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O problema da possibilidade dos juízos reflexionantes estéticos no quadro da filosofia kantiana da razão pura Marcos Alberto de Oliveira 12 Abstract. The present paper seeks to examine the kantian problem of the possibility of the aesthetic judgement, starting from the widest context of the philosophy of the pure reason. Of this point of view, we will analyze the nature of that problem and will expose the procedures used by Kant to solve it, in order to call the attention for, on a side, the architectural unit between critic system and doctrinal system, of other, for the fact of the transcendental approach of the beautiful, in agreement with a critic of the capacity of judging, not producing any metaphysics. Key-words: critic – metaphysics - aesthetic judgement - capacity of judging. Resumo. O presente trabalho se pro- põe a examinar o problema, tipica- mente kantiano, da possibilidade dos juízos de gosto, situando-o no contexto mais amplo da filosofia da razão pura. Com isso, pretende-se analisar a natureza desse problema e expor os passos seguidos por Kant para solucioná-lo, a fim de ressaltar, de um lado, a unidade arquitetônica entre sistema de crítica e sistema doutrinal, de outro, o fato de a abor- dagem transcendental do belo, a par- tir de uma crítica da faculdade de julgar, não fundar nenhuma metafísica. Palavras-chave. crítica – metafísica - juízo de gosto - teleologia - faculda- de de julgar. Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas, Professor Assistente do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas da Universi- dade Estadual de Santa Cruz. E-mail: [email protected]

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O problema da possibilidade dos juízosreflexionantes estéticos no quadro da

filosofia kantiana da razão pura

Marcos Alberto de Oliveira

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Abstract. The present paper seeks toexamine the kantian problem of thepossibility of the aestheticjudgement, starting from the widestcontext of the philosophy of the purereason. Of this point of view, we willanalyze the nature of that problemand will expose the procedures usedby Kant to solve it, in order to callthe attention for, on a side, thearchitectural unit between criticsystem and doctrinal system, ofother, for the fact of thetranscendental approach of thebeautiful, in agreement with a criticof the capacity of judging, notproducing any metaphysics.

Key-words: critic – metaphysics -aesthetic judgement - capacity ofjudging.

Resumo. O presente trabalho se pro-põe a examinar o problema, tipica-mente kantiano, da possibilidadedos juízos de gosto, situando-o nocontexto mais amplo da filosofia darazão pura. Com isso, pretende-seanalisar a natureza desse problemae expor os passos seguidos por Kantpara solucioná-lo, a fim de ressaltar,de um lado, a unidade arquitetônicaentre sistema de crítica e sistemadoutrinal, de outro, o fato de a abor-dagem transcendental do belo, a par-tir de uma crítica da faculdade dejulgar, não fundar nenhumametafísica.

Palavras-chave. crítica – metafísica -juízo de gosto - teleologia - faculda-de de julgar.

Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas, ProfessorAssistente do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas da Universi-

dade Estadual de Santa Cruz. E-mail: [email protected]

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1. INTRODUÇÃO

Como bem se sabe, as três principais obras de Kant trazem emseus títulos o termo “crítica”. O filósofo alemão concebe a críticaem estreita correlação com a metafísica como duas partes distintas,mas complementares, da filosofia da razão pura, isto é, do conheci-mento racional que só pode ser obtido a partir da análise de concei-tos dados a priori (em oposição ao conhecimento matemático, quetambém é um conhecimento racional, não obstante só possa serobtido com a construção de conceitos na intuição sensível pura).

A metafísica é, segundo ele, o sistema desse conhecimento ra-cional que, como doutrina, é produzido pela razão pura e que “con-siste de juízos sintéticos a priori, teóricos e práticos, todos elesdeterminantes, os primeiros das formas intuitivas e os segundosdas ações” (LOPARIC, 1992, p. 60).

A crítica, sendo uma investigação preliminar acerca da possi-bilidade dessa espécie de conhecimento racional, delineia, verificae até mesmo promove a idéia daquele sistema; nesse sentido, elatambém pode ser dita uma teoria dos limites do conhecimento ob-jetivo e, a fortiori, de nossa capacidade cognitiva. Isto porque, se-gundo Kant,

a crítica das faculdades de conhecimento, em vista do queestas podem realizar a priori, não tem propriamente esferaalguma no que toca aos objetos, porque ela não é uma dou-trina, senão que se propõe investigar tão só, segundo o esta-do de nossas faculdades, se uma doutrina é possível por meiodelas e como o seja. Seu campo se estende sobre todas aspretensões das mesmas para mantê-las nos limites de sualegitimidade (KANT, 1790: B XX, grifos nossos).

Uma vez que juízos sintéticos a priori são enunciados por pro-posições que, referindo conceitos a objetos (portanto, estabelecen-do uma síntese entre o conceito do sujeito e o conceito do predicado),já encerram a presunção lógica de que tal referência possui valida-

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de universal e necessária (algo que só pode ser pensado a priori), acrítica também pode ser entendida como uma investigação da pos-sibilidade desses juízos.

Com efeito, a “Crítica da razão pura” se propõe a examinar asnossas faculdades de conhecimento, tendo em vista a questão dapossibilidade dos juízos teóricos, isto é, dos juízos sintéticos (a priorie a posteriori) que, no domínio da natureza, pretendem serdeterminantes dos objetos de nossas representações, exprimindo,assim, as leis (isto é, regras universais e necessárias) a que eles es-tão submetidos.

Paralelamente, a “Crítica da razão prática” se debruça sobrenossa faculdade de desejar, tratando da questão da possibilidadedos juízos morais, isto é, dos juízos sintéticos a priori que propõemregras práticas para a determinação de ações livres, exprimindo,assim, as leis segundo as quais somente estas ações podem ser rea-lizadas por aquela faculdade.

Ora, é exatamente essa pretensão de validade universal e ne-cessária, própria dos juízos sintéticos a priori, que suscita o empre-endimento crítico de Kant. A tarefa aqui é suficientemente clara: afilosofia da razão pura tem que esclarecer tal pretensão a partir deprincípios constitutivos sem os quais seria impossível o emprego,seja teórica seja prático, de nossas faculdades cognitivas, no senti-do de decidir se, e sob que condições, a liberdade e a natureza po-dem ser determinadas a priori, isto é, de verificar a possibilidade,respectivamente, de uma metafísica dos costumes e de umametafísica da natureza como ciências.

Segundo Kant, as nossas faculdades cognitivas superiores (istoé, de conhecer objetos a partir de conceitos) são três: a razão(Vernunft), o entendimento (Verstand) e a faculdade de julgar(Urteilskraft)1 . Ao passo que a razão só possui princípiosconstitutivos para o uso prático, isto é, para legislar sobre a liber-dade2 , o entendimento possui princípios constitutivos apenas parao uso teórico, tendo a natureza (compreendida como o conjunto de

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todos os objetos da experiência) como uma esfera própria sobre aqual pode exercer plenamente sua atividade legisladora. Ora, oentendimento, enquanto tem por objeto a natureza, é a nossa facul-dade superior de conhecer, ao passo que a razão, empregada paraa determinação de ações, ou seja, em seu uso prático, é a nossafaculdade superior de desejar. Ambas, porém, só podem determi-nar os objetos de suas respectivas esferas julgando. O entendimen-to julga os objetos da natureza imediatamente, na medida em queestes são dados em intuições sensíveis e determinados por concei-tos. A razão julga as ações a partir de suas respectivas máximas,submetendo estas ao critério da universalização, na medida em quea vontade pode ser determinada pelo imperativo categórico (que,como único princípio constitutivo da razão, impõe aquele critério)a realizar máximas universalizáveis, vale dizer, a praticar as açõespor elas prescritas motivadas pelo sentimento de respeito (moral) àpura idéia do dever. De modo que ambas as faculdades, entendi-mento e razão, se confundem com a faculdade de julgardeterminante.

Ora, estudar as condições de possibilidade dos juízos sintéti-cos determinantes, práticos ou teóricos, perfaz apenas uma parteda crítica. A outra, apresentada na “Crítica da faculdade de jul-gar”, se volta para os juízos reflexionantes3 , mediante os quaissomente é possível, por assim dizer, se dar conta daqueles aspectoscontingentes que vicejam nos domínios da natureza e da liberda-de, estorvando as legislações do entendimento e da razão, que, nãoobstante, são compelidos – em virtude de sua própria constituiçãointerna – a avançar indefinidamente na determinação completa dosobjetos e ações4 .

Se a faculdade de julgar não encerra uma esfera própria (Gebiet;ditio), tal como ocorre com a razão e o entendimento, possui, contu-do, um território (Boden; territorium), em relação ao qual somenteela se constitui numa faculdade autônoma da alma, dirigida essen-cialmente à reflexão sobre os aspectos particulares e contingentes

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da experiência. Isso significa dizer que o juízo reflexionante, embo-ra só possa ser exercido sobre objetos de percepção, e por isso ésempre sintético, envolve como tal uma pretensão lógica de vali-dade universal e necessária, sendo, pois, a priori. De fato, todo juízoreflexionante pressupõe a natureza como um sistema teleológico,conceito por meio do qual ela “é representada como se [als ob] al-gum entendimento encerrasse em si o fundamento da unidade damultiplicidade das suas leis empíricas” (KANT, Op. cit.: B XXVIII).Todavia,

este conceito transcendental de uma finalidade da naturezanão é um conceito da natureza, nem um conceito da liberda-de, porque nada acrescenta ao objeto (à natureza), mas ape-nas representa a única maneira de como nós temos de proce-der, na reflexão sobre os objetos da natureza, em vista deuma experiência completamente concatenada; por conse-guinte, representa um princípio subjetivo (máxima) da fa-culdade de julgar (KANT, Op. cit.: B XXXIV).

Assim sendo, a faculdade de julgar carece também de um exa-me crítico, cujo problema básico pode ser formulado da seguintemaneira: como são possíveis juízos reflexionantes acerca da natu-reza, isto é, juízos sintéticos a priori que, pressupondo que a nature-za, na relação com as nossas faculdades cognitivas, procedefinalisticamente, mantêm a pretensão de validade universal e ne-cessária subjetiva, isto é, validade para a própria faculdade de jul-gar como tal?

O território sobre o qual somente pode a faculdade de julgarlegislar a priori é o sentimento, isto é, a capacidade de prazer edesprazer perante a representação de objetos. Em vista desse terri-tório, ela se constitui na faculdade superior de sentir de acordo como princípio da finalidade formal (subjetiva) da natureza, princípioem virtude do qual somente um objeto de percepção pode ser jul-gado esteticamente pela “concordância de sua forma [...] antes detodo conceito com as faculdades de conhecer” (KANT, Op. cit. B

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XLVIII). Trata-se, pois, da faculdade de julgar reflexionante estéti-ca, na qual a finalidade da natureza repousa sobre uma “base me-ramente subjetiva”, isto é, pela qual um dado objeto da experiênciaé julgado em função do prazer que sua forma desperta quando re-fletimos sobre ela.

Mas o conceito de uma finalidade da natureza, referido “a umdeterminado conhecimento do objeto” para julgá-lo “como fim danatureza”, isto é, para julgá-lo “(logicamente) segundo conceitos”,perfaz também um princípio regulativo da faculdade de julgarreflexionante, denominada, neste caso, teleológica, a qual é a “fa-culdade de julgar a finalidade real (objetiva) da natureza medianteo entendimento e a razão, princípio esse que, pressuposto pelas“máximas da faculdade de julgar, que são colocadas a priori à baseda investigação da natureza” (KANT, Op. cit., B XXX), tais como alex parcimoniae e a lex continui in natura, nos ensina apenas comodevemos julgar coisas que só podem ser compreendidas como fins(por exemplo, a estrutura interna dos seres organizados), isto é,coisas que são ininteligíveis como produtos de um mecanismo cego.

Como “à necessidade de que haja fins objetivos da natureza,isto é, coisas que só são possíveis como fins naturais, não se podedar fundamento algum a priori” e como “a faculdade de julgar, semencerrar em si para isso princípio algum a priori, contém a regrapara, nos casos que se apresentem (certos produtos), fazer uso, parapropósitos da razão, do conceito dos fins” (KANT, Op. cit., B LI),uma crítica da faculdade de julgar reflexionante teleológica, namedida em que esta “pertence à parte teórica da filosofia”, “deveconstituir uma parte especial da crítica” (KANT, Op. cit., B LII), daqual a outra parte, tendo “lugar somente na crítica do sujeito quejulga e das faculdades de conhecer do mesmo” (KANT, Ibidem), sedebruça sobre a faculdade de julgar reflexionante estética, na me-dida em que esta é “uma faculdade particular de julgar coisas se-gundo uma regra, mas não segundo conceitos” (KANT, Ibidem).

Neste último caso, a tarefa básica de uma crítica da faculdade

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de julgar é, a partir da análise e exposição do princípio da finalida-de formal (subjetiva) da natureza, deduzir todas as condições quetornam possível o juízo reflexionante estético, isto é, aquelas con-dições sob as quais somente se justifica a pretensão desse juízo àvalidade universal e necessária, mas fundada apenas no sentimen-to do sujeito que julga. Tarefa, diz Kant, que se impõe pelo fatomesmo de que

aquele que na mera reflexão sobre a forma de um objeto, semrelação alguma com um conceito, experimenta prazer, pre-tende com razão, ainda que este juízo seja juízo empírico eindividual, obter a aprovação de cada um, porque a base desteprazer se encontra na condição universal, ainda que subjeti-va, dos juízos reflexionantes, que é, a saber: a concordânciafinal de um objeto (seja produto da natureza ou da arte) coma relação das faculdades de conhecer entre si, exigidas parao conhecimento empírico (a imaginação e o entendimento)(KANT, Op. cit., B XLVI-XLVII ).

E esta, prossegue Kant,

é a causa pela qual os juízos de gosto são submetidos tam-bém a uma crítica segundo sua possibilidade, pois essa pos-sibilidade pressupõe um princípio a priori, embora este prin-cípio não seja nem um princípio de conhecimento para oentendimento nem um prático para a vontade e, portanto,não é a priori determinante (KANT, Op. cit., B XLVII).

Por conta disso, Kant reconhece que uma crítica da faculdadede julgar não torna possível um sistema doutrinal (tal como umacrítica do emprego teórico do entendimento puro e uma crítica doemprego prático da razão pura estabeleceram as bases de, respec-tivamente, uma metafísica da natureza e uma metafísica dos costu-mes), mas se esgota no exame das condições subjetivas do uso denossas faculdades de conhecimento em geral.

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2. A FACULDADE DE JULGAR REFLEXIONANTE E APASSAGEM DO CONHECIMENTO TEÓRICO À MORALIDADE

Ora, isso significa dizer que, se, como doutrina, a metafísica danatureza e a metafísica dos costumes se apresentam como um sis-tema de juízos sintéticos a priori determinantes, respectivamente,para a legislação do entendimento sobre a nossa experiênciacognitiva e para a legislação da razão sobre a nossa experiênciaprática, domínios que parecem incomunicáveis entre si, uma críti-ca da faculdade de julgar tem como papel apenas favorecer a ativi-dade legisladora daquelas duas faculdades em suas respectivas es-feras, algo para o qual é indispensável que haja um trânsito possí-vel entre elas, de modo que o mundo inteligível possa exercer in-fluência sobre o mundo sensível, e este, sem prejuízo de sua con-formidade a leis da natureza, concorde com “a possibilidade dosfins, segundo leis da liberdade, que nele se tem de realizar” (KANT,1790: Introd., B XIX), já que, por força da lei moral em nós e doobjeto necessário de uma vontade a ela submetida, isto é, da idéiade um bem supremo (a felicidade sob condição da moralidade),somos obrigados a postular a existência de Deus e a imortalidadeda alma.

De acordo com Kant, entre o entendimento – que, como facul-dade de conhecimento, possui princípios constitutivos a priori queformalmente impõem à natureza sensível a conformidade a leis – ea razão – faculdade que, segundo seu princípio formal constitutivo,a lei moral, determina imediatamente a faculdade de desejar e lheimpõe um fim final a ser realizado pela causalidade da liberdade –encontra-se a faculdade de julgar, que, tendo como território a ca-pacidade de sentir dor e prazer, impõe à natureza sensível a con-formidade a fins. Ora, como o prazer é algo essencialmente ligadoà consecução de um propósito (Absicht) e como um fim “é o objetode um conceito, enquanto este é considerado como a causa daque-le (a base real de sua possibilidade)” (KANT, Op. Cit. # 10), é de se

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supor que, se o conceito em questão for a representação da nature-za como um sistema teleológico, o fato de conseguirmos “unir duasou mais leis empíricas e heterogêneas da natureza sob um princí-pio que compreende a ambos” (KANT, Op. cit. # VI) provocará emnós um sentimento de prazer, sentimento que, neste caso, repousasobre um fundamento a priori. Inversamente, nos frustraríamos se,na investigação da natureza, tropeçássemos numa multiplicidadede leis empíricas tão heterogêneas a ponto de ficar inviabilizada asua ordenação sistemática e, conseqüentemente, obstruído o usológico da faculdade de julgar reflexionante (o de trazer amultiplicidade à unidade na subordinação de leis empíricas parti-culares a outras mais gerais). Esse sentimento de prazer5 é um que,embora não seja um elemento de conhecimento, vem unido comuma representação como um “efeito de algum conhecimento”(KANT, Op. cit. # VII), isto é, como efeito da consciência de queuma ordem contingente se conforma à espontaneidade (autono-mia) das nossas faculdades cognitivas e, portanto, à legislação doentendimento através do conceito de natureza. A representação aquié referida, pela faculdade de julgar, “somente ao sujeito e o prazernão pode expressar mais que a acomodação daquela [representa-ção] com as faculdades de conhecer, que está em jogo no juízoreflexionante (KANT, Op. cit. #VII, colchetes nossos).

Portanto, o principio a priori da faculdade de julgar permite otrânsito não só, no uso lógico, do entendimento à razão, mas tam-bém de nossa faculdade superior de conhecer à nossa faculdadesuperior de desejar. Vejamos como isso se dá.

O entendimento, que, como faculdade de conhecimento teóri-co, traz consigo princípios constitutivos válidos a priori só em rela-ção aos fenômenos – esfera para a qual ele, como legislador, exige aconformidade total a leis –, já indica um substrato supra-sensíveldos mesmos como algo indeterminado e em si mesmo incognoscível.Para assegurar a estrutura formal da experiência e seus objetos, oentendimento não precisa nada mais do que compor dados sensí-

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veis em intuições (puras e empíricas) e subsumir estas sob os con-ceitos puros (categorias) – que representam a unidade da sínteseintuitiva subjacente àquela composição – por meio da faculdadede julgar determinante. Contudo, deixa indeterminados os elemen-tos particulares que perfazem a matéria dessa experiência e resis-tem à sua ação legisladora.

Ora, para garantir a determinabilidade completa dos fenôme-nos, o entendimento tem que lançar mão da faculdade de julgarreflexionante e seu princípio a priori, que, para o uso lógico dessafaculdade, deve “fundar a unidade de todos os princípios empíricossob princípios igualmente empíricos, mas mais altos, e assim a pos-sibilidade de subordinação sistemática de uns aos outros” (KANT,Op. cit.: # IV). Com efeito, ao impor a priori à natureza sensível aconformidade a fins mediante esse princípio, a faculdade de julgarreflexionante também proporciona àquele substrato supra-sensí-vel “a determinabilidade por meio da faculdade intelectual” (Op.cit., #IX).

E já que o entendimento não pode fornecer a determinaçãodesse substrato (porque o uso legítimo de seus princípiosconstitutivos se restringe aos fenômenos), cabe à razão determiná-lo mediante um princípio constitutivo válido a priori apenas para aesfera prática, isto é, através da lei moral, na medida em que esta,enquanto lei da causalidade da liberdade, impõe um fim final, queé no mundo o mais alto bem possível pela liberdade. De fato, ohomem como ser moral (dotado de uma vontade boa em si mesma,isto é, pura) é o fim final da criação e, nessa condição supra-sensí-vel, tem faculdade da liberdade e a lei de sua causalidade para sepropor o bem mais alto que lhe pode advir em virtude da purezade sua vontade: a felicidade sob a condição da moralidade.

Como pudemos ver, a compatibilidade entre a completa deter-minação moral do mundo supra-sensível e a completa determina-ção teórica do mundo sensível só é possível pela mediação da fa-culdade de julgar reflexionante e seu princípio da finalidade for-

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mal (subjetiva). A natureza sensível deve, pois, se conformar nãosó a leis, mas também a fins, o que serve aos propósitos tanto doentendimento, como faculdade superior de conhecer, quanto darazão, como faculdade de desejar superior. Isso também permite ainfluência do supra-sensível, determinado pelo conceito prático deliberdade, sobre a natureza sensível. Em suma, o princípio da fina-lidade formal da faculdade de julgar reflexionante fornece “um fun-damento para a unidade do supra-sensível, que jaz à base da natu-reza, com o que o conceito de liberdade encerra de prático (KANT,Op. cit.: final do # II), isto é, com a liberdade no sentido prático epositivo de uma “razão que determina imediatamente a vontade”(KANT, 1788: A 83) ou, de maneira equivalente, da “própria legis-lação da razão prática pura” (KANT, Op. cit. A 59).

Em virtude desse trânsito, possível mediante a faculdade dejulgar, entre o teórico e o prático, a natureza sensível (domínio dosfenômenos e do conhecimento possível) é aquela a que está inteira-mente submetida a faculdade de desejar, cujos objetos, portanto,têm que necessariamente preceder e ser a causa de suas determi-nações. Ao contrário, a natureza supra-sensível é aquela que se sub-mete integralmente à faculdade de desejar, a qual pode ser ditasuperior porque, determinada pela lei moral, é causa dos objetosrepresentados. Dito isso, fica patente que no conceito de uma cau-salidade mediante a liberdade (no sentido prático positivo) já estácontida a possibilidade de o supra-sensível exercer influência so-bre o sensível no sujeito, ou seja, de essa causalidade produzir efei-tos sensíveis (tais como o sentimento moral e as ações livres deledecorrentes), desde que, alerta Kant, “a palavra causa, empregadapara o supra-sensível, signifique somente o fundamento para deter-minar a causalidade das coisas naturais a um efeito conforme suaspróprias leis naturais” (KANT, 1790. Introd., # IX). Isso quer dizerque o conceito de uma causalidade segundo leis da liberdade temuma significação diferente do de uma causalidade segundo leisnaturais: esta é uma relação, matematicamente determinável, entre

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dois estados de uma substância phaenomenon (relação na qual o es-tado anterior deve ser buscado, segundo uma regra do entendi-mento e no âmbito da experiência possível, como uma causa de umestado posterior dado efetivamente à percepção, o efeito); já aque-la indica apenas a própria atividade (teoricamente incognoscível)da substância em virtude da qual esta substância, em si mesmapermanente, muda de estado, o que, representado numa perspecti-va moral como o supra-sensível em nós, se traduz pela atividadesintética da razão prática pura, mas que, em relação à nossa facul-dade de julgar, não é senão o fundamento em geral, e em si mesmoindeterminável, da finalidade subjetiva da natureza.

3. A ESPECIFICIDADE DO PROBLEMA DA POSSIBILIDADEDO JUÍZO DE GOSTO NA CRÍTICA DA FACULDADE DEJULGAR

Conforme vimos, a faculdade de julgar só é autônoma enquantofaculdade de julgar reflexionante estética. Como tal, ela é uma fa-culdade superior de sentir, porque opera de acordo com um princí-pio constitutivo válido a priori só em relação ao sentimento de pra-zer e dor, ao lado de uma faculdade superior de desejar, a razão, euma faculdade superior de conhecer, o entendimento.6

O juízo reflexionante estético é um tipo de juízo sintético a priori.É sintético porque atribui um predicado (a beleza) a um objeto depercepção, predicado esse que, não estando contido no conceitodesse objeto, pressupõe uma síntese (ligação). De fato, os juízos degosto “passam por cima do conceito e até da intuição do objeto, eacrescentam a esta, como predicado, algo que nem sequer é conhe-cimento, a saber, um sentimento de prazer (ou dor)” (KANT, Op.cit., B 148). É a priori, porque, como tal, encerra a presunção lógicade validade universal e necessária, mas condicionada ao sentimentodo sujeito (universalidade e necessidade subjetivas) , o que se tra-

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duz na “aprovação exigida de cada um, ou querem ser tidos portais”, e isto, diz Kant, “está igualmente encerrado já nas expressõesde sua pretensão” (KANT, Op. cit., B 149).

Como a filosofia transcendental é uma teoria das condições depossibilidade de juízos sintéticos a priori, a questão aqui é como sepode justificar essa pretensão de universalidade e necessidade sub-jetivas, isto é, se, e sob que condições, é possível o juízo de gosto.Nas palavras do próprio Kant:

Como é possível um juízo que só pelo próprio sentimento deprazer em um objeto, independentemente do conceito domesmo, julga esse prazer como ligado à representação domesmo objeto em todo outro sujeito a priori, isto é, sem ne-cessitar esperar a aprovação estranha? (KANT, Op. cit, B 148).

Como se vê, o problema consiste em especificar as condições(que só podem ser deduzidas de um princípio a priori constitutivoda própria faculdade de julgar, na medida em que nela somente sepode encontrar a fonte daquela pretensão) sob as quais somente sepode julgar um objeto belo e, por conseguinte, se arrogar “ter odireito (berechtigt zu sein)” (KANT, Op. cit., B152) de “exigir de cadaum como necessária essa satisfação”, a saber, “um prazer unidoimediatamente com o simples juízo antes de todo conceito” (KANT,Op. cit., B 150).

4. A FORMA ESTÉTICA DO JUÍZO DE GOSTO

Esse sentido do juízo de gosto foi descoberto por Kant a partirde uma análise da sua forma estética comparada com a forma lógi-ca dos juízos de conhecimento. Eis uma apresentação sucinta dessasintaxe do juízo de gosto.

Do ponto de vista da qualidade, um juízo de conhecimentopode ser afirmativo (S é P), negativo (S não é P) e infinito (S é não-

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P). Superficialmente, um juízo de gosto possui essas três formaslógicas do juízo de conhecimento, pois, como é evidente, quem jul-ga esteticamente um objeto pode fazê-lo de três maneiras diferen-tes: “este objeto é belo”, “este objeto não é belo” ou “este objeto éfeio (não-belo)”.

Porém, a qualidade estética do juízo de gosto se caracterizapelo fato de ele ser um juízo tal cuja base de determinação é mera-mente subjetiva, ou seja, que esteticamente as representações intui-tivas do objeto tido por belo são referidas, não a este objeto paradeterminá-lo a partir de conceitos, com vistas ao conhecimento, masao sentimento do sujeito com vistas à contemplação desse objeto,mantida por uma satisfação desinteressada do sujeito.

Desinteresse, aqui, significa tanto o fato de quem julga esteti-camente não apreender o objeto de contemplação por meio de con-ceitos do entendimento e, portanto, sem visá-lo cognitivamente,quanto ao fato de ele se desprender de seu interesse volitivo pelaexistência, ou mesmo utilidade, do objeto que lhe causa prazer, demodo que a satisfação em tela difere substancialmente daquela quese dá perante o que é meramente agradável, útil ou em si mesmobom, que sempre está unida ao interesse, seja este moral ou patoló-gico.

Nesse sentido, Kant define o gosto (Geschmack) como “a facul-dade de julgar um objeto ou uma representação mediante uma sa-tisfação ou descontentamento sem interesse algum, satisfação cujoobjeto chama-se belo” (KANT, Op. cit. B 16).

Do ponto de vista da quantidade, um juízo de conhecimentopode ser universal (Todo S é P), particular (Algum S é P) ou singu-lar (Este S é P).

Um juízo de gosto, porém, é sempre singular, pois só podemossentir prazer e, portanto, julgar esteticamente o objeto de uma per-cepção atual, mas não uma classe ou um grupo de objetos, por exem-plo, uma flor em geral (tal como representada abstratamente emseu conceito) ou um grupo de flores, a não ser que, neste último

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caso, essas flores perfaçam uma totalidade que possa ser efetiva-mente percebida e apreendida na unidade da intuição.

Contudo, a satisfação ocasionada pela percepção de um objetobelo é tida, pelo sujeito que reflete sobre a forma dessa percepção,como universal, isto é, válida para todos os demais sujeitos queconsiderem essa mesma forma. Conforme Kant, “não é o prazer,mas a validade universal desse prazer, o que se percebe no espíritocomo unido com o mero juízo de um objeto, e o que é representadoem um juízo de gosto” (KANT, Op. cit., B 150). Isso quer dizer quequem julga esteticamente não diz que este objeto é universalmentebelo, mas sim que quando está diante de um objeto belo este pro-voca uma satisfação desvinculada do seu próprio interesse, isto é,que vale não só para ele, mas também para todos aqueles que jul-guem tal objeto belo. A universalidade estética, pois, não é idênticaà universalidade lógica, que diz respeito à esfera ou extensão deum conceito, referindo-se, antes, à satisfação do sujeito que vemintrinsecamente unida com o juízo de gosto sem que este envolva asubsunção do objeto sob qualquer conceito. Por exemplo, no juízo“este pássaro é belo”, se se trata aqui de um puro juízo de gosto,está subtendido: “Em todo x que refletir sobre a forma da represen-tação empírica deste objeto, sob a condição particular da corretasubsunção da mesma7 , será desperta a consciência da finalidadeformal subjetiva do objeto representado, isto é, satisfação perantesua forma”. A universalidade estética é, portanto, uma universali-dade subjetiva e relacional oculta sob a forma lógica de um juízosingular.

Daí que, do ponto de vista da quantidade estética do juízo degosto, Kant define o belo como “o que, sem conceito, apraz univer-salmente” (KANT, 1790: B 32).

Do ponto de vista da relação, um juízo de conhecimento podeser categórico (S é P, no qual P é afirmado, ou negado, simpliciter deS, ou seja, a relação sujeito-predicado), hipotético (Se S é P1, entãoS é P2, no qual P2 é afirmado, ou negado de S, sob a condição de

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que P1 também seja afirmado, ou negado, de S, ou seja, a relaçãoantecedente-consequente) e disjuntivo (Ou S é P1 ou S é P2, que secompõe de dois juízos que perfazem uma oposição lógica, isto é,as esferas de P1 e P2 se excluem mutuamente e, não obstante, pre-enchem a esfera do conhecimento possível (P) sobre S).

À primeira vista, o juízo estético “x é belo” parece ser categóri-co. No entanto, já que a beleza não é um predicado pelo qual umobjeto pode ser determinado, isto é, o conceito de sua perfeição oude qualquer propriedade objetiva, o juízo “x é belo”, segundo a suaforma estética, exprime uma relação entre a forma do objeto perce-bido e um estado subjetivo de quem o percebe e o julga belo. Issoquer dizer que, em virtude mesmo de sua qualidade (marcada porum sentimento desinteressado do sujeito) e sua quantidade (a pe-culiar pretensão de universalidade inscrita no sentido de um juízosingular) estéticas, um juízo como “x é belo” significa o mesmoque: “ se estiver diante de x e refletir sobre a forma de x, x me cau-sará um prazer desinteressado e, por conseguinte, me levará acontemplá-lo”.

De acordo com Kant, esse traço relacional e hipotético do juízode gosto se deve ao fato de ele expressar apenas que sentimos comoprazer a finalidade formal do objeto em relação às nossas faculda-des cognitivas, relação essa que, enquanto repousa sobre um fun-damento a priori, não só independe do encanto e da emoção, pró-prios do que é meramente agradável, mas também (se for um juízode gosto puro e o objeto for corretamente subsumido sob aquelefundamento) não envolve qualquer conceito determinado e, por-tanto, nenhuma regra objetiva.

Assim, em vista da relação estética do juízo de gosto, Kant de-fine a beleza como “a forma da conformidade a fim de um objetoenquanto é nele percebida sem a representação de um fim” (KANT,1790: B 61).

Por último, a modalidade dos juízos lógicos

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diz respeito apenas ao valor da cópula com referência ao pen-samento em geral. Juízos problemáticos são aqueles em que seadmite a afirmação ou a negação como meramente possível(arbitrária), juízos assertóricos como aqueles em que se a con-sidera efetiva (verdadeira) e juízos apodíticos aqueles em quese a considera como necessária (KANT, 1787: B 100).

Numa nota de pé de página a esta passagem, Kant acrescentaque isso ocorre “como se o pensamento fosse, no primeiro caso,uma função do entendimento, no segundo da capacidade de julgar eno terceiro da razão”.

A partir daí podemos ver claramente que um juizo puro degosto não é problemático e não assinala a beleza como algo mera-mente possível, porque, não envolvendo conceito algum, não podeser uma função exclusiva e própria do entendimento apreender obelo. Também não é assertórico, porque não se esgota num juízosingular, mediante o qual a faculdade de julgar determinaria que obelo é algo dado como uma propriedade efetiva do objeto percebi-do, juízo esse que, referindo a beleza à própria constituição desseobjeto, teria de ser considerado verdadeiro. A modalidade estéticado juízo de gosto é, portanto, a necessidade, com a ressalva de queesse juízo não é apodítico, tal como, por exemplo, um juízo de co-nhecimento submetido à demonstração, pois a necessidade que eleencerra não é nem prática nem teórica, que podem ser determina-das pela razão.

Por conta disso, a necessidade estética não se refere a uma re-lação causal física, determinável a priori por um princípio puro doentendimento enquanto este dá a regra para que, regulativamente,se busque a conexão no tempo de percepções efetivas com outrasempiricamente possíveis, nem assinala uma relação causal da li-berdade, determinável a priori pelo imperativo categórico, que nosobriga a submeter nossa vontade a máximas universalizáveis e aagir motivados pela pura idéia do dever, mas sim uma necessidadesentida e condicionada.

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Ora, o fato de a pretensão do juízo de gosto à necessidade sercondicionada, implica, como condição particular, que esse juízo écorreto (isto é, que a representação do objeto julgado belo sejasubsumida apenas sob um sentimento desinteressado de prazer,decorrente do jogo livre entre imaginação e entendimento) e, comocondição geral, que ele cai sob a regra segundo a qual há uma ne-cessária satisfação para todos que o enunciem, regra essa que dizhaver um princípio subjetivo a priori (o sentido comum, do qualfalaremos mais a frente) que determina o que apraz ou não, dadaaquela pretensão de necessidade.

Em outros termos, falar de necessidade estética é o mesmo quedizer que não se pode provar um juízo de gosto, mas apenas mos-trar que há uma regra por detrás desse juízo segundo a qual al-guém que efetivamente contempla um objeto belo deve sentir pra-zer desinteressado por ele. Tomando o nosso exemplo de juízo degosto, “este pássaro é belo” significa o mesmo que: “Para todo x, sex refletir sobre a forma da representação empírica deste pássaro ese subsumir corretamente essa forma, então x necessariamente sen-tirá prazer por ela, isto é, tomará consciência da sua finalidade emrelação às suas próprias faculdades de conhecimento”.

Do ponto de vista da modalidade, portanto, o belo é, segundoKant, “o que, sem conceito, é conhecido como objeto de uma neces-sária satisfação” (KANT, 1790: B 68).

5. A DEDUÇÃO DOS JUÍZOS PUROS DE GOSTO

A tarefa até aqui consistiu apenas em expor aquelas caracterís-ticas que estão contidas no sentido do juízo de gosto: que tal juízose apresenta sob a forma lógica de um juízo singular e se determinapor um sentimento desinteressado do sujeito; que envolve a pre-tensão à universalidade no que diz respeito a esse sentimento, istoé, que o sentimento perante um objeto belo é o mesmo em cada

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sujeito; que assinala uma finalidade formal do objeto em relação àsfaculdades cognitivas do sujeito; por fim, que a consciência dessafinalidade é sentida pelo sujeito e é uma condição necessária dacontemplação estética. Ela faz parte da “ Analítica do juízo estéti-co”, mais precisamente da “Analítica do belo”, que, como pude-mos ver, é uma teoria das pretensões que estão contidas no sentidodo juízo de gosto ou, se se quiser, uma exposição metafísica do con-ceito de belo, que é um conceito dado a priori.

Cabe agora à “Dedução dos juízos estéticos puros”, como par-te integrante da Analítica, justificar essas pretensões e, desse modo,assegurar a realidade subjetiva daquele conceito, mostrando que oprincipio a priori da faculdade de julgar reflexionante é um princí-pio constitutivo de nossa experiência estética.

Antes de apresentar a dedução dos juízos estéticos, faremosuma breve comparação entre o significado da dedução na “Críticada faculdade de julgar” e a dedução tal como conduzida por Kantna “Crítica da razão pura”. Em primeiro lugar, nesta obra a dedu-ção é de longe mais complexa que a da terceira crítica. Ali, a dedu-ção transcendental é acompanhada de uma dedução metafísica. Pordedução, Kant entende, de um modo geral, a dedução de um con-ceito dado a priori, a qual concerne à prova do que de direito (quidiuris), ou seja, da faculdade de adjudicar uma pretensa significaçãoobjetiva a este conceito (KANT, 1787: B 116).

Ela é metafísica se apenas busca determinar certos conceitospuros como predicados de possíveis juízos sintéticos a priori , oumelhor, como encerrando uma função (unidade da ação) de orde-nar a priori diversas representações sob uma representação comum.Daí que a dedução metafísica desses conceitos nada mais é que aprova de que eles encerram uma possível unidade sintética a prioricomo uma função do entendimento e, portanto, a prova de queprocedimentos sintéticos intuitivos e discursivos são condiçõesuniversais que fazem parte da constituição de nosso aparelhocognitivo, na medida em que tais conceitos (no caso, as categorias e

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os conceitos de tempo e espaço) exprimem essas condições.Já a dedução transcendental justifica o uso das categorias e dos

conceitos de tempo e espaço, assegurando o direito de referirmos apriori estes conceitos a objetos e, por conseguinte, de o juízo resul-tante pressupor-lhes uma significação objetiva. Em outros termos,a dedução transcendental dá uma explicação de como aqueles con-ceitos podem referir-se a priori a objetos, justificando-os como prin-cípios a partir dos quais se pode compreender a possibilidade doconhecimento sintético a priori no domínio apenas dos fenômenos.

Ora, no que diz respeito à dedução dos juízos estéticos, Kantnão distingue entre o transcendental e o metafísico. Creio que issose deve ao fato de que aí o problema nada tem a ver com a possibi-lidade de conhecimento objetivo, pois o conceito de belo não é umconceito de objeto, como as categorias, nem o juízo estético, umjuízo determinante, como os juízos sintéticos a priori teóricos. Deresto, a dedução dos juízos estéticos pode ser tida portranscendental, na medida em que tais juízos são sintéticos a priorie, nessa condição, mantenham a pretensão de universalidade e ne-cessidade tendo por base exclusivamente um sentimento desinte-ressado do sujeito e a relação da finalidade formal do objeto com asfaculdades cognitivas desse sujeito.

Assim como a dedução da primeira crítica, que assegura a rea-lidade objetiva dos conceitos puros do entendimento mostrandoque, mediante a aplicação destes conceitos sob as condições a prioriem que objetos podem ser dados em concordância com os mesmos(esquematismo transcendental), obtém-se um sistema metafísico dejuízos determinantes a priori da estrutura da experiência e seus ob-jetos (princípios puros do entendimento), também a dedução daterceira crítica visa a assegurar a realidade, não objetiva mas subje-tiva, do conceito de belo, mostrando, em primeiro lugar, que o sen-tido de universalidade e necessidade dos juízos de gosto é justifica-do por um principio a priori, em segundo, provando que sem esteprincípio nenhuma experiência estética (o sentimento de prazer ou

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desprazer desinteressado perante a forma de um objeto), e portan-to nenhum acordo intersubjetivo sobre o belo, é possível. A dife-rença básica entre as duas deduções é que esta última não conduz,como já salientamos acima, a qualquer sistema doutrinal e, portan-to, não proporciona nenhum conhecimento metafísico acerca dobelo, reduzindo-se a uma mera crítica do uso estético de nossa fa-culdade de julgar reflexionante (cfe. KANT, 1790: A 142/ B 144).

Ora, tal dedução diz respeito às condições subjetivas da facul-dade de julgar em geral e, particularmente, dos juízos de gosto.Ela, porém, não incide diretamente sobre os juízos de gosto – nosentido de que lhes forneceria uma prova –, mas sobre o princípiomediante o qual somente se pode legitimar a pretensão desses juízosà necessidade e à universalidade. Porque não se pode demonstrar,a priori ou empiricamente, que o juízo “A é belo” é verdadeiro, istoé, que o objeto que julgamos esteticamente seja em si belo, masapenas mostrar, via análise, que, se não se referir apenas à finalida-de formal do objeto com relação às faculdade cognitivas do sujeito,enfim, se não mantiver a pretensão à universalidade e necessidadesubjetivas, tal juízo não é um juízo puro de gosto. A exposição dosentido dos juízos de gosto funciona, pois, como uma propedêuticaa sua dedução, a qual se refere, não às condições particulares, masàs condições universais sob as quais somente é possível a reflexãoestética, ou melhor, ao princípio a partir do qual se pode justificaraquela pretensão (pouco importa se tenho uma explicação ou algu-ma razão para dizer que tal objeto é belo: mesmo que seja teorica-mente incorreto, meu juízo é sempre estético quando julgo combase no sentimento de prazer diante da finalidade formal do obje-to, caso em que estou autorizado a exigir a anuência de cada umque se ponha a refletir sobre a forma desse objeto).

A dedução dos juízos de gosto consiste exatamente nisto. Paraque juízos em geral sejam possíveis deve-se pressupor que dadossensíveis, isto é, o múltiplo da intuição, se coadunem com conceitos,e isso significa uma finalidade formal do objeto em relação à harmo-

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nia entre nossas faculdades de conhecimento (o entendimento e a ima-ginação). Assim, dizer que esta forma bela é um exemplar da harmo-nia entre entendimento e imaginação é o mesmo que dizer que, se nãohouvesse harmonia, ou afinação, (Stimmmung) entre estas faculdades,nenhum conhecimento seria possível, de sorte que a finalidade formal(sem fim) no belo pode ser entendida como um princípio de determi-nação, ou, se se quiser, vivificação (Erlebung), das faculdades cognitivasdo sujeito com vistas ao conhecimento em geral (isto é, em relação aum fim qualquer, mas não a um fim específico que possa ser represen-tado por um conceito do entendimento).

De fato, o principio transcendental da finalidade formal nanatureza é um principio a priori da faculdade de julgar reflexionanteque, no uso lógico da mesma, requer fundamentalmente a concor-dância da multiplicidade sensível com a unidade, seja a das nossasoperações e faculdades cognitivas seja a dos conceitos. Tal princí-pio, embora apenas regulativo para a reflexão teórica, é constitutivopara a reflexão estética, cujo processo se conduz da seguinte ma-neira: diante de um objeto efetivamente percebido, reflito sobre aforma8 da representação empírica deste objeto; essa reflexão9 meleva a constatar que aquela forma encerra uma finalidade (a con-formidade a fins) que, uma vez que dela tomo consciência, põe emjogo livre minhas faculdades de conhecimento, isto é, a finalidadeformal manifesta a afinação ou harmonia entre a imaginação e oentendimento, o que significa que só posso ter consciência dessafinalidade formal do objeto percebido pelo fato de aquele jogo livrede minhas faculdades cognitivas provocar em mim um sentimentode prazer, o qual se impõe na afirmação de meu juízo de gosto e,portanto, no momento em que tomo algo como belo. Isso quer di-zer também que a finalidade formal no objeto belo não pode serexpressa em conceitos, mas apenas sentida como efeito do jogo li-vre, isto desinteressado, de nossas faculdades cognitivas.

Assim, o princípio da finalidade formal do objeto é, para o usoestético de nossa faculdade de julgar reflexionante, um princípio

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da afinação entre imaginação e entendimento por ocasião da refle-xão sobre a da forma da representação empírica de um objeto, prin-cípio esse constitutivo de nossa faculdade superior de sentir, namedida em que a pretensão (ínsita nos juízos de gosto puros) àuniversalidade e necessidade só pode ser justificada sob o pressu-posto de um sentido comum (Gemeinsinn), atribuível a todos os se-res humanos. Pois o prazer perante o belo e, portanto, a nossa pró-pria experiência estética nada mais são que a consciência da finali-dade formal do objeto enquanto efeito sensível do jogo livre denossas faculdades de conhecimento, isto é, consciência da causali-dade (por meio desse jogo livre) da forma de um objeto com rela-ção ao estado de contemplação do sujeito para conservá-lo nesteestado. O sentido comum, pois, confere realidade subjetiva àqueleprincípio de afinação entre imaginação e entendimento e, por con-seguinte, dá a regra para o juízo estético.

Por conta disso, uma crítica da faculdade de julgar estética en-quanto faculdade autônoma da alma, isto é, como faculdade desentir superior, não assenta bases para um sistema de metafísica,isto é, um sistema objetivamente válido de juízos sintéticos a priori,tal como ocorre com a crítica de nossas faculdades de conhecer eagir superiores, pois se limita a simplesmente legitimar aquelascaracterísticas estéticas sem as quais é impossível como tal um juízode gosto, esclarecendo, a partir somente do exame das condiçõessubjetivas do uso em geral de nossa faculdade de julgar, como numjuízo que exige “universalidade subjetiva, isto é, aprovação de to-dos”, “a satisfação de cada qual possa ser declarada regra para to-dos os demais” (KANT, Op. cit., B 134-135). Assim, diz Kant,

não há nem uma ciência do belo, senão uma crítica, nem umaciência bela, senão só arte bela, pois no que se refere à pri-meira, deveria determinar-se cientificamente, isto é, com ba-ses de demonstração, se há que ter algo por belo ou não; ojuízo sobre beleza, se pertencesse à ciência, não seria juízoalgum de gosto” (KANT, Op. cit., B 176-177).

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Concluindo, a “facilidade” que, segundo Kant, uma dedução dosjuízos de gosto envolve deve-se exclusivamente ao fato de que comela se alcança apenas a determinação das condições transcendentaissem as quais não é possível um enunciado significativo sobre o belo e,com isso, a justificação de “que temos o direito [berechtigt sind] de su-por universalmente em todo homem as mesmas condições subjetivasda faculdade de julgar que encontramos em nós, e apenas enquantonós temos subsumido corretamente o objeto dado sob essas condi-ções” (KANT, Op. cit.: # 38, B 152). Isso porque a nossa experiênciaestética constituída como um sentido comum pelo jogo livre da imagi-nação e do entendimento (sentido esse que só se manifesta por oca-sião da reflexão sobre a forma da representação empírica de um obje-to, exercida de acordo com o princípio transcendental da faculdade dejulgar reflexionante10 ) é o único domínio no qual pode haver um acor-do intersubjetivo sobre o belo e em vista do qual somente “o prazer oufinalidade subjetiva da representação, para a relação das faculdadesde conhecimento no juízo em geral de um objeto sensível, poderá serexigido com direito a cada um” (KANT, Op. cit. B 151).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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______. Kritik der praktischen Vernunft. Band 6, Darmstadt:Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1788.

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______. Logik Jaesche. Band 5, Darmstadt: WissenschaftlicheBuchgesellschaft, 1800.

LOPARIC, Zeljko. A finitude da razão: observações sobre o logocentrismokantiano. In ROHDEN, V. (org.) 200 anos da Crítica da faculdade do juízo.Porto Alegre: Instituto Goethe, 1992. p. 50-64.

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OLIVEIRA, Marcos Alberto de. Razão problematizante e investigaçãocientífica na metafísica kantiana da naturezas. 217 f., Dissertação (Mestradoem Filosofia) – Faculdade de Filosofia do Instituto de Filosofia e CiênciasHumanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1995, 2000.

NOTAS1 A sensibilidade (Sinnlichkeit), enquanto capacidade de intuir objetos, é a nossa faculdade

inferior de conhecimento, sendo a imaginação (Einbildungskraft) o próprio entendimento,na medida em que suas operações podem afetar a sensibilidade, ocasião em que se produ-zem intuições puras de objetos.

2 A razão também comporta um emprego teórico, mas, neste caso, só possui princípiosregulativos para o conhecimento da natureza, ocasião em que ela julga, pela interposiçãode um termo médio (silogisticamente), a partir de idéias, isto é, da representação de obje-tos incondicionados, a fim de trazer a multiplicidade de leis do entendimento à unidade deum sistema.

3 Juízo reflexionante é aquele que vai “do particular para o geral” (KANT, 1800: # 81), isto é, dareflexão sobre dados intuitivos para abastecer o entendimento com conceitos empíricos e,assim, organizar a diversidade de leis particulares e contingentes na unidade sistemáticada experiência, cuja estrutura formal é determinada por leis universais e necessárias, isto é,pelos princípios puros do entendimento. Inversamente, juízo determinante é aquele que “vai do geral para o particular” (KANT, Ibidem) para determinar objetos, descendo de concei-tos mais gerais até conceitos subordinados e, em último instância, intuições.

4 Assim, diz Kant, “a crítica da razão pura [vale frisar, de todas as nossas faculdades cognitivassuperiores], que deve, antes de empreender cada sistema, e em relação à possibilidade dosmesmos, estabelecer tudo aquilo, consta ainda de três partes: a crítica do entendimentopuro, a da faculdade de julgar pura e a da razão pura, as quais são chamadas puras porquesão legisladoras a priori” (KANT, 1790: IV, BXXV).

5 Na esfera prática, o sentimento de elevação (em decorrência do respeito à lei moral) é umprazer que também é um efeito da consciência da autonomia de nossas faculdades, nocaso, a vontade (liberdade prática em sentido positivo), isto é, a consciência da determina-ção da faculdade de desejar pela mera representação da lei moral.

6 Como faculdades de conhecimento, o entendimento e a razão possuem princípios a priori,respectivamente, constitutivos e regulativos somente em relação aos fenômenos e consis-tem na própria faculdade de julgar determinante, ao passo que a reflexionante lógica sereduz ao uso do entendimento na busca de conceitos empíricos, a partir da reflexão sobreobjetos dados à percepção, para posteriormente determiná-los por meio de regras.

7 O que se pode chamar de “correta subsunção da representação intuitiva de um objeto” nãoé a subsunção sob um conceito, que é um procedimento estritamente lógico, mas asubsunção “sob uma relação, que se pode sentir, da imaginação e do entendimento, acor-des, reciprocamente, na forma do objeto representado”, que é uma subsunção estética que“pode facilmente errar” (KANT, 1790: B 152).

Recebido em: maio de 2006Aprovado em: junho de 2006

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Cadernos de Ciências Humanas - Especiaria.v. 9, n.16, jul./dez., 2006, p. 441-466.

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8 Esta não é nem a forma geométrica, uma “intuição pura”, nem forma no sentido aristotélicode uma determinação conceitual da essência do objeto, mas sim a mera articulação doselementos que constituem a matéria da percepção, ou seja, a estrutura e as múltiplas rela-ções entre as partes e o todo do objeto intuído. Isso explica por que, do ponto de vistaestético, a forma do objeto nunca é pronta e acabada, resultando antes da atividade daimaginação, que se dirige à articulação das partes do objeto no todo de uma intuiçãoempírica e às múltiplas relações que formalmente estão presentes nesta, bem como porque para a reflexão não interessam as propriedades empíricas do objeto, mas sim a suafinalidade, que é uma qualidade puramente relacional. Portanto, nem intuição pura nemsensação desvinculada da forma intuitiva, mas sim o jogo (Spiel) ou estrutura (Gestalt) doobjeto empírico. Assim, uma forma é bela não porque encerra uma perfeição matemáticaou manifeste a essência de um objeto, mas sim porque põe em movimento o processo decomparação entre imaginação e entendimento em vista dessa forma, compatibilizando,dessa maneira, a liberdade e a legalidade que, respectivamente, caracterizam estas facul-dades e são condições subjetivas da possibilidade do conhecimento em geral.

9 Na reflexão estética, comparo a imaginação com o entendimento, verificando se a formaapreendida na intuição empírica cai sob um conceito, não para determiná-la (isto é, semvisar nenhum conceito determinado), mas para ver se ela é conceitualizável. A reflexãoestética exige da imaginação, cuja peculiaridade é ser livre e desregrada, gerar formas semconceitos, mas suficientemente inteligíveis para serem apreendidas nos objetos percebi-dos. Essa liberdade da imaginação estimula o entendimento a encontrar regras para suasformas, cuja multiplicidade intuitiva, extrapolando nossa capacidade de compreensão eresistindo à determinação conceitual, faz com que o entendimento seja levado indefinida-mente à busca de conceitos. Por sua vez, o entendimento, procurando exercer sua legali-dade sobre o sensível mediante a produção de conceitos, estimula a imaginação a fazernovas composições sem regras.

10 Vale lembrar aqui que esse princípio, no uso lógico da faculdade de julgar reflexionante,também está à base da relação de nossas faculdades de conhecimento com o conheci-mento em geral e, portanto, da própria possibilidade de os homens comunicarem entre sisuas representações e juízos.