SECÇÃO PEDAGÓGICA IP · 2011-12-15 · Dos motivos por que esta introduziu no ensino secundário...
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O LATIM NA ASSEMBLEIA NACIONAL 183
SECÇÃO PEDAGÓGICA
O LATIM NA ASSEMBLEIA NACIONAL (D
Senhor Presidente:
O plano de estudos actualmente em vigor no ensino liceal português não estimula de modo algum o cultivo das Humanidades Clássicas entre nós. Ao lado de uma inovação de grande interesse formativo e cultural para os que dela beneficiam — refiro-me ao estudo do grego nas alíneas a) e d) do Curso Complementar de Letras —, a par desta louvável iniciativa da reforma de 1947, deu-se um golpe mortal na tradição, já de si pouco robusta, dos estudos latinos do liceu. Com efeito, reduzido aos dois anos finais do curso liceal, e só para os alunos de Letras, o latim foi quase proscrito do ensino secundário.
Parece-nos tempo de as autoridades competentes reconsiderarem sobre se o caminho ultimamente seguido nesta matéria é realmente o melhor. E, ao jeito de modesto contributo para a revisão do problema, tratarei muito brevemente, e sem quaisquer pretensões de tecnicismo, de dois ou três lugares-comuns com que se tem pretendido justificar a supressão do latim em Portugal.
O primeiro deles é o de que o latim é uma língua morta. Nada mais falso! Com efeito, não é possível apontar um momento sequer na história do Ocidente, desde a Roma antiga até hoje, em que se não tenha escrito ou falado a língua latina. Depois de nela se ter exprimido e comunicado quase toda a cultura ocidental até ao século XVIII,
a língua do Lácio continua a ser o idioma oficial da Igreja Católica e, fora do Catolicismo, em latim se escrevem teses, em latim se redigem revistas internacionais, em latim se correspondem as Universidades e muitos homens cultos dos nossos dias.
Acontece mesmo que os nacionalismos exacerbados da hora presente tornam impossível, em muitos casos, o emprego de qualquer das línguas internacionais de maior divulgação, por exemplo, o inglês ou o
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francês. E a ideia de voltar ao emprego do latim como veículo internacional da ciência surge mais viva, quando, em congressos de investigadores de todo o Mundo, o conhecimento de três ou quatro línguas modernas se revela insuficiente para quem queira seguir os trabalhos; quando russos e chineses, ante a surpresa dos físicos e matemáticos de outros países, aparecem a falar em russo e chinês, por entenderem que aos seus idiomas nacionais não assiste menor direito que aos dos sábios do Ocidente.
Perante a necessidade de os cientistas terem de gastar mais tempo a aprender línguas estrangeiras, do que no próprio cultivo das especialidades respectivas, um matemático francês, o Prof. Jean Cappelle, antigo reitor da Universidade de Nancy, promoveu em Avinhão, em Setembro de 1956, um Congresso do Latim, Língua Viva, cujo êxito foi enorme, como poderá verificar-se pela leitura das actas já publicadas {Premier Congrès International pour le Latin Vivant, Avinhão, 1956). A ideia, que é realizável nos moldes em que foi posta no congresso, está verdadeiramente em marcha.
Há que perguntar então: latim, língua morta? Decerto, como todas as línguas modernas para aqueles que as ignoram.
Do meu ponto de vista profissional de filólogo, não seria difícil provar que o latim evoluído continua hoje vivo na boca de todos nós, os que falamos idiomas neolatinos; que um pouco de reflexão nos mostrará como o latim é, em muitos casos, mais vivo no uso internacional da ciência do que certas línguas actuais de povos cultos, por exemplo, o holandês, o sueco, o finlandês; que a epopeia de Virgílio, a Eneida, na medida em que é apreciada em latim, nas mais diversas latitudes, é mais viva do que Os Lusíadas, se excluirmos naturalmnete os dois países de língua portuguesa, onde, aliás, poucos lêem a epopeia camoniana.
E, já que falámos do poema da lusitanidade, ocorre-me perguntar se é possível que os sem-latim, os nossos alunos actuais, entendam a linguagem épica de Camões. Que o digam os professores de português, cujas queixas bem conhecemos (1).
Outro lugar-comum dos opositores do latim é o da sua falta de utilidade prática. Respondamos-lhes igualmente.
Ninguém põe em dúvida o valor pedagógico do latim, as suas qualidades de ginástica mental, consideradas pelos pedagogos como seme-
(1) O Deputado Doutor Américo da Costa Ramalho pronunciou as seguintes palavras,**antes da Ordem do Dia, na sessão da Assembleia Nacional de 16 de Abril de 1958 (Diário das Sessões, n.° 38, de 17 de Abril).
(1) O Deputado Senhor Dr. José Hermano Saraiva pediu, nesta altura, licença para interromper o orador, fazendo as considerações que se encontram no final.
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Ihantes às das matemáticas. E não é o adestramento de espírito, ainda mais do que a acumulação de conhecimentos, o objecto básico do ensino liceal?
Os que atacam o latim opõem-lhe neste capítulo as línguas modernas. Quem, todavia, as conhece, e, por outro lado, não ignora o latim, sabe perfeitamente que o exercício mental da tradução do francês ou do inglês, e mesmo do alemão, para português, não é idêntico ao da versão do latim. Demais, acontece que muitos dos que argumentam com as línguas modernas contra a latina, se sabem aquelas, ignoram esta, quando não desconhecem uma e outras. Falam, assim, de um assunto de que realmente pouco ou nada percebem.
O mais saboroso, porém, desta contradição assim estabelecida é que o domínio do latim foi sempre o melhor veículo para a aquisição das línguas modernas mais conhecidas entre nós. Um latinista aprende, em regra, com maior facilidade, não apenas português, espanhol, italiano ou francês, mas até inglês ou alemão, línguas novilatinas as quatro primeiras, e profundamente influenciadas pelo latim, no vocabulário e na sintaxe, as duas últimas. Devo afirmar que não falo por ouvir dizer, mas com o conhecimento directo daquilo que afirmo.
Com o português dá-se até o caso de estudiosos estrangeiros se terem interessado pela nossa língua, exactamente porque, bons conhecedores do latim, lhes pareceu fácil aprender português. Foi o encontro com um velho dicionário latino-português na biblioteca da sua Grammar--School que despertou a vocação do futuro lusófilo Edgar Prestage. E o mais recente tradutor francês de Os Lusíadas, o Sr. Roger Bismut, sentiu-se atraído à leitura e versão do poema — segundo confessou —, pelo parentesco da língua camoniana com o latim.
Este parentesco, aliás, não é fortuito. Nos séculos xv e xvi, muito antes mesmo de a nossa independência territorial correr perigo, a língua portuguesa forcejou por libertar-se da influência, dia a dia mais poderosa, do grande idioma vizinho e rival, p castelhano. Como Agostinho de Campos disse concisamente na História da Colonização Portuguesa do Brasil (m, p. 52):
«À ameaça tremenda com que nos assustava o castelhano respondeu um admirável instinto patriótico, diligenciando remontar a língua à pureza da fonte originária. «Com pouca corrupção crê que é a latina», disse Camões, e assim resumiu num verso de Os Lusíadas o sentimento das gerações que, em face do progresso
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mais rápido e do triunfo avassalador da língua rival e vizinha, ganharam fé e confiança na própria, à força de a suporem primeiro, e de a tornarem por último, quanto puderam, mais latina do que aquela.
A língua portuguesa, para se defender e salvar, correu a encos-tar-se à mãe e a refugiar-se no seu regaço, como faz a criança ameaçada por um irmão mais crescido e mais forte...»
Acrescentemos agora nós que, sem o conhecimento do latim, é impossível o estudo sério do português, desde a ortografia ao léxico, da etimologia à semântica, da morfologia à sintaxe. E recorrer ao latim é, ainda hoje como no passado, o único meio seguro de enriquecei" a língua portuguesa sem a abastardar ou desnacionalizar.
E que dizer de tantos especialistas que no estrangeiro possuem uma preparação básica de humanidades clássicas e entre nós têm de con-tentar-se com dois anos de latim, aprendido tarde e a más horas: epi-grafistas, arqueólogos, filósofos, historiadores da cultura? D. Carolina Michaèlis, que tinha as sólidas bases do Ginásio alemão, no seu tempo como hoje, de profunda tradição greco-latina, zombou algures da falta de cultura humanística dos nossos improvisados investigadores «leigos e latinófobos», como ela lhes chamava. Que diria do latim liceal de hoje a eminente mestra universitária?
Quando um estrénuo defensor da cultura ocidental, como é o nosso país, abandona as raízes mesmas dessa cultura, não é estranho saber que os alunos das escolas soviéticas, onde o latim foi introduzido, acharam «que o seu conhecimento os ajudava a compreender muitas palavras da língua russa e a assimilar as línguas modernas, sobretudo o francês e o inglês» ? (Estúdios Clásicos, III, pp. 165 e 166, Madrid, 1955).
Aos variados aspectos da utilidade do latim acabados de referir juntemos agora brevemente algumas palavras sobre o seu valor pedagógico, de que atrás falei.
Na revista belga Bulletin Semestriel de l'Association des Classiques de l'Université de Liège (n, 2, p. 38, 1955) podem ler-se as palavras seguintes: «Estas variadas razões levam a reconhecer ao latim e ao grego um valor formativo excepcional. Se ainda tivéssemos dúvidas, bastaria reler os juízos formulados por muitos homens eminentes: filósofos, homens de ciência, médicos, políticos e literatos afirmam espontaneamente que as línguas antigas são a melhor escola da inteligência. Esta opinião é confirmada pelos números: estatísticas feitas na Alemanha,
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nos Estados Unidos e na França, revelam a superioridade dos alunos clássicos sobre os modernos nos domínios mais diversos, por exemplo nas ciências aplicadas.»
Mais adiante, a revista apresenta as seguintes estatísticas: Na Alemanha, num exame de maturidade, cuja cotação máxima
era de 250 pontos, dos alunos que alcançaram 200 pontos pertenciam aos
Percentagens
Ginásios clássicos (Humanidades greco-latinas) 21,7 Liceus modernos 5,9
Nos Estados Unidos, segundo as investigações de W. H. Winck, os alunos que estudaram latim têm, em relação aos outros, uma superioridade de 13,11 por cento em inglês e de 15,25 por cento em matemática.
Em França, nos exames de admissão à Escola Politécnica, regis-taram-se 51 por cento de aprovações entre os alunos provenientes da Secção A (Humanidades Antigas) dos liceus, contra 31 por cento dos que vieram da Secção Moderna.
Devo ainda acrescentar que em países, como a Holanda, onde a cultura greco-latina goza de extraordinário prestígio, os estudantes dotados passam geralmente pelo liceu humanístico, incluindo os melhores alunos das Faculdades de Ciências.
Como já um dia escrevi, a utilidade do latim é talvez a única matéria sobre que estão de acordo a Igreja Católica e a Rússia Soviética. Dos motivos por que esta introduziu no ensino secundário o latim, escreveu no Times (12 de Janeiro de 1954) o Prof. D. B. Gregor:
«Descobriu-se que o conhecimento do latim era indispensável para o bom entendimento do russo ; que ele contribuía para a exactidão do pensamento e da linguagem; que os clássicos do marxismo sempre o tinham defendido; que Lenine o tinha conhecido e usado; que os professores de línguas modernas estavam mal preparados sem ele; que os candidatos às cátedras de linguística indo-europeia deviam tê-lo estudado; em resumo, que nenhum cidadão soviético está devidamente educado sem latim.»
Do lado católico, Sua Santidade o Papa Pio XII, que é um famoso poliglota, tem feito repetidas vezes a apologia do latim, em trechos ver-
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dadeiramente dignos de antologia. Eis um deles, numa alocução aos alunos dos liceus de Roma, em 30 de Janeiro de 1949:
«Além disso, vós, ou a maior parte de vós, tendes, como jovens estudantes, a vantagem de poder conhecer e aprofundar melhor que outros as fontes vivas da história. Com efeito, entre muitas matérias que formam os programas dos vossos estudos, cultivais a língua latina. O latim! Língua antiga, mas não morta, porém: porque, se há séculos que do seu eco soberano estão mudos os anfiteatros em ruínas, os famosos foros e os templos dos Césares, não se calam as basílicas de Jesus Cristo, onde os sacerdotes do Evangelho e os herdeiros dos mártires repetem e voltam a cantar os salmos e os hinos dos primeiros séculos, na língua consagrada dos Quirites.
Hoje, a língua de Roma é principalmente língua sacra, que ressoa nos ritos divinos, nas aulas de teologia e nos documentos da Sé Apostólica e na qual, tantas vezes, vós mesmos dirigis uma saudação à Rainha do Céu, vossa Mãe, e a vosso Pai, que reina lá em cima. Mas o latim é também a chave que nos abre as portas da história. Tudo o que do passado romano e cristão a nós chegou, em inscrições, em manuscritos e livros, salvo parciais excepções dos últimos séculos, quase tudo se vestiu da língua latina.»
Senhor Presidente:
Portugal é no Ocidente da Europa — segundo as informações de que disponho —, de entre todos os países de cultura ocidental, aquele em que menos importância é conferida às humanidades clássicas, nomeadamente ao estudo do latim. Somos um país latino, e creio que disso nos orgulhamos. Todavia, quase nada fazemos para continuar uma tradição cultural que é fonte e seiva da própria civilização greco-latina e cristã — a civilização ocidental, de que nos proclamamos defensores.
O latim não se estuda porque — dizem — é língua morta, inútil, e esquece. Já vimos como não era morta nem inútil. Também podemos afirmar, sem sombra de dúvida, que os benefícios do seu estudo — a disciplina do espírito e o rigor da expressão — ficam, mesmo quando o latim liceal desapareceu da memória.
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Nada há que, abandonado, não esqueça. À meditação dos que já souberam algum latim e o olvidaram, entrego estas reflexões de Georges Duhamel em Chroniques des Saisons Amères (Paris, 1944, pp. 78 e 79):
«Há muito que não sou capaz de traduzir, por exemplo, Tácito, à primeira vista. Não tem importância, porque não sou especialista e não é esse o resultado que queriam os bons mestres que me tiraram da ignorância. Uma certa maneira de abordar as dificuldades e de as resolver, o sentido rigoroso do método, uma necessidade de ordem e de luz, um desejo teimoso de julgar, de raciocinar e de compreender—eis o que os estudos humanísticos deixaram no meu espírito.»
parte dos alunos algum contacto com o latim. Suprimindo o ensino dele, o recurso aos textos originais tornou-se impossível.
É este o inconveniente de pormenor que me permito recordar, porque nada que se refira ao ensino da história pátria é de importância secundária.
O Orador: — Embora pudesse contar muitas anedotas, não quero entrar no campo anedótico. Por isso vou contar apenas um episódio, cuja veracidade me garantiram: um aluno, a quem perguntaram porque havia em português três plurais diferentes para as palavras terminadas em -ão, respondeu: «por causa de uma coisa que existiu em certa altura, de que me falaram, chamada latim.»
Senhor Presidente:
Resta-me agradecer a boa vontade com que Vossa Excelência e os Senhores Deputados, meus colegas, ouviram as simples e desataviadas considerações que acabo de dizer, e pedir para este problema de ordem cultural e pedagógica a atenção bem informada e o julgamento esclarecido de Sua Excelência o Ministro da Educação Nacional.
O Deputado Dr. José Saraiva: — V. Ex.3- dá-me licença? No conjunto dos nossos programas dá-se este caso singular: supri-
miu-se o latim, mas mantêm-se na lei normas que mandam ensinar o português, a partir ão 2.° ciclo liceal, com referência ao latim. Assiste-se à situação paradoxal de se obrigarem crianças que não sabem uma palavra de latim a explicar e fazer a história das palavras portuguesas, a partir dos étimos latinos.
Quer dizer: de um lado, suprime-se o ensino do latim, mas do outro, mantém-se um ensino de português com métodos que exigem o conhecimento, pelo menos elementar, do latim.
Há ainda outro inconveniente, que, menos extensivo, não é menos sério: o ensino da história nacional estava a fazer-se em certos liceus, há alguns anos, com base em documentos, isto é, textos fundamentais, em muitos casos, para o conhecimento das nossas instituições medievais. O diploma régio, a carta de foral, o texto das inquirições, o passo da lei antiga ajudavam os alunos a conhecer não só os factos, mas sobretudo os métodos próprios da investigação histórica. Mas isto implicava por
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