Sentença - Absolvição - Prova Ilícita

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Estado de Pernambuco Poder Judiciário JUÍZO DE DIREITO DA 2 a VARA DA COMARCA DE ESCADA-PE SENTENÇA 2 a Vara da Comarca de Escada Autos n00000130-27.2013 Classe/assunto: Ação Penal- tráfico de drogas e guarda de arma Autor: Ministério Público Réus: Viviane Ferreira de Lira e Adriano José da Silva Os réus supramencionados foram trazidos a juízo por denúncia de estarem associados para manter sob sua guarda 18 (dezoito) pedras do composto químico a partir da pasta base de cocaína conhecido popularmente como "craclÇ', 10 (dez) gramas do vegetal cannabis sativa lineu, vulgarmente denominada "maconha", ambas as substâncias de uso proibido e capazes de levar o usuário a dependência química, conforme constatação inserta no Laudo preliminar de fl. 38, mais um revólver Rossi cal. 38, com cinco cartuchos, e a quantia de R$192,00 (cento e noventa e dois reais), além de outros objetos referidos no Auto de Apresentação e Apreensão de fl. 26, após flagrante por parte de policiais civis na residência deles acusados na Travessa Valdemar Bispo 132, Mangueira, nesta cidade, isso no dia 25 de janeiro de 2013, tudo tal como noticiado nas peças policiais de fls. 04 a 54. As prisões foram convertidas em preventiva - fl. 59, mas vieram a ser relaxadas dada a nulidade apontada pela defesa de Adriano em sua primeira manifestação - fls. 78 a 83, consistente na falta de mandado judicial para acesso ao domicílio dos acusados quando já havia alguns dias desde quando os policiais teriam tomado conhecimento de possível guarda de drogas e de arma na residência e não efetuaram o flagrante no momento oportuno. A defesa de Viviane declinou de manifestar suas considerações de início para após a instrução - fl. 107. Advieram aos autos Laudos com perícia de drogas psicotrópicas, de fls. 72 a 75, e de balística, de fls. 87 a 91, Viviane foi interrogada conforme termo de fls. 121/122 e Adriano fls. 123/124, sendo inquiridos em seguida duas testemunhas do rol da inicial - fls. 125 a 127 e vieram aos autos as fichas de registros criminais - fls. 129/130, apóps o quê a promotoria sustentou integralmente a acusação - fls.131 e .; por sua vez a defesa de Viviane pediu se considere o redutor do art. 33, § 4°, d Lei de Drogas, ou se

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Estado de PernambucoPoder Judiciário

JUÍZO DE DIREITO DA 2a VARA DA COMARCA DEESCADA-PE

SENTENÇA

2a Vara da Comarca de EscadaAutos n00000130-27.2013Classe/assunto: Ação Penal- tráfico de drogas e guarda de armaAutor: Ministério PúblicoRéus: Viviane Ferreira de Lira e Adriano José da Silva

Os réus supramencionados foram trazidos a juízo por denúncia de estaremassociados para manter sob sua guarda 18 (dezoito) pedras do composto químico a partir dapasta base de cocaína conhecido popularmente como "craclÇ', 10 (dez) gramas do vegetalcannabis sativa lineu, vulgarmente denominada "maconha", ambas as substâncias de usoproibido e capazes de levar o usuário a dependência química, conforme constatação insertano Laudo preliminar de fl. 38, mais um revólver Rossi cal. 38, com cinco cartuchos, e aquantia de R$192,00 (cento e noventa e dois reais), além de outros objetos referidos noAuto de Apresentação e Apreensão de fl. 26, após flagrante por parte de policiais civis naresidência deles acusados na Travessa Valdemar Bispo 132, Mangueira, nesta cidade, issono dia 25 de janeiro de 2013, tudo tal como noticiado nas peças policiais de fls. 04 a 54.

As prisões foram convertidas em preventiva - fl. 59, mas vieram a serrelaxadas dada a nulidade apontada pela defesa de Adriano em sua primeira manifestação -fls. 78 a 83, consistente na falta de mandado judicial para acesso ao domicílio dos acusadosquando já havia alguns dias desde quando os policiais teriam tomado conhecimento depossível guarda de drogas e de arma na residência e não efetuaram o flagrante no momentooportuno. A defesa de Viviane declinou de manifestar suas considerações de início paraapós a instrução - fl. 107.

Advieram aos autos Laudos com perícia de drogas psicotrópicas, de fls. 72a 75, e de balística, de fls. 87 a 91, Viviane foi interrogada conforme termo de fls. 121/122e Adriano fls. 123/124, sendo inquiridos em seguida duas testemunhas do rol da inicial -fls. 125 a 127 e vieram aos autos as fichas de registros criminais - fls. 129/130, apóps o quêa promotoria sustentou integralmente a acusação - fls.131 e .; por sua vez a defesa deViviane pediu se considere o redutor do art. 33, § 4°, d Lei de Drogas, ou se

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desclassifiquem as condutas do tipo previstas nos arts. 33 e 35 também da LD para o do 28do mesmo estatuto, à consideração dela ser usuária de drogas, absolvendo-a da imputaçãode manter arma sob sua guarda, reconhecendo-lhe ainda atenuante de confissão espontâneae fixação de pena no mínimo legal dada a sua primariedade - fls. 134/135, enquanto adefesa de Adriano sustenta nulidade da prova produzida dada a invasão do domicílio dosréus sem mandado de busca e apreensão prévio; no mérito argumenta não ser o possuidorda droga apreendida pois sequer estivera no local por ocasião da apreensão, mas naresidência de sua mãe, invocando o teor dos interrogatórios de Viviane ao isentá-lo de serquem mantivera aquelas drogas em casa ao serem apreendidas pela polícia. Pede sejaabsolvido por não haver prova dele ter concorrido para a consumação dos delitos, segundoart. 386 IV, do Código de Processo Penal. Na hipótese de ser condenado, pede lhe sejaaplicado o mínimo legal e o redutor do art. 33 § 4°da LD, ou ao menos desclassificação dostipos dos arts. 33 e 35, para o do 28.

Após sucinta exposição da acusação e da defesa, passa-se à discussão do caso:

1- Enfrentando a preliminar, devido a que as prisões dos réus e as apreensõesdas substâncias e da arma darem-se a partir de informações de anônimos e acesso àresidência dos então capturados por agentes da autoridade policial sem o devido mandadojudicial, porquanto tratara-se em tese de flagrante permanente, eivou-se então de nulidade oauto de prisão flagrante, dada a violação de domicílio, numa afronta à regra do art. 5°, itemXI, da Constituição da República, nos termos a ser expostos a seguir.

Embora os condutores dos réus, em juízo, tenham alegado ser o prédio ondeforam eles capturados e materiais apreendidos, de propriedade de um avô do segundoacionado, que lhes dera permissão para adentrar na sua casa, não se empenharam em colherformalmente essa declaração desse tal proprietário, medida essa não apenas recomendável,mas imperiosa, sobretudo porque potencialmente indiciado ele seria, de forma que até entãonão se sabe quem seria o tal avô do réu, cuja identidade seria apenas investigada poriniciativa do Ministério Público, não podendo constitucionalmente o Judiciário exerceratividade complementar ou supletiva da promotoria.

A disposição do referido art. 5°, XI, da CR, reporta-se à exceção para nãocaracterização da violação de domicílio na hipótese de flagrante delito propriamente dito,aquele em que se pode evitar sua consumação ou que o agente se evada, situação próximadas hipóteses de desastre ou para prestar socorro, também contempladas no mesmodispositivo.

Não se tratando a hipótese dos autos daquela prevista na CR, inconcebívelconferir-se legitimidade e licitude a prisões e apreensões de drogas e de arma com violaçãoa direito individual como foi o caso do acesso de agentes policiais civis ao domicílio dosacusados sem o seu devido consentimento, quando pelo teor dos depoimentos dos ditosservidores públicos, as informações de que os réus mantinham drogas e arma no recinto doimóvel onde foram encontrados, se lhes haviam advindo há dias, sem que eles tenhamprovidenciado da autoridade policial a busca e apreensão pessmlmente, ou obtendo ocompetente mandado para tanto, na conformidade do disposto no rt. 241 do Código deProcesso Penal. ~ ,

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Reconhecendo pouco após comunicado do flagrante a sua nulidade, o que valeuaos então capturados o relaxamento de suas prisões, não deixou este Juízo de aguardar aconclusão do correspondente inquérito policial na medida em que poderia servir, como defato serviu, a um juízo de admissibilidade de uma oportuna ação penal a ser aforada peloórgão do Ministério Público em funcionamento nesta Comarca, pois se a prisão fora ilegal ese decretara sua nulidade, outras provas, de fontes diversas do auto de prisão em flagrante,poderiam ser produzidas, a teor do disposto no art. 157, § 2°, do Código de Processo Penal.

A "prova" obtida no lnquérito Policial somente pode servir para análise dacondição da ação, ou seja, dos elementos necessários para o juízo de admissibilidadepositivo da ação penal. No mais, não há qualquer possibilidade de valoração democrática,no Processo Penal constitucionalizado, por ser ela desprovida das garantias processuais.

Nem se argumente haver os réus na ocasião confessado a guarda da droga e daarma na polícia, ou mesmo na fase judicial, pois se são inadmissíveis no processo as provasilícitas, quais sejam, as obtidas em violação às normas constitucionais ou legais, conformecaput do art. 157 do Código de Processo Penal, da mesma forma o são as delas derivadas, ateor do previsto no § 1° do mesmo sobredito artigo.

Ademais, na ocasião sequer ficou evidenciada a destinação da droga encontradapara a mercancia de forma a distinguir a conduta da prevista no art. 28 caput da Lei11343/08, também não se produzindo qualquer outra prova na fase judicial nesse sentido.

A respeito da ilicitude da prova obtida no inquérito mediante invasão domiciliarem flagrante permanente, trago a lume o ensinamento da minha professora na UFPE ecorregedora nos tempos de quando servi ao Ministério Público de Pernambuco,Procuradora de Justiça aposentada Dra. Ana Maria Campos Tôrres (in A busca e apreensãoe o devido processo. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 153-154):

"Ora, sabendo que alguém tem em depósito drogas, vende droga, ou outrassituações de permanência é que pode, conforme a Constituição, penetrar em domicílio sem oconsentimento do morador. Sabe, logo tem indícios que permitam solicitar ao juiz o mandado,imprescindível contra o abuso. Não basta a mera desconfiança, pois corre o risco de responderpor descumprimento da lei, logo, impossível considerar válida a apreensão nesses casos, semordem judicial. Seria, como o é de fato, fazer vista grossa aos abusos policiais (..) Comoentender urgente o que se pro trai no tempo? É possível, graças à presença diuturna dojudiciário guardião da lei, requerer e ser atendido em pouco tempo, o direitoconstitucionalmente previsto de entrar em domicílio. A facilidade do arguir-se urgência éforma espúria de desconhecer direitos, é subterfúgio para o exercício de força, édescumprimento do dever de acatar as diretrizes políticas assumidas pelo Estado. Impossívellegalizar o ilícito. Deve, nestes crimes chamados permanentes, especificamente por durarem,não se reconhecer a urgência do flagrante próprio, pois nem se evita sua consumação, nem seimpede maiores consequências, e, sobretudo, arrisca-se sequer determinar a autoria, interessemaior nesses casos. O argumento de urgência deve fundamentar pedido à autoridadejudiciária, inclusive, modos legais de realização. Nada impede o respeito à intimidade nessahipótese. (...) No caso do flagrante em crime permanente, vê-se co muita frequência não sóo descumprimento da lei, mais que isto, um caminho perigoso a ermitir retornem as más

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autoridade o modelo inquisitorial, buscando provar a qualquer custo, não se preocupando commais nada, senão com a punição pela punição."

Cabe destacar julgado relatado pelo Des. Geraldo Prado, do Tribunal de Justiçado Rio de Janeiro (Apelação Criminal n. 2009.050.07372):

"EMENTA: APELAÇÃO. PENAL, PROCESSO PENAL E CONSTITUCIONAL.ARTIGOS 171, § 2.°, INCISO V, NA FORMA DO ARTIGO 14, INCISO lI, 299 E 340, TODOS DOCÓDIGO PENAL. CONDENAÇÃO. PROVA ILÍCITA. INVIOLABILIDADE DO DOMICÍLIO,INTIMIDADE, VIDA PRIVADA E DIREITO AO SILÊNCIO. CONSEQUENTE ABSOLVIÇÃO.Apelantes condenadas pela prática dos crimes definidos nos artigos 171, § 2.°, inciso V, na forma doartigo 14, inciso lI, 299 e 340, todos do Código Penal. Prova ilícita. Ingresso indevido no quarto dehospedagem das acusadas. Inviolabilidade de domicílio, da intimidade e da vida privada (artigo 5.°,incisos X e XI, da Constituição da República). Rés que não foram informadas de seu direito ao silêncio(artigo 5.°, inciso LXIII, da Constituição da República). Apreensão dos bens falsamente furtados,portanto, ilícita. Prova oral que, decorrente exclusivamente dessa apreensão, também se revela ilícita.Desaparecimento da materialidade do crime. Absolvição. RECURSOS PROVIDOS."

Elucidativa e digna de reprodução, é a interpretação teleológica do art. 5°, itemXI, da Constituição da República, proposta por INGO WOLFGANG SARLET e JAYMEWEINGARTNER NETO (in Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v.14, n. 14, p. 544-562, julho/dezembro de 2013):

"A descoberta a posteriori de uma situação de flagrante, com o devido respeitoaos que pensam diversamente, é mero acaso, mas não cremos que o Estado democrático dedireito jogue dados com seus cidadãos. Não percebida a situação de flagrante, visto que oexecutor da ingerência não consegue justificar racionalmente porque sua crença era pelomenos verossímil, não há como sindicar a proporcionalidade da medida - na ausência decircunstâncias minimamente externalizadas que permitam aferição intersubjetiva. A entradaem casa alheia, nesta situação, torna-se, ipso facto, irracional e, portanto, desborda das regrasdo jogo. E não pode, o aleatório subsequente (eventual apreensão de drogas, ou de armas, porexemplo), determinar a licitude de provas produzidas durante intervenção que, à partida, nãose amparava em permissivo constitucional (...)". "Portanto, no contexto fático figurado, pese aboa-fé dos policiais, não há elementos objetivos e racionais a caracterizar, 'ex ante', situaçãode flagrância, na perspectiva do quem está fora da residência. Daí porque, em sendo a casa oasilo inviolável do indivíduo, nos termos do art. 5°, XI, da Constituição Federal,desautorizada estava a invasão da casa/domicílio, por qualquer um, aí incluídos os policiais,cujo ingresso, repetimos, autoriza-se apenas nas exceções permitidas pelo preceitoconstitucional (flagrante delito, desastre, prestação de socorro e cumprimento, durante o dia,de mandado judicial)".

Por fim, concluem:

"Nesse diapasão, a prova colhida sem observância da garantia da inviolabilidadedo domicílio é ilícita, não porque ausente mandado de busca e apreensão, mas sim porqueausentes, no momento da diligência, mínimos elementos indiciá rios da ocorrência do delitocujo estado flagrancial se protrai no tempo em face da natureza permanente e, assim, autorizao ingresso na residência sem que se fale em ilicitude das provas obtidas ou em violação dedomicilio. Acresce que, sendo o perigo na demora vetor decisivo para que o flagrante autorizea entrada no domicílio, nos crimes permanentes (nomeadamente n figura estática de manterem depósito drogas), a intensidade desta razão diminui, já que, em ese, viável socorrer-se de

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mandado judicial, diferente da intervenção para evitar-se a consumação de um delitoinstantâneo, como um homicídio, ou de desmesurada indignidade, como a tortura, porexemplo (...). A mera informação, de que o réu é traficante, gravita na esfera das suposições.É estática e não passa de etiqueta acoplada ao ser humano. Dizer que nos crimes de naturezapermanente, tal qual o tráfico de drogas, o estado de flagrante se mantém, o que édogmaticamente correto, não significa dizer que vaga suspeita de prática de crime de tráficode entorpecentes coloca o suspeito em estado de flagrância e, assim, afasta o direito àinviolabilidade do domicílio - parece-nos solar o vício lógico do non sequitur. Diversamente,a situação de flagrante, mesmo de um crime permanente, é dinâmica, e demanda, para suamínima caracterização, amparo em fatos concretos e atuais, que hão de ser, ao menos,passíveis de exteriorização e individuação".

A reprodução quotidiana de violações como essa aos elementares direitosfundamentais deve-se à incipiente consciência garantista de que padecemos, sobretudoporque o alvo dessas transgressões são os grupos ainda social e economicamenterebaixados situados à margem do processo de produção e acumulação de riquezas global,evidenciando a clara seletividade da polícia nessas incursões, pois quando dirigidas àquelesdas esferas superiores da sociedade, certamente somente procedem com o devido mandadode busca e apreensão.

Como adverte Cláudio Prado do Amaral, do Grupo de Estudos Carcerários daUniversidade de São Paulo em recente estudo acerca de matéria ora em apreço, "O fato daquase totalidade das diligências invasivas de domicílio atingirem tal grupo, certamente,favorece ainda mais esse esquecimento da força vinculante dos direitos fundamentais".

2 - Nessa ordem de idéias, ante as condições em que as drogas e a arma foramapreendidas, em decorrência de ilegal denúncia anônima, bem assim a atuação dos policiaissem mandado judicial, subsistindo ilegal a prova obtida por tal ação, implicando, pois, nasua ilegalidade, e de consequência na falta de materialidade, acolho a preliminar suscitadapara rejeitar as acusações lançadas contra Viviane Ferreira de Lira e Adriano José da Silva,nois termos do art. 386, 11,do CPP, sem custas.

Oficie-se, publique-se, registre-se e intimem-se os réus pessoalmente, ou os seusdefensores, assim como o MP.

Transitada em julgado, expeçam-se boletins preenchidos e dê-se destinaçãolegal à droga e aos demais bens apreendidos e não restituídos, encaminhando a arma aoComando Militar competente, arquivando-se em seguida.

Escada, 22 de maio de 2014.

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