Sertão da Tradição

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Livro sobre os assentamentos da Reforma Agrária no Ceará e suas expressões culturais.

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Abertura 06

Lagoa do Mato 16

Poço da Onça 26

Ipueira da Vaca 36

Cachoeira do Fogo 46

Despedida 56

Sumário

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Abertura de Porta:Promessa Feita aos Santos

Promessa feita aos Santos Reis se cumpre renovando a eterna busca do povo pelo divino. Reeditando a viagem em cortejo dos três Reis Magos, ou como se diz também, dos Santos Reis do Oriente, até Belém, em procura do Deus Menino recém nascido. Tal travessia se faz três anos seguidos, porque os Reis são três, Baltazar, Gaspar e Belchior. No caso dos sertões cearenses, melhor seria dizer que promessa feita aos Santos Reis se cumpre renovando a viagem de volta de Belém, empreendida pelos Magos e seu cortejo. Viagem que fizeram usando caretas, pedindo licença aos donos das casas para louvar o nascimento do Divino, dançando, cantando, fazendo graça, mostrando aparições e apresentando bichos, principalmente o Boi e a Burrinha, que estavam junto ao Menino na manjedoura. Isso porque, segundo contam os mestres mais antigos, o Reisado de Congos, originário de Alagoas e tão numeroso no Cariri cearense, no qual os brincantes aparecem trajados de guerreiros, figurando reis e embaixadores, é o reisado da viagem de ida dos Reis Magos a Belém. Já o Reisado de Caretas, característicos dos sertões da pecuária e prati-cados nos assentamentos de reforma agrária, tratados aqui nesse livro, no qual os brincantes usam máscaras, é o reisado da viagem dos Reis Magos de volta de Belém. O uso da máscara na viagem de volta é explicado pela necessidade dos Reis Magos passarem ocultos pelo palácio do Rei Herodes. Isso porque, na ida, haviam prometido a Herodes que lhe ensinariam o caminho até o Deus Menino. Daí que, sabedores da má intenção de Herodes, os Magos fizeram a viagem de volta, encaretados. Apresentaram-se com seu cortejo defronte ao palácio de Herodes, porém esse não os recon-heceu.A viagem dos Reis de Careta em seu retorno de Belém é feita durante as nove noites que vão do dia 27 de dezembro ao dia cinco de janeiro do

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ano seguinte. O percurso, os Santos Reis fazem em cortejo, realizando autos durante todo o caminho. Para tal, pedem licença aos donos das casas. Caso obtenham permissão, começam por louvar o Divino, para em seguida, realizarem um grande baile, durante o qual narram peri-pécias e apresentam figuras da grande jornada percorrida em busca do Deus Menino.Durante cada noite visitam de cinco a seis casas. Em quase todas são bem acolhidos. A luz é acesa, a porta é aberta, o Menino é louvado e a brincadeira tem lugar por, no mínimo, duas horas. A oferta dos donos da casa aos Santos Reis varia entre um bolo, uma galinha e uma criação (bode ou carneiro). Quando a luz não acende, nem a porta abre, por certo, o dono da casa está desprevenido de uma prenda. No sertão, só muito raramente, são insultados de “pão duro”, como o fazem os “tiradores de reis” da Capital.No décimo dia, seis de janeiro, dia de Reis propriamente, a viagem se encerra. Os Reis retornam aos seus reinos e, como nas histórias de trancoso e nos contos de carochinhas, abrem seus palácios, onde dão uma grande festa. Há um baile noite à dentro e um banquete, festa na qual todos dançam , comem e bebem a fartar, como nos casamento que culminam os contos de fadas. Dela, a gente sempre volta, trazendo para o povo de casa um prato de bolo e um pote de aluá que, por azar, caem no caminho e quebram. No reino de Cachoeira de Fogo, chama-se à festa do derradeiro dia do ciclo de Santo Reis de farrancho. Este ano, de 2009, entre as pren-das arrecadadas, durante a peregrinação do cortejo de brincantes pelas casas do assentamento e arredores nas nove noites de tiração de reis, foram recolhidas mais de 30 criações (entre bodes e carneiros), quase um cento de galinhas, além de bolos, quilos de batatas e alimentos outros. Calcula-se que à festa, vindas de Independência, municípios vizinhos (e até de Fortaleza), tenham estado presentes mais de 500 pessoas. Todas comeram e beberam gratuitamente, sem limites e, Ze-neide, dona de uma pequena pizzaria, no centro do assentamento, ainda conseguiu vender bastante. Como ela explicou: - Tem gente, que conheceu pizza em São Paulo e agora pegou moda!Nos sertões dos antigos coronéis, o Dia de Reis com seu farrancho, as-sim como o Dia do Divino, era um dia único de fartura e alegria no ano, em que se vivia e se comemorava um futuro utópico, talvez, um paraíso que virá, uma “terra onde correrá leite e mel”. Em Cachoeira do Fogo, tanta foi a fartura recolhida durante a jornada dos Santos Reis, que em uma só noite, por mais que se esforçasse, a comunidade não deu conta de consumir. Sobrou comida para os dias e meses seguintes. No curral comunitário, aumentou o número de bodes, cabras, carneiros e ovelhas. O mesmo crescimento populacional aconteceu no galinheiro coletivo do assentamento. Além disso, o povo não se fartou de festa e já estava marcando um forró para o sábado seguinte. Daí a desconfiança de que o povo de Cachoeira do Fogo está pegando a mania de fazer farrancho agora quase toda semana.Uma promessa de reisado põe em movimento toda a comunidade, desde os brincantes e suas famílias aos que os recebem em suas casas, desde os comerciantes do lugar aos visitantes convidados para o far-rancho. Tal participação se dá de modo ativo, tanto na preparação e no usufruto da festa, quanto intervindo durante a brincadeira, como

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expectadores atuantes ou expectactores, nas palavras de Augusto Boal. A brincadeira de reisado é uma espécie de arte total, pois movimenta todas as suas linguagens artísticas, a música, o canto, a dança, a litera-tura (oral), as artes plásticas (na confecção das máscaras, dos bichos e adereços) e o drama. Nela, aparece o que as pessoas têm de melhor, seus saberes, fazeres e afetos. Através de seu rito, a comunidade reata sua ligação com o Divino, onde ele se manifeste, seja em que dimensão da realidade, da natureza ao além. Por meio dele, a comunidade de as-sentados estreita sua ligação interna e com seu entorno. Através de seu grupo, o assentamento se faz representar na região e mesmo no Estado, por ocasião das apresentações em praças públicas, escolas, quadras, em encontros e festivais.A viagem da equipe do Projeto Sertão da Tradição foi tal qual a de um cortejo de reisado em pagamento a uma promessa (quem sabe feita secretamente por Silma Magalhães, nossa coordenadora): nove dias percorrendo os assentamentos de Lagoa do Mato, em Sobral, Poço da Onça, em Miraíma, Ipueira da Vaca, em Canindé, e Cachoeira do Fogo, em Independência, coletando histórias e folias, e um décimo dia, para o farrancho. A diferença era que, enquanto os Reis dançavam a gente via, enquanto os reis cantavam a gente ouvia, e tudo registrava em áudio, vídeo e anotações. Quase sempre as gravações terminavam em forró e muitos de nossa equipe, até que dançavam e cantavam com jeito. Mas era só essa a diferença. Porque, quando os Reis riam, a gente ria, e quando os reis choravam, a gente chorava. A gente sentia o que os reis sentiam. Até de longe. Sentiu pesar com a notícia da morte do mes-tre Neo Ramos do Reisado de Ipueira da Vaca e pôde imaginar tanto a tristeza de todos os brincantes durante o rito de seu sepultamento, quanto a cena ao mesmo tempo bela e tocante do cortejo de reis a acompanhá-lo até seu derradeiro leito, cantando peças de despedida. Pensei em Dona Elisa, sua esposa, puxando a chamada e a despedida da Burrinha, figura que ele gostava de fazer com toda alegria. Imaginei as lágrimas e também o riso furtivo (por que não, tão feliz é a burrinha?) de Dona Elisa, a encarregada do figurino e adereços, organizadora, espécie de alma secreta do reisado da família Ramos, despedindo-se naquele momento do parceiro de uma vida inteira.Nosso derradeiro encontro no ano foi em Novembro, durante a aber-tura do Festival Terra Viva Terra de Arte, realizado em Canindé. Na oca-sião, Mestre Neo Ramos iria ser homenageado. Dona Elisa, chamada ao palco, na condição de sua viúva, subiu para receber um troféu em seu nome. Antes disso, passou a chamar cada um dos seus irmãos, filhos, netos e bisnetos, todos, sem exceção, de algum modo, envolvidos no reisado, brincantes de santos reis. No palco, grande o suficiente para a apresentação de todo um reisado em movimento, não sobrou espaço para mais ninguém. Cantaram algumas peças, particularmente as da Burrinha. Por falta de espaço, só as crianças puderam sapatear. Os mais animados eram os bisnetos. Pequenos, três, quatro e cinco anos de idade, ainda meio desajeitados. Os presentes riam e aplaudiam. Algu-mas pessoas não puderam conter a alegria das lágrimas. Mestre Neo Ramos havia renascido.Em minha jornada pelos assentamentos, busquei momentos de tran-scendência, instantes de ternura, encontros de pessoas, boas histórias

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e experiências marcantes, espe-cialmente de comunhão dos ho-mens com a natureza. As conver-sas fluíam naturalmente à medida que fluía a amizade.O sertanejo é acolhedor. Recebe sem desconfiança. É capaz de ofe-recer o café que vai lhe faltar na manhã seguinte. Extremamente sentimental, pode chegar aos pran-tos ao relembrar um ente querido ou mesmo ao ouvir um romance de amor não correspondido, na voz de um cego de feira. Porém sua faina na caça ao boi caatinga a dentro, ou na derruba da mata, o torna muitas vezes insensível e impiedoso, capaz das maiores vio-lências. Como no reisado, ele vive entre o trágico e o cômico, entre o lírico e o drama. Vale não esquec-er que o farrancho, ocasião da festa final do reisado, é o dia do sacrifício dos animais, alguns deles bichos de estimação criados em casa e chamados pelo nome. Tal sacrifício é executado sem rito e de modo automático, embora em alguns reisados apareça o bode entre suas figuras, além do boi.

UMA OUTRA FORMA DE VIDASem terra, o sertanejo erra feito zumbi no deserto. Feito alma penada, sem alma, sem pouso certo. Para ele a natureza é sem-pre madrasta, adversa na luta diária, chão de opressão, que lhe cabe desmatar, queimar, arrancar toco, caçar até o último tejo, tor-turar até o derradeiro reduto de mata virgem. Num sertão sem infância, ele se embrutece, com a caatinga que se transforma em carrascal estéril, feito de foice e enxada, sem au-rora e entardecer, onde tudo é sol de meio-dia e a imaginação não voa. Onde o futuro migra, a festa vira droga e tiro, os sítios se despo-voam, restando escombros, velhos aposentos, cenas de separação.

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Apartado da terra, para o sertanejo o mundo é via sem retorno, local de expiação onde tudo é alheio, ilusão cujo fim se precipita, sala de espera de outra esfera. Por que então plantar uma árvore para seu bisneto como fazia quando era índio? No exílio lhe ensinam que “beneficiar” um terreno significa extinguir sua vegetação nativa para depois cercá-lo com a ma-deira da mata destruída. Mas nem sempre foi assim. O ser-tanejo foi índio e viveu imerso na natureza, como parte dela aju-dando a ligar os fios de sua teia, contribuindo para movimentar as conexões do seu imenso sistema vivo. Recolocar o homem na terra, portanto, é reatar o liame perdido entre ele e a natureza. Na reforma agrária, o assenta-mento é o lugar mágico desse re-encontro, palco da reconciliação do sertanejo com ele mesmo e dele com sua comunidade. Feito uma grande chácara, na qual cada família pode ter sua horta, sua roça e suas criações, mas onde o terreiro é comum. Feito um ar-raial em que se cultiva o sonho e o maravilhoso aflora. Um pequeno sítio com seu site ligado ao cos-mos. Uma taba cibernética com sua oficina de rebecas eletrônicas. Nele a poesia desperta e o mundo se reencanta. Artes e ofícios, festas e folguedos, histórias fabulosas, um mundo que parecia sucumbir ganha vida e, dos terreiros e quadras dos as-sentamentos, se irradia, agora mais rápido, pois vai de moto, voa levando a arte e a cultura de um lugar em que os bichos, as plantas e as pedras falam, os santos tocam viola, as crianças são anjos e os homens e as mulheres são reis e rainhas encantados. O que se ex-perimenta nos assentamentos de reforma agrária é uma outra forma de vida.

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LAGOA DO MATO:UM SERTÃO EM QUE A POESIA VEM DOS

BICHOS E DAS CRIANÇAS

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FILHO DE CRIAÇÃO Cícero Altino Rodrigues, o Caburé, nasceu em Saco do Pajé, terra de sua mãe, no ano de 1957. O pai era de um lugarzinho por nome Guairá, também dentro de Sobral. Com um ano de idade foi dado para criar a um casal de Lagoa das Pedras, sítio ali bem próximo. Seus pais de criação chamavam-se João Evangelista Altino e Maria José Rodrigues, de quem herdou os sobrenomes. Gente simples, bem mod-esta. Um pouco melhor arranjada que seus pais biológicos. O pai natural de Caburé casou duas vezes. Do primeiro casa-mento, teve quatro filhos. Do segundo, Caburé e outro irmão. A pobre-za o impediu de criar todos eles. Caburé conheceu seus pais biológicos, tomava a benção a eles. Eram amigos dos seus pais de criação. Maria José, mãe de criação de Caburé era tia de Antônio Fer-reira, atual Mestre do Reisado de Lagoa do Mato, e conhecia a brinca-deira como as linhas da mão. Caburé viveu como gente de sua família, considerado primo legítimo dos Ferreiras. Ficou morando com os pais de criação até o fim da vida deles. Quando Maria José morreu, ele tinha 24 anos. Seus pais de criação eram moradores da fazenda de Frederico de Andrade, situada em terras hoje pertencentes ao Assentamento de Lagoa do Mato. Fazenda grande de criar gado em mata aberta, ter-reno cercado para a roça dos moradores. Os pais de criação de Caburé pagavam renda de quarta, na roça de milho e feijão, além de dar dias gratuitos para o trabalho coletivo na fazenda, como limpar a cacimba do gado, tirar madeira para a cerca etc. Podiam ter no máximo duas ca-beças de gado e algumas mais de bode e carneiro. Menino, a partir dos 12 anos, ajudava o pai no roçado, plantava melancia, arroz, cabaça, milho, feijão, arroz, algodão, mamona, o que fosse.

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LEMBRANÇAS DO MENINO CABURÉ “- Eu me lembro, quando eu era pequeno, deitado, eu sentia uma dor assim no peito, peito esquerdo, e nesse tempo mamãe num tinha máquina pra costurar, costurava na mão uns pontinhos bem peque-nininhos, bem fechadinhos, ai eu saía da rede e ficava assim perto dela e ela passava assim a mão na minha cabeça, e aquela dor ia passando, porque mãe é mãe, eu ficava ali um momentinho e ela esfregava e passava. E hoje ainda sinto, ainda sinto aquela dor. Já bati eletro do coração, mas só deu pressão alta.”“- Eu ainda pequeno fazia uns cavalos de pau e o pessoal dizia assim: ‘O Caburé é muito inteligente, se um cara desse tivesse estudado era muito inteligente!’ Eu fazia as orelhas bem feitinhas, fazia de talo de carnaubeira. A mamãe dizia assim, vai na casa de fulano fazer isso as-sim, assim, e eu pegava o cavalinho e sai correndo. Por isso eu tinha era prazer de fazer os mandados dela. Eu fazia do mesmo jeito de um cavalo, fazia as rédeas, o rabo... A bicicleta era difícil. No aro da bicicleta num tem um buraquinho no meio né? Ai eu pegava um pedacinho de pua e enfiava no meio e saia correndo. Era a minha bicicleta. Era melhor que o cavalo ainda. Quando era inverno, ai tinha uns matos muito grandes e tinha as va-redinhas. Ai a gente brincava de esconde-esconde, a pessoa tinha que adivinhar onde a gente tava. Outra, a gente amarrava um cordão dum pé de pau pro outro, um menino vinha correndo, tropeçava e caía, era uma armadilha. Havia outra, a gente abria um buraco grande e cobria com uns paus, umas folhas, bem no meio do caminho, o menino num reparava e caia com o pé dentro.”“- Rapaz, eu me divertia com muita coisa. Uma vez eu tava brincando mais meus amigos, eu subo num pau branco e tinha muito toco de marmeleiro embaixo. Ai a gaia fazia assim (balançando) e eu saí an-dando na gaia e pegando na outra de cima. Quando eu olhei pra trás, vi uma cobra. Uma cobra dest’tamanho assim chamada jararaca, peri-gosa num sabe. Quando eu vim andando assim, ela vinha levantando o pescoço e lambendo assim, e eu pulei na faixa assim duns quatro met-ros de altura, em cima dos tocos e num aconteceu comigo nada, Deus me defendeu assim do um jeito...! O outro ficou assombrado: - Cadê, a cobra te mordeu? - Que nada! Cai e corri.”

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A CARREIRA MAIS HORRÍVEL DO MUNDO E OUTRAS ESTRIPULIAS DE CABURÉ“- São coisas que se passam com a gente. Outra vez, eu também brin-cando mais os colegas, tinha uma pedra grande assim e tinha um lajedo de no máximo uns 40 cm, e uma grutinha que dava na faixa de uns 8 metros de altura. Lá num tinha volta. E a pedra era derreada assim. Aí meu colega danado passou. Se eu num passasse perdia pra ele. A gente passava se segurando só daqui pr’ali, que era aberto assim. Aí ele passou e ficou mangando. Aí eu disse, agora lascou, mas eu vou passar também. Aí eu passei segurando só na pontinha das pedras, pedindo pra morrer, uns caroçinhos de pedra bem miudinhos e as unhas engan-chando assim. E pra descer? Num tinha escada que desse. Aí eu disse: - Agora pronto! E comecei a chorar, que meu pai era carrasco sabe. Fiquei lá em cima. A gente era três, só que o terceiro não teve coragem de passar porque era perigoso. Se caísse era morte certa. A altura era como desse poste aí, debaixo era cheio de ponta de pedra. Depois de uma hora, meu colega passou de volta. Aí eu disse: - Agora estou perdido mesmo. Vou ter que descer. Então eu saí escorregando devagarinho.. Eu pensei: se eu descer só mais um pouquinho aqui eu tô salvo – que era o lado mais perigoso. Aí desci, desci e consegui.Saí correndo, numa carreira mais horrível do mundo, tinha uma cerca e tinha assim um passador, meu colega do jeito que veio botou o pé assim em cima e pulou, e eu botei o pé mas errei, e a ponta de pau entrou aqui na coxa chega a ponta de pau quebrou que ficou roxo. Pois é, o outro era ligeiro – aquele que pulou da pedra. Eu era mais mole e a flepa entrou. Se papai soubesse, Ave Maria! Meu colega pegou uma faca, cortou o pedaço do couro e arrancou a flepa com tudo. Eu usava um calção grande e nunca fui descoberto, porque se papai soubesse, além da queda, peia.”

“- A gente ia de cinco, seis meninos brincar de “profundidade de água”, sabe como é? Cada menino tinha que mergulhar num lugar fundo, quatro, cinco vezes e trazer o barro lá de baixo, para mostrar que foi de verdade até lá no fundo. Essa brincadeira era naquela lagoa que eu mostrei, onde a garota morreu. Pois era ali. O menino que fazia mais vezes era o Expedito. Repetia cinco vezes sem sair da lagoa. Pra eu num perder pra ele, tinha de fazer o mesmo, chega quando a gente saía os ouvidos vinham estourando e os olhos vermelhos. O medo era horrível, mas os dois campeões era a gente mesmo.” “A disputa entre a gente era grande. Um dia não tinha serviço pra fazer, a gente foi pra casa de uma tia dele, onde tinha uns pés de árvore, com umas gaia num sistema de um balanço. Ele subiu na gaia, entrançou as pernas, soltou as mãos e ficou pendurado de cabeça pra baixo. Eu fui fazer do mesmo jeito, pra num ficar pra trás, a perna escorregou e eu desci de pescoço pra baixo, assim. Quando eu bati com a cabeça no chão, forçando o pescoço, chega veio um gosto de sangue na boca. Eu fiquei no chão. Esse meu colega sem saber o que fazer, naquela agonia. A mãe dele veio acudir. Deixa que deu uma pisa danada nele. Tá vendo aquela lagoa, onde eu falei que os bichos comiam? A

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gente subia naquela parede e pulava lá embaixo na água, quando ela tava bem limpinha.”

“- Já mais grandinho, a gente ia pegar raposa, pegar gato do mato, pra comer. Arranjava um pau verde, dobrava ele assim, armava um laço, fazia um chiqueirinho com um pedaço de carne dentro. Quando o bicho ia comer, o laço pegava e o pau subia com ele. A gente caçava tatu, peba, avoante, asa branca. Nesse tempo o IBAMA não perseguia a gente, também tinha muita mata. Hoje quase num tem mata, mas a negrada sempre continua caçando, agora mais por esporte, porque não tem precisão.”

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ACHADOS ARQUEOLÓGICOS Há 60 anos, na lagoa em que Caburé dividia espaço com emas e sariemas, em suas brincadeiras, foram encontrados ossos enormes. Ossadas de elefantes, imagina ele, ou de animais tão grandes quanto eles, cujas costelas mediam 25 cm de largura. “- Esses ossos foram leva-dos por homens, na certa para outros países.” Naquela mesma lagoa, gravadas numas pedras, há “umas coisas escritas que num tem quem entenda.” O mais intrigante, para Caburé é que “ninguém sabe nem quantos anos tem e nunca se desmanchou. Porque a óleo mesmo sendo resistente com o passar dos anos se acaba, e essa num se acabou.”

TRABALHANDO DESDE CEDO Entre os oito e os dez anos de idade, Caburé passou a trabalhar regularmente. Seu primeiro serviço foi pilar arroz para tirar a casca, “descapelar” como se dizia. Depois passou também a moer milho num moinho, que ainda hoje existe, para fazer o cuscuz. Por último, foi tra-balhar na casa de farinha do pai. Na adolescência, a partir dos 16 anos, saiu para o trabalho mais pesado, brocar mato com foice, fazer a der-ruba, cavar o chão para colocar as estacas das cercas. Naquele tempo, não se usava arame nas cercas, elas eram quase todas de madeira, com estacas enterradas no chão.

CABURÉ E A PRIMEIRA NAMORADA “- Minha primeira namorada foi com 13 anos. A mãe dela é sobrinha do Antônio Ferreira. Em uma brincadeira de reisado ela veio. Aí sabe como é coisa simples de criança, num é que nem agora. De primeiro, só em pegar na mão, pra gente já era namoro.”

QUANDO A VIDA ERA RUSSA Manuel Ricardo Ferreira ganhou o apelido de Mané Russo jo-gando futebol, talvez por seus cabelos claros e a tez avermelhada. En-trou na escalação do time com esse nome e daí que não saiu mais, nem ele do time, nem dele o apelido. Conta que nasceu em 1964, na Fazenda Rajada que hoje fica em terras do assentamento. Sua mãe chamava-se Nelsina Pereira Ricardo e seu pai Alonso Ferreira. Ele era de Guaíras e ela do Piauí. Em viagem que fez ao Piauí, Alonso voltou trazendo Nelsina, para morar com ele na Fazenda Rajada. Ainda hoje são vivos e moram numa fazenda vizinha ao assentamento. Alonso era vaqueiro de confiança do Doutor Pompeu Sabóia, então dono da Rajada, avô da Senadora Patrícia Sabóia, sua última proprietária, antes da fazenda ser vendida ao INCRA. Tomava conta de 700 cabeças de gado, não tendo hora pra começar nem pra largar

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serviço. Colocou o filho, desde pequeno, em contato com aquela lida. Mané Russo lembra que ainda bem novinho o pai botava ele em cima dos bichos, “pra ir acostumando”. Na pecuária, de cada cinco bezerros nascidos, um era do vaqueiro. Já na roça, a renda paga ao patrão era de quarta, ou seja, um quarto de todo o produto colhido ficava com o dono da fazenda. Mas Mané Russo não tem queixa do Dr. Pompeu Sabóia: “- Era uma boa pessoa, um excelente patrão pra todos nós, pro moradores, pra todo mundo! Morreu com cento e um anos. Uma vez por mês ele ia na fa-zenda e meu pai prestava conta.” O dia começava às duas da madrugada na Fazenda Rajada. Mané Russo, com oito anos, acordava para tirar leite com o pai, sob a luz de um lampião. Andava meio dormindo por entre as vacas. Chama-va pelos nomes: Pretinha, Roxinha, Ceará, Fortaleza, Graúna... Às vez-es passava no curral até o dia todo. Na fazenda, tempo para brincar era pouco. Para estudar, menos ainda. Seus pais nunca estudaram. Mané Russo igualmente, assim como quase todos os seus 12 irmãos – “o nome assino copiando, a vida no sertão é dura”. Dos moradores da fazenda, quem primeiro estudou foi uma irmã sua. Começou numa escola nas proximidades da fazenda e com-pletou os estudos em Sobral. Mas se não havia escola, na sede da fazenda não faltava uma capela na qual padre Gonçalo, vindo de Aracatiaçu, uma vez por mês, justamente no dia da prestação de contas, confessava e celebrava mis-sa. Festa na fazenda só acontecia muito raramente, mas quando havia os moradores eram convidados. Diversão de morador era futebol e rei-sado, nada de forró, porque dava lugar a bebida, prática proibida na fazenda. Mané Russo morou até os 22 anos na Rajada. Nela casou-se pela primeira vez, união que gerou quatro filhos, um casal e dois me-ninos. Depois se separou e foi trabalhar em Sobral, cortando carne no mercado. De lá se mudou para Fortaleza, onde trabalhou num depósi-to, mas logo deixou por causa do perigo. Quando voltou, estava com uma nova mulher com quem teve outro casal de filhos e ainda um menino que pegou para criar. Veio direto para o assentamento em formação. Assentou-se com a família. Tem sua roça de milho, feijão, melancia e jerimum. Além disso, cria gado. Começou com três cabeças e agora já conta 14. Está gostando: “- Menino aqui num acorda mais às duas horas pra ir pro curral, acorda às cinco e meia pra ir pra escola, pra pegar o transporte. Hoje tá mais fácil pra estudar e até pra botar reisado. Aqui todo mundo é uma famí-lia só.” Além do reisado, Mané Russo não dispensa futebol, forró, seresta e corrida de animal. Corrida de cavalos, melhor dizendo. Elas acontecem, em Aracatiaçu, a umas três léguas do assentamento, nas margens do açude Forquilha. Mané Russo vai para apostar. Cada ani-mal tem sua torcida. A preferida de Mané Russo é uma égua por nome Juriti.

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A BOTIJA PERDIDA POR AMBIÇÃO A mulher que sonhou com a botija não contou a Caburé. Quem contou foi o marido, mas contou bem direitinho, com todos os qui-procós, do mesmo modo como fosse ela mesma a contar. Diz que ela sonhou três vezes com um velhinho bem encolhidinho o velho, com as calças amarradinhas nas pernas como se usava naquele tempo, todo de branco. Ela sonhou e ficou na dela, num disse a ninguém. Na noite seguinte tornou a sonhar. O velhinho aparecia dizendo que queria lhe dar uma veia, uma botija de ouro e prata. Também nem ligou, num disse pro marido nem nada. Até que um dia, Chico, o marido dela, viajou para Sobral. Quando foi de noite, ela ouviu uma pancada na porta e disse: - Chico, você num foi pra Sobral não? E nada. Quando ela arregalou os olhos, desceu uma luz, tipo um vulto branco, e falou: - Lá no pé daquele pau branco, naquela pedra, de junto da lagoa, tem uma veia pra você. É pra você e pro dono daquela casa ali encostado”, que era a casa de Evangelista, pai de Caburé. Quando o Chico Ferreira, marido dela, che-gou, ela contou pra ele. Ele duvidou: - Foi mesmo mulher! – Foi, ela respondeu. E ele: - Não diz pra ninguém não, vamos cavar. Aí, no mesmo dia, ela foi pra lagoa bater roupa. Quando ela estava batendo roupa, ouviu aquela pancadinha de relógio, teco teco teco, batendo no lugar onde estava a botija. Ela deixou a roupa e saiu cor-rendo com medo, porque não estava acreditando que fosse uma botija. De tardezinha, o marido dela foi até lá. Quando chegou viu uma car-rerinha de pedra, assim uma calçada feito de pedra. Bem no fim da calçada tinha uma pedra quadrada. Quando ele mudou de vista, desa-pareceu a calçada e desapareceu a pedra. Ele pensou: - O negócio não é brincadeira não! Voltou pra casa e contou a ela. Com três dias chegou Estácio, um irmão dela do Maranhão e ela contou pra ele.A botija era para ser tirada com o pai de Caburé, mas com a chegada desse irmão, a mulher endoidou. Esqueceram a recomendação da visa-gem e foram, os dois, tirar a botija. Chegaram ao lugar indicado e me-teram a picareta. Acharam faca de mesa, pedaço de ferro, pedaço de xícara florada e uma lagartinha de ouro. Pegaram a lagartinha de ouro, botaram numa caixa de fósforos e deixaram ali em cima de uma pedra. Continuaram a cavar e só acharam pedaço de ferro, garfo, essas coisas. Desvaneceram porque não tinha mais nada. Aí foram olhar a caixa de fósforos, mas a lagartinha tinha sumido e a caixa de fósforos estava fechada. Então foram embora.Chico Ferreira, o marido da mulher, era muito amigo de Evangelista. Quando foi naquela mesma tarde, lá pelas seis horas, foi até a casa dele e, assim meio encabulado, disse: - Eu queria dizer um negócio aqui, mas eu estou com cerimônia de dizer. É porque a mulher lá de casa sonhou com uma botija pra tirar mais tu e o Estácio chegou lá em casa, pegou a aperrear a mulher e enquanto não sossegou. O pai de Caburé respondeu: - Isso não existe, Chico, tá com bobagem. - Existe amiguinho, só você vendo lá. Aí os dois, Chico e Evangelista, foram ver o local da botija. Onde a mulher e o irmão tinham mexido encontraram cinza, carvão e somente mais uma faca de mesa. Foram cavando, aprofundaram 50 cm e en-

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contraram um forro todo arqueado de uma casinha feita para guardar ouro. Viram a casinha de meio metro pra baixo, mas toda vazia dentro. Na certa, encomenda de algum homem rico pra proteger sua riqueza contra os jagunços. Eles costumavam esconder aquela botija nos matos, perto de uma pedra pra não perder o rumo. Guardava o segredo até dos filhos com medo de ser roubado por eles. Jogava terra por cima, o mato cobria, não ficava um tijolo, uma cicatriz em cima do chão, nada que desse pra se imaginar que ali estivesse enterrado fosse o que fosse. Depois morria com o segredo e virava alma penada por consequência daquela ambição. Certamente, esse foi o caso da dita alma, do vulto que entrou no sonho da mulher de Chico Ferreira lhe prometendo uma botija. Andava atrás de alguém que pudesse aliviá-la daquele peso, arrancar aquela botija e, finalmente, dar serventia àquele ouro, prisioneiro por tanto tempo, mercê de sua ambição. Deu com a mulher de Chico Ferreira, uma tola que não soube aproveitar a sorte. Primeiro não quis dividir a botija com o pai de Caburé e depois, tendo na mão uma lagartixa de ouro, deixou a dita fugir, na certa pensando em encontrar um cama-leão, bicho maior. Nesse seu caso, como no do fazendeiro, a ambição foi fatal. Ninguém enricou. Todos continuaram pobres. Nem mel, nem cabaça.

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QUEM SAIU PERDENDO NO NEGÓCIO Quando Antônio Ferreiro chegou em Lagoa do Mato, no ano de 1963, o lugar pertencia à Fazenda Boa Esperança, propriedade da família Machado, que morava em Fortaleza e pouco andava por lá. Nas redondezas só morava Raimundo Ferreira, um parente seu. Ele casou-se e construiu a segunda casa do lugar. Ficaram as duas casas durante uns 20 anos. Seus moradores criavam porcos na beira da lagoa, ven-diam e também matavam porcos para comer. O resto era mata fechada de pau branco, sabiá, marmeleiro, catingueiro, juazeiro, jurema preta e jurema branca. De onde moravam até perto da estrada, havia um caminhozinho que dava num olho d’água. Tudo ali era propriedade dos Machados, que não permitiam que se plantasse nada. Pelo contrário, eles estavam desmatando, da estrada até chegar nos açudes. A mando dos Machados, as árvores eram corta-das e, em seguida, a madeira era queimada. Até hoje, Antônio não se conforma: “-Eles num vendiam nem um pau. Era cortando e botando fogo. A queimadeira num acabava. O céu era vermelho de tanta fumaça. Eu tenho raiva do IBAMA por isso. O cabra tem dinheiro, faz tudo no mundo e eles num tão nem aí. Agora quando o cara é um batalhador, eles pisam em cima.” Como Antônio possuía um rebanho de cabras e os Machados não queriam mais bichos na propriedade deles, propuseram a compra do rebanho por onze contos de reis. Antônio recusou e veio a contrap-roposta; o rebanho por 100 hectares de mata. Antônio concordou, com a condição que, ao final do desmatamento, ele ficasse com o terreno. Deusdete, o representante dos Machados, após muita argumentação, acabou por ceder, afinal Antônio era morador antigo. Com os outros rendeiros, os Machados faziam trocas bem mais vantajosas, ou seja, os rendeiros cediam o pouco gado ou alguma criação que possuíam em troca do direito de desmatar o terreno e vender a madeira retirada para fazer carvão, durante dois anos, para depois desocupar a terra. Antônio chegou em casa com a notícia da venda das criações e a mulher, em vez de ficar alegre com a conquista do terreno, chorou por causa do leite das crianças que era tirado das cabras. Ele procurou animá-la com os planos futuros projetados para o terreno. “– Troquei por 100 hectares de mata, daqui pro olho d’água. – E o que você vai fazer do mato?” “– Mulher, eu vou fazer roçado, mandar fazer carvão, a madeira de sabiá aproveito todinha pra fazer cerca.” A notícia correu e chegou no ouvido de um sujeito do Ara-cati, especialista em transformar mata em carvão. Foi bater na porta de Antônio Ferreira. Perguntou: “- Seu Antônio, você vendeu a criação?” “– Troquei por um terreno, por essa mata aí.” “– E o valor da mata, quanto é?” Quis saber o sujeito. Antônio respondeu que não vendia, mas o sujeito ofereceu 22 contos de reis no terreno. Antônio pensou: “Caramba, eu vou ganhar é dinheiro”. Resolveu fazer uma proposta. “– Eu vendo por 25 contos de réis!” O outro só queria dar 22. Ficou naquele vai e vem, até que o sujeito cedeu e fecharam negócio por 25 contos de réis, como Antônio queria. Foram então até o Deusdete, representante dos Machados, para tratar do pagamento e da passagem da documentação para o novo

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proprietário. Chegaram na fazenda do Deusdete, quem atendeu foi Zé Francisco, seu empregado. Antônio perguntou pelo dono da proprie-dade: “- Cadê o doutor Deusdete?” Com má vontade, o outro respon-deu: “- O doutor tá dormindo.” Antônio insistiu: “- Mas eu preciso falar com ele.” “– Ele não atende, volte mais tarde.” Antônio desconheceu a negativa: “- Eu tenho que falar com ele é agora!” Foi entrando. Chegou na casa-sede da fazenda, bateu no portão. O próprio Deusdete atendeu. “– Quem é?” “– É o Antônio Fer-reira.” “– O que foi que houve, Antônio?” “– Vendi o mato.” Deusdete mostrou-se admirado: “- Vendeu! Tá bom, é seu. Por quanto você ven-deu?” “Antônio respondeu: - Por 25.” Deusdete: “- Então você vendeu por 25?” Antônio confirmou: “- Vendi.” Deusdete pensou um pouco e chamou Antônio pra mais perto, de modo que mais ninguém ouvisse: “- Tá bom, mas num diga nada ao Zé Francisco. Num diga que eu fiz esse negócio com você não. Senão ele vai dizer pros Machados que eu tô dando chance pra você ganhar dinheiro. E pra você tá bom demais. Vá viver sua vida, pode ir.” Em seguida, Deusdete chamou o outro rapaz, o tal sujeito de Aracati. Disse: “- Você fez negócio com o Antônio, agora comigo é o seguinte: com dois anos você vai me dar esse terreno todinho desmat-ado.” “– Mas Seu Deusdete é pouco tempo!”, choromingou o outro. Deusdete retrucou: “- É não. O Antônio ia passar a vida dele toda aqui, que ele é morador. Agora você não. Você é rendeiro de fora. Você me dá conta disso aí e com dois anos me devolve. Tá aqui o documento, mas só vale por dois anos. Você bote gente pra trabalhar.” Deusdete só vendeu a mata, mas foi o bastante para o sujeito ganhar tanto dinheiro que Antônio, ao final das contas, ficou duvidan-do se fizera bom negócio. Em dois anos, segundo cálculos de Antônio, vendendo carvão e madeira tirada da mata, o sujeito ganhou três vez-es o que gastou no investimento. Entretanto, rigorosamente, Antônio também não podia reclamar, afinal, desfizera-se de um pequeno re-banho de caprinos por 25 mil réis. Tampouco podiam ficar insatisfeitos os Machados, que conseguiram o desmatamento pretendido de 100 hectares a custo zero. Nem podia reclamar Deusdete, que ficou com o rebanho de bodes e cabras de Antônio. Quem ao final das contas saiu perdendo no negócio?

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CORRIDA DE ENXADA Antônio Ferreira, que vocês já conhecem, Velho Careta do Reisado de Lagoa do Mato, roceiro bom de enxada, tinha um amigo com fama maior que a sua, por nome Antônio Rodrigues, morador da Serra do Pajé. O sujeito era mesmo um capinador ligeiro e se valia dessa habi-lidade para tirar partido. Antônio Rodrigues possuía lá seus terrenos e era quem pagava a melhor diária da região, 25 mil réis por dia, naquele tempo. Mas tinha uma exigência, o caboclo precisava acompanhar seu rojão na capina. O pai de Antônio Ferreira dizia admirado: “- Tem pouco homem pra chegar perto daquele Antônio Rodrigues! O filho, que gostava de trabalhar apressado, ficava imaginando: “Será que esse homem é endi-abrado mesmo? Um dia vou tentar.” Até que um domingo, Antônio Ferreira estava jogando bola lá pras bandas da Lagoa de Pedras, quando Antônio Rodrigues chegou numa bicicletinha e apeou-se por ali. Chamou Antônio Ferreira e disse: “- Rapaz, eu queria falar contigo. Eu queria fazer uma empeleita de milho, pra cada hectare dois litros, mas antes de plantar tem que botar toda a mata abaixo, matinha pequena. É pra quatro homens tirar.” Antônio Ferreira respondeu: “- Depende. Quem são os ho-mens?” “- Você, eu, o Leandro e o Antônio Gomes”, informou lá o outro. O Ferreira retrucou: “- Então, você tá perdendo seu tempo, porque o Antônio Gomes num capina, capina mas é pouquim. Pra trabalhar apressado como tu quer, tá perdendo tempo. Vai pagar 50 mil réis? Antônio Rodrigues confirmou: “- Vou.” Ainda assim, Antônio Ferreira se negou: “- Estou fora. Pra trabalhar contigo. Vou não.” Antônio Rodrigues pegou a bicicleta, deu meia volta, foi falar com o Leandro, sócio dele. Tardezinha, voltou na casa do pai de An-tônio Ferreira. Falou: “- Rapaz é o seguinte, nós resolvemos fazer 150 pra você.” Antônio Ferreira espantou-se. Imaginou que só poderia ser um trabalhou muito pesado, pr’aquele preço. Disse num impulso: “- Vou nada!” Mas o pai dele: “- Vá meu filho, num me faça uma desfeita dessa não! Eu na sua idade encarava tudo.” Pra não envergonhar o pai, Antônio Ferreira aceitou: “- Tá bom, eu vou.” Antônio Rodrigues levantou-se, foi até a um canto da sala onde havia uns instrumentos de trabalho, pegou um deles pelo cabo e falou: “- Pra ter certeza que você vai, vou levar logo a sua enxada.” Deu boa noite e saiu. Antônio Ferreira ficou imaginando em que encrenca se metera. Voltou-se pro pai: “- Só vou trabalhar pr’esse homem por causa do sen-hor! Vai ser um serviço muito pesado.” O pai aconselhou: “- É só num deixar o homem ir embora.” No outro dia, o pai fez café, Antônio Ferreira tomou rápido e saiu de casa às quatro horas da madrugada, tirintando de frio. Saiu imaginando: “Meu Deus, o que vai acontecer comigo!” Quando che-gou na casa do outro Antônio, o Rodrigues, o homem já estava prepara-do. Disse: “- Vou levar um queijo, uma farinha d’água e uma rapadura pra gente merendar lá no roçado.” Saíram. Quando chegaram na cerca do terreno, o sol já vinha querendo mostrar o rastro. Deixaram os embornais no chão e encararam o trab-

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alho. Eram os quatro: três Antônios: Rodrigues, Ferreira e Gomes, mais Leandro. Ligeiro Rodrigues pegou a carreira de mato e escapuliu dos outros, tirou cinco metros de dianteira. Ferreira cortando e cortando, Leandro logo depois dele e Gomes, aquele com fama de preguiçoso, ainda no começo da carreira. Antônio Ferreira falou então para Leandro: “- Nós tem que aguentar, não tem outro jeito. Embora eu morra, mas vou tentar.” Começaram a segunda carreira de mato e o homem se distan-ciou do mesmo modo. Na terceira, porém, Antônio Ferreira conseguiu diminuir a distância para três metros, até encostar nele lá pelas nove horas da manhã. Não se sabe se por aquilo, o outro Antônio, o Ro-drigues, parou a enxada: “- Vam’bora merendar.” Antônio Ferreira que estava mesmo com uma fome danada, já sentindo cãibra nos dedos da mão, sentou. Cada qual pegou sua mer-enda. Mas bastou terminar de comer e já estava cada um agarrado com a enxada de novo. Como das outras vezes, Antônio Rodrigues puxou com força o

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ritmo do trabalho, saiu dando distância. Porém, dessa vez, não tardou muito Antônio Ferreira emparelhar com ele. Bastou para que o outro viesse com uma história parecida: “- Vamos almoçar.” Antônio Ferreira ainda quis contrariar: “- Não, vamos até o meio-dia.” Mas o homem não concordou e o jeito foi todo mundo almoçar naquela hora mesmo. Mal terminou o almoço, Antônio Rodrigues já estava agarrado na enxada de novo. Partiu na frente com uns cinco metros, até que na terceira carreira Antônio Ferreira encostou nele e disse: “- Rapaz, é o seguinte, nós vamos morrer agarrado agora, mas eu num te solto mais não. Num tem merenda, num tem almoço, num tem mais nada.” O sol estava no pino do meio-dia, Antônio Rodrigues ouviu aq-uilo e balançou. Pediu: “- Antônio, vamos tomar um café.” O Ferreira, que tava se fingindo de durão, deu uma sugestão melhor: “- Vamos tomar um banho”. Parecia combinado. Foram os quatro. Até Antônio Gomes, que estava lá atrás correu. Mergulharam na barragem. Durante o mergulho, Ferreira sentiu a pele encolher como se a água fervesse ao seu contato. Foi até ao fundo, fez força com os pés e voltou à tona, saindo rápido d’água, com medo de “estoporar”, como se diz no sertão. Os quatro se enxugaram no sol mesmo. Foi só o tempo de tomar um café e voltar ao trabalho. Nova carreira de mato e Antônio Rodrigues, como sempre, lar-ga na frente, deixando todos os outros para trás. Antônio Ferreira, desta vez, vai diminuído pouco a pouco os cinco metros que os separam e logo emparelha com o outro Antônio. Pensa lá com ele: “Agora eu num deixo mais ele não.” Começou aquela briga, uma enxada batendo na outra, um pé triscando no outro, subindo e descendo, subindo e de-scendo. A cãibra dava nos dedos, Antônio Ferreira largava a enxada, puxava os dedos, voltava de novo. A enxada subindo e descendo, o suor pingando. O outro Antônio parece que não sentia nada, mas o Ferreira não desgrudava dele. O mato aos poucos ia diminuindo, mas as horas corriam mais ligeiras. Os outros dois capineiros ficaram para trás. Leandro, um pouco mais esperto, ainda se via. Antônio Gomes, coitado, continuava per-dido no meio da mata. Deu quatro e meia, deu cinco horas, quando foi cinco e meia a parte dos dois Antônios (o Rodrigues e o Ferreira) no serviço estava terminada. Ambos estavam vencidos. Vieram embora. Os outros ainda ficaram por lá terminando a tarefa. Chegaram no sítio onde morava Antônio Rodrigues, e se en-costaram numa bodega esperando os outros. Antônio Ferreira pediu uma carteira de cigarro e um copo de cachaça. O bodegueiro deu. Depois, como estava com uma dorzinha de cabeça, pediu um com-primido de Melhoral. O bodegueiro trouxe e Antônio Ferreira tomou o comprimido. Com pouco tempo chegaram Leandro e Antônio Gomes. Sen-taram por ali, descansaram. Chegou a hora de prestar conta. Antônio Rodrigues disse: “- Leandro, o Antônio Ferreira merece duzentos, pode dar duzentos a ele, eu disse duzentos.” Leandro abriu a gaveta da bodega, porque aquela bodega era do Antônio Rodrigues, tirou os duzentos e deu para Antônio Ferreira. Ele recebeu e disse: “- Desconta aí o comprimido, a cachaça e o cigarro.” Mas Antônio Rodrigues não aceitou: “- Isso aí você num precisa pagar não.” “- Tá bom”, respondeu o Ferreira. E foi embora.

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Antônio Ferreira não havia caminhado nem 100 metros quan-do começou a sentir o corpo pesar como nunca havia sentido e pesava de tal forma que mal podia com ele, quanto mais com a enxada. Sen-tou exausto e perguntou: “- Meu Deus, que serviço foi esse que eu fui arranjar?” Depois saiu arrastando a enxada caminho afora. Chegou em casa lá pelas sete da noite. Mal apontou no copiar e já o pai conheceu. Gritou para se certificar: “- Antônio?” E ele: “- Senhor?” O pai quis saber: “- Como foi lá?” Antônio respondeu: “- Eu num disse, pai! Só o senhor indo lá, porque eu nunca mais vou trabalhar pr’aquele homem não.” Antônio Ferreira entrou e do jeito que estava foi se deitar.Com pouco, o pai aparece no pé de sua rede, devagarzinho, lamparina acesa. Pegou no braço do filho e assustou-se: “- Vixe, o homem que-brou o reis, tá com febre, tá esgotado mesmo.” A mãe ouviu a conversa e disse: “- Que conversa! Dou já um jeito.” Trouxe de lá um chazinho de eucalipto com umas mezinhas, mas Antônio quis recusar. “- Não mãe, num tô com febre não.” Ela insistiu: “- Toma que mal não faz.” Ele tomou e dormiu. Precisava descansar. Dormiu e dormiu. Quando amanheceu, acordou bonzinho, sem febre, só com uma dorzinha nas costas. O pai perguntou: “- E aí?” Ele respondeu: “- O sujeito pra trabalhar mais o Antônio Rodrigues tem que ter muito cuidado na vida, se descuidar o homem vai embora. E o pai: “- Eu falei pra num deixar o homem sumir.” Antônio contou-lhe, então, como alcançou o impossível do sujeito somente na parte da tarde. Estavam nessa conversa quando lá vem o dito Antônio Rodrigues, de bicicleta, achando graça. Deu bom dia, encostou a bicicleta e disse rin-do, mas de vera, entrando logo no assunto: “- Antônio Ferreira, lhe dou 150 mil réis todo dia, pra você trabalhar mais eu, só eu e você. Aceita?” “- Seu Antônio Rodrigues, leve a mal não, mas eu num quero não. Pra trabalha mais o senhor?! Quero nada. Eu tô todo arrebentado, tá tudo doído, o peito, as costas...” Antônio Ferreira falava e ia mostrando as partes do corpo, no que o outro Antônio interrompeu: “- Deixa de ser bobo, isso ai num vale nada não. Isso é só no primeiro dia. Com cinco dias tu trabalhando mais eu, tu fica aprumado e tem uma coisa, nin-guém vai mais tu, tu fica sozinho na frente.” Antônio Ferreira negou-se. O Rodrigues pelejou, pelejou, mas não teve como fizesse ele aceitar. Até que o pai do Ferreira se meteu na história: “- Vai rapaz, vai ganhar dinheiro. É só não deixar ele sumir.”Antônio Ferreira, como não tinha costume de desobedecer orientação do pai, foi. No primeiro dia sentiu igualmente o peso do trabalho. Nos dias seguintes, mesmo não tendo hora pra pegar nem pra largar, o cor-po foi se acostumando. Lá para o final da semana, o cansaço já não era tanto. Antônio Ferreira se “aprumara”, como bem previra o Rodrigues. No sábado Antônio Ferreira voltou para casa, satisfeito. Afinal, nunca ganhara tanto dinheiro em tão pouco tempo. Continuaram a trabalhar juntos os dois, na limpa, no plantio e na colheita. Safra grande, serviço de dois homens que valia por de cinco. No ano seguinte, Antônio Ro-drigues chamou novamente o Ferreira, pagava a ele três vezes o preço da diária de um trabalhador comum. Queria alguém que trabalhasse como ele, que acompanhasse seu rojão na enxada. Por isso aquela prova, pra forçar o sujeito a trabalhar ligeiro, preparar um parceiro bom de enxada do tope dele. Foi a maneira que encontrou de aumentar a produção.

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A SUJEIÇÃO DE ANTIGAMENTECaburé ainda pegou as terras que hoje são do assentamento quando elas pertenciam à Fazenda Boa Esperança. Como Antônio Ferreira, foi morador da tal fazenda e conheceu bem o sistema de vida e trabalho nela vigente. Falou por experiência: “- No tempo que era dos Machados o cara trabalhava por uma diária que se muito valia hoje dez reais, cortando cana, plantando cajueiro, abrindo buraco para plantar, fazendo cerca, o que precisasse. Não tinha água encanada, nem energia, nem escola, era na luz do querosene. Morador era pouco, o lugar era muito esquisito, as casas tudo de taipa. O dono não queria que você criasse uma vaca, uma ca-bra. O fiscal era todo tempo no pé. Nem brincadeira de reisado tinha. Tinha um fornecimento, mas no fim do mês a gente ficava devendo, era uma carestia incrível. Eu comprava hoje e já estava devendo, fi-cava preso pela dívida. Ia deixando tudo que possuía lá, aos poucos. Nos açudes ninguém podia pegar peixe, se fosse tinha um limite para pescar. De noite, andava um fiscal nos açudes, levando os galões da gente. No roçado sempre era obrigado a dar uma parte aos patrões. Se quisesse sair da fazenda não podia.”

O GATO CHACÁSeu Antônio Ferreira tinha um gato de raça desconhecida por lá. Por certo que devia ter uma raça, já que todo gato tem raça, por mais pé duro ou vira-lata que seja. Sendo assim, mestre Antônio diz que ele tinha raça, embora desconhecida por lá. O fato é que o gato, por nome Chacá, era como um cachorro. Tanto que caçava preá, como nenhum outro. Caçava preá e vinha deixar pro mestre Antônio na rede. Comia só a cabeça. Depois, levava o resto pro dono. Mestre Antônio estava enrolado na rede, mas o gato Chacá lhe puxava o lençol e fazia o homem acordar. Entregava o bicho caçado ainda há pouco. Quem gos-tava era a mulher do mestre de reisado, porque preá tem carne boa de se cozinhar. Como recompensa, mestre Antônio deixava o gato dormir ali, embaixo da rede, perto dele. O gato Chacá era caçador como nenhum. Saia se esgueirando, assim abaixado rente ao chão, num passo lento como se deslizasse. O passarinho nem notava. Via o rabo do bichano balançando e ficava entretido naquele movimento rápido, como quem está hipnotizado. Então o gato Chacá dava um salto feito um bote de cobra e adeus pas-sarinho. O gato Chacá também pegava cobra, era como um cachorro, era como uma onça. O gato Chacá era feito gente. Um dia, mataram o gato Chacá e Antônio Ferreira perdeu o gosto. Até que apareceu outro gato, mas ele bebia o leite dos meninos e a mulher de Antônio não quis saber, botou ele pra fora.

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O GATO E A ONÇA Seu Antônio conhece bem os gatos. Diz que eles calculam. Pra pegar rolinha, o gato vai assim quase rente com o chão. O rabo dele é que atrai a presa, feito um magnetismo, um hipnotismo. Ele chegando e o rabinho balançando. Ele não dá bote perdido. Daí aquela história do pulo do gato. Nasceu assim: A onça, se fazendo de amiga, chegou-se pro gato e pediu: - Camarada gato, me ensina todos os truques que você faz. O gato danou-se a ensinar. Pula pra cá, pula pra lá. A onça certa que tinha aprendido tudo. Até que apareceu uma lagartixa e o gato foi pegar. Então a onça pensou. É agora que eu pego ele. E quando o gato foi apanhar a lagartixa, a onça pulou em cima dele. Mas quando ela foi o gato deu um salto mortal e escapou. A onça disse: - Esse você não me ensinou. - E eu vou ser besta, pra você me pegar! Respondeu o gato. A isto se chama pulo do gato.

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AS DESVENTURAS DE BÓRIS, O CACHORRO NAMORADOR Notei Bóris logo na primeira noite, ele de preto quase fechado, sentado na primeira fila da platéia, prestando muita atenção à brinca-deira do reisado. Parecia contente, sem tirar a vista de tão concentrado. Incomodou-se, quando um sujeito, sem a menor cerimônia, tomou-lhe a frente, enxotando o vira-lata para fora do terreiro. Era um cachorro grande, vira-lata dos puros se é que existe, pelo macio e negro, com uma mancha alva por baixo e nas patas, como se usasse uma camisa branca por dentro da casaca escura e luvas. Mais tarde, quando fomos nos recolher, passei por Bóris e ele estava acorrentado ao pé de uma fruteira, próximo ao terreiro onde o Reisado de Lagoa do Mato acabara de se apresentar. Inquieto, movia-se de um lado para o outro como se estranhasse a corrente limitando seu espaço. Fui dormir e ele grunhindo, chorando. O assentamento aquietou-se e só ele naquela agonia latindo, gritando sem deixar nin-guém dormir. Fiquei sem paciência, tive pena. Hesitei, eu não era dono do bicho. Porém achei demais, o sofrimento. Pedi ao Alex, nosso mo-torista, que soltasse o cachorro. Ele concordou, também não conseguia pegar no sono. Antes de sair correndo, Bóris fez muita festa com o Alex, agra-decendo a soltura. Depois desembestou na carreira noite afora. Só foi voltar no outro dia, sol alto, mancando de uma pata. Briga de cachorro. Quem contou foi Antônio Ferreira, o dono do cão. Fui me desculpar, quando soube que Bóris voltara com a pata ferida. Antônio explicou seus motivos para prender o bicho. Bóris tinha uma namorada em sítio ali próximo, que estava no cio. Fêmea disputadíssima pelos cachorros da vizinhança. Antônio não contou às vezes que Bóris voltou pra casa, ferido. Daí a precaução. Pelo visto, porém, Bóris preferia a aventura. Seu Antônio sabia disso. “- Ele é bonzinho, manso, mas se estiver solto e alguém quiser passar essa cancela, ele não deixa”, contou. “– Lembro que no dia da posse do Prefeito de Forquilha, um colega meu com umas cinco pessoas vi-eram aqui, de noite, me buscar. Eu só ouvi aquela gritaria: - Chega, seu Antônio, senão esse cachorro me pega! Chega, o cachorro está me pegando! Eu gritei pára e ele parou.”

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O ESTUDANTE E A ECOLOGIA Francisco Romário Rodrigues acorda ainda noite fechada. Toma café junto com a irmã e os dois atravessam a pé a légua de caminho que separa o assentamento de Lagoa do Mato da estrada asfaltada onde passa o ônibus escolar da Prefeitura de Sobral. Às seis horas começam as aulas na Universidade do Vale do Acaraú, onde os dois estudam. A irmã faz Pedagogia, e Romário, Geografia. Os dois são os únicos uni-versitários do assentamento, por isso mesmo orgulho dos demais mo-radores. As aulas terminam às 11:00 horas e logo às 12:30 eles estão em casa. Romário ainda não tem 20 anos de idade. Embora goste também de matemática, sua vocação maior é a geografia, particularmente a geo-grafia do semi-árido. Explica o gosto, em parte, por influência de um professor que teve no 2° Grau, Maurício Mendes.Em sua conversa revela particular preocupação com a geografia local. Do assentamento, mais especificamente, sobre a qual pretende fazer sua monografia no final do curso. Nesse ponto, não está muito satis-feito com os estudos. Queixa-se, por não haver tido oportunidade, até agora, de se voltar para o tema de sua preocupação.Mostra intenção de buscar parceiros para lutar pela recuperação da natureza do lugar. Tem dúvidas, porém, sobre o que fará depois de se formar, se continuará no assentamento ou não. Os demais jovens trabalham na agricultura ou numa pedreira, que funciona nas proximi-dades do assentamento. O forno da pedreira é alimentado por lenha retirada da caatinga. “Além disso, observa Romário, existe o costume da queima, na preparação da terra para o plantio. Já se nota a erosão no pé da serra, por causa do desmatamento. E continuam derrubando mata. Tenho pra mim, que daqui a 50 anos, a natureza tem se acabado por aqui.” Seu pai era trabalhador rural em Lagoa do Mato, torcedor do Flamengo, admirador do Romário, então envergando a jaqueta rubro-negra. A mulher foi parir, como era costume, numa maternidade dentro da cidade de Sobral. A criança nasceu homem e ganhou o nome do ídolo flamenguista. Cresceu e começou a jogar futebol, jogando na fr-ente, curtindo uma de Romário, para orgulho do pai. Porém, cresceu demais. Ganhou características diferentes do “baixinho”. Hoje, estudante universitário, continua a admirar o futebol de Romário, mas é de opinião que ele fala muita besteira e teve deslizes em sua car-reira profissional.

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PARA FAZER SUCESSO COM AS MENINAS Roseno de Oliveira Rodrigues tem apenas 19 anos e já é o Magarefe do Reisado de Lagoa do Mato. Entrou no grupo a três anos como Caçula, logo passou a Mateus e em seguida a Magarefe, o Careta responsável por matar o Boi. Atribui promoção tão rápida, talvez ao fato de Antônio Ferreira ter brincado no reisado de seu pai, Raimundo Altino, ao tempo em que moravam no Lisieux, lugarejo da Serra do Pajé, dali não muito distante. Certamente tem razão, pois que mestre não quer ter em seu grupo, cumprindo funções importantes, alguém nascido e criado dentro da brincadeira!?Quando Roseno nasceu, seu pai já era um senhor de certa idade e es-tava no segundo casamento. Do primeiro teve nove filhos e do segundo três. Rosendo é um dos últimos. Lembra que, muito pequeno ainda, acompanhava o pai nos reisados. A primeira vez foi na quadra da fa-zenda nova. O pai foi convidado, o chamado era longe e ele estava muito cansado. Decidiu ir de última hora. Improvisou uma máscara e levou Rosendo. O menino teve medo da Velha e do Boi, mas era com medo e achando graça. O pai de Rosendo não viu o filho brincar. Faleceu um ano antes de ele botar no rosto a careta do Caçula, primeiro pra brincar com o primo Darlei e depois no Reisado de Antônio Ferreira. Nem por isso deixa de estar presente: “- Todo Santo Reisado quando estou brincando me lem-bro do meu pai. Penso que ele gostaria de ver um filho dele brincando. Eu me inspiro nele.”De resto é só alegria: “- Quando estou brincando me sinto alegre, só ouço o som da sanfona”. Queixa-se porque a juventude ainda dá pou-co valor ao reisado, “acha que é coisa de velho”, embora alguns jovens comecem a se interessar. De sua família, atualmente, brincam ele e um irmão. Para ele, brincar reisado só torna a pessoa um pouco mais conhecida, não consegue que faça sucesso com as meninas. “- Elas vão mais pra rir, mas acabam gostando.”Rosendo, além do reisado, divide o tempo entre o trabalho na roça e o estudo. Terminou o segundo ano secundário e já pensa no ves-tibular para biologia, por causa de uma professora “que dá os mínimos detalhes de tudo”. “- Me chamou a atenção o jeito dela ensinar.” No sábado, apresenta um programa de forró na rádio comunitária, embora goste de todo tipo de música.

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GRAÇAS A DEUS TEMOS ÁGUA O Presidente da Associação dos Assentados de Lagoa do Mato conta como a água foi se chegando até eles. No início ela ficava no Saara, um açude situado à distância de uns dois quilômetros da antiga fazenda onde moravam, antes dali virar assentamento. Depois, a água aprox-imou-se mais um quilômetro. Como precisava muita forragem para o gado, os donos da fazenda mandaram cavar um poço profundo e os moradores aproveitavam para ir buscar água no lombo de um animal ou mesmo DE bicicleta. Até que, com o assentamento, formada a asso-ciação, ele, presidente, cabra bom, batalhador, formou uma comissão e, com o Prefeito de Sobral, conseguiu um chafariz. Organizou outra comissão, foi ao INCRA e conseguiu dez mil reais para puxar a água até o centro do assentamento. Faltou dinheiro para fazer a base da caixa d’água, mas o assentamento está localizado em terreno com grandes lajedos, aflorando, aqui, acolá do chão limpo. O presidente olhou um deles, bem no centro do casa-rio, com cerca de sete metros de altura, e encontrou a solução. Uma enorme caixa d’água foi colocada bem no alto desse lajedo e a encana-ção sai dela diretamente para as casas.Agora, o presidente organizou uma nova comissão e o projeto de um açude está sendo preparado para ser levado até ao governador. “- Gra-ças a Deus temos água”, diz ele, enquanto arregaça as mangas para formar uma nova comissão. Dessa vez o objetivo será levantar uma casa de farinha.

OBSERVAÇÕES SOBRE A NATUREZA Antônio Ferreira gosta de observar os insetos quando quer saber do inverno. Se o cupim estiver começando a se vestir é porque o inverno será bom. Dia desses, quando andava atrás de abelha, foi ver umas itali-anas que aproveitaram um buraco de cupim para fazer uma colméia. Depois do mel, lá no fundo do buraco, estavam os cupins, com a bunda enorme, em suas roupas de inverno. Sinal de chuva próxima, pensou ele. As antenas dos bichos captam sinais imperceptíveis aos humanos. Também s formiga quando faz as estradas largas, o caminho bem ab-erto, é porque vai chover. Se tudo fosse continuar seco, suas estradas continuariam estreitas. Outros que conhecem o tempo são os passarin-hos. É preciso conhecer seus costumes. Os bicos de latão, por exem-plo, quando estão começando a cantar, a furar o chão com seus bicos grandes, a furar as sobranceiras das grotas dos riachos, para fazer os ninhos deles, como agora, é um sinal.

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SINAIS DE CHUVA Mané Russo já preparou suas roças em Lagoa do Mato, três hectares de terreno, porque sabe que o inverno vai ser bom. Viu o mu-fumbo se esgalhar e o exu fazer mel. Experimentou até as três pedras de sal e as viu derreterem logo. Por isso, tem fé na roça de mandioca, milho, feijão, jerimum e melão que preparou.

MATANDO CALANGOS Em Lagoa do Mato, como de resto Brasil afora, é diversão de menino caçar calango e passarinho de baladeira. Antes, não era fácil acertar, com baladeira de borracha tirada de câmara de ar. Já hoje, com bala-deira de borracha cirúrgica, daquelas usadas para aplicar soro, não tem calango ou passarinho que escape. A pedra vai com velocidade tal, que o bicho se estraçalha. Mané Russo ficou olhando aqueles meninos caçando e pensou: “Daqui a pouco, nem mais calango tem por aqui.”

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ANTÔNIO FERREIRA E O TRABALHO DAS FORMIGASEm Lagoa do Mato, Antônio Ferreira trava uma luta de vida ou morte contra as formigas. Isso, porém, não o impede de lhes admirar o trab-alho. Por experiência na roça, sabia que elas não atacam o milho, nem o feijão. Nem mesmo comem-lhes as folhas. O trabalho das formigas é cortar todas as folhas dos pés de milho e feijão. Umas cortam, para as outras levarem os pedaços para o formigueiro. As únicas que trabalham são as pequenas, porque a grande, a rainha, fica no formigueiro bem guarnecida. Isso era o que ele pensava, pelo menos.Certa feita, quando observava, por acaso, o trabalho das formigas, descobriu uma das serventias da rainha. No leva e trás das formigas com os retalhos de folhas, notou que elas mostravam dificuldade em transportar um pedaço maior. Juntaram-se duas, três e mesmo assim não conseguiram. Até que desistiram, pelo menos foi isso o que pensou Antônio Ferreira.Qual nada, logo voltam acompanhadas com uma grandona, a rainha. Bom, agora ela veio para levar o pedaço que as outras não estavam conseguindo, raciocinou Antônio. Qual nada, a rainha senta-se em cima do pedaço de folha e fica lá, as outras rodeando a soberana. Mas logo, Antônio atina para a situação: a rainha com suas tesouras saiu cor-tando a folha e às demais poderiam, então, cumprir a missão de levar agora a folha, em pedaços menores, até o formigueiro. Mas o que Antônio Ferreira não sabia sobre as formigas, passou a saber quando conheceu um laboratório de experimentações em Fortaleza. Primeiro brincou com o agrônomo (ou era veterinário?): “- Você tá cri-ando isso aqui. Pois lá no sertão, a gente bota é veneno.” Acabou por dar o braço a torcer. Viu o que as formigas fazem com os retalhos de folhas que carregam dos roçados. Levam para uma espécie de estufa, dentro do formigueiro, onde aqueles pedaços de folhas viram uma es-pécie de adubo, que lhes serve de alimento por muitos dias. Só quando aquele estrume acaba, elas voltam em busca de mais alimento.

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PUNIÇÃO EXEMPLAR Nas serras próximas ao assentamento de Lagoa do Mato ainda se pode encontrar tatu, peba, tamanduá e soim, porque soim gosta da resina do angico e lá tem muito angico, como tem a aroeira. Por isso, no assentamento, se está proibido cortar árvore nas serras, quanto mais cortar uma serra e ficar levando aos pedaços. Pois foi isso, exatamente, o que aconteceu uns quatro meses atrás, quando a Prefeitura de Santa Quitéria estava fazendo um calçamento no Lisieux. Até aí tudo bem, obras de melhoria urbana, só que quem em-preitou o serviço estava tirando pedra em um serrote localizado no Assentamento de Lagoa do Mato, município de Sobral e, além do mais, estava desmatando o terreno ao longo do transporte entre a pedreira e os caminhões. Isso tudo sem permissão dos assentados. Quando soube do caso, Antônio Ferreira, em nome dos assen-tados, foi até lá e questionou com que autorização faziam aquilo. Eles responderam: “- Com ordem do Prefeito de Santa Quitéria.” Ao que Antônio retrucou: “- O Prefeito de Santa Quitéria manda no município dele. Aqui é Sobral. Acho melhor vocês pararem por aqui.” Então os homens quiseram entrar num acordo: “- Nós tiramos dez carradas. A gente só quer isso.” Antônio, entretanto, não encompridou conversa: “- Eu não quero dinheiro não. Podem levar as dez carradas. Agora, é o seguinte, eu vou ligar para o IBAMA e ele vai cobrar de vocês.” – Não, Seu An-tônio, pelo amor de Deus não faça isso!” Os homens ficaram apavora-dos. “– Então, pronto. Vocês param por aí.” Antônio veio embora, deixou pra lá. Os homens da Prefeitura de Santa Quitéria, porém, não cumpriram o trato, voltaram para pegar outra carrada de pedra. Contrariado, Antônio foi ao IBAMA e de lá telefonou para o INCRA. Quando o IBAMA chegou na pedreira os su-jeitos haviam saído, mas não escapado da multa. Junto com Antônio, os representantes do IBAMA foram até o Lisieux e multaram a empresa encarregada do serviço para a Prefeitura de Santa Quitéria, por des-matamento, agressão à natureza, invasão à propriedade e apropriação indevida de recursos naturais.

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A ARTE DO REISADOA grande ligação de Antônio Gerardo Gomes de Vasconcelos, 45 anos, com os assentados de Lagoa do Mato é o reisado, arte que herdou do pai, Gerardo Domingo Vasconcelos, também agricultor e velho conhe-cido de Antônio Ferreira na brincadeira. Mas quando ele vem brincar no reisado do assentamento, atendendo ao chamado do amigo An-tônio Ferreira, vem emprestado. Seu reisado é de Juazeiro, comuni-dade localizada dentro do município de Forquilha, antigamente parte de Sobral. Lá ele é o Careta Velho, cabeça do folguedo.Conta Antônio Gerardo que aprendeu reisado com seu tio Isaías Pereira, tendo visto pela primeira vez uma brincadeira aos sete anos, na casa de Seu Juca Gomes, justo no dito Juazeiro. Por sinal teve medo até porque falavam que a Velha pegava as crianças para colocar no quarto do Boi. O menino assombrou-se, mas o sobrosso passou ligeiro e logo o me-nino estava correndo atrás do Babau. Com 16 anos entrou para o reisado do tio, passando de figura em fig-ura: Caçula, Liseu, Mateu, Poeta e Macambira. “- Macambira é um Careta que imita uma pessoa muito atrasada, uma pessoa caipira. Então o Velho chama: Ô Macambira! E ele responde: Lai vai eu, meu pai/Canto da zimbira/Da mata trago a rama/Da rama trago a fulô/Da fulô eu trago a caça/Da caça melhor sabô./Deus salve essa trindade/Deus salve o imperadô/Salve o rei e a rainha/Salve os home e o Criadô.” Já o Mateu, que no Reisado de Caretas não é cômico como no Reisado de Congos, é o Careta que faz a entrega do Boi ao Capitão dono da casa, cantando, mais ou menos assim: “O meu curral é bem feito/Da madeira do alecrim/Faste lá a cabroeira/Que eu levo o Boi sozim.” Em seguida, Antônio Gerardo sai enumerando os Bois exis-tentes em Sobral, o do seu reisado chama-se Boi Coração, porém a lista de nomes é grande: Boi Lagartixa, Boi Fumaça, Boi Poeira, Boi Palestra, Boi Cultural, Boi na Roça, Boi Troféu, Boi Floresta ... , cada qual com um desenho distintivo na testa. O do Boi Floresta, por exemplo, é uma flor. No Boi Coração de Antônio Gerardo, que por ser do ciclo na-talino é um Reisado de Caretas, tem como figuras os Caretas: Caçula, Mateus, Liseu, Poeta, Macambira, Magarefe e Caboclo, a Velha Careta por nome Zumira; os Soldados: Cabo Tenório, Tenente Rufino e Del-egado Pincel; e como entremeios: o Boi, a Burrinha, o Bode, o Jumento Babau (que é o mesmo Cavalo Velho) e o Caçador (o mesmo Macaco). Antônio Gerardo ao explicar sua atuação no reisado, mostra uma noção muito precisa de seu ofício: “- Quando eu estou brincando eu penso numa grande representação cultural. Eu me dedico, me pron-tifico só naquilo, num tenho outro assunto, ninguém me atrapalha. A minha sintonia tá ligada ali dentro no meu trabalho. Eu uso máscara, a minha voz se modifica, eu não ando do mesmo jeito. A gente muda alguns tons no corpo, muda a voz, muda alguns gestos. Porque ali é o seguinte: tá precisando de um velho bem velho, não é como você não. Tudo muda, muda voz, muda o sistema de andar, o sistema de conver-sar, a gente muda no geral.”

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GANHOU MAIS DO QUE PERDEU Fazendo hoje um balanço, Antônio Gerardo pode dizer que ganhou mais do que perdeu no reisado. No ano de 1983, lembra-se bem, fez uma grande excursão com seu reisado por todo o sertão do Aracatiaçu. Atravessou Itapajé, Miraíma, Catunda, indo parar em San-tana do Acaraú, onde ganhou um troféu das mãos do próprio Prefeito, sendo bem recebido e aplaudido de pé pelo povo da cidade. Porém o melhor mesmo que arranjou com o reisado foi uma noiva, brincando solteiro, na casa dos 22 anos de idade. Fazia o Careta Macambira e a moça admirou muito sua dança, gostou do seu trabalho, me disse lá ele, tanto que quando Antônio Gerardo chegou de frente e pediu licença ao pai dela, já recebeu um bilhetinho marcando um encontro seu com a família dela. “- No outro dia fui lá, cheguei e con-versei o que eu ia atrás de conversar. Mais ou menos você entende o que seja.” Mas se ganhou uma noiva, perdeu outra. Foi quando brincava de Mateu. Antônio Gerardo jogou um lenço nela, pra receber de volta uma prenda, sabe-se lá, se não fosse dinheiro, uma flor, ou um beijo pelo menos. Porém a desinfeliz, quem sabe por brincadeira, colocou uma pedra no lenço e devolveu ao Mateu. Depois de verificar, dentro da brincadeira, o Mateu teria saído com uma pilhéria qualquer, uma gaiateza. Entretanto, quem reagiu foi o noivo afetado. Quando viu a pedra, Antônio Gerardo zangou-se e disse na frente de todo mundo: “- Isso é bom de pegar é chifre!” A moça foi embora e no outro dia rompeu o noivado. Antônio Gerardo aprendeu a lição. Perdeu essa noiva, mas de-pois arranjou aquela de quem já falei. Tratou direitinho. Conviveram muito tempo. Só se separaram quando ela faleceu.

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ANTÔNIO FERREIRA E SEU MESTRE DE REISADO Antônio Ferreira só veio a conhecer seu tio Raimundo Altino no ano de 1958. Assistiu duas apresentações do reisado dele e encantou-se. Junto com um colega de nome Narciso, tratou de aprender tudo, da voz ao gesto, da música à fala. Combinaram formar, eles também, um reisado. Imaginaram cada parte, da abertura da porta à despedida final. Os dois brincavam dentro de casa, imitando cada parte, cada figura, cada bi-cho, cantando, dançando, topando bicho, improvisando loa, relaxo, fazendo gracejo, prosando com a mãe de Antônio Ferreira, que fazia às vezes do dono da casa. Ela corrigia um e outro, uma rima defeituosa, um pé quebrado, porque, além de gostar muito de reisado, entendia da arte. O corpo estava preparado, a língua estava afiada, faltava so-mente a armação dos bichos e o traje das figuras. Antônio Ferreira man-dou chamar Zé Agostinho, o melhor carpina do lugar. Perguntou por quanto ele fazia um Boi, uma Burrinha e o Jumento Babau. Zé Agostin-ho respondeu: “- E faço até o Caçador. Mas você tem dinheiro pra me pagar?” “- Agora você me apertou”, respondeu Antônio Ferreira. “Eu num tenho dinheiro, mas posso pagar com trabalho nosso. Se o senhor tiver serviço pra fazer de capinar, a gente vai pagando o senhor assim.” Zé Agostinho aceitou: “- Eu vou querer mesmo que vocês me ajudem é nas capina. O reisado é em mês de inverno, dezembro pra janeiro, eu vou capinar os matos e vocês veem me ajudar. Antônio Ferreira e Narciso concordaram. Assim foi feito. Quando os bichos ficaram prontos, começaram os ensaios. Candidato a brincante não faltava. Homem, rapaz e menino, princi-palmente. Tocador era mais difícil, só havia Francisco, um pifeiro. O sujeito tocava bem, mas nunca tinha ouvido um baião de reisado. Foi preciso Antônio Ferreira assoviar para ele entender. Também, não de-morou a pegar e sair tocando no pífano. Gostou da idéia e aderiu ao grupo. “- Agora vocês tem que arranjar um pandeiro e um triângulo.” Antônio respondeu: “- Danou-se! Dinheiro ninguém tem pra comprar.” Francisco não se avexou: “- Não rapaz, a gente arranja um couro de carneiro novo, ou de raposa, manda limpar, porque de qualquer ma-neira dá um jeito.” Foi o que aconteceu. Antônio Ferreira conseguiu um couro de ovelha, raspou bem raspado e fez o pandeiro. A batucada saia mais baixo, porém saia. Começaram brincando toda noite no terreiro de casa mesmo. Uma tia sua fazia pipoca e mandava para os brincantes comerem com rapadura. Essa era a paga. Ao final de um mês o grupo estava preparado para começar. O primeiro convite que chegou foi do Zé Artur, pra que An-tônio Ferreira botasse o reisado junto com ele. Quando juntaram os grupos, faltava um Careta bom, que puxasse a brincadeira. Só havia um da qualidade, Raimundo Altino. Antônio Ferreira foi até ele. Raimundo recusou: “- Vou não, pra você eu podia até fazer o serviço. Agora, pro Zé Artur, não. O reisado é dele, você vem trabalha pra ele, e eu num vou não.”

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Antônio Ferreira voltou, contou o acontecido para Zé Artur, que sugeriu: “- Você tem que fazer alguma oferta pro homem, sua obrigação é fazer uma oferta.” “- Então, faça o seguinte (disse Antônio Ferreira), me dê um litro de Imperial que eu volto na casa dele agora mesmo.” Zé Artur trouxe o Imperial, uma espécie de quinado, e An-tônio Ferreira meteu o pé no caminho. Com pouco chegou na casa do homem. Raimundo Altino estava sentado com a mulher dele, da segunda família. Deu boa noite e disse: “- Tio Raimundo, eu vim aqui pra você ir pro reisado mais eu.” “- Não, eu já te disse, eu num trabalho mais o Zé Artur”, ele respondeu. O sobrinho insistiu: “- Mas por que?” “- Porque ele é muito pão duro, num abre a mão pra gente em nada, num quer pagar a ninguém. Num sei qual é a dele!” Então, Antônio Ferreira virou-se para a mulher do tio: “- Rai-mundinha, me empresta um copo aí.” Enquanto ela pegava o copo, ele puxava a garrafa, despertando a curiosidade do tio: “- O que é isso aí?”, ele perguntou. “- É mel”, disse o Ferreira, desenrolando a garrafa. Raimundo Altino achou graça: “- Ah, rapaz, um imperialzinho é muito bom!” E foi se animando. Antônio Ferreira encheu outro copo. Rai-mundo Altino repetiu: “- Meu filho, eu podia até te ajudar, mas o Zé Artur...” Depois calou-se, ficou olhando pro copo uns dois minutos e falou: “- Mas não se incomode não, tire o Zé Artur do meio, deixe ele pra lá e vamos se entender só nós dois.” Antônio Ferreira encheu novamente o copo de Raimundo Al-tino. Dona Raimundinha reclamou: “Oi lá, Raimundo num pode beber mais não, já dois copos cheio.” “- Que nada, mulher, disse o marido, isso lá embebeda”. Tomou o copo de uma vez pra resolver o assunto: “-Antônio eu vou te ajudar.” Antônio Ferreira foi numa pisada só até onde estava Zé Artur: “- Pronto, arrumei o homem. Agora tem uma coisa, você vai deixar o homem comigo, tudo o que ele precisar é comigo.” Quando foi no dia do reisado, Raimundo Altino chegou na fes-ta, o terreiro da casa cheio de gente, só ouviu o povo comentar: “- Num é que o homem veio!” A quem se admirava, ele respondia: “- Eu vou brincar pra vocês, agradeçam a esse aí, o Antônio.” Quando o reisado iniciou e Raimundo Altino tomou a palavra, que abriu a boca, sua voz chega estremeceu tudo. Começou a louvar o alpendre, das telhas desceu pelas ripas, enfiou-se pelas paredes, en-trou porta adentro, quando deu fé já estava na cozinha passeando nas panelas, dando vivas à paçoca e ao baião de dois, tomando café com a dona da casa, meteu-se de repente quintal a fora, foi tirar mel de abelha no oco do catingueiro, depois entrou com o cupim dentro de um formigueiro. Um improviso extenso cheio de poesia e gaiatice, que fazia o povo às vezes ficar imaginando de boca aberta e outras vezes rir até escangotar. Na hora de fazer o pagamente dos brincantes, de dividir o apu-rado, Antônio Ferreira chamou Zé Artur de lado: “- É o seguinte: 20% é pro Raimundo Altino.” O outro não concordou logo: “- Por que?” Antônio Ferreira respondeu: “- Pague os 20%, num se preocupe. Um homem desse vale por um reisado todinho.” Zé Artur chamou os outros brincantes e comunicou: “- Oi, o Raimundo Altino vai ganhar 20% de todo pagamento que eu receber,

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vocês concordam?” Os outros responderam: “- É, nós num pode fazer nada.” No que Zé Artur confirmou: “- É, num tem que fazer nada mes-mo não. Porque isso aqui de reisado, vocês entregam a ele e ele faz isso aqui sozim, num precisa tá reclamando.” Raimundo Altino ainda tirou umas dez noites de reisados com Antônio Ferreira. A última noite era na casa dos Araújos, dentro da localidade de Maceió, justamente no aniversário da mãe do Geraldo, dono da casa. Quando terminou a brincadeira, a mãe muito satisfeita, Geraldo trouxe o pagamento acertado com o reisado e entregou a An-tônio Ferreira. O primeiro que ele chamou para receber a parte foi Raimundo Altino. Ele recusou: “- Não quero nada. Já ganhei gorjeta pra me manter esses dois dias. Isso aí tu divide com o pessoal. Agora eu vou dizer uma coisa, é o ultimo reisado que eu brinco. Só num diga a ninguém, mas eu sinto, esse é o ultimo reisado. Você é um cara durão, rapaz. Faça seu trabalho do jeito que você tá fazendo, isso é muito im-portante. Faça do jeito que você sabe fazer.” De fato, aquele foi o último reisado brincado por Raimundo Altino. Não demorou muito ele faleceu. Até que, a seis meses atrás, no Reisado de Lagoa do Mato abriu-se uma vaga de Careta Magarefe. Antônio Ferreira coçou a cabeça: “Quem pode ser?” Alguém lembrou: “- Tem o Roseno do Raimundim, fio do Raimundo Altino, ele parece que tem competência pra isso.” “- Pois traz o menino aqui”, aquiesceu Antônio. Roseno há tempos brincava no reisado com Antônio Ferreira, porém nunca passara de Caçula, o Careta mais novo da família, figura feita geralmente por iniciantes. Mas não perdeu aquela chance. “- Caçula coisa nenhuma, que cara in-teligente!” Antônio Ferreira descobriu as habilidades de Roseno. Disse para ele: “- Eu vou matar o Boi três vezes pra você ver. Depois vou lhe entregar.” Rosendo ainda duvidou: “Mas Seu Antônio, o senhor tem certeza?” “- Essa é uma homenagem que eu tô devendo ao teu pai, porque foi ele quem me ensinou.” Por essa forma, Raimundo Altino se valeu de Antônio Ferreira para repassar ao filho sua arte no reisado. Atualmente, Roseno está sen-do preparado para substituir Antônio Ferreira, numa precisão qualquer, à frente do reisado.

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O NOME CABURÉ Caburé já foi nome de revista de filosofia em Fortaleza, bicho que pen-sa, que domina as letras, mas em Lagoa do Mato é apelido de Cícero Altino Rodrigues, Seu Caburé, hoje com muita honra, porém motivo de chateação quando adolescente. Para contar a história desde o começo, quando o menino nasceu, no ano de 1957, é preciso dizer que era bem doentezinho e sua mãe apegou-se com meu Padrinho Ciço. Como vingou, a criança foi batizada por Cícero, nome correto do santo de Juazeiro do Norte. Já o apelido Caburé, como é conhecido em toda a redondeza, adquiriu aos treze anos. Tinha um irmão já adulto, beirando os 20 anos, que implicava com suas vadiações. Nas brincadeiras, Cícero fazia raiva ao irmão que descontava batendo no mais novo. Impotente no revide, Cícero se vingava chamando o outro de Caburé, devido às orelhas grandes do mais velho. Chamava e chamava, mangando: caburé! O diabo do outro não se zangava e o feitiço virou contra o feiticeiro. Quem acabou por Caburé foi Cícero. Até hoje.Caburé logo se conformou. Atualmente curte o nome. Especializou-se no conhecimento do pássaro. Fala dele em detalhes:“- Rapaz, o caburé é um pássaro que imita o movimento do pescoço de uma pessoa, as orelhinhas também. A cara dele é o sistema da cara de uma pessoa, os olhos dele parecem os de uma pessoa, só que ele imita os olhos de um gato, mas a testa é assim como de uma pessoa – porque os outros pássaros tem os olhos laterais e ele não, são pra frente. Tem um bocado de espécie. Eu conheço umas quatro. Tem o pequeninho pintadinho, tem o médio imitando o pequeninho, tem outro maior ai-nda, quase do tamanho do galo campina, e tem o grande que é a coruja, chamada rasga mortalha. Todos formam um sistema só. Agora, o caburé mesmo é rajadinho de vermelho com roxo, o bico amarelo, os pés imitando os pés do gavião. Ele é carnívoro, mata calango pra comer, cobra também. É parente do carcará. Ele canta um negócio que faz sounsounsounsounsoun. O pessoal diz que, no inverno, quando ele canta, fazendo sol, tá perto de chover, quando tá chovendo que ele canta, nesse dia num chove. Eu já tinha arreparado: quando é de manhã no sair do sol, se ele estiver cantando, nesse dia não chove. Eu já prestei atenção, é mesmo.”

VELHOS PARCEIROS Caburé começou no Reisado aos 12 anos, brincando com Antônio Fer-reira de Mateu, com uma máscara feita de couro cru, bigode e barba desenhados de carvão. Só depois descobriu que podia fazer a barba de couro de bode e o bigode com cabelo de crina de cavalo. A cabeça cobria com chapéu de palha, na mão um cacete de jucá, calça e camisa qualquer e estava completa a roupa do Careta. Já o Velho precisava de um paletó igualmente velho. No mais era saber modificar a voz, para ninguém conhecer e aprender a sapatear nos estilos mais diferentes - Caburé sapateia bem em quatro estilos.

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Até seis meses atrás ele foi o principal parceiro de Antônio Fer-reira no Reisado de Lagoa do Mato. Sempre disposto, nunca precisou tomar um gole de cachaça para se animar, nem arredou um só instante o pé da brincadeira. Era sempre ali, o todo tempo, o Ferreira de um lado e ele do outro, as vozes se tocando uma na outra, num mesmo tom, da abertura à despedida. Ainda hoje, o parceiro diz: “- Cabra pra brincar Reisado comigo, só o cumpade Caburé!”

UMA VELHA ENXERIDA Tanto é que no Reisado, Caburé só nunca brincou de Velho, figura reservada para seu compadre Antônio Ferreira. Foi Mateu, Ca-chorro, Velha e, por último Magarefe, posto de maior valor depois do Velho. “- Não nego que gosto mais do Magarefe, porque fica brincando com o Boi, mas eu dou valor é a Véa, que fica fazendo palhaçada. Eu acho bom fazer palhaçada”, confessa Caburé. Até porque, diz ele: “- Quem faz o Reisado é o Véi e a Véa, se for uma Véa que saiba brincar. Os outros Caretas passam tudim porque as pessoas só prestam atenção à Véa. Uma Véa bem vestida né, bem alegre, num é de dizer coisa imoral né, gaiateza, tem que ser gaiato, mas num ritmo que não desmoralize ninguém né. Eu sempre brinquei assim, insultava com o Boi, o Boi corria atrás de mim e eu tornava a voltar. Eu pegava uma mamadeira dessas garrafas de dois litros, ai eu botava goma dentro, pegava aquelas criancinhas e fazia que tava dando de mamar. Pegava os meninos a força, sabe, e o pessoal morria de rir. Pensa que num chovia dinheiro não! O pessoal dizia: ‘Isso só pode ser arrumação do Caburé!’ Aí quando os outros brincavam, queria imitar eu também.” Agora, brincadeira boa mesmo foi uma na casa do Bastião Lou-ro, lá no Aracatiaçu. Deu mais de 400 pessoas, Caburé brincando de Velha, na maior danação. Os meninos vinham em cima e ele com a macaca, botando pra que-brar. (Macaca, devo aqui dizer que além de modo de falar, é uma es-pécie de chiquerador que a Velha carrega, com uma bola de borracha na ponta amarrada numa meia.) Tanto que Caburé sempre se queixava: “- Aqueles meninos de rua chegam querendo rasgar a roupa da Véa. Ela mete a macaca, eles fastam, mas depois tão de novo. Num se ex-emplam nunca.” No Aracatiaçu, porém, foi diferente, porque o Reisado tinha sua própria polícia, suas figuras de polícia, e os bagunceiros tinham medo. Os polícias do reisado ficavam com seus cacetes e eles se afastavam, menino e bêbado impertinente. Ainda assim, a Velha levou queda cor-rendo atrás de menino, devido ao sapato que escorregava. Cada queda era uma vaia e 20 gargalhadas. Fazia parte, era o melhor da brinca-deira. Quando juntava muito cabra querendo bagunçar, os Caretas combinavam: “- Se sobrar pra um sobra pra tudim.” Cada Careta com seu cacetinho, não havia quem tivesse coragem de encostar. “- Aquilo não era pra bater em ninguém, mas se viesse pra atrapalhar, já sabia!” Caburé conta essas presepadas rindo.

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MEMÓRIAS DE UM MAGAREFE De sua performance como Magarefe, Caburé gosta de lembrar a segurança na voz modificada (“não tinha aquele sobe e desce, fala grosso e fala fino”), a destreza no sapateado, e a beleza no repente. Começa cantando sua chegada: “- Vou chegando, vou chegando/No salão do Capitão/Nas costas trago um machado/Na cintura um bom facão/Ando atrás de um garrote/Que fugiu do meu sertão.” Depois desanda a cantar repente: “- Eu vi um tejo escrevendo/Um camaleão cantando/Uma raposa bordando/Vi uma ticaca tecendo/Um macaco velho lendo/Cururu batendo telha/Uma avoante vermelha/Empregada no curtume/Curtindo soro de abelha.//Eu já dei uma car-reira/De Sobral pra Lagoinha/Vou dizer como é que eu vinha/Com doze quarta de sal/Doze quarta de farinha/Um barrão velho nas costa/Mil e seiscentas galinha/Uma espingarda velha/Mais sessenta espingardinha.//Vi barata de tesoura/Cortando a barba do pato/Vi cobra cortar vassoura/Vi morcego virar rato/Vi um aruru contente/Mangando de um velho gato/Vi grilo fazer presente/De um quarto de rapadura/Vi um lacraio de dente/De cinturão na cintura.//Se eu fosse Nosso Senhor/Muita coisa num se dava/A cobra num dava bote/Nem a cascavel matava/Nem viúva se perdia/Nem vigário se amigava/Nem varejo ponha bicho/Nem vaqueiro se avexava. Tá certo; meu Capitão? Juazeiro é pau de espinho/Todo moleque é canalha/Veste de besta é cangalha/Bebida de rico é vinho/O pau que risca é graminho/Refeição de noite é ceia/Casa de preso é cadeia/Homem de força é Sansão/Briga de cabra é facão/Vila de índio é aldeia.

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BOI CORAÇÃO Chama-se Boi Coração, o Reisado de Lagoa do Mato. Para mar-car o nome, o Boi traz na testa a figura de um coração em vermelho, encarnado melhor dizendo, encarnado de carne viva, ser vivo, tornado carne. Caburé, em vida é vaqueiro, sempre gostou do boi, do animal. Tem suas cabecinhas, que cuida como ninguém. Coloca neles nomes carinhosos: Andorinha, Graviola, Estrelinha. Já um cunhado seu colo-cava nomes diferentes: Boi Bandido, nome tirado de uma música ser-taneja de sucesso, Boi Argentino e outros assim. O boi predileto de Caburé chamava-se Mimoso, era um garrote muito bonito, todo lavrado, tipo holandês. Ele vendeu por 500 contos pra abrir um comércio, que depois nem deu certo. O sujeito que com-prou o garrote, vendeu em seguida pelo dobro do preço. Caburé sem-pre pensou em comprar o couro do Mimoso, no dia em que matassem, pra fazer um Boi de reisado. Mas quando soube, foi atrás e já tinham vendido. Talvez por isso, na brincadeira do reisado, quando Caburé, na figura de Magarefe, acabava de matar o Boi, cantasse uma canção (de Fenelon Dantas e Delmiro Barros) chamada Boi de Carro que, segun-do ele, nunca fez muito sucesso na mídia, mas que no folguedo dava certo. Ao ouvi-lo cantar, muitas vezes o pessoal pedia para repetir. Diz assim: “Vim buscar um boi de carro/Que estava na prisão/pra levar pro matadouro/A pedido do patrão./Quando eu joguei o laço/O animal pra mim olhou/E o que ele me falou/Foi de cortar coração./Me disse assim condutor/Destino triste é o meu/Eu não sei por qual motivo/O meu patrão me vendeu/Ajudei a tanta gente/Fui escravo do roçado/Depois de velho e cansado/Ninguém me agradeceu./Ao lado do Boi Papão/O meu primeiro parceiro/Só levava o carro cheio/Obedecendo ao car-reiro/Na passagem do riacho/Me ajoelhava no barro/Ou desatolava o carro/Ou quebrava o tanoeiro./Quem trabalhava comigo/Batia por desaforo/Cortava meu corpo inteiro/Com um chicote de couro/Invés de me libertar/Para morrer no cercado/Meu sangue vai ser jorrado/Nas tábuas do matadouro.Êêêêê ê Êêêêê.” Caburé saia aboiando. Muita gente chorava ao ouvi-lo cantar essa música. Inclusive um velho, dos seus 70 anos, que não perdia um reisado. O irmão desse velho também havia brincado de Magarefe e ele ficava o tempo todo encostado em Caburé, apreciando seu modo de fazer repente e de cantar. Ao final lhe dava um abraço agradecido. São esses os orgulhos do brincante. Quando ele coloca a más-cara perde toda a cerimônia, desaparece o medo e a dor de barriga. Um mundo de repentes lhe chega à cabeça. Certa vez, conta Caburé, foi brincar no Centro Dragão do Mar, em Fortaleza, e apareceu um grupo de dança tradicional gaúcha. Promoveram então uma disputa entre sapateadores, no tablado do palco principal. Uma mulher rep-resentando o Rio Grande do Sul, ao estilo gaúcho, e Caburé, ao estilo sapateado de careta, representando o Ceará. A disputa foi acirrada, porque a gaúcha tinha uma bota própria de sola dura que estralava alto na tábua do palco. Por fim, foi anunciado que cada qual sapateou melhor no seu estilo.

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VIDA DE MENINA No sábado, dia de menina começava às quatro da manhã, com varrimento de terreiro e arrumação de casa. Já nos outros dias, dava para acordar às cinco, uma ia fazer o fogo, outra ajudar no café, outra varrer o terreiro, outra apanhar cisco, outra pegar água, lavar roupa, arrumar casa, serviço era que não faltava. Café se tomava às cinco e meia, café puro, a não ser no inver-no, quando a mãe fazia pão de milho. Terminado o café, as mais velhas continuavam o serviço. Já Josilene: “- Enquanto as outras iam arrumar a casa e eu ia pra casa da minha irmã brincar com as minhas burrinhas”. Tanto foi que a mãe lhe colocou o apelido de Cavaleiro. Infância de muitas danações a de Josilene, mal parava em casa, às vezes só entrava para almoçar e jantar, se aquietando apenas de noite. As mais velhas é que pegaram o tempo mais pesado. Ela não, brincadeiras muitas, de subir nas árvores, de correr em cima das pedras se encondendo, de carimba, de comadre, de cabra cega, de manja e outras mais que se inventasse. O almoço era às dez e meia, basicamente feijão com arroz, às vezes com macarrão e um naco de carne. Um pedaço maior de carne só aos domingos, quando o pai matava uma criação. Leite tomavam somente, quando havia criança nova e podiam ter uma vaca. Houve tempo em que a mãe possuiu uma, mas foi obrigada a pedir a um tio para tomar conta em Baje da Cruz, um assentamento onde ele morava já naquela época. Depois do almoço, os pais iam dormir e a meninada caía na va-diação. Pela tarde, de uma até as quatro e meia, cinco horas, o serviço era botar água em lombo de jumento. Depois, tomar banho, jantar e assistir televisão até nove da noite. Não havia energia elétrica e a mãe possuía uma televisão dessas pequenas a bateria, com antena comum. Só dava para assistir as novelas e o Jornal Nacional. Novela para a mãe e Jornal Nacional para o pai. Já desenho animado nem pensar, porque gastava muita bateria. A meninada tinha que se contentar com as nove-las. Nesse mesmo período, Antônio Ferreira foi trabalhar no Rio de Janeiro. Pensava em, arranjando algo melhor, mandar buscar a família. Man-dava dinheiro de lá e a mulher contratava trabalhador para ajudar na roça. Até que o terreno de Lagoa do Mato, pertencente à Fazenda Boa Esperança foi desapropriado para Reforma Agrária e Antônio Ferreira voltou do Rio de Janeiro.Antes dali de virar assentamento, as filhas de Antônio Ferreira não tin-ham como estudar. O mais que conseguiram foi a Prefeitura contratar uma professora, para lhes ensinar em casa. A professora, uma prima delas, vinha da Floresta, onde morava, e dava aulas diariamente. Com isso conseguiram ir até a 4ª. série, o máximo que alcançava o saber da professora. Para cursar da 5ª. em diante, só em lugares muito distantes, como Lisieux ou Ingá, de acesso demorado e inconveniente.

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A CONFUSÃO DAS MENINAS Desde menina nova, Josilene recorda seu pai brincando rei-sado. Lembra de uma história que Antônio Ferreira lhe contou. Foi logo quando começou no folguedo brincando de Dama: “- Como você sabe, Dama era aqueles meninozinho disfarçado de mulher pra dançar no baile com os Caretas. Quem fazia o papel de menina era ele e o tio Valdemir que hoje mora lá no Rio de Janeiro. Ele contou que um dia foram brincar o reisado. Chegando lá, as meninas, pensando que eram fême, chamaram eles lá pro canto do terreiro pra fazer xixi. Eles foram, quando uma mulher viu: - Menina, isso aí é homem! As meni-nas saíram correndo aos gritos e eles começaram a rir.”

QUANDO VIROU ASSENTAMENTOJosilene enumera as mudanças positivas ocorridas com a reforma agrária:direito à criação de qualquer animal, não pagamento do uso da terra, chegada da energia elétrica e da água encanada, moradia construída em tijolo (no lugar de taipa), escola dentro do assentamento (Escola Paulo Freire), entre outras coisas. E acrescenta: “- Antigamente a gente tinha que se levantar muito cedo, lá pelas quatro, cinco horas da madrugada, pra pegar água longe e fazer muitos outros serviços. Hoje basta a gente acordar bem mais tarde, lá pelas seis horas da manhã e dá tudo certo.”

MAS NAMORAR É DIFÍCIL Francisco Rodrigues, o jovem de 18 anos que fez o papel de um dos Reis Magos na Lapinha Viva, montada junto com o Reisado, reclamava da dificuldade encontrada pelos rapazes de Lagoa do Mato para arranjar namorada. Dizia que as moças do lugar já são todas com-prometidas. Daí, conseguir alguma namorada só no Lisieux ou no Ingá, distantes muitos quilômetros, por ocasião de algum forró. Difícil é de-pois manter o namoro. Sair na escuridão de bicicleta, estrada a fora, àquela distância toda, para visitar a namorada no final de semana, só muita vontade. No final de semana, a diversão é jogar futebol, bater papo, as-sistir noticiário e novela na televisão. Na época estava passando A Fa-vorita, novela em que Patrícia Pillar fazia o papel de vilã. O comentário era de que ela estava saindo-se muito bem, apesar da antipatia da per-sonagem. Torcida por certo para a mulher do sobralense Ciro Gomes. Na quadra do assentamento, os forrós estavam rareando e, por último, até mesmo a brincadeira de reisado.

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A REGINA QUE FAZ MARIA Regina Joice de Paiva mora em Lisieux, vilarejo do município de Santa Quitéria próximo a Lagoa do Mato, onde existe uma igreja de Santa Terezinha e de Santo Antônio. O marido tem um comércio de frango abatido e ela vende bolo e produtos Avon. Já havia assistido o Reisado de Lagoa do Mato em Aracatiaçu, dentro de Sobral, como também no próprio Lisieux, onde Antônio Ferreira havia brincado por três vezes. Até que foi apresentada por seu irmão, que fazia o Careta Poeta do reisado, ao próprio Ferreira. De imediato, ele fez o convite para Regina figurar Nossa Senhora e seu marido representar São José, na lapinha do reisado.Regina abraçou sua missão com todo o prazer. Faz a cena junto com o esposo, ela, Maria e ele, São José. O Menino Jesus é representado por um boneco. Regina sente-se quase totalmente realizada naquela veste comprida com o manto azul sobre a cabeça: “- Lá eu estou repre-sentando as mães, porque eu também sou mãe. Eu me sinto um pouco Nossa Senhora, como mãe. Pena é que não tenha um filho recém nas-cido para representar Jesus.”

JOSÉ MARCELA, O SANFONEIRO

Para acompanhá-lo no reisado, Antônio Ferreira chamou José Marce-lo França, filho do velho e famoso sanfoneiro do Lisieux, José Maria França. Conversamos e ele contou-me uma história parecida com a da maioria dos sanfoneiros tradicionais. Nasceu na Fazenda Mateus, dos Araújo, em Lisieux. Como o pai, trabalha na agricultura. Tem a arte do sanfoneiro como um dom dado por Deus. Via o pai tocando e, aos 12 anos, pegou pela primeira vez na sanfona do velho. Como era de se esperar, não saiu nada. Como o pai não reclamou, ele insistiu. Dentro de um mês já estava tirando sua primeira música: Asa Branca. O pai nunca lhe deu uma orientação. Deixava que ele tocasse a vontade. Aprendeu em casa. Às vezes saia para tocar com amigos em bares. Até que, aos 19 anos, foi chamado para tocar profissionalmente, em um conjunto no Lisieux com guitarra, baixo, todo tipo de música. Também no reisado seguiu os passos do pai, que já foi sanfonei-ro de Antônio Ferreira. A diferença foi que ele, José Marcela começou tocando no Reisado de Darlei, em Lisieux, reisado mais fraquinho um pouco. Espera que Seu José Maria venha amanhã assistir à sua apresen-tação no Reisado de Lagoa do Mato: “- Tem gente que diz que eu toco igual ao papai, outros dizem que eu toco melhor que ele. Mas eu não quero derrubar o velho não. Respeito o fole do velho”, é o que diz o filho.

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DARLEI E A POESIA Darlei mal começou a se entender por gente, já via o Reisado de Seu Antônio Ferreira brincar. Aos 12 anos, juntou-se com um ir-mão, fizeram um reisado de crianças, Darlei sendo Magarefe, e foram mostrar ao Seu Antônio. Ele tanto gostou que convidou Darlei para brincar de Caçula no seu reisado. Atualmente Darlei cria porco e trabalha na agricultura. Tem um reisado no Lisieux e, no de Lagoa do Mato, brinca de Poeta. Como tal, seu fraco é dizer verso. Alguns são seus, outros repete de seu tio Fran-cisco José da Silva, autor de dois livros de poemas, que mora em Rio Verde, Goiás. São dele os versos decorados por Darlei: “A poesia é um dom/Da divina providência/Muito se tem procurado/Nas entranhas da ciência./A mente nasce dotada/Como a rosa perfumada/Já nasce com sua essência./A inspiração poética/É uma chama que acende/Na mente do ser humano/Às vezes nem ele entende/Dispensa sabedoria/Pra se fazer poesia/De cultura não depende.”

AS IDADES DA CORRUPÇÃO, OS POLÍTI-COS E A CORNALIDADE Darlei prossegue dizendo agora um repente de crítica social: “Você que é brasileiro/Você que é cidadão/Você que é patriota/Que zele pela nação./Vamos numa só corrente/Defender a nossa gente/Con-tra a corrupção./Nossa gente tão sofrida/Já não pode suportar/Tanta falta de vergonha/Que nos chega a revoltar./Os inimigos do povo/Guardam sempre um golpe novo/Para nos envergonhar./A corrupção é criança/Na área municipal/Torna-se uma adolescente/No âmbito estadual/Chega a idade adulta/Mais forte e absoluta/No hemisfério federal./A gente elege um prefeito/Com a melhor da intenção/Deposita confiança/No ilustre cidadão./Muitos chegando ao poder/Só pensam em enriquecer/E dane-se a população.” Em seguida, emenda com um relaxo: Um homem nasce besta/Outro pra ser escrivão/Quem nasce para a política/Já vem abaixo da crítica/Tem tudo pra ser ladrão./Tem gente que veio ao mundo/Com o destino traçado/Por influência dos astros/Já nasce privilegiado./Assim tem gente pra tudo./Quem nasce pra ser chifrudo/Já nasce descon-fiado./Diz-se que a cornalidade/Veio da criação do mundo./Só Adão nunca foi corno/Foi primeiro sem segundo./Porém os seus descenden-tes/Por maldição da Serpente/Já foram infestando o mundo./E a con-sanguinidade/Que coisa mais indecente/Proibindo a união/Entre dois irmãos-parentes!/Mas os filhos de Adão/Se todos eram irmãos/Como nasceu tanta gente?

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COMO NASCE UM MÚSICO João Victor tem no máximo quatro, cinco anos. A família dele é de músicos. O pai, João Paulo, é cantor. O avô, Zé Doca, é pandei-rista. E o tio, irmão de Seu Doca, é sanfoneiro. Eles moram na serra do Mundaú, mas sempre estão passando por Lagoa do Mato. Onde tem música, João Victor está por perto. Sobrou um instrumento, ele toca. De tarde, a banda ensaiava o forró da noite, sanfona, baixo e zabum-ba. O pandeiro encostado esperando o dono. João Victor não perdeu tempo, pegou e foi tocando. Quando apareceu o dono, ele continuou no ritmo, as mãos batendo uma na outra. Depois, foi lá dentro, pegou um braço arrancado de carteira e saiu imitando um tocador, fazendo de conta que era um baixo elétrico. Tinha o mesmo formato. Ensaiou todas as músicas, bem direitinho.

CAIPORA OU CAÇADOR Eu nunca entendi bem porque chamam de Caçador a uma das figuras do Reisado de Caretas. Trata-se de um bicho parecido com um macaco, feito de madeira e couro, conduzido na mão, movido por um engenho que o faz subir e descer em uma pequena vara. Indaguei a Antônio Ferreira a história daquela figura e ele me contou o seguinte: “- Tinha um caçador que sempre matava os bichinhos, até que uma noite ele entrou no mato e não viu nada, porque o Caipora tinha escondido os bichinhos. Os cachorros recuavam, latiam no pau sem ter nada. O caçador ia examinar e não via nada.Então esse bicho chama-se Caipora. E como a gente não podia botar esse nome de Caipora, para ficar na história, resolvemos chamar ele de Caçador. Agora ele é Caçador porque caça dinheiro pra nós. A gente tem precisão de tomar uma cachaça e o bichinho sai pedindo. Tem gente que é fazendeiro, comprou até fazenda com o dinheiro que esse bichinho dá. E pode até comprar um caminhão, com o dinheiro que esse bichinho arrecada.”

CHAMADA DO CAÇADOR “Nos fomos caçar um dia/Lá pra banda de Iracema/E pegamos de uma vez/Vinte cinco sariema./Ele é Caçador (refrão)/Ele é muito ve-loz/Ele gosta de dinheiro/Isso é coisa do futuro/Isto é coisa da nação/Vamos lá meu companheiro/Meu compadre pega o bicho/Para ganhar um milhão/Ele é muito bonitinho/Parece que é um campeão.”Um Careta chama: “Alô Eliseu!” Outro responde: “Abra a boca e leva eu!”.

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DESPEDIDA DO MAGAREFE “Vou me embora, vou me emboraQuando eu disser que vouPra rever o meu gadinhoPro sertão ver meu amor.Porque lá eu sou benquistoPor aqui sei que não sou.Vou me embora, vou me emboraSegunda feira que vemQuem não me conhece choraQue fará quem me quer bemAs meninas tão dizendoMagarefe eu vou também.”

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Lagoa do mato - ficha técnica

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Poço da Onça

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IPUEIRA DA VACA:UM SERTÃO DE RAMOS, REIS E JACINTOS

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CACHOEIRA DO FOGO: UM SERTÃO DE RABEQUEIROS, SAPATEADORES

E CONTADORES DE HISTÓRIAS

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Grande Encontro

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Ficha Técnica

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