A INDÚSTRIA TÊXTIL E VESTUÁRIO PORTUGUESA ATP – Associação Têxtil e Vestuário de Portugal.
Saúde e doença através dos tempos e dos contextos sociais · família, sobretudo a...
-
Upload
truongdang -
Category
Documents
-
view
212 -
download
0
Transcript of Saúde e doença através dos tempos e dos contextos sociais · família, sobretudo a...
Saúde e doença através dos tempos e dos contextos sociais
Maria Engrácia Leandro, Prof. Catedrática aposentada da Universidade do Minho
Toda a pessoa tem direito a um nível de vida capaz de assegurar a sua saúde, o seu bem-estar e o da sua
família, sobretudo a alimentação, o vestuário, a habitação, os cuidados médicos, bem como os serviços
sociais necessários.
Declaração Universal dos Direitos do Homem, artº 25.
Introdução
A preocupação em combater a doença, usufruir de melhor saúde e aumentar a esperança
média de vida vem de tempos de antanho, embora só muito tardiamente se começassem
a sentir mais resultados. Os humanos tiveram de enveredar por uma longa caminhada até
conseguirem apreender os seus mecanismos e ultrapassar muitas das suas contingências.
No tempo de Jesus Cristo a esperança média de vida era de 22 anos e só nos finais do
século XVIII se aproximou dos 30 anos nas sociedades mais desenvolvidas (A.
D’Houtaud, 1994)1, graças, sobretudo, à melhoria das condições sociais e económicas e
de mais avanços da medicina. Ora, na atualidade chega ou até ultrapassa os 80 anos,
segundo as sociedades, a condição social e o género, o que é bem revelador dos ganhos
adquiridos neste longo processo de combate à doença e busca de melhor saúde.
No passado, a doença era associada à intervenção das forças transcendentais, ou seja, a
um sentido moral, religioso e metafísico em forma de punição. Coube a Hipócrates (séc.
V a. C.) ter criado uma teoria coerente dos humores, da doença e da saúde. Ao fazê-lo, ao
mesmo tempo que introduz uma medicina racional, retira à doença qualquer causalidade
“trágica”, inscrevendo-a antes em situações concretas da natureza e da existência dos
humanos, como parte integrante do mundo. No entanto, foi necessário um longo processo
para que esta conceção se viesse a modificar mais profundamente. Libertar a doença da
maldição religiosa é separá-la do mal, conferir dignidade ao doente e responsabilidade ao
médico. Quanto à saúde, dependendo de uma vida regrada com hábitos de higiene
pluridimensionais, Hipócrates considera elevar-se acima de qualquer outro domínio, pois
de nada servirá ter riquezas e outros bens se não houver saúde2. Esta perspetiva, com bem
1 D’HOUTAUD, A., Images de la santé, Nancy, Presses Universitaires de Nancy, 1994. 2 JOUANNA, J., Hippocrate, Paris, Fayard, 1992.
mais de 2000 anos, afigura-se de uma retumbante atualidade, face à importância que tem
vindo a ser atribuída à saúde nas sociedades hodiernas como sinónimo de bem-estar,
felicidade e vida longa. As aspirações humanas a este respeito são hoje ilimitadas.
Mas a questão prevalece: afinal o que é a saúde? A saúde a que preço? A saúde para
quem? Para fazer o quê? O que faz desencadear a doença? Como combatê-la quiçá
extingui-la, discussão sempre renovada sobretudo desde a Filosofia das Luzes? Como
cuidar dos doentes e ainda mais com o aumento da longevidade e a variedade das doenças
que vão emergindo, mesmo quando as mais mortíferas parecem vencidas? Se as respostas
têm variado ao longo dos tempos e das civilizações, os humanos sempre se preocuparam
com estes quesitos. Ao longo das últimas décadas, com os avanços da ciência e da
tecnologia, já se encontram explicações muito consistentes nestes domínios. A biologia e
a medicina têm realizado descobertas e progressos extraordinários e decisivos. O
conhecimento progressivo do genoma humano permite compreender melhor as doenças
genéticas ou outros mecanismos patológicos. Mas enquanto isto, há ainda muitas
populações no mundo cuja esperança media de vida não ultrapassa os 45-50 anos e onde
a mortalidade infantil atinge taxas elevadíssimas, mercê das condições sociais de
existência e da falta de estruturas sanitárias que permitam contrariar estas realidades.
Nesta ótica, tem-se vindo a investir essencialmente em três dimensões. Uma delas prende-
se com o combate à doença e ainda mais às doenças mais mortíferas. Embora certas
doenças sempre tivessem existido, os trabalhos de epidemiologia histórica revelam que
algumas patologias aparecem, difundem-se, rareiam, quiçá desaparecem por um conjunto
de razões ainda hoje mal conhecidas. Porém, em diversos períodos uma doença específica
incarna aos olhos das populações o mal absoluto, quer em virtude da frequência e da
perigosidade que representa, quer porque de várias maneiras reflete as condições sociais
de existência, as conceções acerca da vida e os valores em vigor. Na Idade Média a peste
faz milhões de vítimas e incarna, melhor do que qualquer outro flagelo, a fragilidade da
existência humana e uma ideia do mundo marcado pela punição divina. No século XIX a
tuberculose exprime simultaneamente o ideal romântico da personalidade caraterizada
pelo destino e a miséria da classe operária nos alvores da industrialização. Na atualidade
é dado grande relevo às neoplasias e às depressões, também em virtude dos modos de
vida e dos novos dilemas associados à individualidade contemporânea.
Uma outra vertente tem a ver com a passagem do “antigo regime do mal” marcado por
três caraterísticas: a quantidade, a impotência e a morte, e a exclusão3 para um novo
patamar da doença, por volta de meados do século XVIII. Se no primeiro as doenças
infeciosas e de carência reduziam imenso a esperança média de vida, no segundo assiste-
se a uma transição profunda: as doenças mortíferas vão cedendo o passo às doenças letais
que, em geral, se manifestam numa idade mais tardia, levando ao aumento da esperança
média de vida. Para tanto muito contribuíram os progressos económicos, a administração
pública e o desenvolvimento da medicina em fase da sua revolução moderna que, nos
países mais desenvolvidos, teve maior impacto na segunda metade do século XIX. De
então para cá as descobertas e avanços são imensos. Na segunda metade do século XX
releva-se uma terceira fase, caraterizada pela quase desaparição das doenças infeciosas,
em virtude da descoberta dos antibióticos e da melhoria das condições de vida, embora
um pouco mais tarde outras se venham a manifestar. Para a medicina parecia que
doravante se veria essencialmente confrontada com as doenças crónicas e degenerativas.
Se esta é de facto uma realidade, também sequencialmente se tem feito acompanhar de
várias outras doenças hodiernas com destaque para as sociopatias, ou seja, as que estão
intrinsecamente associadas às influências sociais de toda a ordem4.
Enfim, o terceiro tem a ver com as questões da saúde enquanto tal. Com efeito, a saúde,
tendo-se tornado num bem primordial das sociedades hodiernas ocidentais, é cada vez
mais objeto de investimento económico, social, científico, metafísico e político. A
biologia, a genética e a tecnologia médica abrem perspetivas prodigiosas quanto à busca
de melhor saúde, não deixando, porém, de suscitar novas questões. A visão biomédica da
melhoria da saúde enquadra uma vertente simbólica, social, cultural e política. Por um
lado, manifesta-se em filigrana a utopia da extinção das doenças, elevando-se as
aspirações em favor do aumento da esperança média de vida com boa saúde, graças aos
progressos científicos e tecnológicos e a melhores condições de vida; pelo outro, cresce
o fosso das desigualdades sociais trazendo consigo desigualdades sanitárias de toda a
ordem5. Daí que o combate à doença e o acesso de todos à saúde e aos seus benefícios
continue a ser uma questão de ontem e de hoje e até uma miragem.
3 HERZLICH, C. et PIERRET, J., Malades d’hier, malades d’aujourd’hui, Paris, Payot, 1990. 4 DRULHE, M., Santé et société. Le façonnement sociétal de la santé, Paris, PUF, 1996. 5 FASSIN, D., L’espace politique de la santé. Essai de généalogie, Paris, PUF, 1996.
É com base nestas pressupostos que neste trabalho, numa perspetiva interdisciplinar de
interface entre a história e a sociologia, nos propomos abordar três aspetos primordiais.
Após situar as modificações operadas nos regimes da saúde e da doença no decorrer dos
tempos, dos seus contextos económicos e sociais e dos progressos da medicina e da
tecnologia, tentaremos observar como questões deste cariz reenviam igualmente para o
conjunto das condições de vida, das diferentes configurações do mal, dos valores e dos
contextos sociais em geral. O último objetivo visa favorecer a compreensão dos debates
atuais acerca das questões da saúde que se encontram na fronteira de múltiplos objetivos.
Percurso histórico da doença
No âmbito deste trabalho, apenas podemos aflorar as sendas da doença, incidindo de
sobremaneira sobre as sociedades ocidentais. Tal não significa que não haja aspetos muito
mais vastos, também comuns a muitas outras regiões do mundo. Só que, por um lado, a
limitação do espaço não o permite e, por outro, os contextos sociais, económicos e
culturais, sendo distintos ao longo dos tempos e das regiões, fazem com que ao nível das
diferentes sociedades e das condições sociais de existência se tenham vindo a verificar
grandes disparidades no atinente à doença e à saúde. Não obstante, também se sabe hoje
que à medida que certas sociedades se vão aproximando de padrões de desenvolvimento
similares às ocidentais mudam igualmente os seus padrões de doença e de saúde6.
Durante a Idade Media, duas doenças ocuparam um lugar cimeiro nas sociedades e
mentalidades religiosas da época: a lepra e a peste. A primeira, sendo endémica na Europa
desde os primeiros tempos do cristianismo (séc. VI), embora já existisse muito antes,
desenvolve-se intensamente no século X e apenas começa a regredir por volta do século
XIV. Já o vocábulo de peste em latim clássico significa toda a espécie de doença
epidémica e em sentido figurado flagelo social. Aos olhos de muitas pessoas pelas suas
distintas características aparecem como duas doenças opostas, embora sejam ambas
bastante mortíferas. Sendo altamente contagiosas, o que explica o seu objeto de exclusão,
a primeira é lenta, atinge de modo individual relativamente poucas pessoas e está
6 TOWNSEND, P. and DAVIDSON; N., Inequalities in Health: The Black Report. Harmondsworth, Penguim Books, 1990. FASSIN, D. L’espace politique de la santé. Essai de généalogie, Paris, PUF, 1996.
associada ao que corrói, ao passo que a segunda é repentina, violenta, mortal e atinge
números consideráveis de pessoas, qual forma de flagelo coletivo. Se o leproso é
socialmente morto e a sociedade é preservada, com a peste a sociedade risca de desabar.
Em pouco tempo desaparecem famílias e populações inteiras. Partilham as duas de um
outro aspeto comum: a incapacidade da medicina para as tratar e poder salvar a vida dos
indivíduos atingidos, prefigurando, assim, a impotência e a morte.
Se nada nas Escrituras evoca particularmente a peste, os textos sagrados desde o Antigo
Testamento estão eivados de referências religiosas contraditórias relacionadas com a
lepra, a que se misturam crenças alheias ao cristianismo. Na Europa ocidental, embora já
se fale de peste na Antiguidade7, o primeiro grande surto de peste, a peste negra, tem
lugar em Messina, em 1347, em virtude da deslocação de 12 galérias provenientes de
Kaffa, na Crimeia, para a Itália, exatamente para fugir ao contágio desta doença muito
temida8. Como várias outras doenças, a disseminação da peste deve-se, em grande parte,
aos movimentos migratórios, inclusive das próprias fugas para escapar a estes flagelos,
às viagens e à guerra.
Não havendo muitos registos destes males que pairavam sobre as sociedades, até em
virtude da rapidez com que sobrevinham não deixando tempo aos doentes para refletirem
e escreverem sobre a sua própria doença, como viria a acontecer mais tarde no século
XIX, não é fácil conhecer com precisão estes fenómenos. Aterrorizados, cada um
procurava fugir destes contágios. E os que sobreviviam e permaneciam eram atingidos
pelo medo e pelo terror. Daí que muitas vezes, impotentes perante as condições de vida,
o “destino” e a ineficácia da medicina, a ideia de punição divina se abatesse sobre os
humanos e o recurso ao sagrado, em forma de petição, purificação e desagravo, fosse o
principal meio de socorro.
Todavia, pouco a pouco a ideia de contágio, mais comum ao povo do que à medicina, vai
fazendo o seu caminho. No século XV, o médico italiano Frascastor pensa que o contágio
se faz pela emissão de partículas que se propagam uns aos outros. Contudo, a medicina
oficial não aceita esta hipótese, mas sem que a mesma fosse totalmente abandonada. A
dada altura isolavam-se os doentes e as suas famílias em espaços preparados para o efeito
7 Ficou famosa a “peste de Atenas” em 430 d. C., narrada por Thucydide, embora depois se tenha vindo a
saber que se tratava duma outra doença. 8 HERZLICH, C. e PIERRET, J., Malades d’hier, malades d’aujourd’hui, Paris, Payot, 1990.
e os “saudáveis” eram impedidos de partir, uma vez que, sem o saberem, poderiam já
estar atingidos por este mal e seriam eles próprios difusores da doença nos locais para
onde se deslocavam, tendo sido assim que a doença se difundiu enormemente um pouco
por toda a Europa. Mais tarde, com as descobertas marítimas, difunde-se em algumas
regiões da América latina, como aconteceu, por exemplo, na província de Panuco. Opta-
se, então, pelo isolamento dos doentes e a quarentena dos navios e pelo corte de relações
com eles, dando azo ao seu abandono e exclusão.
A luta prolongou-se durante alguns séculos até que semelhante situação se revertesse em
toda a Europa nos finais do século XVII e finalmente na Turquia no início do século XIX,
tendo sido finalmente banida da bacia mediterrânea. Para tanto, entre outros fatores ainda
hoje mal conhecidos, muito contribuíram os progressos alcançados na agricultura, na
conservação de alimentos em celeiros de um ano para o outro como reserva e na abertura
de vias de comunicação, permitindo a circulação de alimentos, visando combater a fome
e as carências alimentares de muitas populações. Por conseguinte, tal como acontece
ainda hoje, o facto de poder contar com mais potencial alimentar dota os corpos de maior
resistência à doença e de mais defesas para a vencer quando sobrevem, o que não acontece
de modo algum em condições de penúria. Não admira, pois, que também se designem as
doenças desta época neste espaço geográfico como as doenças da pobreza, da carência,
da fome e da miséria, como era o caso em que vivia a grande maioria da população. Ao
invés, os de melhor condição social eram muito menos atingidos por estes flagelos.
Transição societal, transição das doenças
Nos tempos dominados pelas epidemias, sabe-se que havia imensos moribundos e muitos
mortos, mas não se sabe, ao certo, se haveria muitos doentes no sentido moderno do
termo. A epidemia é prelúdio de morte coletiva eminente, sinal de pecado e ocasião de
desordem social, mas não é de modo algum um modo de vida, como acontece mais tarde,
desde finais do século XVIII. Com certeza que antes havia outras doenças de cariz
individual, mas perante a grandeza do flagelo eram menos notadas e, por conseguinte,
não davam para estruturar uma imagem da doença: um indivíduo que sofre, é tratado,
pode viver algum tempo doente, recuperar a saúde e usufruir de um estatuto específico.
C. Herzlich e J. Pierret 9 consideram serem necessárias três condições para o que hoje
designamos de doença. Primeiro que a doença deixe de ser um fenómeno de massas. A
seguir que não se morra da doença e que possa constituir uma forma de vida antes de ser
uma forma de morte. Por último, que a diversidade das doenças seja definida por um olhar
uniformizador, precisamente o da medicina clínica. Modernamente, estar doente é ser
tratado por um perito de saúde. Da diversidade dos males do corpo advém então uma
condição e identidade comuns: as do doente.
Trata-se de um longo processo implementado desde os alvores do século XVIII, que tem
vindo a alcançar grandes melhorias mercê do combate à doença (ainda que algumas se
afigurem incuráveis) e ganhos em saúde. Tenha-se presente que a ideia de que a
humanidade podia vencer a doença, ainda que a morte continue a ser a única certeza da
vida, faz parte do contexto da Filosofia das Luzes e da emergência da modernidade. Os
pressupostos que acompanham o racionalismo moderno, designadamente na sua
dimensão militante de dominação do meio natural, têm sido imensos10.
Com os progressos alcançados e a transformação das mentalidades e com eles as
representações do mal, a peste deixa de ser sinónimo de impotência humana perante a
doença. Mesmo assim, algumas doenças vindas de tempo de antanho, como por exemplo
a gripe, continuam a co-existir com muitas outras. Só que quando uma se afigura encarnar
o mal por excelência, as outras são postas em segundo plano, embora bastante mortíferas,
designadamente ao nível dos mais frágeis, dado que as epidemias continuam muito
associadas à fome e à miséria. Assim acontecia com o sarampo, a varicela, a varíola, a
escarlatina, a rubéola, a disenteria, o paludismo, o tifo designação que poderia abranger
várias doenças... Foi preciso esperar pela melhoria da capacidade alimentar, por mais
investimento na medicina e em infraestruturas sociais, começadas a implementar há cerca
de três séculos nas sociedades ocidentais, para que sejam alcançadas melhorias mais
significativas.
Um dos efeitos denota-se ao nível do crescimento humano e do aumento da esperança
média de vida que, pela primeira vez na história da humanidade, atinge os 30 anos nos
9 HERZELICH, C. et PIERRET, J.., Malades d’hier, malades d’aujourd’hui, Paris, Payot, 1990. 10 DESCARTES, R., Discours de la méthode, Paris, Gallimard, La Pleiade, 1953; DRULHE, M., Santé et societé. Le façonnement sociétal de la santé, Paris, PUF, 1996.
finais do século XVIII. Se no princípio da era cristã a população mundial se quedava
pelos 200 a 300 milhões, foram precisos 16 séculos para que a humanidade duplicasse os
seus efetivos. Todavia, de 1750 a 1850, a população mundial passou de 726 milhões para
1 bilião, tendo praticamente duplicado no espaço de um século11, o que é bem revelador
da transição societal, económica e demográfica em curso.
No início do século XIX uma nova doença vinda do oriente, a cólera, causa grandes
perdas humanas, designadamente crianças e pobres, fenómeno que durou até finais do
século nos países mais desenvolvidos, concedendo-lhe de novo um cariz epidémico. Mas
agora a resignação cede lugar à ação, não apenas em termos de desenvolvimento social e
económico, mas também da própria medicina. Entre 1878-1905, em França, as
descobertas de Louis Pasteur, mostram a origem microbiana das doenças infeciosas e a
transmissão dos germes de um indivíduo para o outro (contágio). Estes trabalhos vão dar
origem às vacinas e à sua divulgação, ou seja, à implementação de medidas profiláticas,
preventivas e curativas. Em 1882, Robert Koch, na Alemanha, descobre o bacilo da
tuberculose, mas a respetiva terapêutica só prossegue mais tarde. Estas descobertas,
aliadas a outras similares, e ao desenvolvimento económico e social muito contribuíram
para modificar o panorama das doenças infeciosas mais temidas.
Mesmo assim, a mudança exige tempo. Por exemplo, no século XVIII, a abrangência da
tuberculose era de tal ordem que muitos pensavam estar-se perante uma nova epidemia.
Em pleno século XX, apesar de algum recuo da doença desde o século XIX, ainda antes
da descoberta do bacilo de Koch, continuava a ser a doença mais mortífera, sendo a classe
operária, em virtude das deficientes condições de vida e do desgaste laboral, a mais
atingida12. Foi preciso esperar, de facto, pela melhoria das condições de vida e pela
descoberta de antibióticos específicos em meados do século XX, para que esta tendência
se inverta por volta dos nos 1960. Frise-se, todavia, que, apesar do caráter mortífero da
tuberculose, trata-se de uma doença que permitia ao indivíduo ser tratado e viver algum
tempo com a doença, quiçá poder curar-se, ao contrário das epidemias anteriores. Com
estas prerrogativas, pode até ser considerada uma doença de transição entre o anterior
regime do mal e as novas configurações da doença. Michel Foucault13 considera que no
11 D’HOUTAUD, A., Images de la santé, Nancy, Presses Universitaires de Nancy, 1994. 12 HUGO, V., Les Misérables, Paris, Cercle du Bibliophile, 1862. 13 FOUCAULT, M., La naissance de la clinique, Paris, PUF, 1963.
decorrer do século XIX a doença se separa da metafísica do mal a que foi associada
durante vários séculos.
Paralelamente, vale a pena insistir na importância do desenvolvimento da corrente da
medicina higienista, ainda antes de um trabalho de elucidação destes processos mórbidos,
designadamente com Louis Villermé em França, Quételet na Bélgica, Stanway na
Inglaterra e Virchow na Alemanha, cujo objetivo é promover reformas na organização
social e medidas de higiene, cuja eficácia se impõe sobre certas medicações de menor
confiança por parte da clínica. O higienismo vai aliar programa de saúde com vontade de
(re)organizar a sociedade. A saúde aparece, agora, como conceito nos projetos de
organização da sociedade, através da distinção entre o normal e o patológico14.
Não obstante, a realidade terapêutica não traz logo os resultados esperados, dado que o
declínio da doença e os ganhos em saúde são tanto objeto da medicina, como das
estruturas sociais e da melhoria das condições sociais de existência, o que se estende por
um longo processo temporal e social. Se no século XIX, se procede a grandes reformas
de higiene e das infraestruturas graças ao desenvolvimento e intervenção da ciência
médica que, doravante, permite compreender os mecanismos de muitas e variadas
infeções, trata-se de um processo longo e de envergadura até aos nossos dias. A doença
advém, então, um fenómeno natural que se procura combater através da higiene, do
isolamento, da distribuição alimentar, da melhoria das infraestruturas, dos modos de vida,
dos medicamentos, outras formas de intervenção médica e medidas políticas e sociais.
Uma particularidade desta mudança tem a ver com o facto da doença, pela sua duração,
cuidados a tomar e ajustamentos sociais necessários, se tornar num modo de vida, o que
é ainda mais notório no caso das doenças crónicas e degenerativas, tão em voga na
atualidade. Mas a doença mais temida continua a ser o cancro. Embora a medicina tenha
feito progressos extraordinários em busca do seu tratamento e cura definitiva, continua
muito tenaz, apresentando até algumas semelhanças com a lepra de outros tempos: sendo
uma doença do indivíduo, destrói lentamente corroendo. Todavia, tal como acontece com
várias outras doenças, com destaque para as cardiopatias, os ganhos extraordinários em
termos do aumento da longevidade também contribuem de sobremaneira para a sua
manifestação.
14 DURKHEIM; E., Le Suicide. Étude de sociologie, Paris, PUF, 1986 [1897]).
Frise-se que no século XX as sociedades ocidentais ganharam à morte cerca de 30 anos15.
Mas o primeiro grande sinal destas mudanças traduz-se no enorme decréscimo das taxas
de mortalidade infantil nos países mais desenvolvidos. Em Portugal passaram de 60%o
em 1970 para 3,5%o no início do século XXI, o que se traduz por enormes ganhos em
saúde. Abona no mesmo sentido o desenvolvimento da farmacologia, cujas descobertas
terapêuticas curativas têm tido grande alcance desde a segunda guerra mundial. Hoje estar
doente é ser tratado pela medicina e pelos medicamentos.
Para tanto muito contribuem, identicamente, as prerrogativas da Segurança Social.
Implementada por Bismark na Alemanha, em finais do século XIX, por razões políticas
e por ideais de solidariedade, estendendo-se rapidamente a outras sociedades, visa
conceder à classe operária mais proteção, sobretudo quanto aos acidentes de trabalho e à
doença. Mas foi após a segunda guerra mundial que foram alargadas as medidas de
proteção social, fazendo com que advenha um mecanismo que confere direito à doença,
ao respetivo tratamento e à recuperação da saúde. Cada empregado, em virtude da sua
atividade profissional é um assegurado, um sujeito de direitos e, como tal, adquire uma
prerrogativa que beneficia de uma cobertura social e, em caso de doença, acede aos
cuidados médicos e a uma baixa, o que contrasta bem com outros tempos mais recuados.
Sem esta proteção, haveria muitos indivíduos que dificilmente poderiam ser tratados das
suas doenças, designadamente as mais honorosas.
Uma vez que a doença durante muitos séculos foi atribuída ao “fatum”, por conseguinte
à fatalidade que se abatia sobre os humanos, com efeito não é possível abordar o processo
da sua transformação sem ter em conta os contextos sociais, culturais e económicos, as
próprias representações sociais e os valores em que tais fenómenos se têm vindo a
produzir. Se é certo que alguns tipos de doença continuam relacionados com a pobreza, a
miséria, as más condições de higiene e falta de infraestruturas sociais e sanitárias, outras,
porem, decorrem de certos modos de vida associados ao consumismo e à opulência, como
acontece de sobremaneira com as questões alimentares ou outras similares.
Identicamente, o caso das doenças mentais frequentemente ligadas ao desgaste da vida
moderna, sendo a depressão a mais paradigmática, aliás, já considerado pela Organização
Mundial de Saúde (OMS) como a doença do século, não é o menos emblemático.
15 PHILIPPE, A. et HERZLICH, C., Sociologie de la maladie et de la medicine, Paris, Nathan, 1994.
De qualquer modo, globalmente, damo-nos conta que o desenvolvimento social e
económico foi de todos os tempos um determinante crucial na paisagem sanitária mundial
e que as tendências atuais vão no mesmo sentido. Apesar dos bons propósitos da ONU,
já em 1978 aquando da publicação da Carta de Alma-Ata, ao preconizar “A saúde para
todos no ano 2000”, a realidade continua muito distante destas metas. Enquanto não for
realmente combatido o fosso das desigualdades sociais que é igualmente um fosso
sanitário pode dizer tratar-se de uma utopia mobilizadora. Os trabalhos de Didier Fassin,
ao estudarem situações desta índole já em finais do Antigo Regime e dos períodos que
imediatamente se lhe seguiram, atestam estas asserções. Mesmo em tempo de epidemias
muito mortíferas, quem usufrui de boas condições sociais de existência resiste muito
melhor a estes flagelos do que quem vive em condições de pobreza e de miséria. Daí que
se possa dizer que muitas das doenças do passado eram sobretudo doenças da carência e
da miséria. Não se vive, adoece e morre da mesma maneira quando se exerce esta ou
aquela profissão, se pertence a esta ou àquela condição social e se vive desta ou daquela
maneira. Atualmente, apesar dos progressos alcançados em ganhos de saúde e de combate
à doença, a classe operária e profissões similares têm menos 12 a 15 anos de esperança
média de vida do que os grupos de melhor condição social 16. Victor Hugo definia a
tuberculose como sendo essencialmente uma doença da classe operária, porque era acima
de tudo uma doença da miséria e do desgaste17. Daí que esta doença, a par de várias outras,
também possa ser considerada uma doença social.
Na verdade, estudos de índole antropológica, histórica e sociológica, revelam que a
doença, a saúde e a morte, desde todos os tempos, não se reduzem a uma evidência
“orgânica”, natural e objetiva, mas são igualmente tributárias da influência das
sociedades. Aliás, o próprio estatuto da doença e do doente é tributário das instituições,
das representações e das organizações que estruturam as suas condições temporais e
sociais muito concretas. As transformações da natureza, o desenvolvimento económico e
social, as condições sociais de existência, as influências culturais, os avanços da medicina
16AÏCH, P., CARR-HILL, R. CURTIS, S., ILLSLEY, R., Les inégalités de santé en France et en Grande-Bretagne. Analyse et étude comparative, Paris, INSERM et La Documentation française, 1987. ANTUNES, R., Desigualdades na Vida e na Morte. Saúde, Classes Sociais e Estilos de Vida, Tese de doutoramento em Sociologia, ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa, 1912. 17 HUGO, V., Os Miseráveis. Lisboa, Editorial Minerva (1962 [1862]).
com as suas descobertas, hesitações e porventura os seus erros, os contextos de trabalho,
a organização política e social são alguns dos fatores que mais têm contribuído para
combater a doença e melhorar a saúde das populações, aspetos por que tanto se pugna nas
sociedades contemporâneas.
Olhares sobre a saúde
De um ponto de vista histórico, vimos que as modalidades da doença, as conceções a seu
respeito e as respetivas intervenções sociais e sanitárias mudaram enormemente. A própria
medicina, durante muito tempo mais preocupada com a questão das doenças e a maneira
como as debelar, designadamente as de índole mais mortífera, de há uns tempos a esta parte
também se interessa pela manutenção da boa saúde e a sua promoção. Por exemplo, o ensino
da saúde pública nas faculdades tem sido profundamente modificado, abrindo-se sobretudo
à prevenção, à informação, à educação e à promoção, sempre em busca de melhor saúde. A
saúde tornou-se num dos valores cruciais das sociedades modernas, sempre em vias de se
refazer18. Se no passado a relação doença/saúde era mais concebida como um destino, na
atualidade são mais apreendidas como objeto de intervenção de vária ordem,
designadamente de cariz médico, social, económico, cultural e político, visando prolongar a
vida com melhor saúde. Mas a questão prevalece: de que saúde estamos a falar e para quem?
Na época clássica e ainda no século das Luzes, a saúde era um tema filosófico abordado
quase sempre em referência à doença e por oposição a ela. Não se sentido doente, está-se de
boa saúde, o que pode, até, não corresponder à realidade física e mental. O caso das
neoplasias é muito paradigmático a este propósito. Qualquer indivíduo pode durante muito
tempo comportar uma doença que desconhece em absoluto. Daí a própria ambiguidade do
termo de saúde nesta perspetiva. A definição de saúde da OMS, de 1946, segundo a qual “a
saúde é o mais completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença”
rompe com a dicotomia doença/saúde, embora comporte outros dilemas19.
Ainda que esta noção tenha o mérito de ter feito introduzir o contexto social e o ambiente,
de ser generosa e inscrever a saúde como um dos direitos fundamentais de todo o ser
18 LEANDRO, Mª E., A saúde no prisma dos valores da modernidade, Sociedade portuguesa de Antropologia e etnologia, Vol. 41 (3-4), 2001, pp. 67-93. 19 LEANDRO, Mª E., Saberes e saúde. Teorias e usos sociais, in Mª E. Leandro e R. Monteiro (orgs), Saúde no prisma da sociologia. Olhares Plurais, Viseu, Psicosoma, 2014, pp. 66-111.
humano, independentemente da raça, do credo religioso, das opiniões políticas, da condição
económica e social, nem por isso está isenta de várias críticas: muito abrangente, tecnocrata,
estática, idealista, quiçá utópica e demagógica. No mesmo sentido, acresce a extensão do
bio-poder, concetualizado por Michel Foucault, bio-poder esse que pretende tomar conta da
totalidade da vida: física, psíquica e social. Esta virtualidade “totalitária”, de algum modo,
tem vindo a tomar forma dada a sua abrangência em todas as dimensões da vida individual,
familiar, social e até política. Não admira, pois, que a saúde tenha vindo a escapar ao discurso
estritamente médico e não possa ser reduzida a uma oposição entre o normal e o patológico20.
Advindo valor agregador, a saúde ocupa um lugar preponderante nas sociedades ocidentais
a ponto de se poder falar, para além de um processo de medicalização e medicamentação em
curso, de “sanitarização do social”. Na atualidade há vários problemas sociais que são
traduzidos em termos sanitários21.
De qualquer modo, a saúde adveio um objetivo muito mobilizador, inclusive enquanto objeto
de consumo e rentabilidade financeira, tendo vindo a transformar-se num paradigma social,
ou seja, numa chave fundamental de inteligibilidade da realidade social e um princípio de
ação através dela e sobre ela, como o testemunham as medidas políticas e profiláticas, os
constrangimentos sanitários e morais, as exigências perante os serviços de saúde, o
investimento no desenvolvimento dos conhecimentos e das tecnologias, os índices disto e
daquilo no âmbito da saúde. O grau de desenvolvimento de muitas sociedades tem vindo a
ser medido em função dos índices de saúde das suas populações. Na sociedade portuguesa,
o arquétipo que domina os discursos nos últimos anos tem sido a crise, o aumento da pobreza
e do desemprego e a recuperação económica, mas até há bem pouco tempo era o paradigma
sanitário, paralelamente ao da educação que se impunham. Nem sempre foi assim num
passado em que a honra, a piedade, o respeito e a lealdade eram predominantes relativamente
à saúde e até à própria vida.
Simultaneamente, a saúde tem-se tornado num enredo político, económico, social e até
metafísico. Basta reparar que vivemos num contexto com raridade estrutural em contraste
com aspirações humanas ilimitadas. Esta insatisfação também se manifesta nas exigências e
reclamações acerca da saúde. Em parte, esta tendência social e biologista pesada participa
20 CANGUILLEM; G., Le Normal et le pathologique, Paris, PUF (1991 [1966]). 21 DRULHE, M., Santé et société. Façonnement sociétal de la santé, Paris, PUF, 1996.
da ideologia da saúde como garantia de bem-estar e consumo, um bem individual sobre o
qual os próprios agentes sanitários não se cansam de nos dizer que os modos de vida e um
comportamento medicamente correto permitem preservá-la. Daqui decorre esta imagem rica
de sentido - contendo embora algumas ambiguidades - da saúde como bem e capital a
preservar, quiçá rentabilizar, como preconizam, por exemplo, as medidas de promoção da
saúde. Das condições de saúde depende a capacidade para trabalhar, a ponto de “estar
doente” é estar incapacitado de trabalhar, poder ter de modificar a vida familiar e social e aí
por diante.
Conservar e melhorar a qualidade de vida nas melhores condições possíveis como sinónimo
de boa saúde tem vindo a ser uma exigência fundamental, até em virtude de uma conceção
“transcendente” da mesma. Basta olhar para as expectativas a seu respeito. Nos países
ocidentais, não ignorando os efeitos das desigualdades sociais, a saúde deixa de ser um
objeto inatingível para se tornar no máximo de satisfação com a vida, deixando avaliar-se
por vários tipos de acesso: aos bens individuais e sociais, ao diploma, ao emprego, aos
recursos, à vida familiar, ao desporto, ao lazer, à qualidade das relações…
Quanto ao indivíduo em si, considera-se de “boa saúde” tanto quanto as suas funções ditas
naturais e mesmo “artificiais” se efetuam normalmente. Daí que a “boa saúde” seja aquela
que, sem dor, lhe permite realizar todas as suas performances tal como as imagina, segundo
uma normalidade que ele próprio define que, aliás, até pode não corresponder às
normalidades de muitos outros. Esta sensação de paz corporal é forjada ao longo da formação
da personalidade, ainda que variável ao longo da vida. No contexto de uma sociedade
hedonista que valoriza fortemente a “boa saúde”, a ligação observada entre uma saúde
deteriorada e as representações mais instrumentais parece relativamente lógica. Quando ela
parece ausente, o indivíduo não pode realizar os objetivos que se fixou. Se o viver corporal
está ligado às transformações individuais e sociais, a “boa saúde” é vivida sem sintomas,
como se o corpo não existisse e não se exprimisse fora do seu “normal” funcionamento.
Permanece, no entanto, uma questão fundamental: a das desigualdades sociais que são
igualmente desigualdades sanitárias. Vindas de tempos de antanho, nem os ideais das
sociedades democratas preconizando a igualdade, a liberdade e a fraternidade, nem os
avanços da ciência e da tecnologia, têm conseguido abolir este problema, embora possam,
em alguns casos, tomar medidas que permitam diminui-las. Mesmo assim, as injustiças
sociais transformadas similarmente em injustiças de saúde perante a vida e a morte, são uma
constante.
Para compreender como os corpos traduzem a relação com o mundo social, os trabalhos
sobre meios populares, ainda que não incidam apenas sobre estas problemáticas, permitem
uma leitura em filigrana da “incorporação das desigualdades”22. Corpos marcados, lesados,
deformados, usados, gastos, quando não são humilhados e violentados, são ainda uma
realidade que interroga, vindo a repercutir-se na morbilidade e na mortalidade. Segundo
alguns estudos, nos últimos decénios, por exemplo, não só a distância em termos de
esperança média de vida entre quadros e operários não diminuiu, como se acentuou23. Assim
sendo, a mortalidade diferencial varia segundo a pertença social e profissional. Não se nasce,
vive com mais ou menos saúde, adoece e até é tratado, e morre da mesma maneira quando
se exerce esta ou aquela profissão, vive nesta ou naquela região ou pertence a diferentes
estratos sociais.
Em jeito de conclusão
Neste trabalho, evocámos o percurso histórico das doenças e das suas transformações,
retendo essencialmente duas fases: as doenças predominantes na Idade Média e no Antigo
Regime e as transições operadas desde finais do século XVIII. No passado as doenças eram
concebidas como fatalidade, ao passo que com a emergência da modernidade e as
dinâmicas sociais, económicas, médicas, culturais e políticas em curso, transformam-se em
objeto de ação e de intervenção, congregando vários mecanismos e instituições.
O certo é que todas as civilizações e culturas se têm preocupado com a doença e a saúde e
têm procurado compreender estas noções intrinsecamente associadas à sua representação
do mundo, da vida, da morte e das relações que o ser humano tece com os seus semelhantes
e o seu contexto de vida. Só que saúde e doença, mesmo enquanto noções, não são dados
imutáveis e intemporais definidos de uma vez por todas, mas antes noções e realidades
dinâmicas, desconstruindo-se e reconstruindo-se segundo a dinâmica das sociedades e das
22 FASSIN, D., L´espace politique de la santé. Essai de généalogie, Paris, PUF. 23 BIHR, A., PFEFFERKORN, R., Déchiffrer les inégalités, Paris, Syros, 1999. WADSWORTH, M. J., Health inequalities in life course perspective, Social Science and Medicine, 44, 1997, pp. 859-869.
culturas onde têm lugar (Mª Leandro, 2014)24. Se a forma de viver a doença se integra
numa mentalidade coletiva, é à medicina que cabe identificá-la, designá-la e definir-lhe os
contornos, inclusive na sua evolução, circunscreve-la no espaço e delimitá-la, em suma,
inscrevê-la numa patologia e numa nosologia.
Por outro lado, quanto mais os estudos avançam e podem contar com o interesse das
ciências sociais e humanas, mais se tem vindo a revelar a importância das determinantes
sociais que mais condicionam a saúde dos indivíduos, desde todos os tempos. Conhece-se
a importância das patologias dominantes de uma ou outra época, quanto à experiência da
doença e à condição dos doentes. Todavia, a doença também é social na sua natureza e na
sua distribuição, diferente segundo as épocas, as sociedades e as condições sociais. A tónica
colocada, hoje, sobre a influência dos modos de vida e do investimento na promoção da
saúde, são elementos constitutivos de uma tomada em conta da saúde e de um afastamento
das crenças ancestrais, imputando a doença à fatalidade. Com certeza que se trata de um
processo longo que tem comportado imensas transformações. Nos últimos 40 anos, ao
contrário de outros tempos muito menos dinâmicos, pelo menos nas sociedades ocidentais,
nenhuma instituição foi objeto de tanta mudança como a saúde, visando corresponder a
aspirações profundas da humanidade relacionadas com as conceções acerca da vida, da sua
qualidade e da própria morte. Procuramos mostrar aqui que, no seio de uma realidade
complexa como tem sido a da doença e a da saúde, co-existem várias conceções acerca
destas problemáticas.
24 LEANDRO, Mª, Saberes e saúde. Teorias e usos sociais, Mª E: Leandro e R. Monteiro (orgs), Saúde no prisma da sociologia. Olhares plurais, Viseu, Psicosoma, pp. 66-111, 2014.