SEYFERTH, Giralda. Colonização, Imigração e a Questão Racial No Brasil.
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REVISTA USP, So Paulo, n.53, p. 117-149, maro/maio 2002 117
e a questo racialno Brasil
imigraoColonizao,
GIRALDA SEYFERTH
GIRALDA SEYFERTH professora doDepartamento deAntropologia, MuseuNacional UFRJ.
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REVISTA USP, So Paulo, n.53, p. 117-149, maro/maio 2002118
O presente trabalho procura mostrar a
influncia da idia de raa sobre os princ-
pios que embasaram a poltica de coloniza-
o no Brasil e as controvrsias relativas ao
nucleamento de estrangeiros em colnias
agrcolas no Sul regio onde ocorreram
duas revolues de implicaes separatis-
tas no sculo XIX e seus reflexos no dis-
curso sobre nacionalizao, especialmen-
te, mas no exclusivamente, no Estado
Novo, perodo de desqualificaes mais
radical das diferenas de natureza tnica e
cultural, imaginadas como ameaa uni-
dade do Estado-Nao.
OS PRINCPIOS DA COLONIZAO
EUROPIA
A noo de princpios alude ao trabalho
do gegrafo Leo Waibel, que estabeleceu
um modelo analtico dos sistemas agrco-
las produzidos pela imigrao europia nas
regies de floresta do Rio Grande do Sul,
Santa Catarina e Paran. Definiu a coloni-
zao como um sistema econmico diver-
so da grande propriedade, porque baseado
numa classe de pequenos proprietrios de
origem europia (Waibel, 1958), princpio
igualmente presente na motivao imi-
grantista desde 1818, quando D. Joo VI
assinou o tratado de Nova Friburgo. O in-
teresse na diversificao da agricultura
marcou a fundao de Nova Friburgo (RJ)
com imigrantes suos, em 1819, e sinali-
zou para os desdobramentos da coloniza-
o: a localizao em colnias ocorreu na
periferia da grande propriedade escravista,
ou longe dela, em terras devolutas privi-
legiando-se correntes imigratrias euro-
pias. A questo racial est implcita no
Decreto Real que autorizou o estabeleci-
mento dos imigrantes suos na regio ser-
rana do Rio de Janeiro aludindo civiliza-
o e, principalmente, no artigo 18 do tra-
tado acima referido, que trata da criao de
uma milcia de 150 suos, capazes de em-
punhar armas, colaborando na manuteno
dos regimentos portugueses de cor branca
a questo racial estava subjacenteaos projetos imigrantistas desde1818, antes da palavra raa fa-zer parte do vocabulrio cient-fico brasileiro e das preocupa-es com a formao nacional.Desde ento, a imigrao pas-sou a ser representada como umamplo processo civilizatrio e forma mais
racional de ocupao das terras devolutas.
O pressuposto da superioridade branca,
como argumento justificativo para um mo-
delo de colonizao com pequena proprie-
dade familiar baseado na vinda de imigran-
tes europeus portanto distinto da grande
propriedade escravista foi construdo mais
objetivamente a partir de meados do sculo
XIX. Menos evidente nas leis e decretos
relativos colonizao, o contedo racista
est presente, sobretudo, na discusso da
poltica imigratria articulada ao povoa-
mento e na externalizao nacionalista dos
problemas de assimilao especificados
atravs das probabilidades do caldeamento
racial. Ambas as discusses so significati-
vas quando envolvem a colonizao euro-
pia efetivada no Sul durante mais de um
sculo num contexto de povoamento em
que os imigrantes alemes aparecem como
anttese da brasilidade.
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REVISTA USP, So Paulo, n.53, p. 117-149, maro/maio 2002 119
(1). A meno cor branca por si mesma
significativa pois as primeiras classifica-
es raciais produzidas nos meios cientfi-
cos europeus na segunda metade do sculo
XVIII tinham por base uma diviso geo-
grfica e/ou a variao da cor da pele. Pode-
se argumentar que seus autores no esta-
vam interessados em estabelecer critrios
de desigualdade para grupos humanos arti-
culados com suposta origem comum,
depois anunciados nas tipologias criadas,
s vezes doutrinariamente, no sculo XIX;
mas a noo hierrquica de civilizao es-
tava por trs de certos desideratos biolgi-
cos, fazendo da cor branca um indicador de
superioridade, mesmo na ausncia de um
discurso explicitamente racista (2).
Os resultados efmeros obtidos em
Nova Friburgo (3) no interferiram no pro-
psito colonizador, retomado, dentro dos
mesmos princpios, logo aps a indepen-
dncia com a fundao da colnia de So
Leopoldo, no Rio Grande do Sul, em 1824.
Atravs do agenciamento, o governo im-
perial recrutou em vrios estados germni-
cos, simultaneamente, colonos e soldados.
Afinal, havia forte tenso na fronteira in-
ternacional ao sul, envolvendo a disputa
pela provncia Cisplatina (o atual Uru-
guai), que teve como conseqncia uma
guerra com a Argentina, iniciada em fins
de 1825.
Assim, a colonizao no seguiu, ex-
clusivamente, o princpio civilizatrio que
exigia imigrantes brancos europeus; tam-
pouco significou uma recusa ao modelo
escravista de explorao agrcola. Surgiu
de uma lgica geopoltica de povoamento,
articulada ocupao de terras pblicas
consideradas vazias sem qualquer con-
siderao pela populao nativa, classifi-
cada como nmade e incivilizada, na medi-
da em que esse sistema de ocupao terri-
torial avanou a partir da dcada de 1840
(quando terminou a Revoluo Farrou-
pilha). A escolha do colono ideal, porm,
teve seus determinantes biolgicos articu-
lados pressuposio da superioridade eu-
ropia, e o sistema esteve associado imi-
grao pelo menos at meados do sculo
XX, com participao extremamente limi-
tada da populao nacional. Nem o radica-
lismo nacionalista, contrrio imigrao
alem, no incio da repblica, abriu maior
espao para o assentamento de colonos
nacionais.
Conforme observao de Waibel
(1958), colonizao e povoamento so
binmios; e a localizao dos primeiros n-
cleos coloniais no Rio Grande do Sul e Santa
Catarina, entre 1824 e 1829, mostrava isso
com preciso: estavam situados em pontos
estratgicos dos caminhos de cargueiros que
uniam o extremo sul a So Paulo. A esco-
lha de imigrantes alemes para efetivar os
primeiros projetos coloniais criticada mais
tarde por muitos nacionalistas preocupa-
dos com a etnicidade germnica dos des-
cendentes no teve qualquer relao com
premissas raciais: eram europeus, havia um
fluxo imigratrio para os Estados Unidos e
um nmero significativo de alemes circu-
lava na corte brasileira, inclusive o princi-
pal agenciador at 1830, o Major G. A
Schffer, que pertencia ao Corpo de Guar-
das de D. Pedro I. Entretanto, h uma pre-
missa articulada a essa imigrao: a classi-
ficao do colono alemo como agricultor
eficiente, um critrio presente em toda le-
gislao imigratria vinculada coloniza-
o. Nas regras de admisso de estrangeiros
o imigrante ideal, o nico merecedor de sub-
sdios, o agricultor; mais do que isso, um
agricultor branco que emigra em famlia.
A primeira fase da colonizao encer-
rou-se em 1830, quando a oposio parla-
mentar aprovou uma lei que impedia gas-
tos com a imigrao o que, na prtica,
inviabilizou o agenciamento pois no exis-
tia um fluxo espontneo para o Brasil. O
ltimo ato colonizador do governo imperi-
al foi a fundao da colnia de So Pedro
de Alcntara (SC), em 1829 lugar que,
alm de imigrantes oriundos de Bremen,
recebeu um grupo de soldados alemes
egressos dos batalhes estrangeiros acan-
tonados no Rio de Janeiro, dispensados em
1828 (4). A retomada do processo imigrat-
rio demorou quinze anos: em 1845 reco-
meou a localizao de alemes no Vale do
Rio dos Sinos (Rio Grande do Sul), a partir
de So Leopoldo, em Santa Catarina (no
1 A maior parte do tratado refe-re-se s condies acordadascom o agenciador, Sebastien-Nicolas Gachet, para estabe-lecer imigrantes suos na Fa-zenda Morro Queimado, com-prada pelo governo portuguspara esta finalidade. Mas jnesse momento evidenciou-seum outro propsito associado imigrao: o recrutamentode soldados na Europa, prti-ca efetivada aps a indepen-dncia com a criao de bata-lhes estrangeiros. A ntegrado tratado com Gachet encon-tra-se no trabalho de Nicoulin(1981).
2 Desde o sculo XVI, a varia-o da cor da pele serviu paraassinalar as clivagens entrediferentes grupos humanos,muitas vezes articulada dis-tribuio geogrfica na confi-gurao dos cinco troncos prin-cipais. As primeiras tipologias,apoiadas na anatomia compa-rada, surgiram no incio dosculo XIX como a deBlumenau, que dividiu a huma-nidade em cinco grandes fa-mlias raciais caucsica,monglica, malaia, america-na e etipica. Aparentementeneutras, em nome do rigor ci-entfico, essas classificaesimplicavam uma hierarqui-zao em que os brancos es-to localizados no topo e osnegros na base.
3 Vrios problemas inviabili-zaram a colonizao de NovaFriburgo: o alto custo do agen-ciamento e da manuteno doncleo colonial, as altssimastaxas de mortalidade na via-gem e nos primeiros mesesaps a localizao, a m qua-lidade das terras, o isolamen-to (apesar da proximidade deCantagalo e suas grandes pro-priedades cafeeiras). Cf.Nicoulin, 1981. O empreen-dimento perdeu a maior partedos colonos suos (muitosretornaram) e s no desapa-receu porque aps a indepen-dncia foram para l encami-nhados imigrantes alemes.
4 Os batalhes estrangeiros fo-ram formados em 1823, prin-cipalmente com mercenriosalemes e irlandeses. Por v-rias razes incluindo castigosfsicos e precrias condies deaquartelamento ocorreu umarebelio dos soldados no Riode Janeiro, em 1828, que de-terminou a extino dessesbatalhes. Aos soldados ale-mes foi dada a opo de lo-calizao em lotes coloniais naprovncia de Santa Catarina o que explica sua presena emSo Pedro de Alcntra. VerHandelmann, 1931.
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Vale do Rio Cubato), nas terras altas do
Esprito Santo e do Rio de Janeiro (5). Hou-
ve um investimento claro na imigrao ale-
m expressado atravs da representao
diplomtica brasileira em Berlim, chefiada
pelo visconde de Abrantes, juntamente com
o debate sobre a necessidade de regulamen-
tar a posse e a propriedade da terra que,
afinal, resultou na lei 601 (Lei de Terras),
de 1850, um passo decisivo para incremen-
tar a colonizao (6). No entanto, esse apa-
rente privilegiamento dos alemes no o
fato mais significativo para discutir a ques-
to racial nesse perodo, porque, afinal, essa
imigrao tinha crticos dado o grau de
irredutibilidade tnica a eles atribuda. O
reincio da colonizao com base no agen-
ciamento de europeus (7) foi concomitante
com a proibio da escravido nas colnias
fato no ocorrido na primeira fase. Na
prtica, ao tomar essa iniciativa, os gover-
nos provinciais separaram ainda mais os
dois regimes de trabalho quando se avizi-
nhava a proibio do trfico de africanos
para o Brasil. A promulgao quase simul-
tnea da Lei de Terras e da Lei Euzbio de
Queirs marca ainda mais esse distancia-
mento a colonizao definitivamente vin-
culada ao trabalho livre. Apesar dessas evi-
dncias, a ausncia de negros e mestios na
maioria das reas coloniais foi atribuda ao
preconceito racial dos imigrantes e de dire-
tores de empresas colonizadoras, como
pode ser verificado em certos discursos
nacionalistas da dcada de 1930 e 1940 (8).
Na verdade, a imigrao europia est
naturalizada no debate sobre a colonizao
e nele, negros e mestios, livres ou escra-
vos, s eventualmente aparecem como ato-
res sociais descartveis sob um argumento
simplista o do indireto restabelecimento
do trfico (9). Essa figura de retrica tem o
propsito de desqualificar a imigrao de
africanos, em geral considerados inaptos
para o trabalho livre na condio de peque-
nos proprietrios rurais. No pensamento
imigrantista do sculo XIX a escravido
no percebida como um regime imoral ou
ilegtimo, mas simplesmente adjetivada por
seu carter arcaizante, um modelo econ-
mico retrgrado e impeditivo de imigrao
porque produz uma imagem negativa do
pas na Europa. Em resumo, a vigncia do
regime escravista faz da frica apenas um
lugar de negros brbaros e no de imigran-
tes potenciais. Nesse sentido, no precisa-
vam estar situados no debate sobre imigra-
o. O esforo classificatrio dirigiu-se para
a nomeao das virtudes e defeitos de cada
nacionalidade europia, em funo do in-
teresse maior: o imigrante agricultor. Eram
hierarquias de brancos pautados por habili-
dades agrcolas, nas quais o fator raa no
aparece como limitao, e que adentram o
sculo XX. Nas classificaes imperam os
atributos usualmente associados ao
campesinato, incluindo a adjetivao da
submisso: o bom colono deve ter amor ao
trabalho e famlia e respeito s autorida-
des, alm de ser sbrio, perseverante, mori-
gerado, resignado, habilidoso, etc. Alemes
e italianos so as nacionalidades mais fre-
qentemente situadas no topo da hierarquia
dos desejveis bons agricultores (10).
Os princpios da colonizao foram
estabelecidos na legislao imigratria,
tendo a modernidade como parmetro, e
nela no cabe a escravido. Para muitos
imigrantistas, o trfico era incompatvel
com a imigrao, mas no a escravido,
fadada, necessariamente, ao desapareci-
mento na configurao do pas moderno e
capitalista. Por outro lado, nem o mais ra-
dical dos abolicionistas brancos caso de
Joaquim Nabuco duvidava da inferiori-
dade de negros e mestios, sob influncia
do determinismo racial ento vigente nos
meios acadmicos europeus (11).
A colonizao, portanto, recomeou no
perodo de ampla discusso sobre as refor-
mas necessrias para transformar o Brasil
num pas de imigrao distanciada do
escravismo e, pelo menos at o incio da
dcada de 1870, associada ao agenciamento
de alemes. A excluso dos no-brancos
estava subjacente, dada a relativa ausncia
do elemento nacional nessa forma de ocu-
pao territorial. A escolha dos alemes,
porm, foi ditada pela imagem do agricul-
tor eficiente cultivada por uma parte da elite
imigrantista, embora recebesse crticas
contundentes de setores nacionalistas preo-
5 A incluso das provncias do Riode Janeiro e Esprito Santo mos-tra que o projeto colonizador erabastante abrangente, mas forada Regio Sul teve limitaes,deslocado para reas perifricase quase sempre montanhosas o que dificultou a expanso daatividade agrcola. NovaFriburgo e Petrpolis no rece-beram contingentes significativos(muitos colonos se retiraram) elogo se transformaram em cen-tros de veraneio para os abasta-dos da capital do Imprio.
6 A lei (regulamentada em 1854)passou o controle das terrasdevolutas para as provncias,definiu a concesso de terrasdevolutas exclusivamente porcompra o que, na prtica,permitiu a atuao de empre-sas particulares de colonizao, enfim, traou a poltica decolonizao atrelada imigra-o, embora seu alcance fossemuito mais amplo. Na verda-de, sua promulgao coincidecom um maior investimento noagenciamento de imigrantespara projetos coloniais.
7 At o incio da dcada de1880, o governo imperial con-tratou, por decreto, a vinda deimigrantes atravs de agencia-dores, que recebiam pagamen-to per capita. Nesses decretosesto indicados os pases (ouas nacionalidades) preferenci-ais de emigrao sempre eu-ropeus. Sobre o agenciamento,ver Seyferth, 2000a.
8 Essa interpretao, influenciadapela ideologia da miscigenaoe da ausncia de preconceitoracial no Brasil, particularmen-te evidenciada no discurso dosmilitares que participaram dacampanha de nacionalizaoem regies colonizadas por ale-mes como no Vale do Itaja,Santa Catarina. Ver, por exem-plo, o texto do tenente RuiAlencar Nogueira, publicadoem 1946.
9 Negros e mestios, categori-zados como brbaros, devi-am desempenhar apenas umpapel coadjuvante na coloni-zao (isso quando sua parti-cipao era cogitada) a elescabia desbravar a floresta,conforme se verifica em algunstextos anteriores abolio,caso do relatrio apresentadoao Ministrio da Agriculturapelo conselheiro Menezes eSouza em 1875.
10 Hierarquizaes dessa nature-za, subjetivadas por um mode-lo ideal de capacidade paraproduzir agricultura familiar,foram comuns at a dcada de1930. Cf. Seyferth, 1996.
11 Nabuco, por um lado, afirmouque a maldio da cor desa-pareceria com a abolio, mas,por outro lado, atribuiu ao cru-zamento entre brancos e negros
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cupados com a introduo em massa de
gente com lngua, cultura e religio muito
diferentes da realidade brasileira (12).
Referncias de natureza racial, portan-
to, esto ausentes da legislao maior, re-
pleta de regras sobre demarcao, venda e
legitimao de lotes coloniais, regulamen-
tao do agenciamento em pases europeus
e do funcionamento de rgos ministeriais
de controle do processo de localizao de
imigrantes, inclusive no mbito dos proje-
tos particulares, visto que a atuao das
empresas colonizadoras estava sujeita
fiscalizao.
Referenciada exclusivamente ao agen-
ciamento de imigrantes na Europa, em es-
pecial nos pases germnicos (conforme
indica a misso diplomtica especial do
visconde de Abrantes na Prssia) com a
questo racial dimensionada na definio
branca do colono ideal , prosseguiu a
ocupao de reas de floresta no Sul, forte-
mente incentivada pelo governo central
atravs do Ministrio da Agricultura ao qual
a imigrao estava subordinada. A partir
de 1846 e, sobretudo, aps a promulgao
da Lei de Terras, surgiram no Rio Grande
do Sul e Santa Catarina inmeras colnias
alems, fundadas por empresas particula-
res, pelos governos provinciais ou pelo
governo imperial etnicamente homog-
neas, pelo menos nos seus primrdios (13).
Existem referncias a pequenos contingen-
tes poloneses, noruegueses, suecos, suos,
irlandeses e franceses encaminhados para
algumas dessas regies (especialmente em
Santa Catarina). A intensificao do pro-
cesso ocorreu na dcada de 1870, quando
comeou a imigrao italiana na Serra
Gacha, e no sul de Santa Catarina (alm
de localizao junto s colnias alems no
Vale do Itaja).
Na sua grande maioria esses imigrantes
vieram para o Brasil recrutados por agen-
tes das empresas colonizadoras (14) ou
agentes nomeados pelo governo imperial,
num sistema de imigrao subsidiada em
grande parte pelo Estado (como se observa
na legislao sobre colonizao e nos de-
cretos de contratao dos servios dos agen-
ciadores e de autorizao das atividades das
empresas a partir da concesso de terras
pblicas).
Nos contratos firmados com agencia-
dores h cuidadosa especificao da nacio-
nalidade dos imigrantes pretendidos como
ocorreu no Decreto 5.663, de 1874, cele-
brado pelo governo imperial com Joaquim
Caetano Pinto Junior (15) , um indicativo
de que europeu no era exatamente uma
categoria exclusiva ou absoluta. Na
listagem, esto ausentes portugueses e es-
panhis mas, curiosamente, ela inclui
bascos e italianos do norte. difcil ponde-
rar sobre os critrios de incluso ou exclu-
so implcitos na lista (encabeada por ale-
mes e austracos) mas o privilegiamento
dos italianos do norte sugere alguma espe-
culao de natureza racial ou civilizatria
(possivelmente vinculada noo de
latinidade). Desde as primeiras teorias ra-
ciais que produziram o mito ariano, os po-
vos do Mediterrneo passaram a ser
categorizados como raa ou tipo atravs de
critrios morfolgicos s vezes imaginados
como desabonadores (ou indicadores de in-
ferioridade): pele brunide, cabelos negros,
estatura baixa, etc. Mesmo autores menos
comprometidos com o pressuposto da desi-
gualdade das raas humanas como Paul
Topinard bastante conhecido no Brasil por
sua condio de discpulo de Paul Broca
distinguiu, no seu manual LAnthropologie,
os tipos europeus louros dos tipos euro-
peus brunos (a includos os habitantes do
sul da Frana e da Itlia, alm de espanhis,
portugueses e gregos). s vezes usava-se,
simplesmente, a designao de povos do
meio-dia, que no jargo racista da segun-
da metade do sculo XIX era indicativo de
inferioridade por oposio aos arianos
(16). Essas teorias tiveram alguma influn-
cia no Brasil, s vezes escamoteadas numa
retrica ambgua, visvel, inclusive, em
trabalhos supostamente mais tcnicos que
expressam posies polticas, conforme se
verifica no texto de Menezes e Souza
(1875). Mas os imperativos da poltica de
colonizao no estiveram prioritariamente
atrelados aos determinismos mais minucio-
sos das doutrinas tipolgicas sobre raa.
O europeu genrico, portanto, continuou
o abastardamento da raamais adiantada (branca) pelamais atrasada (negra). E, paradesgraa do pas, os descen-dentes dessa populao (mes-tios) formam dois teros dapopulao do pas. Cf.Nabuco, 1977.
12 O conflito entre os arautos dacolonizao e os nacionalis-tas contrrios imigrao emgrande escala pode ser perce-bido no livro de um polticofluminense, Augusto de Carva-lho, escrito e publicado emPortugal em 1874.
13 O Vale do Jacu, no Rio Gran-de do Sul, foi a primeira re-gio ocupada por imigrantesalemes (desde So Leopoldo);em Santa Catarina, HermannBlumenau fundou a principalcolnia do Vale do Itaja, em1850 e, no ano seguinte, aSociedade Colonizadora deHamburgo iniciou a coloniza-o do nordeste da provncia,nas terras recebidas como dotepela irm do imperador PedroII na ocasio do seu casamen-to com o prncipe de Joinville.At o final do sculo XIX quaseduas centenas de projetos co-loniais foram iniciados por imi-grantes alemes no Rio Gran-de do Sul e Santa Catarina.Cf. Seyferth, 1999a.
14 Apesar da propaganda queenfatizou a possibilidade desubsdios, a facilidade da con-cesso de lotes coloniais (afi-nal, a propriedade da terrafazia parte da utopia campo-nesa) e o clima temperadodo Sul do Brasil, a maioria dosdiretores de empreendimentosparticulares referiu-se s dificul-dades de atrair imigrantes. Oexemplo mais significativodessa dificuldade diz respeito colnia Blumenau: a empre-sa de Hermann Blumenau faliuporque seu diretor no conse-guiu atrair compatriotas e acolnia passou para o contro-le do Estado em 1860, tornan-do-se, assim, um empreendi-mento oficial. Ainda em 1860,o governo imperial patrocinoua fundao de um ncleo colo-nial no Rio Itaja-Mirim (a cer-ca de 40 km de Blumenau),fato que evidencia o interessegovernamental na ocupaodo Vale do Itaja. Cf. Ferreirada Silva, s/d; Seyferth, 1974.
15 Sobre os critrios seletivos pre-sentes nesse contrato, ver:Seyferth, 2000a.
16 O manual de Topinard foi publi-cado na dcada de 1870 (sua3a edio de 1879), ocasioem que as tipologias raciais jeram numerosas no mbito daantropologia (fsica), muitasapregoando a desigualdade apartir de diferenas morfolgi-cas. Sobre os usos (e abusos) daidia de raa, ver: Poliakov(1974) e Banton (1979).
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sendo o alvo preferido da poltica imigra-
tria, e as determinaes seletivas passam
pela condio de agricultor ou arteso. O
Decreto 537, de 1850, que aprovou o con-
trato com a Sociedade Colonizadora de
Hamburgo (que representava os interesses
do Prncipe de Joinville), autorizando a
fundao da colnia de D. Francisca (Santa
Catarina), no pargrafo 1o do artigo nico
diz que os colonos s podem desembarcar
livremente se constar da bagagem os ins-
trumentos do seu ofcio sementes, ani-
mais e utenslios destinados ao trabalho
agrcola. O pargrafo 10o do mesmo decre-
to probe o emprego do brao escravo na
colnia.
No entanto, atravs da naturalizao da
ndole ou pendor agrcola, os colonos
alemes ficaram no topo da hierarquizao
por nacionalidade mesmo quando criti-
cados por sua irredutibilidade tnica. A
colonizao alem a que mais convm ao
Brasil: variaes dessa frase foram comuns
nos textos sobre colonizao aps 1845,
inclusive na Memria escrita pelo vis-
conde de Abrantes e publicada em 1846
quando procurava atrair imigrantes para o
Brasil com o beneplcito do governo prus-
siano, expressando opinies reformistas
sobre liberdade de culto, naturalizao,
escravido e propriedade da terra. A pre-
ferncia aparece tambm em escritos de
brasileiros que passaram por regies de
colonizao, caso do padre Joaquim Go-
mes dOliveira e Paiva, que elogia o pro-
gresso de So Leopoldo e So Pedro de
Alcntara (ambas colnias alems) contra-
pondo o fracasso de colnias francesas,
sardas e belgas (17). Igualmente publicada
em 1846, a Memria do padre Paiva
externaliza, ainda, o sentido civilizatrio
dado ocupao do territrio:
[] foroso concluir que no pequena
utilidade tem tirado a provncia de Santa
Catarina com o estabelecimento da colnia
de S. Pedro de Alcntara em seu territrio.
[] Os indgenas, que outrora infestavam
o continente a ponto de se aproximarem da
capital em distncia menor de cinco lguas,
hoje amedrontados pela vizinhana dos
colonos tem abandonado esses logares, de
modo que um s j no apparece na longa
estrada de 34 lguas, que communica a villa
de S. Jos com a de Lages. Hoje o viajante
caminha tranquillo, no teme a flexa do
Bugre; e o lavrador habitando solitario es-
ses sertes, goza das delicias do campo,
sem receiar os perigos do ermo.
[]
vista das vantagens que esta provncia
tem obtido com a colonia alem [] foro-
so confessar que a colonizao allem
a que unicamente pde utilisar ao Brazil.
[] os Alemmes so industriosos, since-
ros, e a constancia que os caracterisa no os
deixa desanimar vista do trabalho. So
estes os verdadeiros colonos de que o Bra-
sil precisa, e para cujo engajamento se deve
fazer os maiores sacrifcios (Paiva, 1846,
pp. 519-20).
A meno s incurses indgenas estan-
cadas pela presena colonizadora mostra o
lugar reservado aos nativos, designados por
um termo depreciativo (bugres) o desapa-
recimento. Com a intensificao dos assen-
tamentos, os remanescentes seriam im-
piedosamente caados pelos bugreiros,
categorizados como selvagens, anttese da
civilizao europia trazida pela coloni-
zao. Os prprios colonos formularam
representaes dessa natureza na constru-
o da sua identidade (cf. Seyferth, 2000b).
Por outro lado, ao privilegiar os alemes, o
Padre Paiva estava igualmente motivado
pelo relativo sucesso das duas principais
colnias fundadas antes de 1830 ambas
alems. De certa forma, os fracassos de
franceses, belgas e sardos na provncia de
Santa Catarina, associados a pressuposi-
es sobre o carter nacional dos imigran-
tes, ajudavam a conformar as classifica-
es sobre o colono ideal.
Alm disso, o discurso sobre a eficin-
cia germnica, entendida como qualidade
(biolgica) nacional, faz parte de relatrios
e escritos de propaganda produzidos por
alemes interessados na colonizao parti-
cular de terras pblicas que se desenhava
mais precisamente na discusso da poltica
imigratria na dcada de 1840. Um bom
17 Paiva remete a trs empreendi-mentos particulares de coloni-zao em Santa Catarina for-malizados no incio da dcadade 1840: a colnia Nova It-lia, que recebeu imigrantes daSardenha em 1836 iniciati-va do empresrio italiano CarloDemaria, radicado em Dester-ro; a colnia do Sa, formadapor falansterianos francesesaps autorizao dada pelogoverno imperial ao mdicohomeopata Benoit Joseph Mureem 1841; e a colnia belgade Ilhota, iniciativa do enge-nheiro Charles van Lede, entre1841-44, no baixo Vale doItaja. Os empreendimentos fra-cassaram devido s pssimascondies de localizao e sprecrias condies, denuncia-das nos pases de origem so-bretudo no caso dos belgas efranceses , o que dificultou oagenciamento de outros imi-grantes. Cf. Cabral, 1970;Piazza, 1994.
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exemplo o relatrio apresentado ao Baro
de Cairu por Luiz Frederico Kalkmann, em
1846, aps uma viagem s colnias meridio-
nais, com o objetivo de divulg-las na Ale-
manha. O relatrio apresenta alguns dados
acerca do desempenho agrcola em So
Leopoldo e So Pedro de Alcntara, aponta
problemas enfrentados pelos colonos (inclu-
sive de natureza religiosa) (18), referindo-
se, ainda, aos prejuzos decorrentes da guer-
ra civil, entre eles a absoluta limitao de
entradas de novos imigrantes at 1845.
escassez de imigrantes no Brasil contrape
1,2 milho de alemes que se dirigiram para
os Estados Unidos no mesmo perodo (1830-
45) argumento igualmente utilizado por
imigrantistas brasileiros.
Segundo Kalkmann, a pacincia, per-
severana prpria dos integrantes da na-
o alem, e a frugalidade e religiosidade
dos colonos ajudaram a superar as dificul-
dades e cultivar a terra brasileira com van-
tagens fato que viu demonstrado nos re-
sultados obtidos nas colnias j existen-
tes, dando bom exemplo aos vizinhos bra-
sileiros. No ano seguinte, 1847, juntamen-
te com Jlio Koeller, apresentou um Me-
morial ao imperador Pedro II com proposta
de constituio de uma companhia coloni-
zadora para trazer imigrantes da Alema-
nha, usando os mesmos argumentos encon-
trados em escritos brasileiros da mesma
poca. De acordo com o Memorial (19), a
iminncia do fim do trfico representa s-
ria ameaa lavoura, j comprometida por
um regime escravista cujo capital reverte
para a compra de escravos, sendo urgente
a substituio do brao cativo por braos
livres. O capital investido no trfico po-
deria ser usado positivamente, para cha-
mar a imigrao branca livre e industriosa,
que daria ao pas cidados exemplares, e ao
imperador sditos fiis. Sem qualquer re-
ferncia cor, os escravos so desqua-
lificados como trabalhadores estpidos,
brutos e precrios; a escravido e o que
se chama de falta absoluta de medidas
permanentes e dignas de confiana (isto
, uma legislao favorvel ao imigrante)
so apresentados como os verdadeiros im-
pedimentos ao progresso da imigrao.
O discurso dos estrangeiros interessa-
dos na colonizao, portanto, o mesmo
dos representantes mais notveis do imi-
grantismo brasileiro (20) que, junto com a
escravido, desqualificam a populao ne-
gra e mestia do pas, na adjetivao estig-
matizante do trabalho escravo. Pode ser
observada certa diversidade na preferncia
por uma ou outra nacionalidade europia e
eventuais aluses populao indgena e
s possibilidades de civilizao do povo
liberto (principalmente quando o assunto
a emancipao dos escravos), atenuando-
se a irredutibilidade da inferiorizao dos
trabalhadores nacionais a partir da estig-
matizao absoluta das correntes imigra-
trias indesejveis. Assim, mesmo autores
aparentemente propensos ao aproveitamen-
to da mo-de-obra nacional no se afastam
da vinculao entre colonizao e imigra-
o. Nesse sentido, a proposta para organi-
zao de um Conselho de Imigrao apre-
sentada ao Ministrio da Agricultura, Co-
mrcio e Obras Pblicas, em 1868, por
Joaquim Maria de Almeida Portugal con-
tm uma inusitada crtica imigrao de
coolies associada catequese dos ndios,
que antecede a concluso do autor em prol
da imigrao oriunda das Ilhas Britnicas.
Aps mencionar a posio crtica da
imprensa estrangeira sobre a emancipa-
o da escravatura, o problema a discutir
deve se fixar no povo que melhor pde
convir, e como sobre esse assumpto ulti-
mamente appareceu um folheto com o ttu-
lo de A crise da Lavoura, apresentando os
Coolies como a immigrao a mais fcil, a
mais conveniente e a mais profcua, eu di-
rei que, considerando a corrente da Immi-
grao espontanea como o termo emergente
de todos os nossos esforos, e no tendo at
hoje a raa asitia apresentado a menor
tendncia ou symptoma de seu desenvolvi-
mento, por qualquer forma que seja, no
sei como possmos admitir a possibilidade
de entreter uma immigrao cuja inefficacia
neste ponto fica provada nas prprias pa-
lavras do escripto, A crise da Lavoura.
Se tivessemos procurado colonizar essa
centena de milhares de nossos conterraneos
18 O autor comentou os conflitosentre catlicos e protestantes(algo bastante comum duranteo Imprio em razo do podertemporal da igreja catlica) eacentuou os desentendimentosentre colonos e administrado-res (brasileiros), alm dos pro-blemas relacionados s condi-es precrias de localizao.O Relatrio foi publicado naRevista de Imigrao e Coloni-zao (ano IV, no 2, 1940,pp. 236-43). importanteobservar que, nesse documen-to, esto evidenciadas as si-tuaes de crise que se torna-riam mais comuns nas reascoloniais aps 1850 dandomargem a representaes bas-tante distanciadas do colonoideal. Cf. Seyferth, 1999b.
19 O Memorial de Kalkmann eKoeller foi publicado na Revis-ta de Imigrao e Coloniza-o (ano IV, no 2, 1940, pp.244-52). O Memorial exem-plifica o interesse de estrangei-ros na formao de empresasparticulares para obter conces-ses de terras devolutas com afinalidade de coloniz-las comimigrantes europeus, desdeque essa possibilidade surgiuna legislao (inclusive provin-cial) a partir de 1845.
20 No texto de Kalkmann figuramoutros temas comuns na discus-so da questo imigratria,como a crtica ao poder tempo-ral da igreja catlica (com oconseqente discurso sobre li-berdade religiosa), permann-cia do trfico de africanos e doprprio regime escravista, e sdificuldades da naturalizao.
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que vivem no barbarismo, inteis socie-
dade, alheios civilizao e ao Christia-
nismo, por certo que a Immigrao dos
Coolies poderia aproveitar, plantada ou
distribuda por entre essas colonias, por elles
povoadas; mas, nas circumstancias em que
nos achamos, ella smente viria entorpecer
ou retardar esse desenvolvimento que o Paiz
precisa, e que nasce e se desenvolve com a
concorrncia de braos laboriosos, e con-
venientemente educados. Para aproveitar-
mos os Coolies devemos aspirar que maior
auxlio se preste ao assumpto da cathechese.
[]
Attendendo pois a estas circunstncias,
evidente que a Immigrao dos Coolies no
nos pode convir (21).
A redao, ambgua quanto a seus pres-
supostos raciais, no representa, simples-
mente, mais uma opinio contrria imi-
grao chinesa (objeto de grande polmica
no perodo que antecedeu a abolio da
escravido (22)). O autor vai alm disso,
considerando a catequese dos ndios um
processo civilizatrio de menor custo, exi-
gindo menos cuidados e com maior provei-
to para o pas do que qualquer investimento
na vinda de chineses.
ndios conterrneos e chins, portan-
to, aparecem nesse discurso na condio de
raas semelhantes; e a catequese, como
parte substantiva da civilizao, apresen-
ta-se mais facilmente aplicvel s tribos
indgenas que j esto dentro do territrio
nacional, algumas aldeadas pela perseve-
rana apostlica dos missionrios. Essa
imagem refora a dupla desqualificao dos
chineses (e, por tabela, tambm a dos n-
dios), atravs da pretensa inferioridade ra-
cial e do distanciamento cultural externado
atravs de um problema de natureza religi-
osa (a possvel dificuldade com a cateque-
se). Finalmente, apelando pra exemplos de
outros pases que se valeram do trabalho
dos coolies (como Cuba e Peru), afirma-se,
com certa nfase, que a raa chim-india-
na s pode ser considerada mais industrio-
sa quando comparada s raas africanas.
No h uma hierarquizao racial explci-
ta, mas a forma retrica adotada, aparente-
mente referida ao trabalho, exclui os afri-
canos do contexto imigratrio. Podia haver
alguma dvida quanto eficincia dos
coolies, apesar dos pressupostos da inferio-
ridade contidos na configurao do povo
chins atravs de estigmas associados a
falhas do carter vinculadas idia de raa:
preguia, tendncia ao roubo, desrespeito
sistemtico s leis e tribunais, etc. (23).
Alm disso, est presente o princpio de
excluso pela filiao religiosa enunciado
nas referncias catequizao:
[] pode esta immigrao (chinesa)
porventura convir-nos tal e qual correm as
cousas no nosso Paiz? Certamente no.
Mais tarde, poder talvez ella servir-nos;
mas isso s quando a catechese estiver mais
desenvolvida, e a Immigrao Europia es-
tabelecida espontaneamente (24).
A inquietude com a situao do pas
expressa a dificuldade de atrair a imigra-
o espontnea de europeus e, principal-
mente, a falta de mobilizao do poder p-
blico para a questo indgena e algumas
posies favorveis vinda dos coolies,
claramente influenciadas pela presuno da
inferioridade dos asiticos, includos no
mesmo tipo racial dos ndios. Insinua-se,
a, a imagem negativa de um aumento da
populao a ser civilizada maneira oci-
dental-crist, tornando a serventia futura
dos chineses uma dissimulao apensa
maior regularidade de entrada de gente da
Europa. Da o exerccio de convencimento
para o governo brasileiro se empenhar no
agenciamento de imigrantes no Reino Uni-
do, especialmente na Irlanda e na Esccia
corajosos, de natureza forte e robus-
ta, ativos, empreendedores, dados la-
voura e industriosos, facilmente sujeitos
aos regimens coloniais. Antes de deline-
ar a proposta de regulamento do Conselho
de Imigrao, definido como o centro de
todo movimento e fiscalizao do servio
de imigrao, colonizao e catequese,
expe a preferncia pelos sditos do rei da
Inglaterra que estavam emigrando para os
Estados Unidos. Observa-se no texto de
Joaquim Maria de Almeida Portugal a
21 Transcrito da proposta para aorganizao de um Conselhode Imigrao, apresentada porJoaquim M. de Almeida Portu-gal (1868), publicada na se-o Documentos Histricosda Revista de Imigrao eColonizao (ano V, no 1,1941, pp. 112-3).
22 Havia propostas para trazercoolies, atendendo deman-da de mo-de-obra nas fazen-das de caf. No foram cogi-tados para participar dos pro-jetos de colonizao com pe-quena propriedade familiar; emesmo os que estavam de acor-do com a vinda de chinesesqueriam uma imigrao tempo-rria. Na verdade, os chins oucoolies (termos mais freqente-mente usados para designar oschineses) eram consideradosraa bastarda, e o perigoamarelo, tantas vezes mencio-nado no discurso imigrantista,era associado s possveis con-seqncias sobre o processo deformao do povo pela misci-genao. Cf. Azevedo, 1987;Seyferth, 1991.
23 A lista das falhas da raa bem maior em outros textos damesma poca, mais propensosaos determinismos biolgicos:espantosa anomalia que trazconsigo o vrus da imoralida-de, conforme Menezes e Sou-za (1875).
24 A negativa baseia-se em mat-ria do New York Times sobre asituao de trabalho dos cooliesem Cuba, obrigada a recorrera esse systema de escravido,em conseqncia da cessaodo trfico de africanos. Essa uma das poucas menes aoregime escravista, usada paradesqualificar os chineses. Cf.Revista de Imigrao e Coloni-zao (ano V, no 1, 1941, p.114).
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mesma diligncia reformista e os mesmos
argumentos usados vinte anos antes pelo
visconde de Abrantes para justificar a op-
o pela imigrao alem. O horizonte de
ambos no a grande propriedade escra-
vista e, conseqentemente, a questo da
substituio do trabalho escravo diante do
fim do trfico, mas o modelo colonizador
de ocupao territorial num formato prxi-
mo ao que estava ocorrendo nos Estados
Unidos e na Austrlia. Nesse contexto, o
colono no percebido apenas na sua con-
dio de trabalhador rural, mas visualizado
como um pequeno produtor e portador de
civilizao. Escravos, ex-escravos, negros,
mulatos, enfim, as camadas inferiores (li-
teralmente) da sociedade estavam automa-
ticamente excludas, inclusive no debate
sobre imigrao preferencial. Recorrer a
trabalhadores africanos equivalia para essa
elite ao restabelecimento do trfico, com
aumento da africanizao da sociedade e
da cultura; no podiam receber a catego-
rizao de imigrantes.
A mesma forma de excluso encontra-
se no discurso de alguns abolicionistas
caso de Joaquim Nabuco, que ressaltou o
papel do negro escravo no desbravamento
do territrio e na formao econmica, mas,
com retrica nada ingnua, observou que,
no Brasil, dado o formato da africanizao
associada escravido, o caos tnico foi o
mais gigantesco possvel (Nabuco, 1977,
p. 159), observao atrelada, por um lado,
crtica ao regime escravista (causa de todos
os males do crescimento do pas) e, por
outro, convico da inferioridade da raa
negra (de instintos brbaros, desenvolvi-
mento mental atrasado e supersticiosa). A
imigrao europia, metaforizada como
Os Emigrantes,
leo de
Daumier
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REVISTA USP, So Paulo, n.53, p. 117-149, maro/maio 2002126
corrente de sangue caucsico vivaz, enr-
gico e sadio, a soluo para a formao
do Brasil ps-abolio o que leva Nabuco
a descartar, por impropriedade, a onda
chinesa com que a grande propriedade as-
pira viciar e corromper ainda mais a nossa
raa (Nabuco, 1977, p. 202).
A legislao, de certa forma, tambm
possui suas ambigidades: nas leis maio-
res raramente existem referncias raciais,
mas elas esto subsumidas no substantivo
imigrao, cujo significado genrico reme-
te a europeu. De qualquer modo, as indica-
es mais diretas do privilegiamento dos
imigrantes europeus (ou brancos) so en-
contradas, sobretudo, nas autorizaes para
formao de empresas colonizadoras e nos
contratos com agenciadores. O privilegia-
mento da Europa, imaginado celeiro de
imigrantes no Imprio e na Repblica, no
significou uma abertura irrestrita a essa
imigrao: na legislao so especificados
os indesejveis (incluindo os brancos)
desordeiros, criminosos, mendigos, vaga-
bundos, portadores de doenas contagio-
sas, profissionais ilcitos, dementes, inv-
lidos, velhos, etc., constantes, por exem-
plo, do Decreto 9.081, de 1911, que regu-
lamentou o Servio de Povoamento (e nos
decretos que o antecederam). Ciganos,
ativistas polticos, aptridas, refugiados
tambm figuraram em muitas listagens de
indesejveis (especialmente depois da Pri-
meira Guerra Mundial). Restries expli-
citamente racistas, porm, foram menos
comuns, aparecendo de forma clara no
Decreto 528, de 1890, que dificultou a en-
trada de indgenas da sia ou da frica,
dispositivo que desapareceu na nova regu-
lamentao da imigrao, constante do
decreto que criou a Diretoria Geral de Po-
voamento em 1907, pouco antes de iniciar-
se a imigrao japonesa.
Os princpios de colonizao europia
vigentes no Imprio pouco mudaram de-
pois da abolio, apesar da crtica republi-
cana concentrao de europeus no Sul
vista como pecado mortal da poltica
imigratria brasileira. O binmio imigra-
o-colonizao persiste na legislao re-
publicana; mas, nos discursos sobre imi-
grao desde a dcada de 1890, entram em
cena, de forma exasperada, os debates so-
bre o tipo nacional (algo diretamente liga-
do noo morfolgica de raa) e a ques-
to da assimilao associada formao
nacional.
MESTIAGEM, POLTICA
IMIGRATRIA E PRESSUPOSTOS
DA LATINIDADE
Apesar da maior abrangncia pretendi-
da para a colonizao com pequena proprie-
dade, evidenciada pela fundao de algu-
mas colnias no Rio de Janeiro, So Paulo,
Esprito Santo e Minas Gerais, foram as
provncias do Sul que, desde a dcada de
1840 (25), investiram na vinda de imigran-
tes, apoiadas pelo governo imperial. As
motivaes econmicas e a apregoada ne-
cessidade da ocupao do territrio preva-
leceram nas determinaes colonizadoras,
mas a intensificao do processo imigrat-
rio suscitou o debate sobre a assimilao
dos dvenas, essencialidade do nacionalis-
mo confrontada, especialmente, com a
imigrao alem. Trs fatores ajudaram a
engrossar os argumentos assimilacionistas
contrrios presena germnica no Sul: a
primazia nas estatsticas da colonizao at
meados da dcada de 1870, a concentrao
em colnias relativamente homogneas
localizadas no Rio Grande do Sul e Santa
Catarina, as propostas para incrementar a
imigrao apresentadas por alemes, bem
como os textos de propaganda produzidos
por administradores ligados a empresas
colonizadoras (editados na Alemanha).
Os dados referentes s entradas de imi-
grantes durante o Imprio apontam para a
maior relevncia numrica dos portugue-
ses (26), e aps 1875 os alemes foram
amplamente superados pelos italianos.
Entretanto, os ncleos coloniais com pre-
dominncia de colonos de origem alem,
at porque eram mais antigos, ganharam
notoriedade nacional e internacional, apre-
25 Atravs do Ato Adicional de12/8/1834, a colonizaoestrangeira passou para a com-petncia das provncias apre-sentada como solues parao problema imigratrio. A Leide Terras de 1850 manteveessa descentralizao.
26 Sobre a distribuio dos fluxosimigratrios para o Brasil at adcada de 1950, ver: DiguesJunior, 1964.
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sentados com o brilho do progresso em
textos brasileiros bilnges veiculados nas
exposies internacionais (como em Vie-
na, 1873, e Filadlfia, 1876). Essa notorie-
dade visava incrementar a imigrao, mas
deixou em evidncia a diversidade cultural
dos lugares povoados por colonos extre-
mamente distanciados do ideal brasileiro
de nao e dos quais se exigia a assimila-
o. Por essa razo, os projetos que visa-
vam ao aumento da colonizao alem,
apresentados ao governo imperial, recebe-
ram crticas porque falavam em imigrao
em massa, sugerindo reformas nem sem-
pre aceitveis para certos setores do naci-
onalismo caso da liberdade religiosa. A
proposta de colonizao de Kalkmann e
Koeller, j citada, um bom exemplo, as-
sim como o plano de Oscar von Kroppf,
includo na correspondncia entre a Lega-
o Imperial do Brasil nos Estados Unidos
e a Secretaria de Negcios Estrangeiros do
Imprio relativa ao ano de 1866. Kroppf
viveu no Brasil entre 1851 e 1854, passan-
do por diversos ncleos coloniais; no tex-
to, emite opinio sobre a importncia da
imigrao em massa para o desenvolvimen-
to do Brasil, sugerindo esforos para atrair
gente da Alemanha. Segundo seu racioc-
nio, na Europa s existe emigrao em gran-
de escala das ilhas britnicas (irlandeses e
ingleses) e dos pases germnicos; como os
britnicos se dirigem prioritariamente para
as possesses coloniais ou para os Estados
Unidos, a imigrao para o Brasil s pode
vir da Alemanha, que no tem colnias.
Para atra-los (desvi-los da Amrica do
Norte) sugere, como indispensvel, a igual-
dade de direitos civis e de religio; e vai
alm, afirmando que a imigrao no deve
ser atrelada substituio do brao escravo
nas grandes propriedades, dada a impossi-
bilidade de convivncia da escravido com
o trabalho livre (27), justificada pela su-
posta incompatibilidade social entre bran-
cos e negros. Tal incompatibilidade apre-
sentada em termos de um grande distancia-
mento intelectual, mais visvel quando
ambas as raas so obrigadas a viver e tra-
balhar em comum. No h referncias tipo-
lgicas, de base morfolgica, na distino
entre brancos e negros, mas a suposio da
inferioridade dos negros levou proposi-
o de concentrar isto , separar os
imigrantes no regime de colonizao, res-
tando aos grandes proprietrios de terras
procurar gente de cor para o trabalho servil
ou dividir suas propriedades em lotes da-
dos exclusivamente para trabalhadores
brancos (28). Essa maneira de pensar a
questo imigratria no apresenta grandes
divergncias em relao aos brasileiros
influenciados pelo modelo colonizador
norte-americano. Mas a perspectiva do iso-
lamento dos alemes em colnias homog-
neas, com liberdade religiosa para os pro-
testantes, enunciada, inclusive, por algu-
mas lideranas emergentes nos meios teuto-
brasileiros, resultou numa reao naciona-
lista de setores contrrios imigrao ale-
m e preocupados com a formao catlica
e latina do pas.
Vrios alemes radicados no Sul do
Brasil escreveram textos de propaganda
(principalmente folhetos e livros sobre as
colnias) para atrair compatriotas para pro-
jetos coloniais. Os textos falam do progres-
so dos ncleos j existentes, das possibili-
dades de acesso terra e do instrues
consideradas teis para potenciais emi-
grantes. Destacam-se as publicaes de
Karl von Koseritz (alemo naturalizado
brasileiro, jornalista e o mais importante
poltico teuto-brasileiro do Rio Grande do
Sul durante o Imprio), de Hermann Blu-
menau (o fundador da principal colnia do
Vale do Itaja, em 1850) e Ottokar Doerffel
(o fundador do mais antigo e influente jor-
nal teuto-brasileiro, o Kolonie Zeitung, de
Joinville) (29). Embora o efeito desse tipo
de propaganda tenha sido pouco significa-
tivo, e apesar de os textos apresentarem uma
espcie de viso do paraso, com avaliao
positiva especialmente das provncias me-
ridionais, a pretenso de ampliar o fluxo
germnico para uma regio especfica do
territrio nacional foi interpretada como ato
imperialista e um risco para a unidade na-
cional, dando origem expresso perigo
alemo.
Pode-se dizer que esses escritos produ-
zidos por alemes, fossem eles propostas
27 A utilizao da mo-de-obraimigrante em fazendas de caf,no regime de parceria, iniciou-se com a experincia do sena-dor Vergueiro em sua fazendade Ibiacaba (SP), na dcadade 1840; as pssimas condi-es de trabalho e os contra-tos desfavorveis resultaram emuma revolta dos colonos, de-pois relatada em livro publica-do na Europa por ThomasDavatz, um dos participantes,em 1859 (cf. Davatz, 1941).O livro teve repercusso na Ale-manha, servindo propagan-da contra a imigrao para oBrasil. Por outro lado, a Prssia,mais ou menos na mesma po-ca, criou empecilhos vindados seus cidados depoisrevogados apenas para asprovncias do Sul. Esses fatospossivelmente influenciaram aspropostas de colonizao dotipo apresentado por Kroppf.
28 A correspondncia de JoaquimMaria N. Azambuja (da Lega-o Brasileira nos EstadosUnidos), incluindo o plano deOscar von Kroppf, foi publica-da na Revista de Imigrao eColonizao (ano I, no 2,1940).
29 A literatura laudatria sobre ascolnias numerosa e nelatambm se inscrevem os textosde propaganda, que existiramdurante quase todo o proces-so imigratrio. Cf. Seyferth,1988.
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relacionadas instalao de colnias ou
textos de propaganda, ajudaram a reforar
o discurso assimilacionista desde meados
do sculo XIX, e nele estava implcito uma
crtica ao princpio da colonizao patroci-
nada pelo Estado, que permitia a localiza-
o compacta de estrangeiros afastados do
convvio com a sociedade nacional. Embo-
ra nem sempre aparente, esse discurso vin-
cula-se questo racial.
A poltica de colonizao privilegiou a
localizao de europeus, sendo conjuntural
a primazia dos suos e alemes na primei-
ra fase do processo de implantao de co-
lnias; e a distintividade estava baseada na
qualificao de agricultor. Ningum pare-
cia duvidar da capacidade de trabalho dos
alemes (elemento que, depois, seria usa-
do como componente da identidade teuto-
brasileira), e havia certa unanimidade quan-
to suposio de inferioridade racial dos
africanos (evidenciada no debate sobre o
fim do trfico e da abolio) e asiticos
grupos sistematicamente desqualificados
para imigrao. A imigrao alem come-
ou a ser considerada inconveniente ao pas
quando comearam os conflitos princi-
palmente aqueles motivados por razes
religiosas ou tnicas e ficaram evidentes
as distintividades atribudas a pertenci-
mento nacional. O historiador Heinrich
Handelmann, defendendo o germanismo
dos colonos, mencionou desavenas tni-
cas entre colonos e brasileiros em Petrpolis
(RJ), envolvendo, inclusive, um padre ale-
mo. A proximidade da corte deu certa
notoriedade a essas crises, em parte moti-
vadas pelas identidades nacionais envolvi-
das, em parte devido filiao religiosa da
maior parte dos colonos (que pertenciam
religio evanglica luterana) (30). Segun-
do Handelmann (1931) as autoridades bra-
sileiras deveriam respeitar os valores cul-
turais dos colonos se desejassem prosse-
guir com a imigrao alem.
No Sul, na mesma poca (final da dca-
da de 1850), surgiram as primeiras mani-
festaes escritas da etnicidade teuto-bra-
sileira que conduziram ao incensamento do
germanismo (Deutschtum). A retrica
germanista, tambm presente nos textos de
propaganda j mencionados, e nos inme-
ros relatos histrico-descritivos sobre as
colnias, alimentou mais o discurso
assimilacionista do que as diferenas cul-
turais, observveis nas comunidades, pois
foi inmeras vezes recriada na imprensa e
na literatura teuto-brasileira at o Estado
Novo. Os primeiros jornais em lngua ale-
m surgiram em Porto Alegre e no Rio de
Janeiro, em 1852 e 1853; logo depois, cons-
tituiu-se uma imprensa relativamente in-
fluente nas colnias mais importantes.
A matria da primeira pgina do nme-
ro piloto do jornal Kolonie Zeitung, criado
por Ottokar Doerffel na ento colnia D.
Francisca (SC) em dezembro de 1862,
exemplifica a etnicidade incmoda. A situa-
o de minoria nacional, com a conseqen-
te perda de identidade, e a necessidade de
construir outra no contexto colonial, vin-
culada noo de ptria, sempre cara aos
nacionalismos, esto bem delineadas no
editorial. Entre outras coisas, diz Doerffel:
Ptria![]
A verdadeira ptria, com as suaves recor-
daes de nossa juventude, com tudo aqui-
lo que se nos tornou caro pela educao e
pelo hbito do dia-a-dia ns a deixamos
longe [] E a nova terra, na qual constru-
mos o nosso lar e qual ligamos toda a
nossa existncia? Esta nova terra ainda no
se tornou ptria para ns. Ela parece ainda
no querer nos aceitar como seus filhos e
quanto mais profunda a afetividade com
que a ela nos tentamos ligar, mais nos sen-
timos estranhamente repelidos [] Real-
mente embaraosa e desalentadora situa-
o a nossa, quando feito aptridas no
sabemos, por assim dizer, a quem perten-
cemos!
Mas no, caros leitores! Exatamente esta
nossa situao poder se tornar bastante
feliz, se ns mesmos no falharmos. Com
vontade firme e perseverana conseguire-
mos reatar as relaes com a velha ptria,
[] torn-las cada vez mais vivas e assim
ampliar, por assim dizer, a velha ptria at
ns no no espao, decerto, mas espiritu-
almente. Atuando contnua e persistente-
mente, de acordo com a nossa ndole e o
30 Conflitos desse tipo ocorreramem vrias regies, principal-mente onde havia populaomajoritariamente protestante,como em Blumenau. Ali o go-verno provincial manteveHermann Blumenau na direoda colnia, mas sua adminis-trao foi marcada pela tensocom o proco catlico direta-mente nomeado pelo Papa da as constantes reivindicaessobre liberdade religiosa duran-te o Imprio. A presena deimigrantes no-catlicos eraconsiderada um problema deassimilao, embora a maio-ria dos imigrantistas exigisse ofim do poder temporal da Igre-ja Catlica.
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nosso esprito germnico, haveremos de
conseguir tambm o respeito e o afeto da
nova ptria [].
A fundao deste jornal se deve, primordi-
almente, ao desejo de contribuirmos para
que todos os imigrantes alemes que esco-
lheram o Brasil meridional e, principalmen-
te, a provncia de Santa Catarina para se
estabelecerem, aqui encontrem, realmen-
te, uma nova ptria, sem que isso implique
na perda de sua antiga ptria (31).
Aqui, a construo de uma nova identi-
dade est atrelada a dois pertencimentos
ptrios algo absolutamente estranho
para um nacionalismo assimilacionista
com destaque para a ndole e o esprito
germnico (prprios da percepo do jus
sanguinis). Essa identidade, que logo as
lideranas coloniais denominaram teuto-
brasileira, surgiu para marcar as distintivi-
dades tnicas da populao de origem
germnica num contexto social em que a
maior parte dela no tinha direitos de cida-
dania, sujeita administrao colonial, o
que explica o formato retrico da matria
acima citada. Deixando de lado a formao
da etnicidade teuto-brasileira, deve-se ob-
servar que o distanciamento cultural (mar-
cado pela continuidade do uso cotidiano da
lngua alem e pela presena protestante) e
a ideologia germanista, depois codificada
na imprensa pelo termo Deutschtum, deram
motivao ao discurso assimilacionista e
conseqente desqualificao da imigrao
alem. Isso remete a um desvio na concep-
o do imigrante ideal no final do sculo
XIX, definido como aquele que melhor se
deixa assimilar. Nos idos de 1850 ou 1860,
assimilar significava uma adequao do
estrangeiro formao latina e catlica do
pas, mantendo-se, por certo, a opo prefe-
rencial pelos brancos, agora, da Pennsula
Ibrica e da Itlia (32). Protestantes e naes
avessas assimilao passaram condio
de indesejveis, especialmente quando o
conceito incorporou uma dimenso racial,
qual seja, um ideal especfico de miscigena-
o associado imigrao branca.
O relativo isolamento dos colonos es-
trangeiros no parecia preocupar os defen-
sores do modelo de colonizao das terras
pblicas ligados ao Ministrio da Agricul-
tura do Imprio caso do conselheiro Joo
Cardoso de Menezes e Souza que, numa
listagem das naes europias que podiam
fornecer emigrantes mais aptos e em mai-
or cpia, no atribuiu grande importncia
ao problema da assimilao, ou mesmo
miscigenao. O autor at comete um equ-
voco comum na poca, confundindo nao
e raa (usados em sinonmia); mas sua de-
finio do melhor imigrante passa pela
imagtica da capacidade produtiva e das
qualidades morais. Elege os alemes como
os mais convenientes, apelando para seu
sucesso nos Estados Unidos e em colnias
de Santa Catarina e Rio Grande do Sul,
apesar de reconhecer que, por seu car-
ter, a fuso com os ramos da raa latina
muito lenta (Menezes e Souza, 1875, pp.
403-5). Portanto, no incomodava ao con-
selheiro aquilo que chamou de estabeleci-
mento por aglomerao prprio dos colo-
nos alemes povo de mais rectos e pro-
videntes instinctos em relao ao estabele-
cimento nos paizes para onde emigra
(Menezes e Souza, 1875, p. 399). O tema
da miscigenao, porm, aparece com cer-
ta virulncia na desqualificao dos coolies
e chins isto , na recusa imigrao asi-
tica em nome da suposta degenerao mo-
ral e fsica que poderia resultar do cruza-
mento racial com a populao brasileira.
As formas de excluso incluem determi-
nantes raciais, especialmente quando a
desqualificao assume o impondervel
biolgico da desigualdade.
A aglomerao de pessoas da mesma
origem nacional no Sul do pas tornou-se
fator de crtica ao modelo colonizador do
Imprio quando a formao racial do Bra-
sil passou a ser mais diretamente acordada
poltica imigratria, presentes os mesmos
princpios de excluso de asiticos e afri-
canos. Princpios que comearam a ser fi-
xados no pensamento social brasileiro no
mbito da discusso sobre o trfico e a
abolio o fim da escravido considerado
imprescindvel para impulsionar a civili-
zao do pas atravs da introduo de
imigrantes. Nesse contexto, um autor como
31 Kolonie Zei tung, J .1,Probenummer, 20/12/1862,p. 1. Conforme traduo deElly Herkendorf (Arquivo Hist-rico de Joinville).
32 Os termos do debate na versoimigrantista que situou os inte-resses da colonizao comimigrantes europeus acima donativismo e sua preocupaocom uma improvvel ocupaogermnica no Sul do Brasil podem ser observados no livrode Augusto de Carvalho. Nostermos desse autor, o estran-geiro, inteligente e activo, quetrabalha e edifica no paiz, mais brasileiro do que o nacio-nal, que, vivendo na indoln-cia, nada faz, quer moral, quermaterialmente, para o engran-decimento da ptria (Carva-lho, 1874, p. 210).
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Perdigo Malheiro, que escreveu uma obra
legalista sobre a escravido no Brasil, pu-
blicada em 1866-67, j usava um conceito
de raa, talvez de concepo mais genea-
lgica e vinculada idia de nao, para
expressar a desigualdade dos no-brancos,
sem maiores referncias a critrios de na-
tureza biolgica ou fenotpica (apesar do
uso das categorias designativas da cor da
pele). Para ele, a necessidade de braos (in-
clusive para a colonizao), num sentido
civilizatrio, deve ser suprida por gente
livre, mas no por negros ou chineses:
Houve j quem se lembrasse da introdu-
o de negros livres (33). Basta, porm, o
elemento que existe entre ns; fiquem eles
na frica, que bem precisa, e tal parece ter
sido o seu destino. Falou-se em coolies
(caulis) ou ndios da sia; porm ndios
tambm temos ns [].
outra a raa que devemos preferir. Con-
vm insistir na imigrao da raa Europia
(Malheiro, 1976, pp. 140-1).
Raa alem, raa europia, enfim,
brancos, no importa o modo de design-
los, eram categoricamente definidos pela
utilidade e pelas necessidades civili-
zatrias, sem suscitar quaisquer inquieta-
es sobre a formao nacional ou proces-
sos assimilacionistas.
Nas vsperas da Abolio, contudo,
emerge a questo da mestiagem, influen-
ciada por diversos racismos europeus com
prestgio do cientificismo, investigada por
alguns prceres do pensamento social, so-
bretudo quando o assunto o modelo de
colonizao imperial e, nele, a preferncia
pela imigrao alem. Na perspectiva et-
nolgica de Silvio Romero delineada a
partir de 1880 e enfaticamente reafirmada
em 1888 (Histria da Literatura Brasilei-
ra), 1902 (O Elemento Portugus no Bra-
sil) e 1905 (O Allemanismo no Sul do Bra-
sil) alis, dominante nas primeiras dca-
das da Repblica, a histria do Brasil uma
histria de mestiagem, explicada pelos
cruzamentos de trs traas, duas das quais
classificadas por critrios de inferioridade
biolgica e cultural (negros e ndios). Sob
esse prisma imagina, a longo prazo, uma
ao seletiva agindo na sociedade, cujo
efeito seria a depurao gradativa dos
mestios fazendo prevalecer as caracters-
ticas da raa branca. Trata-se da tese do
branqueamento racial, calcada na idia da
formao tnica e histrica dos povos me-
diterrneos (eles prprios plasmados pela
mestiagem). Romero ressalta a colabora-
o dos negros e ndios na formao do
pas e destaca o peso da cultura e do carter
lusitano, bem como seu pendor para o
cruzamento produtor dos mestios de
todos os graus que formam a grande maio-
ria da populao brasileira. Para o autor,
a populao mestia, majoritria,
[] tem amalgamado os elementos que a
formaram e tende a fundi-los cada vez mais
intensamente. Com a extino do trfico
de africanos, o gradual desaparecimento dos
ndios e a constante entrada de europeus,
poder a vir predominar no futuro, ao que
se pode supor, a feio branca em nosso
mestiamento fundamental inegvel (Ro-
mero, 1949, I, p. 282).
A est a expresso mais acabada das
condies de formao do povo: a mesti-
agem pensada como verdade antropol-
gica insofismvel que influenciou o car-
ter nacional em todas as suas dimenses,
inclusive a literria, no obstante o sentido
de inferioridade presente na sua concep-
o, de certa forma supervel pela possibi-
lidade futura do branqueamento fenotpi-
co. Tal possibilidade de conformao do
tipo brasileiro, porm, duplamente con-
dicionada: diminuio dos cruzamentos
das duas raas inferiores entre si (que re-
sultaria no desaparecimento natural de
negros e ndios) e ao aumento dos cruza-
mentos com indivduos da raa branca.
Romero tem opinio bastante negativa so-
bre os efeitos da mestiagem, atrelando suas
explicaes aos trabalhos do antroplogo
francs Paul Broca (34), pois acreditava
que ela causou a instabilidade moral e a
desarmonia das ndoles, entre outros estig-
mas atribudos inferioridade racial e ao
regime escravista imaginados obstculos
33 Aluso ao debate sobre o trfi-co negreiro na dcada de1830, mencionando um traba-lho de Moniz Barreto (Mem-ria sobre o Trfico) e a propos-ta parlamentar de HolandaCavalcanti. Perdigo Malheirotambm no queria nova ver-so do trfico, eufemismo paraimpedir uma possvel imigraoafricana. Cf. Malheiro, 1976,II, p. 140.
34 Fundador da Sociedade de An-tropologia de Paris e autor bas-tante citado nos estudos antro-polgicos e mdicos no Brasilat a dcada de 1930, pelasistematizao que fez das tc-nicas e procedimentos estatsti-cos da antropologia fsica.Acreditava na desigualdadedas raas humanas e nos preju-zos biolgicos e sociais damestiagem.
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na configurao de um ideal nacional.
Idealizando um modelo de nao plas-
mado pela mestiagem, ao qual atribui a
falta de unidade antropolgica (isto , de
raa ou tnica), Romero construiu sua ar-
gumentao acerca da imigrao mais de-
sejvel para o desenvolvimento nacional
condenando a aglomerao de europeus
no Sul e afirmando a necessidade de espa-
lhar imigrantes por todo o territrio nacio-
nal para evitar o desequilbrio entre o Nor-
te e o Sul (35). Nesse caso, o melhor imi-
grante aquele que no s se deixa assimi-
lar, mas tambm se integra, pela mestia-
gem, com os nacionais, cumprindo o de-
sgnio do branqueamento. Aqui, assimila-
o a mesma coisa que caldeamento ou
fuso racial. Da a convenincia da imigra-
o lusitana, ou at mesmo da imigrao
italiana segundo seus termos, menos pe-
rigosas por serem gentes latinas e mais
assimilveis. Em suma, apesar da centrali-
dade da miscigenao na definio do ca-
rter nacional, Romero, como outros auto-
res da mesma poca, estava convencido da
inferioridade de negros e indgenas, e da
maioria dos mestios, fadados ao desapa-
recimento no curso da histria formativa
do tipo brasileiro. E quando fala da imigra-
o, seu referencial a Europa, mais preci-
samente mediterrnea e com vantagem atri-
buda aos portugueses pelo papel represen-
tado nessa histria da mestiagem que, para
seu desconforto, ainda no tem feio
caracterstica e original. A tese da conve-
nincia da imigrao portuguesa passa lon-
ge das relaes com o Real Gabinete Por-
tugus de Leitura. Romero no ope o ele-
mento portugus aos outros dois elemen-
tos que com ele formaram a nao, mas sim
aos concorrentes novos, inesperados e
perigosssimos, sob o ponto de vista nacio-
nal vale dizer, a imigrao alem (Ro-
mero, 1902), que produziu grupos avessos
mistura! A isso chamou de alemanismo
no Sul: colnias onde a lngua oficial por-
tuguesa no falada, que proliferam con-
quistando o territrio, abrindo a possibili-
dade de secesso. Claramente, situa a etni-
cidade teuto-brasileira no extremo oposto
da pretendida formao histrica, pela qual
o Brasil tem a definio de pas ibero-lati-
no. O argumento que desqualifica os ale-
mes tem, aparentemente, uma natureza
poltica: o discurso antiimperialista, con-
denatrio do pangermanismo e baseado na
doutrina Monroe, mencionada no opscu-
lo de 1906 (36). Entretanto, o que importa
a desnacionalizao, a diferenciao
cultural, o fato simples da fronteira grupal
e da construo da identidade tnica, evi-
denciadas por matrias vinculadas ao
Deutschtum, semelhantes s do j citado
nmero inaugural do Kolonie Zeitung.
Na mesma dcada da publicao dos
primeiros trabalhos importantes de Silvio
Romero, encontramos matrias na impren-
sa em lngua alem com crticas perspec-
tiva da mistura de raas, associada as-
similao dos imigrantes, e ao privilegia-
mento nativista dos povos latinos em de-
trimento da colonizao alem. Isso signi-
fica que a tese do branqueamento, desde o
incio da sua formulao, tornou-se objeto
de discusso de alguns setores teuto-brasi-
leiros, num confronto entre a manifestao
de pertencimento etnia germnica (ou,
mais precisamente, a uma nao alem
configurada pelo jus sanguinis, pela cultu-
ra e pela lngua) e os princpios da forma-
o nacional brasileira que, alm da vincu-
lao latinidade, estava assentada na idia
da miscigenao seletiva (37). J nessa
poca exigia-se a imposio da lngua por-
tuguesa nas colnias alems como meio de
acelerar a assimilao, sendo a intolern-
cia com as diferenas culturais justificada
com acusaes de preconceito: os colonos
alemes so definidos pelo nacionalismo
por seu orgulho de raa, que os faz pre-
conceituosos e difceis de absorver. Dessa
forma, a identidade tnica, tambm lastrea-
da num discurso em parte articulado a uma
noo de raa, que supe um grau mais
elevado na hierarquia de naes, conver-
teu-se no desqualificador da imigrao ale-
m por interferir nos caminhos da preten-
dida formao nacional brasileira.
A converso dos alemes em indesej-
veis, com imputao parcial de culpabilida-
de poltica de colonizao do Imprio,
mostra que o conceito de nao unvoca e
35 As opinies de Silvio Romerosobre imigrao e o mododesgraado de colonizar o sulesto contidas em dois ops-culos de retrica xenofbica epanfletria: num deles defen-de a intensificao da imigra-o portuguesa em confern-cia realizada no Real Gabine-te Portugus de Leitura do Riode Janeiro (Romero, 1902), nooutro, condena a imigraoalem e o pangermanismo,numa posio claramentemonrosta (Romero, 1906).
36 Deve ser lembrado que a ideo-logia imperialista-racial da LigaPangermnica suscitou amplareao na Frana, Inglaterra eEstados Unidos, o que explicao apego de Romero doutrinaMonroe. A influncia da dimen-so racista do pangermanis-mo, que atribua superiorida-de racial aos povos teutnicos,era evidente em alguns jornaisteuto-brasileiros na passagempara o sculo XX caso do DerUrwaldsbote, de Blumenau(SC) que ajudou a construir anoo de perigo alemo.
37 A colonizao alemo no Sulfoi amplamente criticada peloJornal do Commrcio (Rio deJaneiro), bastante citado porSilvio Romero, especialmenteno texto de 1906. Uma dasprimeiras matrias de jornalcriticando, explicitamente, onativismo contido no postula-do racial da assimilao e naimposio da latinidade, saiuno Blumnauer Zeitung de 26de junho de 1886.
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presumidamente latina pela civilizao
assumiu uma importncia crucial na deter-
minao do imigrante ideal desde o incio
da Repblica. Manifesta-se outro aprioris-
mo o crisol de raas e seu significado de
amalgamar, caldear, fundir, miscigenar,
enfim, assimilar imigrantes e descendentes
para atingir uma totalidade inequivocamen-
te brasileira. Italianos e portugueses (s ve-
zes tambm espanhis) figuraram nas
listagem preferenciais, talvez mais os pri-
meiros, pois havia manifestaes de
antilusitanismo (inclusive nos meios inte-
lectuais) no perodo com maior volume de
entradas de estrangeiros (entre 1885 e 1914).
O peso atribudo imigrao branca na
construo da nao tem sua contrapartida
na legislao e na estatstica: a promulga-
o da lei que imps restries imigrao
asitica e africana em 1890 (atenuadas em
1907), e os altos ndices de europeus (prin-
cipalmente italianos) admitidos no primei-
ro decnio aps a abolio, em grande par-
te direcionados para So Paulo. Apesar do
pessimismo com a situao racial brasilei-
ra manifestado por algumas figuras not-
veis nos meios cientficos caso de Nina
Rodrigues , a crena no ideal de branquea-
mento vicejou impulsionada, inclusive pela
antropologia, atravs do trabalho sobre a
mestiagem escrito por Joo Batista de
Lacerda, diretor do Museu Nacional. Esse
aspecto do pensamento social brasileiro foi
analisado em diversos trabalhos (38), im-
portando, aqui, ressaltar suas implicaes
no modelo assimilacionista de nao.
Nina Rodrigues parte do mesmo princ-
pio de Silvio Romero, citando-o: todo
brasileiro mestio, seno no sangue, pelo
menos nas idias (Rodrigues, 1938, p.
117); mas acredita na desigualdade biosso-
ciolgica das raas e nas ms condies
38 Sobre a doutrina do branquea-mento da raa ver, entre ou-tros, Skidmore (1976), Seyferth(1985, 1995), Schwarcz(1993).
Migrantes
europeus na
Amrica
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antropolgicas do mestiamento no Bra-
sil, descartando a possibilidade do bran-
queamento. Mais preocupado com a pato-
logia racial, e supondo o desequilbrio
mental dos mestios, afirma que, no futu-
ro, haver sempre predomnio dos mulatos
na populao brasileira (cf. Rodrigues,
1938; 1939). A verso de Lacerda (1911,
1912) vai no sentido oposto, pois v na pr-
pria sociedade os mecanismos seletivos de
depurao racial do tipo brasileiro no
sentido do fentipo branco. Sua tese apre-
goa o tempo de trs geraes para ocorrer
o retorno ao tipo branco atravs da mestia-
gem porque, acredita, a seleo sexual e a
ausncia de preconceitos raciais arraiga-
dos conduzem escolha de cnjuge mais
claro. Apesar da preocupao com os ata-
vismos (percebidos como ressurgncias
de traos de inferioridade racial), estima o
desaparecimento dos negros e mestios (39)
em cerca de cem anos por sua inade-
quao s condies de vida plenamente
civilizada. Claro que vida civilizada, nes-
sa representao, diz respeito ao desenvol-
vimento da sociedade brasileira aps a abo-
lio da escravatura um enunciado sus-
tentado na idia de desigualdade biolgica.
O crescimento estatstico da imigrao
europia na repblica considerado uma
espcie de vantagem seletiva por aumentar
o contingente branco da populao.
H dois enunciados nas consideraes
sobre a mestiagem no Brasil que persis-
tem em trabalhos posteriores aos de Rome-
ro, Nina Rodrigues e Lacerda: negros e
ndios e seus mestios so definidos por
sua suposta inferioridade biolgica (por-
tanto, a desvantagem seletiva atribuda
desigualdade racial); e a civilizao, obra
exclusiva do homem branco, incompat-
vel com essa inferioridade. No volume
que escreveu associado aos resultados do
recenseamento de 1920, Oliveira Vianna
(1938) considerou o Brasil um vasto cam-
po de fuso de raas radicalmente diferen-
tes que produziu um caos tnico, revoltoso
e confuso, de onde vai sair o tipo brasileiro.
Especulando sobre os efeitos da mistura,
anuncia a inferioridade das raas brba-
ras (negros e ndios), razo do caos, a
configurao atual de um povo cromatizado
e de baixa estatura (os tipos cruzados ainda
muito prximos das raas inferiores que
ajudaram a form-los), e o processo lento,
mas inexorvel da arianizao (40) , com
aumento do coeficiente branco atravs da
imigrao e pelo estacionamento da
populao negra e mestia. Assim, a imi-
grao tem um papel nesse processo de
arianizao, apesar da ressalva sobre o
maior volume de brancos melanocrides
nas correntes imigratrias (italianos, portu-
gueses e espanhis). O processo de bran-
queamento, portanto, localizado histori-
camente no Brasil Colnia vinculado s
selees sociais (outro termo para a seleo
sexual definida por Lacerda) significati-
vamente articulado escravido. A fecun-
didade dos brancos aparece como diferen-
cial de reduo dos sangues brbaros e,
numa clara demonstrao adicional de ra-
cismo, afirma que a abolio, em 1888, con-
correu para retardar a eliminao do Homo
afer. Oliveira Vianna foi defensor da imi-
grao europia, no mudou sua opinio
sobre a inferioridade racial dos no-bran-
cos, embora atenuasse a retrica racista na
dcada de 30, expressando-se por eufemis-
mos; teve grande influncia nos assuntos de
imigrao durante o Estado Novo.
A mesma retrica sobre a unificao do
tipo nacional aparece em trabalhos volta-
dos para a poltica de colonizao, como o
de Joaquim da Silva Rocha, que exerceu
cargo de chefia no Servio de Povoamento
do Ministrio da Agricultura, Indstria e
Comrcio. E, como Silvio Romero, acusa
os governos monrquicos de verdadeiro
descaso pelo futuro da nossa nacionalida-
de (Rocha, 1919, V. II, p. 9), visto que no
procuraram resolver o problema do tipo
termo usado como metfora para formao
do povo. Mais claramente existe a no s
o enunciado da assimilao, quando diz que
no deve ser tolerada a preponderncia de
um elemento tnico sobre os nacionais em
nenhum lugar do pas, mas igualmente a
crena do que a estabilidade do tipo depen-
de da integrao dos imigrantes. Dessa
percepo resulta a condenao (principal-
mente em textos do apndice) do ingresso
39 Baseado em dados censitriosdo final do Imprio e incio daRepblica, Lacerda estimouque no prazo de cem anos osnegros desapareceriam, osmestios seriam apenas 3% dapopulao e os ndios 17%.Cf. Lacerda, 1912 (diagramacom co-autoria de Roquette-Pinto).
40 O livro, de fato, defende aeconomia latifundiria emnome da suposta condioariana do colonizador portu-gus que conquistou o territ-rio isto , os paulistas dasentradas e bandeiras! Na maisperfeita apropriao da teseariana de Arthur de Gobineau(que imps a noo de aristo-cracia natural) procurou legiti-mar o poder poltico e econ-mico nas mos da elite de gran-des proprietrios. Cf. OliveiraVianna, 1938; 1952;Gobineau, 1853.
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de elementos provenientes da sia, especi-
almente hindus, chineses e japoneses
imaginados obstculos unificao do tipo
(povo) nacional.
Em todos os trabalhos citados, e em
muitos outros, fica evidente a apropriao
de certas teorias raciais europias funda-
das na desigualdade das raas, devidamen-
te adaptadas para dar conta de uma realida-
de insofismvel a excessiva mestiagem
brasileira. O uso da palavra tipo reflete as
classificaes raciais da antropologia da
segunda metade do sculo XIX, que pre-
tendiam dar conta das linhas de variabili-
dade da espcie humana postuladas como
leis biolgicas irredutveis. O conceito de
tipo agregou critrios morfolgicos e su-
postos indicadores de qualidades e defei-
tos socioculturais, alm das vinculaes
civilizatrias, num contexto em que medi-
das corporais e modelos estatsticos, mais
do que outros traos fenotpicos ou crit-
rios geogrficos, serviram para classificar
e hierarquizar os grupos humanos. Partin-
do de uma ideologia que afirmava a supe-
rioridade biolgica, intelectual e cultural
dos europeus, muitas dessas teorias preten-
diam ter demonstrado que o desenvolvi-
mento da civilizao, o progresso tecnol-
gico e a prpria estratificao social obe-
deciam a leis naturais. Nesse caso, nem os
europeus eram imaginados como tipo ni-
co, embora houvesse certo consenso quan-
to superioridade europia em geral no con-
fronto comparativo com outros troncos
raciais (41).
Alm dos princpios tericos e
metodolgicos dessa antropologia racial,
tiveram bom trnsito no Brasil os trabalhos
da antropossociologia de G. Vacher de
Lapouge (uma das muitas vertentes do
darwinismo social), a antropologia crimi-
nal de Lombroso e sua fixao nos efeitos
do atavismo, alm dos ensaios de Gobineau
e Chamberlain com seu panegrico da su-
perioridade ariana to caro a Oliveira
Vianna. A preocupao com a ressurgncia
de atavismos no processo de miscigenao
com raas consideradas inferiores, o pos-
tulado de Gobineau sobre dosagens da
mistura racial (miscigenao em grau m-
nimo, equilibrada, produzindo civilizao,
em grau excessivo, decadncia) ajudaram
a conformar a idia de caos tnico mas,
paradoxalmente, produziram a retrica
sobre miscigenao seletiva ancorada nas
estatsticas imigratrias. No surpreende,
portanto, o rumo tomado pelas discusses
da poltica imigratria, privilegiando os
brancos e condenando especialmente aps
a abolio a concentrao de europeus no
Sul facilitada pelo modelo de colonizao.
Nesse caso, no h dvida quanto defini-
o da formao nacional, percebida como
processo de construo de um povo mesti-
o. A mestiagem, na representao do
carter nacional, uma especificidade da
nao, algo que no se apaga, mas com o
concurso da imigrao europia pode pro-
duzir um tipo brasileiro de fentipo bran-
co. No importa muito se tal postulado
contraria certos dogmas do racismo cient-
fico entre eles o da tendncia esterilizadora
da mestiagem; afinal, tais ideologias dis-
tinguem-se pelo contraditrio e a cincia
(ou, no caso, pseudocincia) serve a um
propsito preestabelecido.
Enfim, os pensadores sociais, a elite
imigrantista comprometida com o modelo
de colonizao baseado na pequena pro-
priedade, e os prprios legisladores, ao
articular assimilao/miscigenao com
imigrao europia, estavam sinalizando a
nao pretendida mestia, porm com um
povo branco na aparncia, mantidas as ca-
ractersticas socioculturais da civilizao
latina de lngua portuguesa. Nessa confi-
gurao, os grupos mais apegados sua
identidade nacional e considerados, por-
tanto, avessos mistura e distantes da
latinidade, eram inaceitveis.
No entanto, o padro republicano de
colonizar manteve a caracterstica concen-
tradora do Imprio e no imps obstculos
a quaisquer correntes imigratrias brancas:
as colnias do Sul continuaram a receber
preferencialmente europeus, inclusive os
irredutveis alemes, isto , prevalece-
ram as intenes econmicas e geopolticas
da colonizao, passando ao largo das pre-
tenses assimilacionistas do nacionalismo.
Na dcada de 1930, a Repblica Ve-
41 Sobre o desenvolvimento daidia de raa no Ocidente, ver:Pol iakov (1974); Banton(1977); Gould (1991).
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REVISTA USP, So Paulo, n.53, p. 117-149, maro/maio 2002 135
lha recebeu as mesmas crticas dirigidas
poltica de colonizao do Imprio acu-
sada de permitir enquistamentos tnicos,
despreocupando-se dos fundamentos da
nacionalidade. Assim, tem sentido o dire-
cionamento do sistema de cotas de imigra-
o em 1934, que favoreceu a formao
latina da nao.
PARADIGMAS DE ENQUISTAMENTO
TNICO E A DOUTRINA
DA FORMAO NACIONAL NO
ESTADO NOVO
Se os antroplogos e socilogos mais si-
sudos estabelecem que no h raa pura,
seno no sentimentalismo poltico, isto
patente no nosso tempo e nossa vista. Um
exemplo, o que ocorre no Brasil. O sangue
autctone dos ndios, assimilado pelos bran-
cos ao norte; o negro importado por toda a
parte. O selvagem desapareceu e o negro
no vem mais; o branco vem sempre, e se
reproduz. Em 1869 Gobineau, no Brasil,
vaticinava: as crianas morrem, tal quan-
tidade, que em nmero de anos pouco con-
sidervel, no haver mais brasileiros. Em
menos de duzentos anos ver-se- o fim da
posteridade dos companheiros de Costa
Cabral (sic) e dos imigrantes que o segui-
ram. No s o Brasil cresce, e enorme-
mente, de populao; em 72, perto de
Gobineau, ramos 10 milhes, meio scu-
lo aps j 47 milhes, como as misturas
raciais se fazem rapidamente. A albumina
branca depura o mascavo nacional Ne-
gros puros j no h; mestios, por fraque-
za somtica, sensualidade, nervosidade,
sensibilidade tuberculose, ou desapare-
cem pela morte precoce, ou se cruzam,
sempre com elementos mais brancos: a raa
se aclara. Em duzentos anos, longe de se
extingirem no Brasil os descendentes do
povo de Cabral, ter passado inteiramente
o eclipse negro, desses quatro sculos de
mestiagem (Peixoto, 1975, pp. 15-6).
O texto de Afrnio Peixoto, transcrito
sem descontinuidade, faz parte do segundo
captulo do livro d