Satyajit RAY – Trilogia de Apu : Máquina de Emoções

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Cineclube de Joane Satyajit RAY – Trilogia de Apu: Máquina de Emoções 1 de 2 Satyajit RAY Trilogia de Apu: Máquina de Emoções (de Outubro a Dezembro de 2015, entrada livre) O Lamento da Vereda de Satyajit Ray (Out.2015) Pather Panchali (1955, 120 min) Ao fazer a sua estreia no cinema, Ray realizou de imediato uma obra prima, que já nasceu clássica. A história de Apu, do seu nascimento à idade adulta, contada por Satyajit Ray em três filmes, é um dos grandes momentos da história do cinema. Em ''Pather Panchali'' vemos o jovem Apu e a sua família numa pobre aldeia de Bengala, no começo do século, até ao momento em que a família emigra para Benares. Música de Ravi Shankar.[Texto: Cinemateca Portuguesa] O Invencível de Satyajit Ray (Nov.2015) Aparajito (1956, 105 min) Após a morte do pai e de viver algum tempo em Benares, o jovem Apu, de dez anos, muda-se com a mãe para casa de um tio. Apu frequenta a escola local onde é um bom aluno, ao ponto de receber uma bolsa de estudo para ir estudar para Calcutá. Apu decide partir. A mãe fica angustiada com a sua partida e com a sua crescente independência. Ela ama muito o filho e pretende o seu sucesso, mas não quer ficar sozinha. Segunda parte da Trilogia de Apu. O Mundo de Apu de Satyajit Ray (Dez.2015) Apur Sansar (1959, 105 min) Apu é um ex-estudante desempregado que sonha com um vago futuro como escritor. Um antigo colega visita-o e convence-o a ir com ele a um casamento na província. A sua vida vai mudar, pois o noivo da cerimónia enlouquece e o amigo de Apu pede-lhe para o substituir como noivo. Após uma recusa inicial, Apu concorda, casa-se e regressa a Calcutá com a sua bela mulher. Mas Aparna morre de parto e Apu, louco de dor, abandona Calcutá deixando o filho Kajal aos cuidados dos avós. Só após um longo período de total indiferença, Apu se encontra preparado para voltar ao mundo. O artista soberano Por António Cabrita, Expresso Na década de 30 já a India se guindara ao lugar de primeiro produtor mundial de filmes, com os seus 99 por cento de filmes cantados e dançados, sobre temas mitológicos e com uma estética de ópera, cinema sobretudo de evasão, só susceptível de divertir uma população pobre e analfabeta. Mas, vasto continente, com regiões e especificidades bem determinadas, a India havia de surpreender o mundo com um tipo de cinema nos antípodas desta feição comercial.

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Cineclube de Joane

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Satyajit RAY – Trilogia de Apu: Máquina de Emoções (de Outubro a Dezembro de 2015, entrada livre)

O Lamento da Vereda de Satyajit Ray (Out.2015)

Pather Panchali (1955, 120 min) Ao fazer a sua estreia no cinema,

Ray realizou de imediato uma obra prima, que já nasceu clássica. A

história de Apu, do seu nascimento à idade adulta, contada por Satyajit

Ray em três filmes, é um dos grandes momentos da história do cinema.

Em ''Pather Panchali'' vemos o jovem Apu e a sua família numa pobre

aldeia de Bengala, no começo do século, até ao momento em que a

família emigra para Benares. Música de Ravi Shankar.[Texto: Cinemateca Portuguesa]

O Invencível de Satyajit Ray (Nov.2015)

Aparajito (1956, 105 min) Após a morte do pai e de viver algum

tempo em Benares, o jovem Apu, de dez anos, muda-se com a mãe

para casa de um tio. Apu frequenta a escola local onde é um bom

aluno, ao ponto de receber uma bolsa de estudo para ir estudar para

Calcutá. Apu decide partir. A mãe fica angustiada com a sua partida

e com a sua crescente independência. Ela ama muito o filho e

pretende o seu sucesso, mas não quer ficar sozinha.

Segunda parte da Trilogia de Apu.

O Mundo de Apu de Satyajit Ray (Dez.2015)

Apur Sansar (1959, 105 min) Apu é um ex-estudante desempregado que sonha com um vago futuro como escritor. Um antigo colega visita-o e convence-o a ir com ele a um casamento na província. A sua vida vai mudar, pois o noivo da cerimónia enlouquece e o amigo de Apu pede-lhe para o substituir como noivo. Após uma recusa inicial, Apu concorda, casa-se e regressa a Calcutá com a sua bela mulher. Mas Aparna morre de parto e Apu, louco de dor, abandona Calcutá deixando o filho Kajal aos cuidados dos avós. Só após um longo período de total indiferença, Apu se encontra preparado para voltar ao mundo.

O artista soberano Por António Cabrita, Expresso

Na década de 30 já a India se guindara ao lugar de primeiro produtor mundial de filmes, com os seus 99 por cento de filmes cantados e dançados, sobre temas mitológicos e com uma estética de ópera, cinema sobretudo de evasão, só susceptível de divertir uma população pobre e analfabeta. Mas, vasto continente, com regiões e especificidades bem determinadas, a India havia de surpreender o mundo com um tipo de cinema nos antípodas desta feição comercial.

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O sinal viria de Bengali e da orgulhosa Calcutá. Caracterizada pelo seu radicalismo intelectual, artístico e político e por um sentido muito agudo da sua identidade regional, Calcutá nunca levou o cinema a sério, tendo sempre privilegiado o teatro. Mas a criação em 52, do Festival Internacional de Bombaim fez os cineastas e amantes do cinema indianos descobrir o neo-realismo italiano, e, sob esse influxo, afirmar-se-iam três novos realizadores – todos bengalis – que exporiam outras vertentes da India: Ritwik Ghatak, Mrinal Sen e Satyajit Ray (n. 1921), a face do génio no cinema indiano.

No início de 50, o encontro de Satyajit Ray e do seu futuro “camera-man”, Bansi Chandragupta, na Biblioteca do Centro Cultural Americano, onde iam requisitar os mesmos livros e revistas, foi o estímulo para o jovem publicista, amador de literatura e de pintura e humanista muito influenciado por Tagore, visita regular da sua casa de família. O segundo estímulo foi a passagem de Renoir por Calcutá, para rodar O Rio. Rapidamente, Ray, que já exercia a crítica de cinema, passa à acção e realiza Pather Panchali (O Lamento da Vereda), em 1955, filme que o consagraria mundialmente. Seguem-se Aparajito (O Invencível, 56), O Salão de Música (58) e O Mundo de Apu (59), entre outros, filmes que prefiguram as diversas vias da sua obra.

Se a trilogia dedicada a Apu foi recebida na época como a expressão perfeita de um neo-realismo indiano, um pouco à maneira de De Sica, O Salão de Música surpreendia como um filme “rugoso”, de imagens interiores, de grande rigor mas avesso a moldes. Dois filmes-faróis da sua carreira, que traçam a complexidade do seu percurso com trinta e muitos filmes no activo, entre os quais obras-primas como A Casa e o Mundo (84) ou Os Jogadores de Xadrez (77).

Ray é a imagem do artista soberano, um autor completo que assina sempre não apenas os argumentos mas também a música, os “décors”, muitas vezes a fotografia, além de procurar assegurar a produção. Esta respiração pletórica e multifacetada também se reflete nos temas, plurais – da infância e da adolescência problemáticas de O Mundo de Apu à burguesia envelhecida de O Salão de Música; do contraste dramático entre a cidade e o campo ao jogo de espelhos entre a India tradicional e a India moderna e industrial; ou mesmo aos problemas da vida urbana -, embora reflictam, no conjunto, uma visão do Homem feita de compreensão, de sensibilidade e de uma certa nostalgia (Ray herdou de Tagore a sede de uma harmonia universal); de uma sageza, simultaneamente fatalista e lúcida.

Como disse Claude Ollier sobre a “arquitectura melódica e sensível do tempo” que é o cinema de Ray: “Eis o milagre de uma arte capaz de toda a exploração do mundo como de toda a investigação interior, levadas aqui a cabo com um infinito de sageza e de simplicidade por uma realização atentíssima a estes dois termos indissociáveis: um olhar e o seu objecto.” Intimidade, rigor, um nó indissolúvel entre o que é real e imaginário, tradição e novidade, o que até formalmente é verificável: à subtileza tchekhoviana de certos filmes sucede a coragem de fazer sequências de animação em Os Jogadores de Xadrez, por exemplo. O que só é possível aos mestres.