Seis Poemas Confiados à Memória de Nora Mitrani Por Alexandre O'Neill (1924-1986)

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"Seis poemas confiados à memória de Nora Mitrani" por Alexandre O'Neill (1924- 1986) I Para ti o tempo já não urge, Amiga. Agora és morta. (Suicida?) Já Pierrot — vomitando-fogo (sempre ao serviço dos amantes) não entra no nosso jogo como dantes. Mas esse obscuro servidor, que promovemos uma vez (ainda eu não te dedicara aquele adeus português...), corre, lesto, como uma chama, entre nós dois (o saltarim!) e desafia-nos prà cama. Esperas por mim? II Se eu pudesse dizer-te: — senta aqui nos meus joelhos, deixa-me alisar-te, ó amável bichinho, o pêlo fino;

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"Seis poemas confiados memria de Nora Mitrani" por Alexandre O'Neill (1924-1986)

I

Para ti o tempo j no urge,

Amiga.

Agora s morta.

(Suicida?)

J Pierrot vomitando-fogo

(sempre ao servio dos amantes)

no entra no nosso jogo

como dantes.

Mas esse obscuro servidor,

que promovemos uma vez

(ainda eu no te dedicara

aqueleadeus portugus...),

corre, lesto, como uma chama,

entre ns dois (o saltarim!)

e desafia-nos pr cama.

Esperas por mim?

II

Se eu pudesse dizer-te: senta aqui

nos meus joelhos, deixa-me alisar-te,

amvel bichinho, o plo fino;

depois, a contra-plo, provocar-te!

Se eu pudesse juntar no mesmo fio

(infinito colar!) cada arrepio

que aos viajeiros comprazidos dedos

fizesse descobrir novos enredos!

Se eu pudesse fechar-te nesta mo,

tecedeira fiel de tantas linhas,

de tanto enredo imaginrio, vo,

e incitar algum V se adivinhas

Ento um frtil jogo amor seria.

No este descerrar a mo vazia!

III

S como s : o sol bom,

o ar vivaz

Do azul aos azuis, do verde aos verdes,

a terra menina e o tempo rapaz.

Tambm tu s menina

(um bichinho rebelde, de to natural!)

e correr descala era mesmo o que querias,

mas seria indecente nesta capital...

E enquanto, doutro verde possudo,

em versos me explico, bem ou mal,

primavera corres, j descala,

por uma relva ideal!

IV

Passam os anos a caretear...

Com ou sem sorte,

no ser tempo de viver, de amar,

de resistir morte?

Ouve amor o eterno e o que ele diz

a quem se d.

No esperes pelo tempo: s feliz

que a felicidade j!

E a felicidade esse rosto eleito

por ti,

esse palmo de ternura e o jeito

com que sorri.

E a felicidade a melancolia

que nesse rosto existe,

quando te quer dizer que s por ele

bom estar triste...

Passem, ento, os anos a deitar-nos

lnguas de fora...

Se morrermos ser de nos amarmos

em cada hora!

Mais um ano de esperana? No o queiras

se a esperana adiar,

e vive-o como se fosse a vida inteira

se tiveres de esperar!...

V

Eu estava bom p'ra morrer

nesse dia.

No tinha fome nem sede,

nem alarmeou agonia.

Eu estava tal como est

esse que perdeu a amiga,

o homem que sofreu j

tanto (nem se imagina!)

que ficou bem atestado

de fadiga

e copiou-se em alegre,

mas de uma torpe alegria,

que no era mesmo alegre,

mas alegre se fingia

s para enganar o morto

que dentro de si trazia.

Este um modo de dizer

em que ningum acredita,

mas no sei melhor dizer :

era assim que eu me sentia!

A solido o que era?

O amor o que seria?

J ningum minha espera,

para nenhures que eu ia.

Eu estava bom pr'a morrer

e ainda hoje morria...

Assim me quisesses dar

e tirar s tu! a vida.

VI

A que vens, solido, com teu relgio

de ponteiros de visgo, de bater de feltro?

Ombro nenhum ao meu ombro encostado,

a que vens, camarada solido?

Companheira, amiga, at amante,

at ausente, solido, te amei,

como se ama o frio at o frio dar

a chama que tu ds, solido!

A que vens, enfermeira? No sabes que estou morto,

que se digo o meu sim ou o meu no

s para que os outros me julguem mais um outro,

s para que um morto no tire o sono aos outros?

A que vens, solido? Vai antes possuir

os que amam sem esperana e sem saber esperam,

d-lhes o teu conforto, encosta-lhes ao ombro

o teu ombro nenhum, solido!

inPoemas com endereo(1962)