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    UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO

    INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAISCOORDENAÇÃO DO CURSO DE HISTÓRIA

    Dzi Croquettes : Masculino e masculinidades.

    Natanael de Freitas Silva

    Monografia do Curso de História da Universidade FederalRural do Rio de Janeiro, como parte dos requisitosnecessários à obtenção do título de Licenciado em História.

    Orientador: Prof. Dr. Fábio Henrique Lopes

    Seropédica Novembro 2014

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    UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO

    INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAISCOORDENAÇÃO DO CURSO DE HISTÓRIA

    Dzi Croquettes : Masculino e masculinidades.

    Natanael de Freitas SilvaMatrícula: 201026029-3

    Orientador: Prof. Dr. Fábio Henrique LopesMonografia do Curso de História da Universidade Federal Rural do Rio de

    Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Licenciado em História.

    Aprovada por:

    _____________________________________________Presidente, Prof. Dr. Fábio Henrique Lopes.

    _________________________________________Parecerista, Prof. Drª. Fabiane Popinigis.

    _________________________________________Parecerista, Profª. Drª. Luciana Gandelman.

    Seropédica Novembro 2014

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    UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIROINSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS

    COORDENAÇÃO DO CURSO DE HISTÓRIA

    AGRADECIMENTOS

    Primeiramente agradeço aos meus familiares pela compreensão e motivação nestescinco anos de graduação. José Maria da Silva, pai, Samuel de Freitas Silva, irmão, eespecialmente a Arlinda de Freitas Silva, mãe.

    Ao orientador e amigo, Fábio Henrique Lopes, seu apoio, seus questionamentos, e porressaltar em suas aulas que tudo é datado - praticamente um mantra, rs, foram de grandeestímulo para a minha formação acadêmica.

    Aos amigos que fiz ao longo da graduação, Talassa Fonseca, Mariana Cavalcante(Mari Di), Milene Souza, inclusive no PET-História, Natally Menini, Thiago Ribeiro (Tio

    Chico), Ana Cláudia Aleixo, Pamela Cabreira, Isabelle Pires, enfim, esses cinco anos foramde grande importância para mim em todos os âmbitos.

    A todos/as os/as professores/as os quais tive a oportunidade de conhecer ao longo dagraduação, inclusive as professoras Adriana Barreto e Fabiane Popinigis, pela oportunidadede trabalharmos juntos no PET-História.

    Ao professor Luís Eduardo Lobianco, pelas longas conversas noite afora na Repúblicade Nárnia, juntamente com os/as amigos/as Mayara Fernanda, Camila Oliveira, Diego Couto,Priscila Oliveira e agregados. Por tudo isso e mais um pouco, deixo registrado para posteridade essas breves palavras.

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    COORDENAÇÃO DO CURSO DE HISTÓRIA

    SILVA, Natanael de Freitas Silva.Dzi Croquettes: Masculino e masculinidades /Natanael de Freitas Silva. Seropédica:

    UFRRJ/ICHS, 2014. Número de página: VII, 85: :il.Orientador: Prof. Dr. Fábio Henrique Lopes.Monografia (Licenciatura) – UFRRJ/ Instituto de Ciências Humanas e Sociais/ Departamento de

    História, 2014.Referências Bibliográficas: 78-85.1. História do Brasil. 2. Relações de Gênero. 3. Masculinidades. 4. História Cultural. I. Lopes,

    Fábio Henrique. II. Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Instituto de Ciências Humanas eSociais, Curso de História. III. Licenciatura.

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    INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAISCOORDENAÇÃO DO CURSO DE HISTÓRIA

    Dzi Croquettes : Masculino e masculinidades.

    Natanael de Freitas Silva

    Orientador: Prof. Dr. Fábio Henrique Lopes.

    Resumo da Monografia do Curso de História, Instituto de Ciências Humanas e Sociais, daUniversidade Federal Rural do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários àobtenção do título de Licenciado em História.

    A presente pesquisa analisa a emergência do grupo teatral Dzi Croquettes,historicizando o seu surgimento, a escolha dos integrantes, suas trajetórias de vida e suascontribuições no campo teatral brasileiro nos anos 1970. A partir dos Estudos de Gênero,investigo as experiências de masculinidades vivenciadas e agenciadas pelo grupo, ressaltandoas tensões vivenciadas pelos Dzi com as práticas de censura sobre os espetáculos teatraisconsiderados subversivos, contrários à „moral e aos bons costumes‟ da é poca. Além disso,argumento que os Dzi Croquettes contribuíram para desestabilizar uma determina e históricadominação masculina.

    Palavras-chave: Dzi Croquettes; Gênero; Masculinidades; Feminilidades; Teatro.

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    Introdução ....................................................................................................................... 1

    Capítulo 1: (Des)construindo o Gênero. ......................................................................... 3

    1.1História das Mulheres ................................................................................................ 3

    1.1.1 Ocupar para transformar ........................................................................................ 4

    1.1.2 Diferença dentro da diferença................................................................................ 5

    1.1.3 Gênero como categoria de análise ......................................................................... 7

    1.2 Masculino & Masculinidades ................................................................................... 9

    1.2.1 Violência como signo de Masculinidade ............................................................. 13

    1.2.2 Masculinidades e a construção da Nação e da identidade Nordestina ................ 16

    1.3Teoria Queer : uma performance histórica ............................................................. 20

    Capítulo 2: Dzi Croquettes ........................................................................................... 28

    2.1. Dzi Croquettes: formação ...................................................................................... 29

    2.2. Dzi Croquettes – o filme ....................................................................................... 44 2.3. Os anos 1970: repressão e desbunde ..................................................................... 46

    2.4. Indumentária .......................................................................................................... 53

    Capítulo 3: Corpo e Masculinidade: uma estéticaqueer .............................................. 59

    3.1 Masculinidades hierarquizadas ............................................................................... 72

    Conclusão ..................................................................................................................... 77

    Referências Bibliográficas ............................................................................................ 78

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    Índice de ImagensImagem 1 - Paulo Bacellar ...................................................................................................... 31Imagem 2 - Cláudio Gaya ......................................................................................................... 32Imagem 3- Lennie Dale e Ciro Barcellos ................................................................................. 34Imagem 4- Reginaldo de Polly : a Rainha ............................................................................... 54Imagem 5- Bayard Tonelli – a Bacia ........................................................................................ 54Imagem 6- Carlos Machado : Lotinha ...................................................................................... 55Imagem 7 - Os Dzi, da esquerda para a direita. Os quatro embaixo: Roberto, Gaya, Rogério eCarlos Machado. Ao centro: Wagner Ribeiro, Cláudio Tovar e Ciro Barcelos. Em cima: Benê,Reginaldo, Bayard e Eloy. ........................................................................................................ 57

    Imagem 8- Ensaio dos Dzi Croquettes ..................................................................................... 62Imagem 9- Cláudio Gaya e Lennie Dale .................................................................................. 62Imagem 10 - Registro de um dos ensaios dos Dzi. A frente, Lennie e Ciro Barcelos. Ao fundo,Carlos Machado vestido com maiô branco. Vestido com maiô preto, não foi possívelidentificar .................................................................................................................................. 69Imagem 11- Dzi Croquettes em cena ....................................................................................... 70Imagem 12 - Lennie Dale em número solo .............................................................................. 71

    Imagem 13 - Um momento de conflito durante um dos ensaio dos Dzi, que poderia ser umasituação do cotidiano do grupo agora colocada em cena durante o espetáculo. ....................... 74Imagem 14 - Roberto de Rodrigues, entre pelos e barbas, eis que surge uma bailarina. ......... 76

    Obs.: Todas as imagens apresentadas ao longo deste trabalho foram retiradas doseguinte documentário: ALVAREZ, Raphael; ISSA, Tatiana. DVD, Dzi Croquettes: Brasil.110 min. 2010.

    http://c/Users/Public/Documents/DOC%20PESQUISA/MONOGRAFIA/monografia%20completa.doc%23_Toc404010421http://c/Users/Public/Documents/DOC%20PESQUISA/MONOGRAFIA/monografia%20completa.doc%23_Toc404010421

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    No primeiro capítulo, apresento uma reflexão teórico-metodológica sobre as relaçõesde gênero, sobretudo analisar a emergência desta categoria de análise, ressaltando seu caráterrelacional. Localizo a emergência das mulheres como objeto e sujeitos da história e, por

    conseguinte, o surgimento da categoria de gênero a partir das proposições de Joan Scott. Porfim, vou mapear as discussões sobre as masculinidades, que é o cerne deste trabalho e concluocom o esboço de algumas considerações sobre aTeoria Queer .

    No segundo capítulo, focalizo a emergência dos Dzi Croquettes, como ocorreu a suaformação, qual o objetivo do grupo, a trajetória dos integrantes e a conjuntura histórica, sociale política dos anos 70, sob a Ditadura Militar, ressaltando as tensões vivenciadas pelo grupocom as práticas de censura sobre os espetáculos teatrais considerados subversivos, contrários

    à „moral e aos bons costumes‟ da época. No terceiro capítulo, investigo como o corpo é historicamente agenciado e forjado no

    processo de construção da(s) masculinidade(s) ressaltando as contribuições docoreógrafo/ator/bailarino Lennie Dale no processo de profissionalização artística do grupo eressaltando as hierarquias presentes nos jogos de (des) construção das masculinidades.

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    Capítulo 1

    (Des)construindo o Gênero.

    1.1 História das Mulheres

    O século XIX foi o período de constituição da História como disciplina e campo desaber. Ao mesmo tempo, o discurso científico ganhou novas formas, ampliando seu horizontede análise e abrangência, se valendo, muitas vezes, de um status de neutralidade. Como já foiamplamente discutido, o século XIX permitiu o surgimento de uma chamada História dosgrandes homens, dos grandes acontecimentos e dos sujeitos universais. Mas, e a(s)História(s) das mulheres? E a diferença entre os sexos? Michele Perrot (1995) e Rachel Soihet(1997) concordam que a historiografia do século XIX silenciou e invisibilizou a mulher norelato histórico. Para Soihet, o historiador francês Michelet foi um dos primeiros a evidenciare a considerar a “relação entre os sexos como um dos motores da história”.1 Este historiadorfrancês

    “associando as mulheres à Natureza e os homens à Cultura, r eproduz a ideologiadominante do seu tempo. Segundo ele, a natureza feminina teria dois pólos, um brancoe um negro: de um lado, a maternidade, o doméstico; de outro a superstição, acrueldade, o sangue, a loucura, a histeria”.2

    Assim, o autor naturalizou as concepções sobre a mulher como ser mais fraco, débil, portanto, incapaz de agir no mundo, na vida pública. Michelet reconheceu as diferenças, masnão foi capaz de lançar um outro olhar sobre essa questão. Esse estereótipo contribuiu para o

    predomínio de imagens e de sentidos que atribuíam exclusivamente o papel de vítimaou derebelde às mulheres no relato histórico.

    Ao questionar a marginalização da mulher nos estudos históricos, a historiadora norte-americana Mary Beard3 argumentou que devido à grande maioria dos historiadores seremhomens, os mesmos ignoraram sistematicamente as referências à mulher em seus escritos.Essa afirmação gerou embates, tanto que o historiador Hexter replicou,afirmando que “a

    1MICHELET, Jules. Apud, SOIHET, Rachel. História das Mulheres. In: CARDOSO, Ciro Flamarion. VAINFAS, Ronaldo (orgs.).

    Domínios da História. Ensaios de Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro: Campus.1997.p.276. 2 PERROT, Michelle. Escrever uma História das Mulheres.Cadernos Pagu (4), p.9-28, 1995.p.14.3 BEARD, Mary. Apud, SOIHET, Rachel.Op. Cit. 1997. p.278.

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    ausência das mulheres deve-se ao fato de elas não terem participado dos grandesacontecimentos políticos e sociais”.4 Mas, podemos sustentar, ainda essa tese? Precisamos terem perspectiva “o quanto os padrões de normatividade científica estão impregnados por

    valores masculinos”.5 Deste modo, “o esquecimento da mulher no processo histórico não estáligado a acontecimentos passados, mas na escrita desses acontecimentos. A mulher nuncadeixou de fazer história, contudo, foi escolhido não registrar as suas falas, suas ações, oumelhor, sua história”.6

    Simone de Beauvoir, emO segundo sexo (1949), concordacom Hexter ao dizer “que amulher, ao viver em função do outro, não tem projeto de vida própria; atuando a serviço do patriarcado, sujeitando-se ao protagonista e gente da história; o homem”.7 Isto posto, posso

    perceber que para muitos segmentos sociais, e acadêmicos, até a década de 1970 a mulher eravista como coadjuvante na e da história, passiva diante da opressão e da dominaçãomasculinas.

    Para Soihet, é preciso desconstruir esse binômio dominação/ subordinação, superar avisão binária entre a vitimização ou os sucessos femininos, buscando visualizar toda acomplexidade de sua atuação. Apesar do exercício de poder masculino “à atuação femininanão deixa de se fazer sentir, através dos complexos contra-poderes: poder maternal, poder

    social, poder sobre outras mulheres e „compensações‟ no jogo e sedução e do reinadofeminino”.8 Sendo assim, o “essencial é identificar, para cadaconfiguração histórica, osmecanismos que enunciam e representam como „natural‟ e biológica a divisão social dos papéis e das funções”.9

    1.1.1 Ocupar para transformar

    Se o século XIX foi marcado por uma silenciamento da mulher no relato histórico, nadécada de 70 do século XX uma série de fatores contribuíram para sua inserção no discursohistoriográfico. Michele Perrot (1995) e Margareth Rago (1998) afirmam que o surgimento do

    4 HEXTER,J.M. Apud, SOIHET, Rachel. Op. Cit. p.278.5 RAGO, Margareth. Epistemologia feminista, gênero e história. In: GROSSI, Miriam Pillar. PEDRO, Joana M. Masculino, feminino, plural, gênero na interdisciplinaridade. SC- Editora mulheres; 2006. p.25.6JARDIM, Rejane B.; PIEPPER, Jordana, A. Aproximações e divergências: história social, história cultural e a perspectiva gênero. MÉTIS: história & cultura – v. 9, n. 18, jul./dez. 2010.p.92.7

    BEAUVOIR, Simone. Apud, SOIHET, Rachel. Op. Cit.1997. p.278. 8SOIHET, Rachel. História das mulheres e história de gênero - um depoimento.Cadernos Pagu (11). 1998.p.81.9 SOIHET, Rachel. Op. Cit.1998.p.82.

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    movimento feminista pressionou mudanças na academia. “A questão da diferença entre ossexos se torna, desde o início dos anos 70, o objeto de reflexão e intensos debates ou divisõesentre feministas essencialistas [e] diferencialistas”.10 As essencialistas eram aquelas que

    acreditavam em uma ideia de identidade única - a mulher. A constituição deste sujeitouniversal seria de grande importância no primeiro momento das lutas e das mobilizações pordireitos políticos. Por outro lado, asdiferencialistas estavam“vinculadas à ideia segundo aqual a diferença entre os sexos não é um dado da natureza, mas uma construção social”.11

    Perspectiva essa que os sociólogos, antropólogos e historiadores numa abordagem pós-estruturalista nos anos 70 e 80 iriam se apropriar. Com a inserção da mulher no campo dasciências humanas “a questão das diferenças entre os sexos se tor nava um dos eixos

    prioritários”.12Ainda de acordo com Margareth Rago, a entrada maciça das mulheres no campo

    universitário, não só como estudantes, mas como produtoras de conhecimento, de certa forma provocou uma “feminização do espaço acadêmico”. A entrada das mulheres desestabilizouuma produção científica masculina e heterossexista. Elas não só reivindicaram seu lugar naHistória, como demandaram novos temas e novas abordagens. O que era considerado comocaracterístico do(s) mundo(s) feminino(s) ganhou visibilidade no relato histórico. “Histórias

    da vida privada, da maternidade, do aborto, do amor, da prostituição, da infância e da família,das bruxas e loucas, das fazendeiras, empresárias, enfermeiras”.13Logo, novos mundos foramdescortinados, novas práticas problematizadas e novas interpretações forjadas. Indo além dainclusão das mulheres no discurso histórico, tratava-se:“de encontrar as categorias adequadas para conhecer os mundos femininos, para falar das práticas das mulheres no passado e no presente e para propor novas possíveis interpretações inimagináveis na ótica masculina”.14

    1.1.2 Diferença dentro da diferença

    Constituída uma História das Mulheres, no final da década de 1970, a necessidadeagora era dar conta das especificidades e demandas dentro do próprio movimento feminista, oqual impulsionou/provocou mudanças na academia. Se a princípio a ideia de uma „essência

    10 PERROT, Michelle.Op. Cit.1995. p.17.11Ibidem, p.17.12

    Ibidem, p.18.13 RAGO, Margareth. Descobrindo historicamente o gênero.Cadernos Pagu (11), 1998.p.90.14RAGO, Margareth. Op.Cit.1998. p.92.

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    feminina‟ foi importante na concepção de uma identidade coletiva, favorecendo as demandassociais - firmando um antagonismo entre homem versus mulher – em seguida, a diferença foievidenciada: “Mulheres negras, índias, mestiças, pobres, trabalhadoras, muitas delas

    feministas, reivindicaram uma „diferença‟- dentro da diferença. Ou seja, a categoria „mulher‟,que constituía uma identidade diferenciada da de „homem‟, não era suficiente para explicá-las”.15

    Em diálogo com o feminismo, a História das Mulheres suscitou novas questões, novostemas de estudo e de reflexão, entre eles: corpo, sexualidade, sentimentos, gestos,maternidade, violência; ampliou e possibilitou novas fontes, como a música, literatura,diários, crônicas, imprensa, cinema; possibilitou, também, um novo olhar e novos

    instrumentos analíticos. Em fins da década de 1970, as críticas aos limites do marxismoortodoxo – por analisar os processos históricos por um viés econômico que considerava asrelações entre os sexos como um subproduto das estruturas econômicas cambiantes - nãodavam conta dos múltiplos processos de subjetivação. Nessa conjuntura historiográfica “oshistoriadores sociais, supuseram as „mulheres‟ como uma categoria homogênea; eram pessoas biologicamente femininas que se moviam em papéis e contextos diferentes, mas cuja essêncianão se alterava”.16

    O que estava em jogo era a validade do uso da noção de identidade. Este novo debateampliou a noção de sujeito e de identidade, como bem destacou Margareth Rago,“trata-se de perceber que as subjetividades são históricas e não naturais, que os sujeitos estão nos pontosde chegada e não de partida”.17 O desafio passa a ser historicizar e questionar a noção deidentidade e de essência inalterada, desnaturalizando os sujeitos:

    “Mais do que a inclusão das mulheres no discurso histórico, trata-se, então, deencontrar as categorias adequadas para conhecer os mundos femininos, para falar das

    práticas das mulheres no passado e no presente e para propor novas possíveisinterpretações inimagináveis na ótica masculina”.18

    15 PEDRO, Joana. SOIHET, Rachel. A emergência da pesquisa da história das mulheres e das relações de gênero. Revista Brasileirade História. V. 27, n. 54, 2007.p.287.16

    Ibidem. p.287.17 RAGO, Margareth. Op. Cit. 1998.p.91.18 Ibidem.p. 92.

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    1.1.3 Gênero como categoria de análise

    A partir do que foi apresentado, hoje não cabe mais uma escrita da História quedesconsidere as relações de gênero, as implicações políticas e as possibilidades analíticas queessa categoria pode proprocionar ao métier historiográfico. O que vem se apresentando atéaqui são as mudanças, as resistências, os enfrentamentos teórico-metodológico da inclusão decategorias analíticas que dessem conta, numa conjuntura específica, das questões que sefaziam emergir, neste caso, a dirença entre os sexos. Não foram mudanças vindas apenas decima, dos que estavam nos lugares de poder, mas sim, um movimento interior, de dentro dosespaços ocupados no lugar de produção do saber, desestabilizando os modelos rígidos de

    escrita da história, seus conceitos, categorias e análises.Mas o que é um conceito? Para Antoine Prost“os conceitos não são coisas; em certos

    aspectos, são armas”.19 São instrumentos de análise, mas, também de disputas. Como sublinhaAlbuquerque Júnior,“devemos encarar, pois, a própria luta no campo historiográfico, comoum jogo, em que cada texto, cada livro, cada opinião é um lance que se faz em uma partida”.20

    A historiadora Joana Pedro (2011) descreve três momentos da emergência de novascategorias de análise. Nos anos de 1970, a categoria seria a de „mulher‟, ligada ao feminismo

    radical que buscava afirmar uma identidade. Os anos de 1980 é identificado com a categoria„mulheres‟, buscando incluir as diferenças e desmistificar o sujeito universal - a mulher. Ofeminismo dos anos de 1990 seria marcado pela emergência das “relações de gênero”, queconsideraria a dimensão relacional entre os sexos.

    Por sua vez, para a historiadora Maria Izilda Matos (1998) a inserção da categoriagênero provocou mudanças no campo historiográfico. Alguns momentos devem serdestacados.Em primeiro lugar, os anos de 1970, período no qual se objetivava “reintegrar as

    mulheres à história e restituira elas sua história”, priorizando-se o tema do trabalho feminino.Em segundo lugar, a década de 1980, a qual possibilitou o surgimento de novas abordagens,questionando, por exemplo, “as imagens de pacificidade e ociosidade e confinação ao espaçodo lar”desconstruindo assim estereótipos atribuídos ao(s) feminino(s). Por fim, os anos de1990, momento de emergência da categoria „gênero‟, a qual encontrou um espaço fértil nahistoriografia brasileira,“desnaturalizando as identidades sexuais e postulando a dimensão

    19

    PROST, Antoine. Doze lições Sobre a História: Autêntica Editora, BH, 2008.p.131.20 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. História a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da história-Bauru, SP:Edusc, 2007.p.179.

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    relacional”, ampliando e diversificando os temas, as abordagens e a documentação. Ainda para a autora:

    “os estudos de gênero contribuíram para a ampliação do objeto de conhecimento histórico, levando adescoberta de temporalidades heterogêneas, ritmos desconexos, tempos fragmentados edescontinuidades, descortinando o tempo imutável e repetitivo ligado aos hábitos, mas também otempo criador, dinâmico e das inovações, focalizando o relativo, a multiplicidade de durações queconvivem entre si urdidas na trama histórica”.21

    Uma das primeiras características dos estudos de gênero é a interdisciplinaridade. AHistória como disciplina foi uma das últimas a incorporar essa categoria, ficando naretaguarda da Sociologia e da Antropologia.22 Para Joana Pedro e Rachel Soihet,

    “grande parte desse retardo se deve ao caráter universal atribuído ao sujeito dahistória, representado pela categoria „homem‟[...] Mas também, não eram todos oshomens que estavam representados nesse termo: via de regra, era o homem brancoocidental”.23

    Mas afinal, em que consiste o conceito de gênero? Qual a sua importância na

    abordagem historiográfica? Não posso tentar responder a esta questão sem fazer referência aum trabalho publicado no Brasil em 1990, o artigo seminal de Joan Scott – Gênero: umacategoria útil de análise histórica. Apropriado da gramática, o conceito de gênero nasCiências Sociais foi ressignificado para “a distinção entre atributos culturais alocados a cadaum dos sexos e a dimensão biológica dos seres humanos”.24 Scott define o gênero como “umelemento constitutivo das relações sociais fundadas sobre diferenças percebidas entre ossexos, o gênero é um primeiro modo de dar significado às relações de poder”.25 A autoraafirma que a palavra gênero começou a ser utilizada com maior cuidado pelas feministas,“como uma maneira de se referir à organização social da relação entre os sexos”.26

    21MATOS, Maria Izilda S. Estudos de gênero: percursos e possibilidades na historiografia contemporânea.Cadernos Pagu (11),1998.p.71.22 Para conferir a apropriação da categoria gênero no campo das Ciências Sociais na França, EUA e Brasil ver: PERROT, Michelle.Escrever uma História das Mulheres.Cadernos Pagu (4), p.9-28, 1995. & SOIHET, Rachel. História das Mulheres. In: CARDOSO,Ciro Flamarion. VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da História. Ensaios de Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro: Campus, p.275-296, 1997.23PEDRO, Joana. SOIHET, Rachel. A emergência da pesquisa da história das mulheres e das relações de gênero. Revista Brasileirade História. V. 27, n. 54. 2007.p.284.24

    PEDRO, Joana. SOIHET, Rachel. Op. Cit.p.288.25SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, Porto Alegre, 16(2). jul/dez.1990.p.14.26 Ibidem. p.5.

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    A proposição de Scott pode ser cinrcunscrita na chamada segunda onda feminista, quealém de pluralizar as esxperiências femininas, provocou a emergência dos estudos sobre asmasculinidades os - Men’s Studies nos EUA - numa perspectiva relacional, tema este que será

    analisado no tópico mais adiante.Muito importante destacar que a categoria gênero, bem como os estudos por ela

    possibilitados, não é mais o que foi até os anos 1990, ou seja, sinônimo de mulher ou apenasde história das mulheres. “Falar de gênero [significa] deixar de focalizar a „mulher‟ ou as„mulheres‟; [trata-se] de relações entre homens e mulheres, mas também entre mulheres eentre homens”.27 Outra consideração importante, não podemos mais incorrer no equívoco deanalisar as relações de gênero sem considerar as relações de poder. Gênero como uma

    categoria de análise também é atravessado por outros marcadores sociais como classe, raça,etnicidade, faixa etária e sexualidade.

    O gênero nos permite historicizar, politizar e explicar os processos de invenção econstrução da diferença entre os sexos, desvelando a gramática de gênero que normaliza enaturaliza expressões, gestos, performances, atributos, gerenciando e heterossexualizandocorpos e desejos. Desconfiando das identidades prontas, dos binarismos, dos interditos, dossilenciamentos, “das afirmações totalizantes da economia significante masculinista”,28 que

    alimentam a dominação e a assimetria nas relações inter-gêneros (homens e mulheres) e intra-gêneros (homens e homens/ mulheres e mulheres).

    Portanto, o aspecto relacional é fundamental nas abordagens de gênero. Importante:não se pode pensar o que é definido como masculino sem o feminino e vice-versa. É precisosuperar a visão “diádica dos gêneros”, que concebe a experiência social do ser homem e sermulher como duas “homogeneidades antitéticas e trans-históricas”.29

    1.2 Masculino & Masculinidades

    Atualmente, é consensual entre pesquisadores/as dos estudos de gênero que existemvárias experiências, modos/tipos de ser e viver a(s) masculinidade(s). Porém, são

    27 PEDRO, Joana. Relações de gênero como categoria transversal na historiografia contemporânea.Topoi, v. 12, n. 22, jan-jun,2011.p.273.28 BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro:

    Civilização Brasileira, 2013.p.33.29ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. Nordestino: uma invenção do falo. Uma história do gênero masculino(Nordeste – 1920/1940). 2ª Edição. São Paulo: Intermeios, 2013.p.19.

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    relativamente recentes os estudos que historicizam os homens, sobretudo aqueles que fogemdo padrão dominante, constituinte do sujeito universal, evidenciando os processos, ascondições de possibilidades no forjar do e no masculino(s). Um dos desafios nesse campo é

    abordar as masculinidades fora de paradigmas essencialistas, que acabam por repor a ideia deque determinadas práticas - como as noções de violência e virilidade - são expressões e signos„naturais‟, e por isso, constitutivas do „homem de verdade‟.

    É através das relações sociais entre os sexos e por meio das instituições como aFamília, a Igreja, o Quartel, a Escola, o Direito, a Polícia e a Medicina, por exemplo, que umregime de gênero heterossexista e misógino é reiterado, regulado e sedimentado como naturale a-histórico. Masquando nos referimos à da categoria „homem‟ que ideal de masculinidade é

    agenciado? Quais as implicações de tal problematização dentro de uma política de gênero?Os estudos sobre masculinidade surgiram do impacto da segunda onda feminista, entre

    os anos de 1960 e 1980, nos Estados Unidos.30 Os estudos feministas forneceram as bases doschamados estudos masculinos - Men’s Studies ; tendo como marco a perspectiva de poder nasrelações de gênero, sobretudo aquela apresentada por Joan Scott. Nessa perspectiva,masculinidade(s) e feminilidade(s) são constructos social e culturalmente forjados,rizomáticos, relacionais, interdependentes e de múltipla definição. Por isso, o caráter

    histórico, datado e político do gênero. Nesse ínterim, as feministas “avançaram a críticaquestionando a figura do sujeito unitário, racional, masculino que se colocava comorepresentante de toda a humanidade”.31 Deste modo, o feminismo desnaturalizou a categoria„homem‟ como sujeito universal e evidenciou as relações de poder entre os gênerosalicerçados no dimorfismo sexual, percebendo “que as subjetividades são históricas e nãonaturais, que os sujeitos estão nos pontos de chegada e não de partida”.32

    Para o antropólogo Miguel Almeida,33 os Men’s Studies , inicialmente, assumiram

    uma posição„revanchista‟ em relação ao feminismo, e também de vitimização dos homens einvisibilidade dos homossexuais. Além de serem estudos produzidos por homens, sobrehomens e para homens. Mas que „homem‟ seria esse? O que estava em jogo?

    30 Cf: CECCHETTO, Fátima Regina.Violência e estilos de masculinidade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004; CORRÊA, Mariza;PISCITELLI, Adriana. “Flores do Colonialismo”. Masculinidades numa perspectiva antropológica. Entrevista com Miguel Vale deAlmeida.Cadernos Pagu (11). 1998; WELZER-LANG, Daniel. Os homens e o masculino numa perspectiva de relações sociais desexo. In: SCHPUN, Mônica Raisa (org.). Masculinidades. São Paulo: Boitempo Editorial; Santa Cruz do Sul, Edunisc, 2004.p.107-128.31

    RAGO, Margareth. Op.Cit.1998.p.91.32 Ibidem.p.91.33CORRÊA, Mariza; PISCITELLI, Adriana. Op. Cit. 1998.

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    Para o antropólogo citado, o revanchismo pode ser caracterizado como osilenciamento das relações de poder entre homens e mulheres e a manutenção dos privilégiosoriundos da masculinidade. Nas suas palavras, “não se pode vitimizar os homens, quando eles

    estão socialmente no poder”.34 Nesse sentido, não pode existir um masculinismo simétrico aofeminismo. Por sua vez, o sociólogo Pedro Paulo de Oliveiraafirma que “antes de ser vítima,o homem é beneficiário do sistema de gênero vigente”.35Deste modo, inserido no regime degênero historicamente forjado, “os homens podem se sentir sem poder quando se compara a outros homens, mas nunca quando se comparam às mulheres”.36

    Assim, a hierarquização de uma performance e/ou estilo de masculinidade em relaçãoao feminino reitera um conjunto de práticas e atributos que forjam uma distinção entre os

    homens e mulheres, mas, também entre os próprios homens. Por isso, há uma rejeiçãosistemática aos indivíduos não-heterossexuais percebidos como uma ameaça ao estilo demasculinidade historicamente forjado. Tal rejeição, e até mesmo ódio, poderia ser explicado pelo fato desses outros homens se aproximarem do campo considerado feminino.

    Os primeiros estudos sobre os homens ignoravam as relações de poder entre os sexos,logo, masculino e feminino eram compreendidos como sinônimos de diferenças inatas,essencializadas. Desta maneira, concepções forjadas em meados do século XIX associavam a

    mulher ao espaço doméstico/ privado, mantenedora do lar, da educação dos filhos e submissaa figura masculina (pai/ marido). Ao mesmo tempo, ao homem historicamente considerado pragmático e racional era reservado o privilégio do domínio do espaço público. Sendo assim,“a ausência das relações de poder nessas análises acabou por legitimar discursos sobre achamada „crise da masculinidade”.37Essa „crise da masculinidade‟ se deu entre os homens brancos estadunidenses que tiveram as suas concepções de masculinidade desestabilizada peloavanço dos movimentos feministas e gays nos anosde 1960. “A crise dos papéis masculinos

    pode ser explicada pelo afastamento da maioria dos homens do padrão percebido e legitimadocomo socialmente hegemônico”.38

    34 CORRÊA, Mariza; PISCITELLI, Adriana. Op. Cit.p.204.35 OLIVEIRA, Pedro Paulo de. A construção Social da Masculinidade. Belo Horizonte: Editora UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ,2004. p.190. 36

    Ibidem,p.218.37 CECCHETTO, Fátima Regina.Violência e estilos de masculinidade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004, p.60.38 Ibidem, p.61.

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    O modelo de masculinidade norte-americana neste caso era concebido pela aquisiçãode “poder, fama e ocultação das emoções”.39Ao admitir as relações de poder como umelemento constitutivo das relações entre os gêneros,

    “emerge no contexto dos Men‟s studies a noção de masculinidade hegemônica comoalternativa para se examinarem as relações entre os sexos. A masculinidadehegemônica é definida como um modelo central, o que implica considerar outrosestilos como inadequados ou inferiores”.40

    Nesse “ressurgir” dos estudos sobre os homens e o masculino uma polarização éativada. De um lado, os que seriam „normais‟/ heterossexuais. Do outro, seu oposto, o „anormal‟/ homossexual. Para Almeida “basta a orientação sexual para inserir a diferença”.41 Cecchetto e Welzer-Lang destacam que foram os estudos sobre a (homos) sexualidademasculina que possibilitaram uma maior concentração dos estudos sobre os homens,denunciando as hierarquias de gênero e concepções sobre a sexualidademasculina. Pois “asexualidade, longe de ser matéria confinada à intimidade e à privacidade de cada qual, é umterreno político por excelência”.42 Para Miskolci“a masculinidade, em uma perspectivacultural, tem significados múltiplos, variáveis e até mesmo contraditórios. Como bem

    simbólico altamente valorizado, em fins do XIX, [por exemplo,] se associava à honra e à própria nacionalidade”.43

    No campo dos estudos de gênero e sexualidade no Brasil os “homens passaram a serincluídos como uma categoria empír ica a ser investigada”.44 A principal motivação eradesnaturalizar concepções essencialistas sobre o masculino, criticando a noção demasculinidade hegemônica como categoria universal e ahistórica. Com essa nova percepção eorientação, a categoria homem foiassociada aos papéis sexuais, como „ativo‟ ou „passivo‟,

    por exemplo -forjando duas categorias socais distintas: os „homens‟ e as „bichas‟45

    . Cecchettosublinha que os homens são „idealmente percebidos como „ativos‟ e, portanto, nãohomossexuais. Bichas seriam tipificadas como „passivos‟,tornando-se“alvo de perseguição e

    39 CECCHETTO, Fátima Regina. Op. Cit. p.62.40 Ibidem. p.63.41 CORRÊA, Mariza; PISCITELLI, Adriana.Op. Cit.p.207.42SIMÕES, Júlio Assis. Do movimento homossexual ao LGBT . São Paulo: Editora Fundação Perseu Abrano, 2009, p.12.43 MISKOLCI, Richard.O desejo da nação: masculinidade e branquitude no Brasil de fins do XIX . São Paulo: Annablume, 2012,

    p.62.44 CECCHETTO, Fátima Regina. Op. Cit. p.53.45 Sobre a dicotomia entre „homens‟ e „bichas” nos anos 1960-70 ver: GREEN, James Naylor. Além do carnaval . 2000.

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    são representados através de modelos de submissão”,46 logo, àqueles classificados como„homens‟ seriam os portadores e mantenedores do privilégio do status de macho.

    O que estava em jogoera “a hegemonia de um certo modo de representação do

    masculino. [Que] tomam o homem branco heterossexual como modelo, sendo esteconsiderado uma categoria não marcada por gênero e raça”.47 Porém, a ideia de uma distinçãoentre uma masculinidade hegemônica e as subalternas é frágil, pois permite indagações dotipo: quais suas fronteiras e seus limites? Onde terminaria uma e onde começaria a(s)outra(s)?

    Estudar as masculinidades não é apenas focalizar a dimensão sexual, é, por exemplo, problematizar os sentidos que atribuímos às concepções de violência e paternidade, temas

    estes que para Cecchetto ainda não foram efetivamente problematizados pelos estudos sobreo(s) masculino(s). Além disso, a dicotomia entre masculinidade hegemônica e subalterna produz hierarquias de gênero, pois

    “é sobre a emasculação de outros que se constrói um tipo de masculinidadehegemônica. [...] A definição de masculinidade é um procedimento político: envolvea criação de outros, sem a definição das masculinidades subordinadas, a definição demasculinidade hegemônica permanece incompleta”.48

    1.2.1 Violência como signo de Masculinidade

    A concepção de que ao nascer com um pênis o sujeito deve ser viril, forte e brigão écomum no senso comum e permeia o imaginário masculino desde a infância.Recorrentemente, a masculinidade é confundida e naturalizada com a expressão da violência.Por ser considerado um dos signos inerentes da condição masculina, a violência é naturalizadae estimulada como expressão de virilidade. “Guerras, esportes, extorsões, mortes, estupros,violências domésticas... a violência é onipresente nas nossas sociedades [...] é antes de maisnada, e principalmente, masculina”.49Homens e mulheres, jovens e idosos, pobres e ricos podem atribuir diferentes sentidos ao atode violência, pois as “nossas categorias de definição

    46 CECCHETTO, Fátima Regina. Op. Cit.p.54-55.47 Ibidem, p.55. 48

    CECCHETTO, Fátima Regina. Op. Cit. p.66-67.49 WELZER-LANG, Daniel. Os homens e o masculino numa perspectiva de relações sociais de sexo. In: SCHPUN, Mônica Raisa(org.). Masculinidades. São Paulo: Boitempo Editorial; Santa Cruz do Sul, Edunisc, 2004, p.113.

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    da violência são também pré-noções que é preciso desconstruir”.50Além do mais,complexificando o que fora naturalizado, ninguém é vítima ou algoz o tempo todo. Aviolência, seja a física ou a simbólica, é um exercício de poder, que expressa e institui

    hierarquias, dominação e opressão de gênero. Logo,“localizar o mecanismo mediante o qualo sexo transforma-se em gênero é pretender estabelecer, em termos não biológicos, não só ocaráter de construção do gênero, seus status não natural e não necessário, mas também auniversalidade cultural da opressão”.51

    Sexual e socialmente, a condição de macho precisa o tempo todo ser provada,legitimada. “Cada homem, competindo um com o outro, deve mostrar durante o tem po todo, emais que qualquer outra coisa, que ele é um homem de verdade”.52Ao mesmo tempo, não

    podemos esquecer que a oposição entre heterossexual e homossexual é um operadorhierárquico das relações entre os homens. Cecchetto identifica que o uso de termos como“atividade” e “passividade” agencia signos, atributos de “dominação e submissão”,sedimentando uma relação hierárquica. Nas suas palavras, “o poder masculinizado éassociado àqueles que controlam recurso e têm interesse em naturalizar e perpetuar essecontrole, incluindo nesse poder a capacidade de feminilizar os subordinados”.53 Porconseguinte, os homens que apresentam sexualidades não heterossexuais são estigmatizados,

    identificados como “não sendo homens normais, suspeitos de ser „passivos‟ e ameaçados deser assimilados e tratados como mulheres”.54

    Assim, “entre os homens o feminino se torna o pólo antagônico central, o inimigointerior que deve ser combatido”.55 Welzer-Lang (2001) identifica a homofobia, a transfobia ea misoginia como efeitos de uma sociedade androcêntrica que tende a excluir tudo que serefere às mulheres ou possa ser associado a elas. No mesmo sentido, Miskolci denomina essase outras práticas como:

    “efeminofobia entre homens que se relacionam com outros homens, mas quecultuam como valor máximo a masculinidade e os privilégios históricos concedidosdela. No vasto espectro das homossexualidades brasileiras, hoje vige umahegemonia interna masculinista, branca e de classe alta dos que se compreendemcomo „discretos‟ e aspiram ser vistos com heterossexuais relegando para outros/as a

    50 WELZER-LANG, Daniel. Op. Cit. p.114.51 BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 2013, p.67.52 WELZER-LANG, Daniel. Op. Cit. p.117.53

    CECCHETTO, Fátima Regina. Op.Cit. p.69.54 WELZER-LANG, Daniel. Op.Cit. p.120.55 Ibidem.p.118.

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    linha da recusa social. É a este espaço da abjeção que são relegados os/as não- brancos, pobres, „afeminados‟, „masculinizadas‟, em suma, os/as queer”.56

    Nessa perspectiva, Welzer-Lang lembraque “mesmo sendo um homem, umdominante, todo homem está submetido às hierarquias masculinas”.57 Nem todos os homenscompartilham as mesmas experiências e vivências no espectro das masculinidades.Marcadores sociais como etnia, classe social, identidade nacional e/ou regional, orientaçãosexual, identidade de gênero, nível educacional e geracional, contribuem na sedimentação deum modelo de masculinidade branca e heterossexual em detrimento de outras, amasculinidade feminilizada, por exemplo, todas historicamente forjadas. Isso ficará maisevidente quando analisarmos os exemplos oferecidos por Richard Miskolci e AlbuquerqueJúnior, sobretudo quando esses estudiosos abordam a masculinidade articulada a projetos políticos de poder gestados por elites de homens brancos e heterossexuais na formação deuma identidade nacional e regional no Brasil, em fins do século XIX e início do século XX.

    Por tudo isso, é preciso “desconstruir o masculino, revelando-o como gênero permeado também pelas relações sociais do sexo”.58 Nesse sentido, é necessário desmistificar,desnaturalizar e historicizar a masculinidade e suas investidas, desvelando os processos denaturalização e regulação de uma posição de gênero normativa que pressupõe umaheterossexualidade naturalizada que subalterniza todas as outras expressões,estilos/performances de masculinidades, as quais desestabilizam o modelo de masculinidade branca, heterossexual e viril.Desconstruir aqui é “admitir e analisar as operações de exclusão,de rasura, de violenta forclusão, de abjeção e seu inquietante retorno, presentes na construçãodiscursiva do sujeito”.59

    É importante destacar que a masculinidade é histórica, não está dada, ela é um devir,„um fazer‟, um não– lugar, um processo incompleto que se opera na sua maioria de formaviolenta, seja sobre si mesmo, seja sobre o Outro.“A aquisição da masculinidade [é] um processo violento em quase todas as sociedades humanas”.60 É um jogo de hierarquias nasrelações entre os homens. “As relações homens/homens são estruturadas conforme a imagem

    56 MISKOLCI, Richard. Org.; PELÚCIO, Larissa,Org. Discursos fora da ordem: sexualidades, saberes e direitos. SP: Annablume;Fapesp, 2012, p.23.57 WELZER-LANG, Daniel. A construção do masculino: dominação das mulheres e homofobia. Revista de Estudos Feministas,Florianópolis, v. 9, n. 2, 2001. p.466. 58 WELZER-LANG, Daniel. Op. Cit. p.117.59

    SALIH, Sara. Judith Butler e a Teoria Queer . Tradução e notas Guacira Lopes Louro. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012. p.114-1145.60 CECCHETTO, Fátima Regina. Op. Cit.p.77.

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    hierarquizada das relações homens / mulheres”.61 É através das relações sociais entre os sexosque um estilo de masculinidade é historicamente valorizado enquanto outro é desqualificado.Para Oliveira, a hierarquia de gênero forja “um lugar de poder e primazia ao homem por meio

    de prerrogativas acessíveis àqueles que se aproximam dos traços masculinos tidos comolegítimos e autênticos”.62 Neste caso, a disputa circunda a definição do que viria a serconsiderado o ideal masculino legítimo para uma dada sociedade e em um dado recorte detempo.

    Estudar as masculinidades numa perspectiva histórica é examinar “as maneiras pelasquais os significados de gênero variam de cultura para cultura e como estes se modificamatravés do tempo”.63 É descrever e compreender como as diferenças entre os sexos são

    forjadas social e culturalmente e por isso são passíveis e possíveis de serem historicizadas. Éevidenciar que “há uma diversidade de estilos ou tipos de masculinidades, cada um delescorrespondendo a diferentes inserções dos homens nas áreas da política, da economia e dacultura”.64Como afirma Louro“as formas como nos apresentamos como sujeitos de gênero ede sexualidade são, sempre, formas inventadas pelas circunstâncias culturais em quevivemos”.65Estes são os desafios de minha reflexão sobre os Dzi Croquettes.

    1.2.2 Masculinidades e a construção da Nação e da identidade Nordestina

    Para explorar a dimensão histórica das masculinidades apresento dois importantestrabalhos, os de Richard Miskolci e Albuquerque Júnior, os quais se propõem a analisar comoo agenciamento de um ideal de masculinidade foi articulado na elaboração de projetos de poder gestados por uma elite de homens brancos e heterossexuais.

    Miskolci analisa como um ideal de masculinidade foi agenciado ao projetorepublicano de fins do XIX no Rio de Janeiro. Explica como um desejo de progresso semesclava a temores com relação às mudanças em hierarquias sociais. Em suas palavras, “odesejo da nação conduzia um projeto de hegemonia política que encarava a sociedade comouma realidade biológica”.66 Esse projeto político tinha como marca o controle das relações

    61 WELZER-LANG, Daniel. Op. Cit. p. 117.62 OLIVEIRA, Pedro Paulo de. Op. Cit. p.235. 63 CECCHETTO, Fátima Regina. Op. Cit. p.56.64 Ibidem. p.57.65 LOURO, Guacira Lopes.Um corpo estranho. Ensaios sobre sexualidade e teoria queer . 1ª reimpressão. Belo Horizonte:

    Autêntica, 2008, p.86-87.66 MISKOLCI, Richard.O desejo da nação: masculinidade e branquitude no Brasil de fins do XIX . São Paulo: Annablume, 2012.p.39.

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    sexuais, ou do que o autor denomina de agenciamento do desejo. O ideal de civilização daPrimeira República estava, pois, assentado em um Estado Biopolítico.67A partir de condiçõesestratégicas de poder, uma elite branca e heterossexual promoveu formas sutis de interferência

    e disciplinamento da vida individual e privada. Nesse projeto político de poder “o sexo era visto como o meio crucial para a

    reprodução social e seu futuro”.68Para o autor, o medo da degeneração provocado peladesestabilização das hierarquias sociais pós Abolição e da miscigenação que poderia branquear ou „escurecer‟ as pessoas, legitimava discursos familistas e intervencionistas, presentes em diversas propostas de controle da sexualidade, principalmente dos homens -filhos da elite. Para Miskolci, “o ideal nacional branqueador tinha como um de seus pilares a

    reprodução sob controle masculino”,69 logo, o futuro da nação dependia de casaisreprodutivos constituídos a partir do homem branco. Desta forma, o autocontrole representavao acesso à vida pública, “o desejo, assim, não é um complemento ou acessório de uma questão política maior, mas antes seu fundamento e sustentação, o alicerce invisível sobre o qual seconstruíam as partes visíveis da nação”.70

    O sociólogo destaca as historicidades da masculinidade ao afirmar que em fins do XIXela exigia controle das paixões, autodisciplina em relação às pulsões sem regras e a educação

    do sentimento e dodesejo. Em suas palavras, “a consolidação do regime republicano émarcada por uma associação entre Estado e masculinidade que colocava à prova a capacidadede autodomínio de nossos homens de elite”.71Miskolci focaliza “a relação cultural e históricaentre a nacionalidade e o gênero masculino”.72A masculinidade e a honra nessa conjunturaeram sinônimos, mas também um privilégio almejável e possível aos homens brancos de elite, pois eram estes que viviam em busca de adequação social e sofriam o temor do desvio,entenda-se a homossexualidade. Por fim, o

    “desejo da nação se constituiu em uma educação do desejo, seu agenciamento, deforma que o projeto nacional de então se concretizou em um agenciamento psíquico,

    67Miskolci (2012, p.41;44) compreende o Estado como “um arranjo cultural e histórico, portanto baseado em uma confluênciaarticulada entre interesses econômicos e políticos dentro de uma sociedade em uma determinada época. [Por sua vez], a biopolíticase associa e depende da atenção a fenômenos como nascimento, morte, doença e reprodução, com o objetivo de disciplinar – ou atémesmo eliminar – os degenerados e anormais, os inimigos da família e da nação”. 68 MISKOLCI, Richard. Op. Cit. 2012.p. 43.69 Ibidem.p. 54.70

    Ibidem, p.47.71 Ibidem, p.53.72 Ibidem, p. 60.

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    e, sobretudo, na criação de nossa cultura baseada em pressupostos masculinos,heterossexuais, racistas e elitistas sobre a nação”.73

    O segundo estudo a receber destaque é desenvolvido pelo historiador AlbuquerqueJúnior ao focalizar o surgimento do nordestino como identidade política e cultural entre osanos de 1920 e 1940. Para ele, “O nordestino é constituído através do agenciamento de umasérie de imagens e enunciados que constituíam tipos regionais anteriores”,74logo, este sujeitohistórico será uma figura gestada nos discursos regionalista e tradicionalista como cordel,literatura e poetas populares. Ainda para o autor, o nordestino forjado e desejado nestesdiscursos representava a reserva de valores tradicionais como virilidade, força e bravura queestavam - na visão da época - sendo solapados pelo mundo urbano com a entrada dasmulheres no espaço urbano, por exemplo, provocando fraturas na relação entre os sexos. Nessa conjuntura histórica, o tipo nordestino é uma amálgama de vários tipos desenhadoscom atributos masculinos, ou seja, o sertanejo, o brejeiro ou praieiro, o vaqueiro, o jagunço, ocaboclo, o senhor de engenho. Todos esses tipos se relacionavam com os códigos sociais daépoca atribuídos aos homens. “Homens anônimos, sem rosto, nômades, desterritorializados,[...] homens sem identidade, mas tão fundamentais na criação de uma identidade para onordestino”.75

    Albuquerque Júnior e Miskolci concordam que a exclusão de sujeitos consideradosinferiores, desviantes, anormais, é recorrente no projeto de poder gestado pelas elites, tanto doRio de Janeiro quanto de Pernambuco. No caso da Primeira República, o medo era o dadegenerescência social possibilitada pela interação sexual entre classes e/ou „raças‟. ParaMiskolci, a Abolição não abalou as hierarquias sociais, pelo contrário, provocou umamudança de estratégias com o intuito de mantê-las. No Nordeste, uma nova experiência defeminilidade foi engendrada, enquanto “o sertanejo seria o cerne da nossa nacionalidade, seriaaquele elemento que não foi modificado pelas influências cosmopolitas, fora do contato com acivilização”,76 a mulher, por sua vez, era uma figura ímpar,“pareciam ter que semasculinizarem [...] não era apenas o mundo masculino que estava fechado [a elas], mas a própria região parecia excluir o feminino”.77

    73 MISKOLCI, Richard. Op. Cit. 2012.p.68. 74 ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. Nordestino: uma invenção do falo. Uma história do gênero masculino (Nordeste – 1920/1940). 2ªEdição. São Paulo: Intermeios, 2013. p.186.75

    ALBUQUERQUE JR.D. M. Op. Cit. 2013. p. 205.76 Ibidem, p. 189.77 Ibidem, p. 224.

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    Por sua vez, a masculinização da mulher do Nordeste se explicaria pela seca e pelaausência dos maridos que migravam nessa ocasião, obrigando-as a assumirem suas tarefas e oseu lugar na família:

    “É na reação ao mundo moderno, que parecia quere embaralhar as fronteiras entre osgêneros, que vinha feminizando perigosamente a sociedade e a região, provocandodesvirilização e a masculinização das mulheres, que o nordestino é inventado comoum tipo regional destinado a resgatar padrões de masculinidade que estariam em perigo; um verdadeiro macho capaz de restaurar o lugar que seu espaço estava perdendo nas relações de poder em nível nacional”.78

    O autor evidencia que a imagem do nordestino foi um histórico instrumento políticoagenciado pela elite pernambucana com o intuito de obter recursos financeiros da União paraos cofres da região. As figuras de gênero foram agenciadas para falar e dar sentido à criseeconômica, política e social vivida pelo Nordeste. A pedagogia de gênero presente nosdiscursos regionalistas daquela época concebiam as mudanças promovidas pelo mundomoderno - devido àinfluência de valores com “tendências niveladoras [e] democratizantes”entre homens e mulheres - como um fator de desestabilização dos papéis sociais do sexo. Neste caso, a inserção de novos agentes sociais e suas demandas por maior participação política, principalmente no lugar ocupado pelas mulheres - agora se avizinhando aos homensno espaço urbano - pareciam ameaçar a manutenção das hierarquias de gênero.

    O Nordeste era visto como se estivesse “se feminizando, tornando-se passiva” e, portanto, precisando de um “novo homem” capaz de responder de maneira viril, a fratura promovida pela Abolição e o advento da República nas hierarquias sociais e de gênero. ParaAlbuquerque Júnior:“neste início de século [XX], os códigos de gênero começam a se tornarassunto político, a lei cada vez mais vai invadir este espaço de intimidade, prescrevendo papéis e criminalizando práticas antes admitidas”.79

    Portanto, o nordestino é um efeito das relações de poder, um sujeito históricorelevante na compreensão dos conflitos regionais no Brasil do século XX. Penso que suahistoricidade é um exemplo prático de como podemos desnaturalizar as figuras e os papéis degênero, permitindo pensar outras formas possíveis de ser homem e ser mulher no Nordeste, e

    78 ALBUQUERQUE JR.D. M. Op. Cit. 2013. p. 226.79 Ibidem. p. 228.

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    em outras conjunturas históricas específicas, para além dos estereótipos do macho e suacompanheira submissa.

    1.3 Teoria Queer: uma performance histórica

    Mediante o que já foi discutido, podemos perceber que no campo dos estudos degênero, e, principalmente, provocados por uma crítica feminista, outras proposições teórico-metodológicas e políticas se arrregimentaram ao longo dos anos 80 e 90 do século XX.Superado o assujeitamento e silenciamento das mulheres no relato historiográfico, tivemos a

    emergência da pluralidade das experiências e vivências de feminilidades e masculinidades. Oempoderamento do saber por sujeitos até então silenciados e invisibilizados, gays e lésbicas, por exemplo, complexificou o debate e propôs novos questionamentos, indagações e novasabordagens, gerando os chamados EstudosQueer . Mas o que é oqueer ? Quais as suasdemandas? O que propõe?

    A TeoriaQueer surgiu nos Estados Unidos em fins da década de 1980. Ao longo dosanos de 1990 se consolidou principalmente a partir da publicação de algumas obras como: Problemas de gênero de Judith Butler,One Hundred Years of Homosexaulity (Cem anos deHomossexualidade) de David M. Halperin e A epistemologia do Armáriode Eve KosofskySedgwick. Para Miskolci (2012), a Teoria Queer é uma vertente do feminismo que coloca emquestão se o sujeito do feminismo é a mulher. Para ele, boa parte das produções feministassupõe que falar de gênero é falar de mulher. Para oQueer o gênero é um constructo social,cultural e historicamente localizado. Assim, homens e mulheres podem ter performance e/ouatributos que um dado regime de gênero pode qualificar como pertencentes do campo domasculino(s) ou feminino(s) independente do sexo biológico.

    Para os primeiros teóricosQueer, a heterossexualidade assim como ahomossexualidade é uma construção social. O gênero nessa perspectiva é compreendido comoalgo da ordem do cultural, datado, possibilitado pelas condições de seu tempo. Cabeesclarecer que não compreendo os estudosQueer como um desdobramento natural dosestudos de Gênero, mas, procuro analisar a expansão e complexidade dos debates abertos pelas teorizações de gênero, tomando não somente as noções de masculino e feminino, mastambém colocando em questão as formas de sexualidade experimentadas pelos sujeitos de

    gênero.

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    Os estudosQueer focalizam não apenas gays e lésbicas, mas também as travestis,transexuais,drag queen, drag king , ou seja, as chamadas sexualidades dissidentes. Um dos principais objetivos dos estudosQueer é desestabilizar as identidades. “Os estudos queer

    surgiram do encontro entre uma corrente da Filosofia e dos Estudos Culturais norte-americanos com o pós-estruturalismo francês, que problematizou concepções clássicas desujeito, identidade, agência e identificação”.80

    O Queer é mais do que uma categoria de análise, é uma racionalidade, uma outraforma de pensar e agir no mundo. OQueer desconfia das identidades coletivas, pois aidentidade conforma, engessa, cristaliza o que tem que ser pensado na sua especificidade. NosestudosQueernão existem pressupostos de nenhuma ordem, ao invés de partir dos sujeitos, o

    Queer propõe analisar os processos de produção dos sujeitos, as subjetividades, as práticasque os constroem provocando fissuras nos limites do binarismo masculino ou feminino.81

    Os estudos Queer podem ser definidos como:“o estudo daqueles conhecimentos edaquelas práticas sociais que organizam a „sociedade‟ como um todo, sexualizando -heterossexualizando ou homossexualizando - corpos, desejos, atos, identidades, relaçõessociais, conhecimentos, cultura e instituições sociais”.82

    Como efeito, os estudosQueer enriquecem os históricos estudos e movimentos gays e

    lésbicos e também ampliam o alcance do feminismo para além das mulheres, sofisticando-o eimplementando instrumentos para uma política de coalizão. Uma nova política de gênero queao invés de fundamentar-se em identidades universais e estáveis, desestabiliza um regimeheteronormativo de dentro, ou seja, provocando fissuras nas configurações binárias entrehetero/homo, feminino/masculino, normal/anormal, articulando e mobilizando os indivíduosque possam ser classificados como „anormais‟, abjetos, denunciando os processos denormalização e exclusão dos mesmos. Essa nova política de gênero evidencia como a cultura

    e suas normas forjam os sujeitos.O termo Queer foi ressignificado pelos estudiosos norte-americanos como “algo peloque alguém sente horror ou repulsa como se fosse poluidor ou impuro, a ponto de ser ocontato com isso temido como contaminador e nauseante”.83A problemáticaQueer vai alémda (homos)sexualidade, é uma recusa do regime de gênero heterossexista e da violência

    80 MISKOLCI, Richard. A Teoria Queer e a Sociologia: o desafio de uma analítica da normalização.Sociologias. Porto Alegre, ano11, n. 21, já./jun. 2009, p.152.81 Cf: RAGO, Margareth. Epistemologia feminista, gênero e história. In: GROSSI, Miriam Pillar. PEDRO, Joana M. Masculino,feminino, plural, gênero na interdisciplinaridade. SC- Editora mulheres; p.21-41, 2006; PRECIADO, Beatriz. Multidões Queer:

    notas para uma política dos “anormais”. Estudos Feministas, Florianópolis, 19(1): 11-20, janeiro-abril/2011.82 MISKOLCI, Richard. Op. Cit.2009. p.154.83 MISKOLCI, Richard.Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças- BH: Autêntica Editora, UFOP-2012a. p. 40.

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    praticada na manutenção de uma fronteira rígida entre os que são socialmente aceitos e os quesão relegados à humilhação, à abjeção e ao desprezo.

    Os estudos Queer propõem o estranhamento de tudo que é considerado universal, de

    todas as formas de binarismos: feminino/masculino, natural/cultural, homem/mulher,hétero/homo. O Queer promove a inserção da diferença, colocando no lugar doreconhecimento e da estabilidade, a alteridade e a diversidade, focalizando os processos deinvenção e desdobramentos das identidades. Para oQueer, não existe uma estágio pré-discursivo, o sujeito não e o ponto de partida, mas, de chegada dos estudos e das reflexões,inclusive as históricas. Pois como observou Scott, “não são indivíduos que têm experiências,mas sim os sujeitos que são constituídos pela experiência”.84O Queer provoca um curto

    circuito na ordem corpo-sexo-gênero-sexualidade-desejo, demonstrando que é no discurso e pelo discurso que construímos os sentidos atribuídos a essestermos e sua „natural‟ coerência.“O sexo é uma das normas pelas quais o “alguém” simplesmente se torna viável, que qualificaum corpo para a vida no interior do domínio da inteligibilidade”.85

    Ao analisar as experiências trans, Berenice Bento e Guacira Lopes Louro salientamcomo o gênero é um constructo social, cultural e histórico e não um dado biológico. Bentoalega que ao nascer, o corpo é inserido numa teia de significados. Através de uma pedagogia

    de gênero é agenciada uma série de atributos, gestos, performances que “inscreve nos corposo gênero e a sexualidade legítimos”.86Bento destaca, como exemplo dessa estratégia e dessa pedagogia, que “a ecografia é uma tecnologia prescritiva e não descritiva”,87 com isso elachama a atenção ao fato de antes mesmo de nascer somos inseridos em uma histórica matrizde inteligibilidade.

    Para Louro, a afirmação „é um menino‟ ou „é uma menina‟ “inaugura um processo de masculinização ou de feminilização com o qual o sujeito se compromete”.88Assim, a

    ecografia (exame médico aplicado através do ultrassom que identifica o sexo biológico dacriança) é uma das estratégias da biopolítica que produzem corpos-homens e corpos-mulheres. Nas palavras de Guacira Louro: “o ato de nomear o corpo acontece no interior da

    84 SCOTT, Joan. A invisiblidade da experiência. Projeto História, São Paulo, Tradução: Lúcia Haddad, (16), fev.1998, p.304.85 BENTO, Berenice. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual . Tese (Doutorado em Sociologia).Universidade de Brasília/UnB, 2003. p. 97.86

    LOURO, Guacira Lopes. Op. Cit. 2008. p.16.87 BENTO, Berenice. Op. Cit. p. 97.88 LOURO, Guacira Lopes. Op. Cit. p.15.

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    lógica que supõe o sexo como um “dado” anterior à cultura e lhe atribui um caráter imutável,a-históricoe binário”.89

    Portanto, o ato de interpelar já é uma ação política, não apenas verbal, de atribuir um

    lugar para aquele indivíduo. É marcar, definir o sujeito pela sua sexualidade, inserindo-onuma matriz de inteligibilidade. Ao nascer o corpo já é inscrito em um campo discursivoheteronormativo.“O corpo já nasce maculado pela cultura”.90 Para os estudosqueero gêneroé considerado como uma sofisticada tecnologia social heteronormativa!

    Isto posto, posso perceber que o corpo (tema que será analisado no terceiro capítulo) éum elemento fundamental na histórica construção de masculinidades e feminilidades. Ocorpo-sexuado-reprodutivo-heterossexualizado não é mais naturalizado pela biologia. Ele

    deixa de ser considerado, visto e experimentado como espontâneo. Passa a ser efeito de um processo de naturalização de certos códigos e a eliminação de outros que ocorre „através deoperações constantes de repetição e de re-citação dos códigos socialmente investidos comonaturais”.91Ainda nas palavras de Bento, “o gênero não e uma identidade estável, ao contrário,é uma identidade de bilmente constituída no tempo”.92 O gênero é uma repetição estilizada deatos que possibilita a inclusão de experiências que estão além de um referente biológico. Porisso, o gênero é denominado de performance/configurações nos estudosQueer .

    Entretanto, como bem observa Louro, não se trata de

    “negar a materialidade dos corpos, mas o que se enfatiza são os processos e as práticas discursivas que fazem com que aspectos dos corpos se convertam emdefinidores de gênero e de sexualidade e, como conseqüência, acabem por seconverter em definidores dos sujeitos”.93

    Dentro dessa perspectiva teórica, alguns conceitos já mencionados precisam ser

    explicitados a fim de melhor esclarecero/a leitor/a. (1) A “heteronormatividade é umconjunto de prescrições que fundamenta processos sociais de regulação e controle, até mesmoaqueles que não se relacionam com pessoas do sexo oposto”.94É um regime de visibilidade,um modelo regulador da ordem social de gênero. OQueer focaliza e denuncia como aheteronormatividade forja processos de normalização e exclusão classificando e

    89 LOURO, Guacira Lopes. Op. Cit. p.15.90 BENTO, Berenice. Op. Cit. p.98. 91 Ibidem. p.96.92

    Ibidem. p.101.93 LOURO, Guacira Lopes. Op. Cit. 2008.p.80.94 MISKOLCI, Richard. Op. Cit. 2009, p.156.

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    hierarquizando os sujeitos como „anormais‟, pervertidos, desviantes sexuais, enfim, todosaqueles que desestabilizam a ordem social. (2) Heterossexismo é o pressuposto de que todosos indivíduos são heterossexuais. Isso ocorre na repetição e reificação de um modelo

    heterossexual de família e no agenciamento do saber psi (psicanálise, psicologia, psiquiatria)que atua na patologização dos sujeitos que fogem a norma de gênero. (3) O corpo – sexuado éa terminologiaQueer para falar da produção de corpos femininos e masculinos.

    “O corpo-sexuado e a suposta ideia de complementaridade natural, que ganhainteligibilidade através da heterossexualidade, é uma materialidade saturada designificado, não sendo uma matéria fixa, mas uma contínua e incessantematerialização de possiblidades”.95

    Outra consideração importante para minhas reflexões, as normas sociais não escolhemsujeitos, elas perpassam a todos e todas. Por isso oqueer tem como um dos seus objetivos adesconstrução da heterossexualidade compulsória, pois busca abalar a histórica matrizheterossexual que forja processos de normalização, exclusão e hierarquias de gênero.“Oqueer lida com sujeitos sem alternativa passada nem localização presente, daí frases como

    „estamos em toda parte‟ ou „estranhos à sociedade‟ que demonstram paradoxo de presença einvisibilidade, internalidade e exclusão”.96

    A Teoria Queer em conjunto com os Estudos Pós-Coloniais são identificadas comoteorias subalternas, saberes críticos dos discursos hegemônicos na cultura ocidental, que serecusam a ser assimilados pela perspectiva heterossexista, masculina, branca, ocidental ecristã. Essas correntes teóricas estão inseridas no campo dos Estudos Culturais. É importantedestacar que esses Estudos Pós-Coloniais são efeitos de demandas feministas, de imigrantes

    de ex-colônias, de movimentos negros e homossexuais que questionam as desigualdadessociais. Miskolci (2009) afirma que a aliança estratégica entre essas linhas de pesquisaocorreu a partir de um “nó da intersecção: aquele formado pelas categorias sexualidade eraça” 97 evidenciando que as formas de opressão são interdependentes “em um mesmo processo de racialização do sexo e sexualização da raça”.98Ambos os estudos reconhecem quea matriz“essencializadora e subalternizante estaria na conexão raça-sexualidade, um nó que

    95 BENTO, Berenice. Op. Cit. p. 96.96

    MISKOLCI, Richard. Op. Cit. 2009. p.16197 Ibidem.p.161.98 Ibidem.p.161.

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    evidencia um mesmo processo normalizador que cria seres considerados menos humanos, emsuma, abjetos”.99

    Essa interseccionalidade contribui para denunciar as históricas hierarquias, os

    processos de normalização e exclusão dos indivíduos dentro de uma histórica matrizheterossexual. Com afirma Almeida,“a semelhança que existe entre raça e gênero deve-se aofato de ambas serem processos de naturalização do poder, uma com base no dimorfismosexual – na ideia de sexo -, outra com base na ideia de fenótipo, cor, sangue”.100

    Por isso oQueerfocaliza os processos de normalização, apontando

    “para a compreensão de que a maioria dos fenômenos até então compreendidoscomo desvio podem ser encarados como diferença, resultado de processos contínuose interrelacionados de inferiorização, da criação de outros que justificam adistribuição e o acesso desigual ao poder”.101

    Portanto, para oqueer as identidades são instáveis, contingentes. Como diz Butler “sealguém “é” uma mulher, isso certamente não é tudo que esse alguém é”.102 Parafraseando-a,se alguém é gay/lésbica/negro/assexuado/bissexual ou qualquer outra identidade, isso

    certamente não é tudo que esse alguém é. Ninguém é o seu gênero. O gênero não é umaidentidade coerente e estável a-historicamente. Pelo contrário, o “gênero estabeleceintersecções com modalidades raciais, classistas, étnicas, sexuais e regionais de identidadesdiscursivamente constituídas”.103O Queer objetiva a desestabilização do sujeito,desnaturalizando e denunciando os processos de normalização, constituição, manutenção e produção das fronteiras da diferença.

    Certa discussão e preocupação doQueer com a definição de sujeito pode ser

    considerada um efeito da constatação de que a „identidade‟ é um ideal normativo que produzhistóricas inteligibilidades sobre indivíduos e corpos. Butler denuncia que a matrizheterossexual silencia a multiplicidade produzindo uma forma binária de pensar e classificar atudo e a todos. O sujeito neste caso é um efeito de um processo de naturalização que escondea sua própria prática de construção. O que permite a Butler propor uma crítica à distinçãoradical entre sexo e gênero.

    99 MISKOLCI, Richard. Op. Cit. 2009. p.162. 100 CORRÊA, Mariza; PISCITELLI, Adriana. Op. cit. p. 213.101

    Ibidem, p. 173.102 BUTLER, Judith. Op. Cit. 2013, p.20.103 Ibidem. p.20.

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    “Se o gênero são os significados culturais assumidos pelo corpo sexuado, não se pode dizer que ele decorra, de um sexo desta ou daquela maneira. [Assim] a

    distinção entre sexo/gênero sugere uma descontinuidade radical entre corpossexuados e gêneros culturalmente construídos”.104

    Ao reconhecer que o gênero é culturalmente construído não há razão para que osgêneros também devam continuar em número de dois. O mesmo se torna um artifícioflutuante.O que possibilita que “homem e masculino podem, com igual facilidade, significartanto um corpo feminino como um masculino, e mulher e feminino, tanto um corpo masculinocomo um feminino”.105Portanto, oQueer amplia e em certo sentido desconfia da noção de

    gênero. Propõe seus múltiplos!Para Butler, “as identidades podem ganhar vida e se dissolver, dependendo das

    práticas concretas que as constituam. Certas práticas políticas instituem identidades em basescontingentes,de modo a atingir os objetivos em vista”.106Por isso, como mencionadoanteriormente, oQueer amplia e sofistica o sujeito do feminismo para além das mulheres.Pelo reconhecimento de que “as „pessoas‟ só se tornam inteligíveis ao adquirir seu gênero emconformidade com padrões reconhecíveis de inteligibilidade de gênero”.107

    Os gêneros „inteligíveis‟ são “aqueles que, em certo sentido, instituem e mantêmrelaçõesde coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo”.108O queer provoca um curto circuito nessa equação desconectando e desmontando as oposições bináriase assimétricas entre „feminino‟ e „masculino‟ entre o que é compreendido como atributo de„macho‟ e fêmea‟. Butler propõe “possibilidades de „sujeitos‟ que não apenas ultrapassam oslimites da inteligibilidade cultural como efetivamente expandem as fronteiras do que é de fatoculturalmente inteligível”.109 No regime heteronormativo a “„unidade‟ de gênero é o efeito de

    uma prática reguladora que busca uniformizar a identidade de gênero por via daheterossexualidade compulsória”.110 O que Butler propõe é o deslocamento, a confusão dogênero como pratica subversiva de questionamento da ordem reguladora da identidade.Provocando abalos, fissuras na matriz heterossexual.

    104 BUTLER, Judith. Op. Cit. 2013, p. 24. 105 Ibidem. p. 24-25.106 Ibidem. p. 37.107 Ibidem. p. 37.108

    Ibidem. p. 38.109 Ibidem. p. 54.110 Ibidem. p. 57.

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    Portanto, para oQueer , o gênero é múltiplo, fluído. Como um constructo culturalmarcado no tempo e espaço, ele pode estar presente em corpos masculinos e femininos, sãofeminilidades sem mulheres e masculinidades sem homens. Por isso o gênero é considerado

    uma performance. A coerência interna do gênero é uma ficção reguladora do regimeheteronormativo, é efeito de uma estrutura binária que a tudo e a todos classifica ehierarquiza. Neste sentido, a chamada opressão de gênero exclui aqueles indivíduos quefogem à norma. OQueer desafia a nossa forma de pensar e agir no mundo.

    Por fim, meu intuito aqui não foi abarcar toda a complexidade dessa episteme, mas,compreender na medida do possível as bases da Teoria Queer, seus principais conceitos eobjetivos para minha reflexão. Compreendo que este é um empreendimento conflitante, onde

    se faz necessário o empoderamento dos lugares de produção de saber. Oqueerinstrumentaliza a nossa atuação social e política. É o reconhecimento de que falar desexualidade é falar de práticas de poder, de hierarquias, de exclusão.Queer, em teoria e/ouestudos, ainda é um campo e um desafio novo para a historiografia. Desafio este, em certamedida, aceito.

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    Capítulo 2Dzi Croquettes

    Em 08 de agosto de 1972, em Santa Teresa, no Rio de Janeiro, surgiu um grupo teatralque transformou e/ou sugeriu mudanças comportamentais, estéticas e subjetivas à toda umageração - o Dzi Croquettes. Formado por 13 homens - atores/bailarinos -, desde o início ogrupo foi marcado pela diversidade. Seus integrantes tinham entre 18 e 40 anos, eram negros, brancos, brasileiros e um norte-americano, eram eles: Wagner Ribeiro, Bayard Tonelli,Roberto de Rodrigues, Cláudio Gaya, Reginaldo e Rogério de Poly, Paulo Bacellar, Ciro

    Barcelos, Leonardo Laponzina (Lennie Dale), Cláudio Tovar, Benedicto Lacerda, CarlinhosMachado e Eloy Simões. Entre pêlos, barbas, purpurinas e paetês, o que se destaca é que comsuas performances artísticas, os Dzi questionaram o regime de gênero e o estatuto damasculinidade na sociedade brasileira dos anos 70, do século XX.

    Para esta reflexão, focalizo as históricas masculinidades, ou ainda, as históricas possibilidades de ser e de constituir como homem. Minha proposta é refletir sobre a atuação,as performances e as estéticas masculinas dos Dzi Croquettes no Brasil dos anos 70. Entre asquestões que permitem minha análise, destaco: em que medida eles contribuíram paradesestabilizar uma determinada e histórica dominação masculina? Eles contribuíram na produção de novas identidades masculinas? Se a resposta for positiva, como isto se deu?Essas são as questões que pretendo responder ao longo deste trabalho.

    Começo este percurso lembrando as sábias palavras do crítico literário DjalmaThürler: “a história do grupo, bem como seus desdobramentos, merecem destaque namemória recente da cultura brasileira”.111 Por concordar com este estudioso, destaco queapenas recentemente, depois de aproximadamente 40 anos, a história do grupo foi trazida, defato, à ordem do discurso acadêmico. Em 2009, foi lançado o documentário: Dzi Croquettes, de Tatiana Issa e Rafhael Alvarez, transformado, no ano seguinte, em DVD.112 Em 2010, aeditora da Unicamp publicou a dissertação de mestrado em Antropologia Social, defendidaem 1979, da autora Rosemary Lobert, intitulada: A palavra mágica: a vida cotidiana do DziCroquettes.113

    111 THÜRLER , Djalma. Dzi Croquettes: Uma política queer de atravessamentos entre o real e o teatral. In: Congreso Iberoamericano de Masculinidades y Equidad : Investigación y Activismo, Barcelona. (trans)formando la masculinidad: de la teoría

    a la acción. 2011.s/n.112 ALVAREZ, Raphael; ISSA, Tatiana. DVD, Dzi Croquettes:Brasil. 110 min. 2010. 113 LOBERT, Rosemary. A Palavra Mágica: A vida cotidiana do Dzi Croquettes. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2010.

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    Em relação ao contexto que possibilitou e foi marcado pelo grupo, convém sublinharsuas especificidades. Para o sociólogo Renato Ortiz, os anos de 1960 e 1970 podem serconsiderados:

    “um momento de liberalização dos costumes [como] o consumo de drogas, aliberdade sexual, a emancipação feminina [que] não eram simples epifenômenos que pudessem ser administrados por uma determinada concepção de mundoconservadora”.114

    Ortiz é um dos poucos autores que reconhece o potencial político dos chamadosepifenômenos. Todavia é predominante em várias abordagens que analisam esse período aredução das interpretações ao campo político e econômico da ditadura militar . Como afirma ohistoriador Douglas Marcelino:

    “a memória construída sobre os anos da ditadura, de modo geral, tende a ressaltarsomente a dimensão política da censura que existia no período. Na verdade, a épocaé lida, como um todo, sobretudo a partir da chave política.Questões como asexualidade e outras relacionadas ao plano comportamental, quando

    mencionadas, são tomadas apenas como epifenômenos de uma variante políticafundamental. Assim, a história do Brasil entre 1964 e 85 tem sido reduzida a história

    política da ditadura militar”.115

    À vista disso, e para complexificar o debate historiográfico, é que proponho estetrabalho, questionando a performance, o estilo e a estética da(s) masculinidade(s) agenciados pelo Dzi Croquettes, sendo esta uma possível inovação/contribuição deste trabalho.

    2.1 Dzi Croquettes : formação

    Wagner Ribeiro, Bayard Tonelli e Reginaldo de Poly foram os três primeiros aidealizar a possibilidadede formarem um “conjunto musical”, que explorasse as performancesartísticas de cada um deles. Nas palavras de Lobert:“o encontro casual, mas rotineiro, num

    114 ORTIZ, Renato. Revisitando o tempo dos militares.In: REIS, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo & MOTTA, Rodrigo P. Sá

    (orgs.). A ditadura que mudou o Brasil: 50 anos do golpe de 1964.1ªed. Rio de Janeiro: Zahar. 2014.p.122-123.115 MARCELINO, Douglas Attila.Subversivos e Pornográficos. Censura de livros e diversões públicas nos anos 1970. Rio deJaneiro: Arquivo Nacional. 2011.p.22.

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    bar de Copacabana, No Rio de Janeiro, que costumavam frequentar, registrou-se nasmemórias como data de um projeto de vida e tetro que se chamaria Dzi Croquettes”.116

    Wagner Ribeiro de Souza nasceu em 1936, na cidade de Bebedouro, interior de São

    Paulo. Mudou-se para o Rio de Janeiro no início dos anos 60 com o objetivo de estudar noConservatório Nacional de Teatro. Nesse ínterim, “Wagner já se tinha matriculado naFaculdade de Filosofia e na de Medicina quando optou finalmente pela Escola de BelasArtes”,117 tornando-se artista plástico, ator, autor, filósofo e comediante. Tinha 38 anos deidade na época do surgimento dos Dzi. Morador de Santa Teresa, era “artesão de couro e donode uma butique”,elaborou figurinos diversos e exclusivos para artistas como NeyMatogrosso, Elke Maravilha, Marina Lima, Moraes Moreira e Erasmo Carlos, assinados por

    sua grife Embaixada de Marte. Localizada na encosta do morro da Rua Hermegildo de Barros, próxima a estação Curvelo do bondinho que transportava os passageiros do centro ao Bairrode Santa Teresa. Por conseguinte, “as famosas pochetes de couro, com taxas de metal emdesenhos exclusivos, foram moda no Brasile no exterior”.118 Wagner foi um dos principaisidealizadores dos textos e dos figurinos apresentados pelos Dzi. Uma de suas famosas frases,que ressoaram a ponto de ser uma de suas marcas,era: “Só o amor constrói”.

    Bayard Tonelli nasceu em Porto Alegre, em 1947. Estudou arquitetura até o terceiroano na UFRS. Aos 18 anos, largou tudo e passou a estudar teatro amador. Foi “modelofotográfico e ator de ocasião ao transladar-se para São Paulo e Rio de Janeiro”.119 Tornou-seator, poeta e bailarino e tinha 24 anos quando adentrou aos Dzi.

    Reginaldo de Poly, por sua vez, era de Miracema, interior do Rio de Janeiro, nasceuem 1949. Na época que adentrou aos Dzi tinha 23 anos, trabalhava no escritório de umacompanhia aérea. Sua inserção no meio artístico se deu pelo irmão Rogério de Poly, nascidoem 1952, também de Miracema, “tendo sido cantor de auditório no rádio e feito pontas em

    filmes e peças de teatro”.120

    Tinha 20 anos quando entrou para o grupo. Os irmãos Polylevavam vidas diversas: Rogério, o caçula, “fugiu várias vezes de casa e fora um displicentealuno do secundário”,121 gostava de ousar na combinação de roupas, quanto mais brilho,

    116 LOBERT, Rosemary. A Palavra Mágica: A vida cotidiana do Dzi Croquettes. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2010.p.20.117 Ibidem, p.19.118 LIDOKA.Uma vida frenética. Rio de Janeiro. Obliq Press, 2012.p.60.119

    LOBERT, Rosemary. Op. Cit.p.20.120 Ibidem.p.20.121 Ibidem.p.20.

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    melhor. Reginaldo, por outro lado, “desde a infância, costumava intrometer -se nos negóciosde seu pai e seu tio”.122

    O carioca Paulo Bacellar nasceu em 1952. Por ser frequentador de Santa Teresa,

    tornou-se uma espécie de “relações públicas” da grife Embaixada de Marte, circulando nasestações de televisão com o objetivo de vender aos artistas as roupas e bolsas em courotachado que Wagner Ribeiro confeccionava. Negro, com 1,90 de altura, era um exímiodançarino, sem nunca ter feito aulas de dança. Gostava de dançar nas festas, bailes onde querque fosse convidado. Por ter uma expressão cômica, foi convidado a participar do grupo aos18 anos.

    Cláudio Gaya nasceu em 1946, carioca, foi bolsista do Conservatório Nacional. Tinha28 anos quando entrou nos Dzi.Estudante de teatro, com múltiplos talentos, tornou-se ator, bailarino, pintor e comediante. Foi um dos primeiros a estar do lado de Wagner Ribeiro no projeto de formação do grupo teatral. Um dos seus personagens de sucesso era a bailarina

    nazista, além das “pinturas nos corpos, rostos e panos e na criação do cenário, que eleassinava”.123

    122 LOBERT, Rosemary. Op. Cit.p.20.123 LIDOKA. Op. cit.p.53.

    Imagem 1 - Paulo Bacellar

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    Imagem 2 - Cláudio Gaya

    Roberto de Rodrigues nasceu no Rio de Janeiro em 1945. Criado no Rio, era ex-alunodo colégio militar e empregado ban