Silêncio Se Faz Para Ouvir - Marina Silva

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Silêncio se faz para ouvir Muita gente andou falando ou escrevendo a respeito do meu silêncio, alguns até em tom de cobrança ou censura, como se eu estivesse me esquivando da responsabilidade de dar opinião sobre o atual momento da política brasileira. Como disse Mark Twain, “os boatos a respeito da minha morte estavam um pouco exagerados”. Não andei tão calada assim, basta ver que em minhas páginas na internet tratei das questões mais importantes da vida brasileira, como a crise hídrica, a retomada dos ataques aos direitos indígenas e, é claro, as investigações da corrupção na Petrobrás. Também divulguei, em várias mensagens, minhas observações sobre a disparidade entre a propaganda da presidente reeleita e os atos reais de seu governo, que chamei de “desmandamentos”. Não foi, portanto, um silêncio muito silencioso. Se me ative às páginas da internet, especialmente nas redes sociais, deixando de lado as entrevistas e artigos na chamada “grande mídia”, é porque preferi não seguir a pauta convencional, onde o bate-boca pós-eleitoral e as versões da guerra partidária continuavam acirrados. Como já disse, a polarização não é apenas uma disputa entre dois lados, é uma cultura, um modelo mental que domina a política e a comunicação, algo difícil de desfazer. O respeito à democracia nos ensina a dar um prazo inicial a todo governo eleito, para que diga a que veio. Sinto que isso vale também quando o escolhido – ou guiado pelas estrelas – recebe da sociedade a cômoda ou incômoda tarefa de suceder a si mesmo. Desde 2010 venho alertando para a incompatibilidade entre dois fenômenos políticos contemporâneos, uma contradição que nos empurrava para o abismo onde hoje caímos: de um lado, o avanço social, político, econômico e cultural de uma significativa parcela da sociedade, que se esforça para deixar a passiva posição de espectadora e intenta ser

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Silêncio se faz para ouvir.Argumentos - Marina Silva sobre protestos recentes no Brasil.silêncio, Marina Silva, protestos - Brasil - Corrupção - Petrobrás

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Silncio se faz para ouvirMuita gente andou falando ou escrevendo a respeito do meu silncio, alguns atem tom de cobrana ou censura, como se eu estivesse me esquivando da responsabilidade de dar opinio sobre o atual momento da poltica brasileira.Como disse Mark Twain,os boatos a respeito da minha morte estavam um pouco exagerados. No andei to calada assim, basta ver que em minhas pginas na internet tratei das questes mais importantes da vida brasileira, como a crise hdrica, a retomada dos ataques aos direitos indgenas e, claro, as investigaes da corrupo na Petrobrs. Tambm divulguei, em vrias mensagens, minhas observaes sobre a disparidade entre a propaganda da presidente reeleita e os atos reais de seu governo, que chamei dedesmandamentos. No foi, portanto, um silncio muito silencioso.Se me atives pginas da internet, especialmente nas redes sociais, deixando de lado as entrevistas e artigos na chamadagrande mdia,porque preferi no seguir a pauta convencional, onde o bate-boca ps-eleitoral e as verses da guerra partidria continuavam acirrados. Como jdisse, a polarizao no apenas uma disputa entre dois lados,uma cultura, um modelo mental que domina a poltica e a comunicao, algo difcil de desfazer.O respeito democracia nos ensina a dar um prazo inicial a todo governo eleito, para que diga a que veio. Sinto que isso vale tambm quando o escolhido ou guiado pelas estrelas recebe da sociedade a cmoda ou incmoda tarefa de suceder a si mesmo.Desde 2010 venho alertando para a incompatibilidade entre dois fenmenos polticos contemporneos, uma contradio que nos empurrava para o abismo onde hoje camos: de um lado, o avano social, poltico, econmico e cultural de uma significativa parcela da sociedade, que se esfora para deixar a passiva posio de espectadora e intenta ser protagonista no desenvolvimento do pas; de outro lado, o enorme atraso na poltica, a lentido e ato retrocesso na qualidade das instituies e na representao. Repeti incontveis vezes: o atraso polticoa maior ameaa ao que conquistamos a duras penas Democracia, Estabilidade Econmica e Incluso Social.Esse atraso nos fez estacionar em um sistema poltico que degrada os processos sociais de diversas maneiras, entre as quais destaco trs.Primeiro, afasta os verdadeiros agentes de transformao das dinmicas econmicae poltica, retira-os de todos os centros reais de deciso e os coloca no lugar de meros espectadores no processo poltico. Empresrios ou trabalhadores, estudantes ou cientistas, comunidades ou movimentos, todos soavassalados ou meramente excludos, sos polticos profissionais podem participar de uma espcie de repblica dos operadores.Segundo, cria uma governana sem qualquer compromisso com a execuo de um programa, compondo o governo e configurando sua base de sustentao no Congresso atravs do loteamento de pedaos gerenciais e financeiros do Estado. A gesto dos assuntos pblicosentregue a uma teia de esquemas que atravessa instituies ergos pblicos, empresas e bancadas parlamentares, um amontoado de nichos e feudos onde se faz qualquer negcio em qualquer setor: sade, educao, segurana e especialmente as grandes obras, tudo vira objeto de troca. A ocupao dos cargos obedece a duas modalidades, com ou semporteira, seja fixa ou giratria, como dizem os que participam das negociaes.Terceiro, assenta-se numa lgica partidria que abandona o debate em torno de idias e programas pelo embate para ganhar ou manter o poder. E esclareo: trata-se do poder pelo poder, que independe daquilo que se faz, se pensa ou se diz, pois todas as idias se reduzem a peas de marketing e toda ao tem sentido ttico de destruir adversrios numa disputa que no tem fim nem finalidade para o que de fato importa, os reais interesses do pas.Esse sistema se reproduz e se protege. Basta ver as sucessivasreformas polticas, arrumaes nas leis eleitorais ou regras para impedir a criao de novas formas de organizao e participao poltica. A cada ano criam-se e aperfeioam-se mecanismos para manter o domnio das oligarquias, a hegemonia dos grandes partidos e o financiamento de suas campanhas.Por tudo issoque falei em 2010 e repeti em 2014, ao lado de Eduardo Campos:imprescindvel e urgente um realinhamento poltico, com base em uma agenda estratgica que dconta dos principais desafios do pas, capaz de manter e institucionalizar conquistas, corrigir erros e assumir os novos e grandes desafios desse sculo.Propus que esse realinhamento aposentasse a Velha Repblica, que permaneceu incrustada no Estado brasileiro mesmo nos governos do PSDB e do PT, dificultando os avanos que estes promoveram sempre reconheci nas reas econmica e social. Para sustentarem-se nessa Velha Repblica, como j disse FHC, esses novos partidos da democracia brasileira disputaram o posto de lderes do atraso.Suma Repblica renovada seria capaz de juntar os fundamentos dos avanos jobtidos, o processo democrtico, o tripda estabilidade macroeconmica e os programas de incluso social e acrescentar a eles um novo objetivo inadivel, a sustentabilidade socioambiental. Assim, atravs de um Novo Pacto, o Brasil evitaria o retrocesso e a perda de suas conquistas, superaria o atraso poltico e atualizaria seu ambiente institucional para enfrentar as crises e rigores deste tempo em que o mundosacudido pelas mudanas climticas e pela crise econmica e social, uma verdadeira crise da civilizao.No foi por acaso que busquei Eduardo Campos quando o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) negou registroRede Sustentabilidade. ramos duas figuras que, ataquelapoca, em funo das posturas polticas que tnhamos e de nossas trajetrias de vida, nos imaginvamos como pontes entre os legados do PSDB e do PT, atmesmo pela atitude de respeito que sempre cultivamos por seus lderes maiores, Lula e FHC.No foi por acaso que propusemos um programa para a grave crise que jse alastrava, falando das medidas duras a serem tomadas, mostrando a verdade da crise econmica, poltica e social, mesmo correndo o risco de sermos atacados com virulncia, como ocorreu, sobretudo comigo, aps a trgica morte de Eduardo.No foi apenas o marketing selvagem, amplificado pelas tcnicas do boato e da calnia em cada cidade ou vila do pas, operando uma destruio naimagem de um adversrio poltico. Foi uma contrao de todo o sistema poltico, incluindo suas ramificaes nos meios de comunicao e organizaes da sociedade,na tentativa de trancar do lado de fora qualquer novo projeto de identidade poltica para o Brasil, qualquer proposta de mudana e de futuro que no fosse a mera repetio do que jexiste.Nada de realinhamento das foras polticas para fazer a transio e aposentar a Velha Repblica. Nada de manter as conquistas, corrigir os erros e encarar os novos desafios. Nada de nova governana baseada em um programa de governo e agenda estratgica,nada dessa histria de reunir os melhores de todos os partidos. Nada de fim da reeleio, pela qual os mandatrios se dedicam mais a conseguir outro mandato do que servir ao pas. O sistema desconhece e joga fora a possibilidade de evoluo e quer continuar sendo assim como, uma mquina de vencer eleies, uma couraa, uma repetio neurtica de palavras vazias, um embate denscontraeles, uma reafirmao de quem manda.Qual o resultado de uma campanha assim? O que acontece com quemganha dessa forma? E o que acontece com os eleitores, a sociedade, o pas?Estamos, agora, diante das respostas. O agravamento de todos os sintomas da crise jvisvel. A insatisfao da populao vai da desesperana ao desespero. A mudana na equipe econmica parece ser insuficiente para dar ao governo a credibilidade necessriaconduo da economia. A imagem da situao sociala dos tanques na rua, na Favela da Mar. A enchente gigantesca no Norte e a seca rigorosa no Sudeste denunciam a irresponsabilidade com a agenda ambiental e a falta de planejamento na produo de energia e no saneamento. E a corrupo revela-se generalizada como um cncer que se espalhou por todos osrgos. Quantos minutos na televiso sero necessrios para fazer as pessoas voltarem a acreditar no mundo cor-de-rosa que os pessimistas queriam destruir?Muita gente vai para as ruas protestar. Huma campanha pedindo o impeachment da presidente que foi eleita hpoucos meses. Compreendo a indignao e a revolta, mas no acredito que essa seja a soluo. Talvez o resultado no seja o pretendido retornoordem, mas um aprofundamento do caos. Quando o Congresso deps Fernando Collor, assumiu o vice-presidente Itamar Franco, que formou um governo aglutinando vrias foras polticas incluindo a parcela do PT que acompanhouLuza Erundina. Em sua gesto, que tinha FHC como Ministro da Fazenda, comeou o Plano Real e a hiperinflao foi finalmente debelada. Mas hoje quem domina as instituies so as parcelas do PMDB mais envolvidas com as prticas e mtodos que esto na gnese da crise.As principais lideranas polticas de todos os partidos tm agido com cautela e senso de responsabilidade com o pas. O PT,claro, quer salvar o governo. Em parte da oposio predomina a lgica partidria e o desejo desangraro governo e enfraquec-lo para as prximas eleies. Mas h os que compreendem a gravidade de uma crise institucional, os riscos de aventuras autoritrias de esquerda ou de direita , a quebra da economia, a violncia descontrolada, enfim, um cenrio totalmente indesejvel. O governoruim, mas temos a responsabilidade de manter no a ele, masa democracia.O impeachment seria uma punio ao PT, sem dvida. Uma resposta no mesmo padro criado pelo partido quando estava na oposio: gritarfora a qualquer governo (Sarney, Collor, Itamar, FHC e incontveis governos estaduais), com ou sem provas de corrupo, pela simples avaliao ideolgica de que eram governos impopulares ou contrrios aos interesses dos trabalhadores. Talvez atuma parcela dos que votaram em Dilma em outubro ou atmesmo que fizeram parte dos ncleos ocultos de sua campanha estejam agora alimentando a idia de afast-la para ganhar o poder por outros meios. Por isso,bom lembrar que,s vezes, a maior punioqueles que ultrapassam limitesticos para alcanar seus objetivos no seja interditar-lhes o objeto almejado, masretirar-lhes as regalias e deix-loscom a responsabilidade de dar conta do que prometeram.Essauma questo que serdecidida no corao do povo, num nvel profundo em que a tosca propaganda e os gritos de guerra da direita e da esquerda no penetram. Sos que fazem silncio e ficam atentos conseguem ouvir o que diz esse corao.A questo poltica: existe alguma possibilidade de navegar na crise estabelecendo, na prtica, uma nova governana no pas? Creio quemuito difcil. Mas talvez seja possvel estabelecer alguns pontos de contato entre os agentes reais dos processos polticos, econmicos e sociais, com base na dura realidade dos fatos. A percepode que estamosbeira de um abismo que chama outros abismos, como bem adverte o ensinamento bblico, nos remeteresponsabilidade de abrir novos caminhos e maneiras de caminhar. Afinal, se todos estamosnomesmo barcode um pas em profunda crise, devemos estabelecer dilogos e projetos comuns em que governos estaduais e municipais, organizaes da sociedade, cientistas, empresrios, movimentos sociais, comunidades, todos se sintam dispostos a contribuir atque se consiga alcanar um realinhamento poltico que dnovas bases de sustentao ao pas.Se nopossvel ter uma agenda governamental, podemos ter acordos setoriais e regionais em diversos temas. Mais uma vez, escolho os que me parecem centrais.Primeiro, seria necessrio ter srio compromisso com a transio para uma economia de baixo carbono. Maspossvel comear com as urgncias dacrise ambientalque jmostra seu potencial de destruir a economia urbana ou rural. No adianta reconstruir a casa da mesma forma e no mesmo lugar em que foi derrubada pela chuva. Agricultura, indstria, obras de infra-estrutura, todos jesto ameaados pela crise. Eis a oportunidade de mudar os mtodos de produo e consumo. Os planos de contigncia e os comits de gesto da crise hdrica jseriam um bom comeo.Segundo, aperfeioar os programas e mecanismos de incluso social. Programas de transferncia de renda no podem ser tratados como poltica de um governo ou um favor que sercobrado a cada eleio.necessrio institucionalizar, colocar na lei: toda famlia em situao de extrema pobreza tem o direito de recorrer ao Estado e receber ajuda enquanto for necessrio. Cabe ao Estado providenciar meios, como financiamento e formao tcnica, para que ocorra uma incluso produtiva, ou seja, a pobreza seja superada com educao e trabalho.Terceiro, recuperao dos fundamentos macro e microeconmicos em um ciclo estrutural e no puramente eleitoral. Aqui, a sociedade e os governos locais podem fazer algo, masresponsabilidade do governo federal recuperar a credibilidade do pas e o ambiente para o investimento produtivo.Mas o mais urgente, o sinal mais claro de um enfrentamento direto da criseo combatecorrupo, que hoje estespalhada em todos os nveis da economia e da poltica.preciso manter uma opinio pblica exigente e capaz de apoiar a autonomia dosrgos de investigao, justia, fiscalizao e controle. A liberdade de imprensacondio essencial e deve ser defendida sem hesitao.No podemos ser tolerantes comacordos de leninciaque livrem corruptos ou corruptores de suas responsabilidades a pretexto de proteger as empresas. O Estado deve apenas dar condies legais para que os setores da economia afetados pela corrupo se reestruturem. Empresas podem fechar ou se reinventarem, as leisque no podem ser mudadas para salvar a pele de quem quer que seja. Num mercado aberto, no se exige apenasmenor preo para contratar uma obra, mas tambm a concorrncia leal, com regras para proteger o interesse pblico, o meio ambiente e a populao, com mecanismos de controlee total transparencia.Narea ambiental, o Ministrio Pblico tem estabelecido, em diversas ocasies, os Termos de Ajustamento de Conduta, que estabelecem prazos e metas, procedimentos e regras, comeando pela imediata interrupo das prticas danosas. Esseo enfoque correto para manter as obras e servios, mas limpando a sujeira e desarmando os esquemas de corrupo.Quem pode levar adiante acordos e pactos em torno dessas diretrizes? Creio que cada um tem uma parcela de poder e governabilidade. Tenho visto, em todo o Brasil, exemplos emocionantes de iniciativas de pessoas, comunidades, movimentos sociais, organizaes civis, prefeituras e governos estaduais e tambm em algunsrgos do governo federal. No existe scorrupo e maldade no mundo, temos que manter a esperana.Enfim, tenho muitas dvidas e algumas propostas. No me iludo, sei que estamos ainda no incio dos problemas e o mais provvelque a situao do pas se agrave nos prximos meses. Mas insisto que devemos ter uma agenda que possa gerar novos compromissos, uma posio sem alinhamento automtico com governos ou oposies a favor do Brasil. Polticaservio e devemos contribuir para que tudo melhore.A melhor energia para essa melhorae sempre sera manifestao da sociedade, pacfica mas indignada, contra tudo que ameaa a honra de seu passado, a dignidade de seu presente e a esperana de seu futuro. Das ruas vem sempre o alerta: acima dos interesses dos partidos e grupos que almejam o poder esto os interesses do pas e os que querem sinceramente servi-lo no devem desperdiar a oportunidade de mudar, antes de serem por elas mudados.