorstico, de onde no se exclui at mesmo o trocadilho. Nas palavras do Fr. Paulo

    de So Boaventura, o jogo entre o doce de possuir no reino e o trabalho duro de cavar

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    no Brasil, ligado ao campo semntico da produo do acar e do tabaco. No caso do

    Padre Antnio Vieira, no Sermo da Sexagsima, proferido em 1685 na Capela Real

    (Lisboa), h um trocadilho que no s visa a glorificar o trabalho missionrio dos

    jesutas na colnia brasileira como tambm tem sustentado as inumerveis discusses

    sobre cultismo e conceptismo: Ah Dia do Juzo! Ah pregadores! Os de c, achar-vos-ei

    com mais Pao; os de l, com mais passos.

    [espao]

    Sempre me intrigou a maneira como o romntico Jos de Alencar escolhia,

    durante a gestao dos seus romances histricos/indianistas, tanto os heris quanto os

    vilos. Por que escolheu D. Antnio de Mariz para personagem principal de O Guarani

    (1855)? Por que abriu a ao do romance precisamente naquela poca, incio do sculo

    XVII, quando Portugal estava sob o jugo do Rei espanhol? Por que cercou o fidalgo de

    aventureiros, destitudos de qualquer sentido moral?

    Retomando a diretiva da nossa leitura dos textos descritivos e ensasticos do

    perodo colonial, mas agora adentrando-se tanto pelo texto ficcional quanto pelo perodo

    ps-colonial, percebe-se que o interesse dos brasileiros recm-independentes,

    primeiros responsveis por um discurso legitimamente nacional, vai para um lder que

    seja capaz de montar, de organizar por conta prpria, numa determinada zona do

    territrio colonial brasileiro (ainda que diminuta), um arremedo de governo, ainda que

    ele prprio confesse, paradoxalmente, ainda dever obedincia a Portugal e no

    Espanha. Para tal tarefa, Alencar deixa claro, o chefe nativo tem de ter cabedal prprio

    para conseguir dissociar os seus prprios interesses financeiros dos interesses dos

    pares no Reino, isto , ele um empresrio autnomo na nova terra, portanto sem

    dependncia econmica direta da Coroa portuguesa. E mais importante: ele deve ser

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    fonte de lucro para ela. dessa forma, tinha-nos alertado Antonil, que o bom

    colonizador consegue fazer valer o seu valor na Corte e merecer o ttulo de fidalgo.

    Sintomaticamente, Alencar, ao elaborar em 1855 o seu primeiro romance

    histrico, escolhe D. Antnio em situao bastante exemplar, que se presta a uma

    interpretao complexa e sugestiva da liberdade/fidelidade do colono brasileiro via--vis

    de Portugal. Tanto mais complexa a situao dramatizada porque o pas

    metropolitano, naquela poca, vive sob o domnio espanhol. Leiamos os dois primeiros

    captulos de O Guarani24.

    D. Antnio um dos fundadores da cidade do Rio de Janeiro. Combateu os

    inimigos da sua ptria (franceses e selvagens) com o fim de consolidar o domnio de

    Portugal nessa capitania. Com a espada, ajudou a Mem de S nas tarefas de

    colonizao e por ele foi recompensado com uma semaria de uma lgua com fundo

    para o serto (p. 30), onde constri seu (diz o romance) castelo feudal. nessa

    sesmaria que o leitor vai encontr-lo, abrindo a pesada porta de jacarand que serve

    de entrada para o castelo e o romance. O motivo por que abandona a capitania do Rio

    de Janeiro e se embrenha pelo serto logo explicitado: Portugal tinha cado nas mos

    dos Filipes: Quando, pois, em 1582, foi aclamado no Brasil D. Filipe II como o sucessor

    da monarquia portuguesa, o velho fidalgo embainhou a espada e retirou-se do servio

    (p. 30).

    Tal atitude do fidalgo -- fiel por um lado a Portugal e livre por outro da metrpole

    no estado lastimvel em que est -- abre-lhe a possibilidade de articular, dentro de uma

    sesmaria, o seu pequeno e prprio poder de mando e exercer plenamente o governo

    naquele territrio. Poder de mando e governo desvinculados -- e, ao mesmo tempo, no

    -- de Portugal, num gesto semelhante futura atitude de D. Joo VI, ao transferir o

    24Todas as citaes de O Guarani e demais obras de Alencar foram extradas do v. II da Obra

    completa. Rio, Aguilar, 1964.

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    verdadeiro Portugal para o Brasil em 1808. Surge, dessa forma, dentro do romance

    alencarino, o tema colonial por excelncia, o da independncia e da liberdade, com toda

    uma conotao ambgua que procuraremos analisar. Se o discurso de Antonil dirigido

    ao Rei portugus, o de O Guaranij nos diz que o Rei no mais o bominterlocutor do

    fidalgo brasileiro, pois aquele que reina sobre Portugal falso. O verdadeiro Rei

    interiorizadono senhor brasileiro (que assim pode desobedecer ao falso, preservando

    dentro de si a fidelidade ao verdadeiro).

    A sesmaria de D. Antnio livre com relao ao Portugal filipino. Ali est se

    estabelecendo um senhor (fidalgo, se ecoarmos o texto) brasileiro, com plenos

    poderes. Independncia e liberdade aparecem de maneira um tanto implcita, j que o

    senhor continua disposto a prestar obedincia a Portugal. Leiamos, com o cuidado

    requerido, dois fragmentos de frases, situados em passagens diferentes do romance.

    Fala D. Antnio: Nesta terra que me foi dada pelo meu rei, e conquistada pelo meu

    brao, nesta terra livre, tu reinars, Portugal [...]. A segunda diz: [...] esse pedao de

    serto, no era seno um fragmento de Portugal livre. Vemos que, jogando com o

    conceito de independncia e liberdade relativas, consegue D. Antnio introjetar

    Portugal, no seu prprio negcio scio-econmico colonial, legitimando-o moda de D.

    Joo VI. Pode, assim, constituir-se em senhor de barao e cutelo, de alta e baixa

    justia dentro de seus domnios (p. 32).

    Torna-se de novo imperioso preocupar-se com as comparaes que o texto

    alencarino apresenta entre os elementos da metrpole e os da colnia. Como no tratado

    de Antonil, elas visam a dar um status social ao colono, no caso, rebelde, e ao grupo de

    aventureiros que o cercam, bem como casa que abriga a todos. As comparaes

    fluem no romance sem nenhum pejo. D. Antnio de Mariz, j vimos, fidalgo. Os

    aventureiros, vassalos. A casa fazia as vezes de um castelo feudal na Idade Mdia.

    Percebe-se que, apesar de no se tratar de um senhor de engenho, apenas um

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    empresrio, no sentido moderno da palavra, as comparaes servem para recobrir o

    territrio e os habitantes com o mesmo campo semntico feudal e medieval encontrado

    em Antonil.

    E mais ainda: se em Antonil a lgica entre a realidade comparada (Portugal) e a

    que se lhe compara (Brasil) totalmente desprovida de justeza histrica, por razes que

    s um especialista pode detectar, tal o mascaramento sutil que o tratado opera quando

    se refere s verdadeiras relaes econmicas que norteavam a empresa aucareira na

    colnia, em O Guaranij no se d o mesmo. O texto aponta e alerta para o processo

    de mascaramento e para os desacertos violentos da colonizao portuguesa. Os

    aventureiros so primeiramente apresentados como pobres, desejosos de fazer fortuna

    rpida e que tinham-se animado a se estabelecer neste lugar, em parcerias de dez e

    vinte, para mais facilmente praticarem o contrabando de ouro e pedras preciosas que

    iam vender na costa. Poucas linhas abaixo j so vistos pelo narrador de uma

    perspectiva oposta: O fidalgo recebia [os aventureiros] como um rico-homem que devia

    proteo e asilo aos seus vassalos [...] (p. 31). E, em nota, Alencar informa: Esse

    costume tinha o que quer que seja dos usos da Mdia Idade, e a necessidade o fez

    reviver em nosso pas onde faltavam tropas regulares para as conquistas e

    exploraes. Aqueles aventureiros pobres, ambiciosos e contrabandistas, e estes

    vassalos de um rico senhor, funcionando em tropas regulares, sero eles os mesmos,

    tica e judicialmente?

    A dubiedade da figura (aventureiro e vassalo ao mesmo tempo) s pode ser

    melhor compreendida, e com mais rigor, num outro nvel, levando em conta

    determinado padro de pensamento de Alencar, que transcende o autor e a sua poca.

    Toda atitude de poder coercitivo por parte do chefe no frontalmente aberta; o gesto

    explicitamente autoritrio s se d em circunstncias excepcionais. Depois de definir D.

    Antnio como senhor de barao e cutelo, como vimos, acrescenta: devemos declarar

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    que rara vez se tornara preciso a aplicao dessa lei rigorosa; a severidade tinha

    apenas o efeito salutar de conservar a ordem, a disciplina e a harmonia (p. 32).

    O chefe alencarino, fidalgo nas terras brasileiras, guarda muito da transparncia

    do principal indgena, como o descreveu Gabriel Soares de Sousa e comentou Pierre

    Clastres. O poder no sendo necessariamente coercitivo, ele se manter como tal

    porque a hierarquia freqentemente marcada de maneira inquestionvel no texto. Em

    outras palavras: a liderana mais conseqncia de uma hierarquizao rgida dos

    diversos integrantes na organizao social do que resultado de ordens violentas e

    repressivas por parte de quem detm o mando. Como a hierarquizao slida e

    inquestionvel, pois advm de valores categricos tomados de emprstimo rigidez da

    estratificao social europia, cada um sabe o lugar que ocupa e que o certo. O

    imobilismo social congela todos os elementos da comunidade dos brancos e mestios.

    E o texto literrio romntico, ps-colonial, serve exatamente como efeito de cogulo.

    Dentro da sociedade colonial branca, tal qual retratada por Alencar, apenas uma

    exceo aberta para um no-branco. Para o selvagem. Ele foge regra da ordem

    escravocrata porque absolutamente livre25

    . Por efeito de contraste, todos os demais

    elementos diferentes-do-selvagem esto presos, fixos e estticos social e

    economicamente. Sem dvida, no existe maior elogio social figura do indgena do

    que este, maior iseno de preconceito contra a sua figura durante a colonizao

    portuguesa nos trpicos. Dentro de uma organizao scio-econmica hierarquizada,

    25Obviamente em Ubirajara, romance cuja ao se passa em tempos pr-cabralinos, o selvagem

    no dado em liberdade social. Encontra-se entre os seus semelhantes, no interior de uma

    hierarquizao scio-poltica paralela e to rgida quanto a europia. Isso, de novo, graas ao

    recurso da comparao. A liberdade do selvagem, em O Guarani, cuja ao, repitamos, se

    passa no sculo XVII, existe porque ele est fora/dentro da sociedade dos brancos. Tem,

    portanto, mais a ver com a ausncia de preconceito de Alencar, do que com a lgica das suas

    narrativas.

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    rgida, o autctone o nico indivduo que tem o poder de mobilidade. Se for inimigo,

    enfrentado na guerra. Caso seja tomado como cativo, vassalo. Corrobora o texto:

    quando [os selvagens] nos respeitam so vassalos de uma terra que conquistamos,

    mas so homens. Quando so nobres no seu prprio meio, podem se inscrever num

    escalo mais alto dentro da hierarquia brasileira europeizada, mas neste caso no

    existe ascenso social, apenas absoro digna: Peri estendeu o brao e fez com a

    mo um gesto de rei, que rei das florestas ele era, intimando aos cavalheiros que

    continuassem a sua marcha (p. 39).

    O mesmo no pode ser dito a respeito do negro, pois em nenhum texto do

    perodo, que conhecemos, se tematiza a natureza nobre do africano e menos ainda

    sua mobilidade social 26. Da a palavra dura de Joaquim Nabuco, em O Abolicionismo,

    retomando palavras antigas de Jos Bonifcio no exlio (Sem a emancipao dos

    atuais cativos nunca o Brasil firmar a sua independncia nacional e segurar e

    defender a sua liberal constituio.), admoestando em 1883 os brasileiros:

    No processo do Brasil um milho de testemunhas ho de levantar-se contra ns,

    dos sertes da frica, do fundo do oceano, dos barraces da praia, dos

    cemitrios das fazendas, e esse depoimento mudo h de ser mil vezes mais

    valioso para a histria do que todos os protestos de generosidade e nobreza

    dalma da Nao inteira.

    26 Na literatura brasileira do sculo XIX, o melhor exemplo de imobilismo social do negro se

    encontra no romance O cortio (1888). Todos os elementos humanos pretos, ou mulatos, no

    conhecem forma alguma de ascenso social durante o desenrolar da ao. Existe, quando

    muito, um aprimoramento da raa negra, possibilitado pelo casamento (ou pela simples unio)

    de preta com branco, ou vice-versa. A ascenso social s existe para o homem do sobrado, o

    portugus Miranda, que se torna baro, e para o tambm portugus Joo Romo que, para tal,

    tem de abandonar definitivamente a negra Bertoleza. Deve-se excetuar, no perodo da

    Independncia, as idias defendidas por Jos Bonifcio durante o perodo da Constituinte.

    Joaquim Nabuco levanta a hiptese: At que ponto as idias conhecidas de Jos Bonifcio

    sobre a escravido concorreram para fechar ao estadista que planejou a Independncia a

    carreira poltica em seu prprio pas, um ponto que merece ser estudado (p. 57).

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    27

    [espao]

    Se o romance de Jos de Alencar tematiza de maneira inequvoca a oscilao

    entre a fidelidade a Portugal como sentido da civilizao brasileira (o pas o nico que,

    depois da Independncia, acata o regime dinstico nas Amricas, isso graas ao acaso

    da imigrao de D. Joo VI em 1808, fugindo de Napoleo) e a aspirao

    independncia nacional como domnio das riquezas naturais pelos mais bem situados

    na hierarquia determinada pelo dinheiro e o mando, se o romance se fortalece com a

    heroicidade tanto do fidalgo/colono, empresrio na nova terra, quanto com a do

    autctone/selvagem, depositrio de todos os valores morais de liberdade, se o romance

    se fertiliza com a dubiedade da figura do aventureiro/vassalo, lembrando sem dvida a

    dialtica da malandragem que caracteriza a situao do homem livre na ordem

    escravocrata de que Antonio Candido foi o intrprete mais feliz 27, se o romance

    esconde por detrs de algum misterioso telo ideolgico a mancha da escravido

    negra, no h dvida de que ali, naquele conjunto disparatado, est apesar de tudo

    uma imagem escrita de Brasil que se apresenta como uma comunidade poltica

    imaginada 28, para retomar a expresso de Benedict Anderson. A comunidade se

    organiza, no pelos laos sangneos, mas em virtude de todos os seus membros

    adotarem, consciente ou inconscientemente, a mxima dos gramticos renascentistas,

    27Dialtica da malandragem, Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. So Paulo, 1970, n. 8.

    Para uma leitura crtica desse texto, consultar: Roberto Schwarz, Pressupostos, salvo engano,

    de Dialtica da Malandragem , Esboo de figura, homenagem a Antonio Candido, pp. 133-151.28 Em artigo datado de 1964, que retomaremos adiante, Jos Guilherme Merquior, anuncia

    algumas teses de Benedict Anderson. Vejam, por exemplo, esta definio do poeta que escreve

    A cano do exlio: um melanclico aspira a um pas ednico, a uma terra ideal, a uma ptria

    sonhada e, de sonhada, idealizada . Poema do l, Razo do poema. Rio de Janeiro,

    Civilizao Brasileira, 1965, p. 49.

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    a lngua companheirado Imprio. Esta, por sua vez, foi passando, sculo aps sculo,

    e em transparncia, os novos valores religiosos 29. A lngua portuguesa d forma ao

    Brasil-nao, fechando-o na sua singularidade, ao mesmo tempo em que serve de

    instrumento para diferen-lo da multido dos pases-naes limtrofes e vizinhos que

    ganham significado atravs da lngua espanhola.

    Ela imaginada escreve Andersonporque nem mesmo os membros das

    menores naes jamais conhecero a maioria dos seus compatriotas, nem os

    encontraro, nem sequer ouviro falar deles, embora na mente de cada um esteja viva

    a imagem da sua comunho (p. 14). Sem dvida, essas palavras, ao se referirem ao

    romance de Jos de Alencar, onde o senso da comunidade se casa com a capacidade

    de esquecer manchas negras to importantes quanto o prprio sentido da

    nacionalidade, no deixam de lembrar outras palavras tambm pertinentes, agora de

    Renan: Or l`essence d`une nation est que tous les individus aient beaucoup de choses

    en commun, et aussi que tous aient oubli bien des choses.

    Para Anderson a nao imaginada e, como tal, como uma comunidade

    limitada e soberana. Citemos as definies dos trs termos. Primeira: A nao

    imaginada como limitada, porque at mesmo a maior delas, que abarca talvez um

    bilho de seres humanos, possui fronteiras finitas, ainda que elsticas, para alm das

    29Benedict Anderson lembra o dito de San Martn batizando os ndios de fala quchua como

    peruanos. Para ele, San Martn demonstra que desde o incio a nao foi concebida pela

    lngua, no pelo sangue, e que qualquer um pode ser convidado a entrar para a comunidade

    imaginada (p. 159). Contrastar com as observaes feitas por Celso Cunha, pargrafos atrs, e

    tambm com esta observao, um pouco tardia sem dvida, de Joaquim Nabuco em O

    abolicionismo: A sociedade colonial era por sua natureza uma casa aberta por todos os lados

    onde tudo era entradas; a sociedade da me ptria era aristocrtica, exclusiva, e de todo

    fechada cor preta. Da a conspirao perptua dos descendentes de escravos pela formao

    de uma ptria que tambm fosse a sua. Esse fator de desagregao foi o fator annimo da

    Independncia (p. 54).

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    quais encontram-se outras naes. Nenhuma nao se imagina coextensiva com a

    humanidade. Segunda: E imaginada como soberana, porque o conceito nasceu numa

    poca em que o Iluminismo e a Revoluo estavam destruindo a legitimidade do reino

    dinstico hierrquico, divinamente institudo. [] O penhor e o smbolo dessa liberdade

    o Estado soberano. Terceira: Finalmente, a nao imaginada como comunidade

    porque, sem considerar a desigualdade e explorao que atualmente prevalecem em

    todas elas, a nao sempre concebida como um companheirismo profundo e

    horizontal (pp. 14-16).

    Fato mais extraordinrio vai acontecer no romance Memrias pstumas de Brs

    Cubas, de Machado de Assis, especialmente no captulo que leva por ttulo Um

    episdio de 1814 30, ou seja, momento em que chega ao Rio de Janeiro a notcia da

    primeira queda de Napoleo (renncia coroa e exlio em Elba). O narrador

    machadiano, ao se interessar pelas relaes entre a Europa e o Novo Mundo, entre o

    pas metropolitano e o pas colnia, esquece definitivamente a retrica da comparao

    que, como vimos, era utilizada pelos autores precedentes para articular o modo coeso

    como a cpia era um prolongamento do modelo, instaurando ao final a semelhana-

    com-diferenas como figura entre as partes envolvidas no processo descritivo. Para

    Machado, a histria se passava num tempo homogneo e vazio, havendo apenas uma

    ligeira defasagem temporal entre o l e o c, que se explicava pelo atraso social,

    esperado e justo na vida em colnia. Para a colnia, havia uma referncia horizontal,

    tranversal ao tempo histrico -- a metrpole.

    Ao pr um fim no recurso retrico da comparao, o captulo machadiano toma a

    forma de uma pedra que ricocheteia sobre a mansido das guas de um lago, criando

    crculos concntricos cujo significado simultneo e sempre relativo. Os eventos

    30Obra completa. Rio de Janeiro, Jos Aguilar Editora, 1971, vol. I, pp. 528-531.

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    histricos e corriqueiros (o narrador se interessa mais pelo espadim que ganhou do

    padrinho do que pela queda de Napoleo -- o nosso espadim sempre maior do que a

    queda de Napoleo) so paralelos e, aparentemente, destitudos de nexo causal. A

    pedra fere o centro das atenes: a primeira queda de Napoleo na Europa e as

    conseqncias do acontecimento sobre a situao ambgua de Portugal, de D. Joo VI

    e o Brasil. O crculo seguinte mostra o modo como a populao [carioca], cordialmente

    alegre no regateou demonstraes de afeto real famlia. E, por isso, aparecem nas

    ruas iluminaes, salvas, Te Deum, cortejo e aclamaes. A alegria reina na Corte

    transplantada s pressas para o Rio de Janeiro e, indiretamente, tambm deixa felizes

    os brasileiros com a sua prxima viagem de volta. A famlia de Brs Cubas julga

    oportuno e indispensvel celebrar a destituio doimperador com um jantar, e tal jantar

    que o rudo das aclamaes chegasse aos ouvidos de Sua Alteza, ou quando menos,

    de seus ministros." Durante o jantar um sujeito dava a outro notcia recente dos negros

    novos, que estavam a vir, segundo cartas que recebera de Loanda, uma carta em que o

    sobrinho lhe dizia ter j negociado cerca de quarenta cabeasO que afianava que

    podamos contar, s nessa viagem, uns cento e vinte negros, pelo menos. Como se

    no bastasse a simultaneidade de tantos eventos, tambm nesse dia que o menino

    Brs Cubas v o Vilaa tascar, s escondidas, um beijo na dona Eusbia. Anos mais

    tarde, encontrar a flor da moita, agora uma moa, infelizmente coxa.

    Machado estava apontando -- no prenncio do retorno do Rei portugus Corte

    lisboeta e na proximidade do momento em que o pas se tornaria independente -- para

    um dos traos mais fundamentais que marcam a possibilidade de se pensar uma nao,

    um dado importante na gnese obscura do nacionalismo. Ei-lo: o aparecimento de

    uma concepo de tempo homogneo e vazio. Anderson toma de emprstimo a

    expresso a Walter Benjamin. Comea a explic-la com a anlise que Erich Auerbach

    faz do sacrifcio de Isaac, que interpretado como a prefigurao do sacrifcio de Cristo.

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    Interpreta Auerbach: existe uma conexo entre dois eventos [sacrifcios de Isaac e

    Cristo] que no se vinculam temporalmente, nem casualmenteconexo impossvel de

    ser estabelecida pela razo na dimenso horizontal. Ela s pode ser estabelecida se

    ambas as ocorrncias estiverem verticalmente [grifo nosso] vinculadas Divina

    Providncia, a nica capaz de traar um plano de histria como esse e fornecer a chave

    para sua compreenso.

    No caso de Machado de Assis, usado aqui para ilustrar a teoria de Anderson, a

    simultaneidade como se fosse transversal ao tempo, marcada no pela prefigurao e

    cumprimento, mas por coincidncia temporal, e medida pelo relgio e pelo calendrio.

    De maneira jocosa e sria, comenta Anderson: essa nova idia est to arraigada que

    se poderia afirmar que todo conceito fundamental moderno baseia-se num conceito de

    enquanto isso (p. 33), conceito de que se vale, claro, os romances e os jornais da

    poca. Retomemos o captulo de Brs Cubas. Depois do inverno de 1814, comea a

    derrocada de Napoleo na Europa, enquanto isso rejubila-se a famlia real no Rio de

    Janeiro e tambm a populao carioca, enquanto isso o pai de Brs Cubas resolve dar

    um jantar para celebrar a destituio do imperador e ser objeto de comentrios na corte

    carioca, enquanto isso navios negreiros continuam a entrar no porto do Rio de Janeiro,

    enquanto isso um paspalho deflora uma senhora que, anos mais tarde, ostentar uma

    bela filha, produto do amor proibido, uma verdadeira flor da moita. Todos os episdios,

    tanto a queda de Napoleo quanto os escravos expostos no mercado de Valongo, se

    passam ao mesmo tempo, esto encravados em sociedades nacionais. Observa

    Anderson: O fato de que todos esses fatos so desempenhados no mesmo tempo,

    medido pelo relgio e pelo calendrio, mas por atores que podem estar em grande parte

    despercebidos uns em relao aos outros, demonstra a novidade desse mundo

    imaginado evocado pelos autores nas mentes de seus leitores (p. 35).

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    [espao]

    Retomando passagem anterior dessa Introduo, em que foram alvo, no tratado

    de Antonil e no sermo de Vieira, os jogos retricos entre o l (terras brasileiras) e o

    c (terras portuguesas), retomemos tambm a idia da valorizao emblemtica do

    trabalho que se tem nas terras brasileiras em oposio s gostosas facilidades que se

    encontram nas terras portuguesas, para reencontrar a extraordinria metamorfose que

    o jogo vai merecer de Gonalves Dias, no famoso poema A cano do exlio. Nesta, o

    jogo entre o l e o c vai encontrar a sua dignificao esttica, idealizada, no primeiro

    hino da nacionalidade brasileira: As aves, que aqui gorjeiam,/ No gorjeiam como l.

    Jos Guilherme Merquior, em Razo do Poema, fez uma notvel e ainda atual

    anlise do poema. Dela nos valeremos para dar continuidade ao tema. Afirma ele, em

    primeiro lugar, que: Estrelas, vrzeas, flores, bosques, vida, amores -- tudo isso existe

    em Portugal, como existe no Brasil. O que de fato provoca a saudade no portanto a

    sua simples existncia, e sim a qualidade que esta ganha, quando na moldura da ptria.

    A cano no compara o que o Brasil tem com o que a terra alheia no possui; indica,

    isso sim, o maior valor que as mesmas coisas revestem, uma vez localizadas no Brasil.

    E continua, ao final da minuciosa anlise dos vrios passos do poema: Profundamente

    brasileira a saudade da terra natal, na forma de um desprezo cego pela realidade

    objetiva do pas. Boa ou ruim, promissora ou aflitiva, essa realidade jamais conseguir

    demover o saudoso de seu amor obstinado terra. [...] Hoje, como sempre, reluz

    nesses versos a vibrao da certeza consoladora de nos sabermos irremediveis

    amantes do Brasil, mesmo do Brasil to freqentemente errado e decepcionante, pobre

    de fortuna e de projetos, abrigo de vcios e de molezas. que o brasileiro ser sempre

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    incapaz de adotar o ubi bene ibi patria 31 dos que reduzem o amor de sua terra ao

    prazer que elas lhes possa dar; porque, para ns, ser sempre possvel esquecer a

    misria da ptria presente na sublime teimosia com que a amemos, boa ou m, na fora

    de quem faz desse amor uma vontade firme 32

    atitude unvoca e radical de Gonalves Dias, pode-se opor, j entre o fim do

    sculo XIX e o incio do sculo seguinte, a ambigidade cosmopolita de Joaquim

    Nabuco, tal como se expressa no livro de memrias Minha formao, captulo Atrao

    do mundo 33. Neste, fala mais alto o cientista poltico do que o patriota, fala mais alto o

    companheiro de Machado de Assis do que o mulo de Gonalves Dias. Escreve ele:

    Sou antes um espectadordo meu sculo do que do meu pas; a pea para mim a

    civilizao, e se est representando em todos os teatros da humanidade, ligados hoje

    pelo telgrafo. Morando em pas provinciano, o grande estadista da Abolio est

    distante do palco onde a grande pea da Histria se desenrola, mas dela pode ser

    espectador no conforto do lar em virtude dos meios de comunicao de massa

    modernos, no caso o telgrafo.

    Escreve Nabuco que, em sua vida, viveu muito da Poltica, com P grande, isto

    , da poltica que histria, para logo em seguida afirmar a sua incapacidade para

    viver plenamente a poltica propriamente dita, que a local, a do pas, a dos partidos.

    A incapacidade tambm o caminho enviesado e, paradoxalmente, mais correto para o

    cidado brasileiro atualizado e consciente participar do projeto nacional em andamento.

    Equacionando Poltica com maiscula Histria, histria da civilizao ocidental, no

    caso histria da Europa na sua expanso geogrfica, econmica e social (no se pode

    31 Trata-se do conhecido lema do cosmopolitismo, baseado num trecho de Ccero, das

    Discusses Tusculanas(v. 37): Onde me sinto bem, l a minha ptria. Cf. Paulo Rnai, No

    perca seu latim.Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980.32 Idem, pp. 41-50.33Rio de Janeiro, Edies de Ouro, 1966, pp. 61-69.

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    esperar do pensador monarquista uma postura diferente da eurocntrica), Nabuco no

    s julga a poltica com minscula, a nacional, como inferior, setorizada e dominada por

    estruturas arcaicas e sentimentos baixos, como tambm inventa caminhos para que a

    nao saia do atraso em que se encontra.

    a obra jornalstica e ficcional de Joaquim Manuel de Macedo que complementa

    as observaes de Nabuco e melhor ilustra a mediocridade da vida poltica nacional,

    como o demonstrou recentemente Flora Sssekind. Cite-se, como exemplo, o modo

    como o narrador de Macedo apresenta um aprendiz de poltica na segunda metade do

    sculo passado: [...] se filho, sobrinho ou parente chegado de algum senhor velho, de

    algum membro daquela classe de privilegiados [...], se nhonh, encarta-se logo na

    presidncia de alguma provncia; da presidncia da provncia salta para a cmara

    temporria; da cmara temporria pula para o ministrio: uma questo de trs pulos

    dados em alguns meses, e em duas palhetadas e meia, o nhonh, que no foi ouvir as

    lies de nenhum mestre, que no teve noviciado, nem tempo para ler mais do que os

    prlogos de alguns livros, declarado estadista de fama e salvador da ptria 34.

    Pela sua formao (e disso que o livro de memrias trata), a incapacidade que

    Nabuco sente para viver a medocre poltica nacional acaba por gui-lo para fora do

    Brasil, ou seja, para o ponto onde a ao do drama contemporneo universal mais

    complicada ou mais intensa. Complicao poltica e intensidade moral, na medida em

    que universais, no podem ser para um brasileiro culto matria de presenciar, mas s

    de apreciar da sua poltrona na platia provinciana. O texto exemplifica: [...] em 1870, o

    meu maior interesse no est na poltica do Brasil, est em Sedan. No comeo de 1871,

    34Em lugar de o discurso medocre, egosta e retrico dos polticos brasileiros alimentar -- nos

    diz Flora Sssekind -- os comentrios ou as descries no texto, ele constitutivo da prpria voz

    narrativa. Conclui a ensasta que o narrador no algum que, de fora, observa e critica o

    comportamento poltico.

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    no est na formao do gabinete Rio Branco, est no incndio de Paris, e assim por

    diante. Complicao poltica e intensidade moral, na medida em que universais, s por

    milagre divino podem ser matria de acontecer no Brasil e, por isso, de ser

    presenciadas: Em 1871, durante meses, [o meu maior interesse] est na luta pela

    emancipao [Lei do Ventre Livre] mas no ser tambm nesse ano o Brasil o ponto

    da terra para o qual est voltado o dedo de Deus? O atraso poltico brasileiro antes

    de mais nada questo de geografia e pode ser corretamente encarado, na falta do dedo

    de Deus, pela viagem de observao e estudo ao estrangeiro e, na falta desta, pelo

    telgrafo. Como h uma distncia entre o escrever e o representar uma pea de teatro,

    assim tambm h uma distncia entre a ao poltica e a sua representao no palco

    europeu, como ainda h uma distncia entre esta e a sua transmisso, pelos meios de

    comunicao de massa, para outro e distante arremedo de palco europeu.

    A formao do intelectual brasileiro no sculo XIX se confunde com outra

    formao: a da sedimentao das camadas geolgicas do esprito humano (a

    expresso do texto). H uma tardia e, por isso, dupla inscrio do brasileiro, vale

    dizer, do americano, no processo histrico de esfriamento da crosta da cultura humana.

    Os americanos pertencem Amrica pelo sedimento novo, flutuante, do seu esprito, e

    Europa, por suas camadas estratificadas. P c, p l, em equilbrio aparente

    claro, pois no se pode dar o mesmo peso e valor busca sentimental do comeo (a

    histria do Novo Mundo) e investigao racional da origem (a histria da civilizao

    ocidental). O eurocntrico Nabuco conclui: Desde que temos a menor cultura, comea

    o predomnio destas [das camadas estratificadas] sobre aquele [o sedimento novo]. Diz

    ainda: o esprito humano, que um s e terrivelmente centralista, est do outro lado do

    Atlntico[grifo nosso]. A pesquisa geolgica do nacional vai apenas at o marco cristo

    da descoberta da regio por pas europeu, ou seja, at a Primeira Missarezada pelos

    padre portugus no Brasil; dali o gelogo no deve partir para recompor as tradies

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    dos autctones; l chegando, deve se desviar do solo pesquisado, dar meia-volta e,

    vestido de historiador das idias, sair em busca de profundidades s encontradas em

    civilizaes da humanidade, como a dos europeus. H um fundo (enriqueo

    semanticamente a palavra de Nabuco, tomando-a em todos os seus sentidos:

    geogrfico, histrico, econmico, social, etc.) europeu comum que tanto define o l

    quanto, por formao,legitima o c.

    A ptria que fascina o corao no ilude a cabea e, por isso, o grande

    espetculo do mundo o que prende e domina a inteligncia. Em poltica, a lei do

    corao s forte e dominadora no momento em que a razo desclassificada pela

    idade avanada ou pela infelicidade da ptria. Escreve o narrador experimentado: cada

    vez sou mais servo da gleba brasileira, por essa lei singular do corao que prende o

    homem ptria com tanto mais fora quanto mais infeliz ela e quanto maiores so os

    riscos e incertezas que ele mesmo corre. Corpo velho numa ptria republicana,

    dominada por militares jacobinos, so dignos de piedade, da o sentimentalismo do

    velho narrador de Minha formao.

    Nos anos da juventude e da maturidade, sentado na platia do palco brasileiro,

    onde se encena o drama menor da jovem nao, Nabuco almeja estar na platia do

    grande teatro da humanidade, onde se desenrolam as peas sedutoras e definitivas do

    sculo. Escreve ele: As paisagens todas do Novo Mundo, a floresta amaznica ou os

    pampas argentinos, no valem para mim um trecho da Via Appia, uma volta da estrada

    de Salerno a Amalfi, um pedao do cais do Sena sombra do velho Louvre. No meio do

    luxo dos teatros, da moda, da poltica, somos sempre squatters,como se estivssemos

    ainda derribando a mata virgem. A identidade histrica de jovens naes, como as

    americanas, no se encontra ali onde esperam encontr-las os nativistas, isto , os

    polticos com p minsculo. Ela est fora do tempo histrico nacional e fora do espao

    ptrio: por isso lacunar e eurocntrica. Em resumo, o seu lugar a ausncia,

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    determinada por um movimento de tropismo. Em virtude da ausncia de um solo ptrio

    legtimo, o triste sofrimento por que passa o brasileiro serve de fundamento e

    justificativa tanto para os vos da sua imaginao eurocntrica quanto para o apego, no

    exlio londdrino, ao pas onde nasceu: De um lado do mar, sente-se a ausncia do

    mundo; do outro, a ausncia do pas. A questo do poder (dos donos do poder, para

    retomar a expresso de Raymundo Faoro) e da cultura brasileira como herdeira da

    europia se anuncia de maneira extraordinria em Nabuco pela dupla brecha da

    ausncia e se reconforta, como um motor se reconforta ao receber nova carga de

    combustvel, com a dupla (e no unvoca, como em Gonalves Dias) sensao de

    saudade 35.

    Avancemos o relgio do tempo e entremos sculo XX adentro. Vamos encontrar

    na correspondncia entre Mrio de Andrade e Carlos Drummond de Andrade, um

    fascinante eco do dilogo entre Gonalves Dias (via Jos Guilherme Merquior) e

    Machado de Assis (via Joaquim Nabuco), eco que, ao ribombar pela cultura brasileira,

    acaba por ser inteiramente a favor da corrente nacionalista. Ao ler carta de Drummond

    escrita nos anos 20, Mrio observa que o esprito do poeta mineiro se encontrava ento

    completamente tomado pela tristeza e o pessimismo de Joaquim Nabuco e,

    principalmente, pelo ceticismo finissecular de Anatole France. Mrio no perdoa as

    duas influncias complementares e, segundo ele, nocivas, e nelas encontra material

    35A descoberta do Brasil, dada anacronicamente por Oswald de Andrade como tendo sido em

    1923, no se encaminha de modo diferente para o papel. Em prefcio ao livro de poemas Pau

    Brasil, afirma Paulo Prado: Oswald de Andrade, numa viagem a Paris, do alto de um atelier da

    Place Clichyumbigo do mundodescobriu, deslumbrado, a sua prpria terra. A volta ptria

    confirmou [...] a revelao surpreendente que o Brasil existia. Como diz o poema de Carlos

    Drummond, da mesma poca: E a gente viajando na ptria sente saudades da ptria. A

    ambigidade da perda e da saudade est nestes dois versos do mesmo poema: No elevador

    penso na roa/ na roa penso no elevador.

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    para enriquecer as suas reflexes polticas e alimentar os seus petardos certeiros e

    irnicos contra os mestres do passado.

    Mrio de Andrade pina na carta do recente amigo mineiro frases que indiciam

    dois momentos reveladores da insuficincia intelectual dele. Destaca primeiro a

    seguinte passagem: Pessoalmente acho lastimvel essa histria de nascer entre

    paisagens incultas e sob cus pouco civilizados. Acho o Brasil infecto. E mais adiante

    na carta, Mrio detecta em meio a uma frase a origem da lstima e do nojo

    cosmopolitas drummondianos. Esses sentimentos so justificados, l Mrio, pela

    tragdia de Nabuco, de que todos sofremos 36.

    A primeira tarefa didtica a que Mrio se dedica a de trabalhar o conceito

    duplo de saudade, difundido por Nabuco, com vistas a dissociar o privado do pblico e

    rejeitar a hierarquizao dos significados mascarada pela amgidade. Em entrevista a

    um jornal carioca, A Noite, publicada em dezembro de 1925, o autor de Macunama

    constata, repondo o l e o c nos seus devidos lugares: O modernista brasileiro

    matou a saudade pela Europa, a saudade pelos gnios, pelos ideais, pelo passado,

    pelo futuro, e s sente saudade da amada, do amigo...37

    Para Mrio, a melancolia da

    separao s passvel de ser cultivada no cipoal das relaes pessoais. Fora disso,

    traduz o desacomodamento do brasileiro com a realidade ambiente. Da, segundo

    Mrio, a necessidade que o jovem brasileiro tem de sentir e viver o Brasil no s na

    sua realidade fsica mas na sua emotividade histrica tambm 38. Mrio estava dando

    36A lio do amigo. Cartas de Mrio de Andrade a Carlos Drummond de Andrade. Rio de

    Janeiro, Jos Olympio, 1982. Em especial as cartas datadas dos anos de 1924 e 1925.37 Marta Rossetti Batista, Tel Porto Ancona Lopez, Yone Soares de Lima, Brasil: 1 tempo

    modernista - 1017/29. Documentao. So Paulo, Instituto de Estudos Brasileiros, 1972, pp. 234-

    238.38Manuel Bandeira, mais velho e sensato, escreve a Mrio na poca: Me parece que estamos

    ainda observandoo Brasil, ainda no estamos vivendo o Brasil.

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    os primeiros passos na longa caminhada de abrasileiramento do Brasil. Antes de mais

    nada, pregava ele, era preciso buscar no a origem da tragdiade Nabuco, mas o foco

    da infeomazomba.

    De maneira bem humorada, comea por propor a Carlos Drummond que

    considere a tragdia de Nabuco como par para a doena tropical transmitida pelos

    insetos conhecidos como barbeiros e que leva o nome do cientista que a descobriu, a

    doena de Chagas. A dita tragdia de Nabuco nada mais seria do que uma outra

    doena tropical, transmitida aos jovens pelo bacilo das ninfas europias. Escreve Mrio

    ao futuro poeta maior: o Dr. Chagas descobriu que grassava no pas uma doena que

    foi chamada de molstia de Chagas. Eu descobri outra doena mais grave, de que

    todos estamos infeccionados: a molstia de Nabuco. Na entrevista acima citada, Mrio

    define: Molstia de Nabuco isso de vocs [brasileiros] andarem sentindo saudade do

    cais do Sena em plena Quinta de Boa Vista e isso de voc falar dum jeito e escrever

    covardemente colocando o pronome carolinamichaelismente. Estilize a sua fala, sinta a

    quinta de Boa Vista pelo que e foi e estar curado da molstia de Nabuco.

    [espao]

    Ao planejar esta antologia, julgamos que seria importante centrar a ateno dos

    leitores nos melhores ensaios escritos por brasileiros sobre o Brasil, depois da

    Independncia do pas. Isso no excluir a possibilidade de outras antologias virem a

    ser publicadas. Antologias em que textos coloniais ou de viajantes estrangeiros sejam

    selecionados; ou ainda antologias em que histrias pormenorizadas de determinados

    perodos histricos da nacionalidade, ou contribuies de carter descritivo e/ou

    interpretativo de acontecimentos histricos precisos sejam a dominante; ou, finalmente,

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    antologias em que as interpretaes seguiriam de perto a evoluo de uma atividade

    artstica no pas (histrias da msica, das artes plsticas, da literatura, do cinema, etc.).

    Falta-nos, sem dvida, um quadro antolgico das atividades dos brasileiros no campo

    das artes.

    Tratava-se, no nosso caso, de buscar um princpio organizador que desse a

    dimenso da fora intelectual que desenvolvemos, gerao aps gerao, de refletir

    sobre o prprio pas a partir do momento em que se tornou independente e a nao,

    soberana. O feito, o que est sendo feito e o que dever ser feito. Pensamento e ao.

    Injustias e verdades. Fracassos e conquistas. Reflexo e auto-conhecimento. O

    particular e o universal. Crtica e autocrtica. Idias e governabilidade. Ideologias e

    fanatismos. Eis a alguns dos pares que se impunham no momento da escolha.

    Devero servir como reservatrio infinito de luz para a constituio de novas

    interpretaes neste momento em que o pas comemora quinhentos anos do seu

    achamento (apud Caminha) pelos navegadores portugueses. Queramos armar uma

    festa de aniversrio, talvez menos trivial do que uma comemorao onde a pompa e os

    fogos de artifcios podem dominar e inebriar, mas acabam por escamotear o profundo

    sentimento de amor e esperana por melhores dias que ho de vir para o pas que

    criaram para ns e continuamos a criar. Mas a festa no frugal, tal a qualidade das

    iguarias que esto sendo oferecidas ao leitor vido de conhecimento.

    Selecionamos dez ensaios e um romance, onze autores, que nos parecem

    dignos de representar o melhor do pensamento brasileiro sobre o Brasil. E para

    acompanhar cada livro, solicitamos a um grande especialista e estudioso da matria

    uma introduo. Os clssicos dialogam com os seus admiradores. Onze ensastas,

    todos contemporneos nossos. Pertencem eles a escolas e geraes diferentes.

    Apresentam abordagens e estilos diferentes. Por isso, dentro da diversidade das

    grandes interpretaes selecionadas, a diversidade dos ensaios introdutrios

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    solicitados. O conjunto duplamente rico e complexo dever convergir para um ponto

    paradoxal, ainda mais complexo: um exemplo entre outros, talvez o mais ambicioso -- o

    trabalho de montar uma antologia de textos que mostra como que pensamos e

    continuamos a pensar o Brasil. Eis o quadro a que chegamos no final:

    1. Joaquim Nabuco, O abolicionismo

    Francisco Iglsias

    2. Euclides da Cunha, Os Sertes

    Roberto Ventura

    3. Manuel Bonfim,A Amrica Latina

    Flora Sussekind

    4. Oliveira Viana,Populaes meridionais do Brasil(apenas o 1 volume)

    Jos Murilo de Carvalho

    5. Alcntara Machado, Vida e morte do bandeirante

    Laura de Melo e Souza

    6. Graciliano Ramos, Vidas secas

    Wander Melo Miranda

    7. Paulo Prado,Retrato do Brasil

    Ronaldo Vainfas

    8. Gilberto Freyre, Histria da sociedade patriarcal no Brasil (Casa Grande &

    Senzala, Sobrados e Mocabos e Ordem e Progresso)

    Eduardo Portella

    9. Srgio Buarque de Hollanda,Razes do Brasil

    Maria Odila Leite da Silva Dias

    10. Caio Prado Jnior,Formao do Brasil Contemporneo

    Fernando Novais

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    11. Florestan Fernandes,A revoluo burguesa no Brasil

    Fernando Henrique Cardoso

    A edio est a cargo da Editora Nova Aguilar, cuja reputao no mundo

    editorial e acadmico inquestionvel. Para tornar mais cmoda a consulta a esse ou

    aquele tpico dos trs alentados volumes, tanto por parte de especialistas quanto de

    estudantes que agora se adentram por matria to densa e complexa, Ana Cludia

    Viegas, Ana Cristina Coutinho Viegas e Marlia Rothier Cardoso foram convocadas para

    elaborar (trabalho de inteligncia, pacincia e mincia!) o ndice onomstico e de idias

    de cada um dos livros selecionados. Dessa forma, a consulta a detalhes precisos de

    cada um dos livros, posterior sua leitura, poder ser facilitada por verbetes que

    servem como marcos de referncia na longa caminhada que representa um ensaio

    interpretativo.

    [espao]

    Abrimos a nossa antologia de intrpretes do Brasil com um livro que preenche a

    grande lacuna deixada pelo romance de Jos de Alencar: O abolicionismo, de Joaquim

    Nabuco. O atraso do Brasil em relao ao mundo civilizado moeda corrente nos textos

    coloniais, e , como temos salientado, os pensadores, nacionais ou estrange