São Sebastião do Rio de Janeiro - FUNCEB - Fundação ... · de paisagens culturais, ... mas para...
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partir do reconhecimento e proteção pela Unesco
de paisagens culturais, abriu-se a possibilidade
de exame mais detalhado do sentido presencial e
intangível do patrimônio cultural. Inicialmente,
o recorte não foi pensado para tratar de áreas urbanas,
mas para as diferentes combinações de natureza e cultura
que resultam em cenários especiais, frutos da interação
entre natureza e homem, facilmente identificáveis vi-
sualmente por muitos e muitos habitantes deste incansá-
vel e generoso planeta que habitamos. Paisagens que so-
freram um processo de culturalização de sua imagem,
transformando-as em ícones, demonstrativos da evolu-
ção das sociedades ao longo do tempo, sob a influência
das condições do meio ambiente que as contém, numa
relação muitas vezes demonstrativa de uma utilização
dos recursos naturais feita de maneira sustentável. Es-
tão incluídos nesta categoria e já reconhecidos como
patrimônio cultural da humanidade, por exemplo, os
campos de plantio de arroz das Cordilheiras Filipinas,
o Parque Nacional Uluru-Kata Tjuta ou Ayre’s Rock na
Austrália, indissociável da cultura dos aborígenes, a Cos-
ta Amalfitana na Itália, com suas cidades que se derra-
mam na direção do mar, e outras mais evidentes, como
os jardins criados intencionalmente pelo homem, por
razões estéticas, como a Paisagem Cultural de Lednice-
Valtice na República Tcheca. Todos esses locais têm re-
tratos que, além de apresentarem atributos paisagísticos
notáveis, únicos mesmo, trazem associados à imagem
São Sebastião doRio de Janeiro
outros aspectos de natureza intangível, provenientes da
cultura dos povos que habitam essas paisagens. Uma
mente mais imaginativa pode sentir o aroma do limão
numa representação da Costa Amalfitana, ou ouvir os
ritmos aborígenes provenientes de uma celebração ao
sopé do Uluru-Kata Tjuta.
A Cidade Maravilhosa de São Sebastião do Rio de
Janeiro é uma paisagem cultural por definição e enqua-
drável em qualquer das categorias definidas pela Unesco.
É de valor único não apenas para os brasileiros mas para
toda a humanidade. Em primeiro lugar, tem-se o sítio
natural de formação da cidade, a estupenda e única com-
binação de costões rochosos de escarpas verticais que
mergulham no mar e montanhas recobertas por vege-
tação exuberante, formando o pano de fundo da baía
fechada, acolhedora e protetora dos que ali procuraram
abrigo ao longo do tempo. Ou, nas palavras do Professor
Aziz Nacir Ab’Saber:
“No extenso litoral brasileiro, o grande destaque, em
termos de cenários e beleza natural, fica para a Baía da
Guanabara e seu entorno. Sobre o seu caráter de paisagem
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
Thays Pessotto de Mendonça Zugliani
A
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de exceção, sempre existiu grande consenso entre viajantes
naturalistas e turistas eventuais. Nesse sentido, é possível
afirmar que a diversidade de suas formas de relevo – sua
compartimentação topográfica e hidrológica, completada
por um revestimento vegetal de marcante tropicalidade –
constitui uma das combinações de heranças da natureza,
de máxima excepcionalidade na face da Terra. Vale dizer,
no contexto do ‘planeta vivente’ por excelência.”
Permeando esses tecidos, temos a cidade com o mé-
rito de ter-se restringido ao insterstício entre mar e mon-
tanha florestada, guardando ao longo dos anos um equi-
líbrio de proporções entre mar, cidade e floresta urbana,
compondo uma cenografia única. A imagem dessa com-
binação peculiar está gravada na memória de quase to-
dos os habitantes do mundo. Dependendo do momento
em que é retratada, acompanha a imagem uma trilha
sonora que vai desde o mais puro samba carioca, pas-
sando por Tom Jobim até Fausto Fawcet e outros poetas
modernos que falam de beleza e caos.
Talvez seja a ameaça dos caos, cada vez mais pre-
sente no cotidiano daqueles que habitam e adoram essa
cidade, que tenha motivado o esforço ainda em curso de
buscar-se o reconhecimento pelo mundo de todas as cer-
tezas que temos sobre essa porção de terreno que con-
tém o Rio. Existe por este viés a possibilidade de tratar-
mos cultura e patrimônio como recursos estratégicos,
capazes de propor fórmulas alternativas de desenvolvi-
mento, que tenham como protagonistas o território e
os valores culturais da sociedade. Podemos fazer uso
desta “Cena de Identidade”, como qualificou Milton San-
tos, para, a partir dela, compreendermos nossa trajetó-
ria e projetarmos o futuro que desejamos.
A partir do reconhecimento da paisagem como um
recurso, podemos, no caso do Rio de Janeiro, elencar cada
um dos valores associados a ela, que são muitos, razão
pela qual nos propomos a abordar aqui os principais. O
que pretendemos nesta reflexão sobre esse lugar tão es-
pecial – que nem todas as violências impostas pelos ho-
mens ao longo de quase quinhentos anos conseguiu des-
truir, roubar-lhe os encantos que teimam em parecer no-
vos a cada dia, de cada ponto observado, sempre diferen-
tes vistos sob cada luz do dia ou da noite – é observar a
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Vista parcial da Baía de Guanabara,destacando-se o Corcovadoe o Morro do Pão de Açúcar.
FOTO: RIOTUR
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contribuição de cada elemento para a construção dessa
paisagem cultural, a história da cidade-capital, sua evo-
lução urbana, a preservação da floresta, a baía, os pontos
focais desse cenário reverenciado por todos como uma
das cidades mais lindas do mundo.
De início, a centralidade de seu porto, para a vigi-
lância da enorme costa portuguesa nas Américas, teve
papel fundamental na atribuição à cidade do papel de
capital da Colônia, tendo sido a principal razão da trans-
ferência da capital de Salvador para o Rio de Janeiro. Na
verdade, percebe-se nos retratos produzidos da cidade
em seu período colonial que a imagem de porto e praça
de comércio se sobrepõe à feição da natureza notável,
não havendo uma maior preocupação com a representa-
ção pormenorizada dos elementos naturais que compõem
o espaço no qual a cidade acontece. É a partir de 1808,
com a vinda da Família Real, que os muitos viajantes que
por ali passam ocupam-se de retratar a beleza cênica do
Rio, desenhando com cuidado os rochedos e morros in-
terligados ora pelo mar, ora pela luxuriante vegetação
tropical, entremeada esporadicamente pelas edificações
que começam a se adensar e a se sofisticar, de forma a
atender ao gosto não apenas da corte portuguesa mas
também dos muitos militares e diplomatas estrangeiros
que chegavam acompanhados de artistas que deviam re-
tratar a terra exótica e distante para a Europa. No Rio de
Janeiro, a cidade declarada Município Neutro da Corte
em 1834, o papel de cidade-capital vai se consolidando
após a invenção de uma unidade chamada Brasil, decla-
rado um reino independente, em 1822, estranhamente
pelo herdeiro do Trono português.
O valor histórico do Rio de Janeiro está ligado à sua
função como capital do País desde a Colônia, passando
pelo Império até a República, períodos de grandes trans-
formações econômicas e sociais do País, estando relacio-
nados a cada um deles períodos de renovações urbanas
na capital que vão pouco a pouco marcando o território,
produzindo um resultado no tecido urbano que é hoje
um somatório de tempos. Internacionalmente, o Porto
do Rio de Janeiro tem papel de destaque na comerciali-
zação de produtos tanto da exploração da Colônia, quan-
to da produção do Império e da República. A cidade teve
uma trajetória única e singular no contexto da formação
do Brasil. Desde os tempos de conquista e consolidação do
Império português na América tropical ao período pos-
terior do processo de formação da Nação brasileira, com a
independência política, o Rio de Janeiro exerceu uma cen-
tralidade decisiva para a construção das bases geopolíticas
do Brasil moderno. Capital do vice-reinado, corte impe-
rial e capital da República, a história da cidade se confun-
de com a história política e social do Brasil até a constru-
ção de Brasília em 1960. De 1763 a 1960, o Rio de Janeiro
foi palco dos mais importantes momentos políticos da
Colônia, do Império e das primeira e segunda repúblicas.
A Baía de Guanabara
Na verdade, é na baía que tudo se inicia. Guanabara
em tupi-guarani tem o significado de baía ou enseada, de
águas que penetram para dentro da terra. Não se pode
Morro do Pão de Açúcar.Ao fundo, à direita,enseada de Botafogo.
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Villegagnon que, com cerca de 600 pessoas, ocupou uma
das ilhas do interior da baía, a qual passou a receber seu
nome. Não foi por outro motivo que também os france-
ses vieram a ocupá-la, reforçando a caracterização da baía
como ponto estratégico no que se refere aos aspectos po-
lítico, econômico e militar. O mapa da França Antártica,
produzido por Jean de Léry entre 1557 e 1558, identifica
os acidentes geográficos em torno da baía, bem como os
aldeamentos dos tupinambás, mas é de 1579 o mapa da
cartografia francesa considerado mais completo da área,
que representa a entrada da barra, com o Morro do Pão
de Açúcar, a Ilha do Forte de Villegagnon, com a vila fran-
cesa próxima e a característica montanhosa do terreno
nas áreas adjacentes.
Os franceses, que angariaram a simpatia dos nati-
vos, foram hostilizados pelos portugueses, que tinham
o firme propósito de manter sua hegemonia sobre o ter-
ritório e consagrar a unidade desta invenção chamada
Brasil, para o que aquele ponto era peça estratégica.
Assim, após a primeira investida contra os franceses em
1560, foram definitivamente expulsos em 1565, quando
Estácio de Sá fundou a Cidade de São Sebastião do Rio
de Janeiro. A denominação não escapa da tradição por-
tuguesa de atribuição de nomes para as cidades a partir
dos elementos naturais presentes em seu contexto ter-
ritorial que sejam referências geográficas de reconheci-
mento do terreno. O nome Sebastião era ao mesmo tem-
po uma homenagem ao Rei de Portugal, D. Sebastião e
ao santo de mesmo nome, que havia protegido os por-
tugueses na batalha pela conquista da área.
A seleção do local para a instalação da cidade não
deveria fugir ao critério da engenharia militar, que de-
terminava a localização de forma a combinar a possibili-
dade de defesa da costa e de controle das rotas marítimas
com a facilidade de penetração para o interior. Foi assim
que Mem da Sá transferiu o núcleo urbano inicial na
barra para o interior da baía, reconstruindo a vila sobre
um morro que viria a ser conhecido como o do Castelo,
e que mais tarde balizaria junto com outros três o cres-
cimento da cidade na várzea. A escolha do novo lugar
afirmar com certeza qual das muitas expedições enviadas
pelo Rei D. Manoel para o reconhecimento da costa do
Brasil foi a primeira a aportar no Rio de Janeiro. Certo é
que já na carta de Tomé de Souza, primeiro Governador-
Geral do Brasil, datada de 1553, está descrita a formosu-
ra da enseada e suas qualidades protetoras para a implan-
tação ali de uma vila, uma “povoação honrada e boa”. Esse
acidente geográfico, visitado também pelo florentino
Américo Vespúcio entre os anos de 1501 e 1503, é descrito
como um lago tranqüilo, já que as terras que a circun-
dam impedem que o furor dos ventos provenientes do
oceano atinja suas águas diretamente. As terras ao seu
redor se distribuíam em uma concavidade formadora de
um único e acessível porto.
A ocupação das margens da baía se dá na medida
em que as atividades de defesa do território e de explora-
ção econômica da Colônia ganham importância, sempre
em função de sua centralidade em relação à costa. A fun-
dação da cidade, em 1565, se dá sob a ameaça da ocupa-
ção francesa, levada a cabo por Nicolas Durand de
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estava amparada pela disponibilidade maior de terrenos
para abrigar seu crescimento.
Esses aspectos geográficos, complementados pelos
outros dotes naturais da área envoltória da baía, tal como
sua rede hidrográfica, que oferecia grande possibilidade
de penetração e de comunicação no território, e as terras
que se estendiam ao norte e ao sul interligando-a ao res-
tante do litoral, são tratados nos mapas subseqüentes,
novamente de autoria dos portugueses que a haviam
reconquistado e, também dos holandeses, que em 1624
tentarão investidas para a conquista da Bahia, antes de
ocupar Pernambuco em 1630. Como edificações junto à
Baía de Guanabara, têm-se, de início, uma pequena ocu-
pação sobre o Morro do Castelo, com a Sé, e o Colégio
dos Jesuítas, além dos fortes de defesa da Baía (posterior-
mente complementados por guarnições e fortins). A rede
hidrográfica de grande comunicabilidade, com o con-
junto de rios que deságuam na baía, é fator determinante
na implantação das fazendas e engenhos, que os utiliza-
vam para o escoamento de sua produção. Ainda hoje te-
mos, em especial em Jacarepaguá e na Baixada Fluminen-
se, alguns marcos dessas ocupações, como a Casa da Fa-
zenda do Engenho D’Água, a Fazenda da Taquara, a Fa-
zenda de São Bento e de São Bernardino. Já em 1666, o
mapa produzido por João Teixeira Albernaz mostra o
rio navegável que vem da entrada da barra até o primeiro
porto, onde é hoje a Praça XV de Novembro.
É esse porto que ganha importância com a desco-
berta de ouro nas Minas Gerais por volta de 1645, tor-
nando-se o principal da Colônia em função de ser a porta
de entrada para o Caminho Novo das Minas que subia
para transpor a Serra do Mar em direção ao interior.
Mesmo com o crescimento da cidade e a consoli-
dação de sua função portuária, a orla da Baía de Gua-
nabara permanece inalterada até o final do século XIX.
Foram as obras de urbanização, com a transferência do
porto, nos primeiros anos do século XX, para a região
da Prainha (hoje Praça Mauá), que deram início ao pro-
cesso de aterramento da baía. Antes disso, já se havia
modificado o ambiente natural para acomodação da
cidade com o aterramento de mangues e lagos, como no
caso da área do hoje Passeio Público, antes da interven-
ção paisagística de Mestre Valentim e
depois de Glaziou, Lagoa do Boquei-
rão. As modificações de modernização
do Centro alteram o contorno da baía
do Caju até Copacabana, com aterros
para a construção da ampliação do
cais, das avenidas Rodrigues Alves e
Beira-Mar e, posteriormente, do Aero-
porto Santos Dumont e do Parque do
Flamengo. Outra grande intervenção
foi o aterro de grandes áreas da ensea-
da de Botafogo para a criação do bairro
da Urca em 1908.
A vida da baía está ligada à saúde
dos rios e córregos que compõem a
bacia hidrográfica disposta no seu en-
torno e cujos componentes nela deságuam. Tendo sido
historicamente utilizada como via de penetração para
o interior do território, bem como via de escoamento
da produção econômica da região, esta bacia foi tam-
bém responsável por considerável adensamento das
ocupações em toda a área, com conseqüente impacto
O que antes era praia agoratransformada no Aterro do Flamengo.Ao lado direito, Praça Paris.
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negativo na qualidade da água. Esta é hoje a maior con-
centração urbana e populacional da zona costeira do
Brasil. São cerca de 55 rios e córregos que trazem um
grande volume de poluentes para a baía, que, apesar
disso, ainda abriga uma população de cerca de 70 bo-
tos-cinza (dados da Dra. Ana Paula Leite Prates, Mi-
nistério do Meio Ambiente). Próximo ao litoral da Ilha
do Governador, no Canal da Maré e na Ilha do Fundão,
observa-se a existência de manguezais, depositórios de
grande biodiversidade.
A Floresta Urbana
Outro valor importantíssimo agregado à paisagem
é o ambiental. Apesar do desaparecimento de cerca de
93% da cobertura original da Mata Atlântica, seus rema-
nescentes ainda possuem uma grande importância eco-
lógica e cultural. São considerados parte proeminente
da lista dos 25 hotspots de biodiversidade, que agregam
as mais ricas e ameaçadas reservas de vida animal e vege-
tal do planeta (Myers et al., 2000). A Unesco vem reco-
nhecendo essa importância, tendo concedido em 1999 o
título de Patrimônio da Humanidade para as reservas
de Mata Atlântica do Sudeste brasileiro (estados do Pa-
raná e de São Paulo) e da Costa do Descobrimento (es-
tados da Bahia e do Espírito Santo). O Estado do Rio de
Janeiro, com cerca 928.900has de Mata Atlântica rema-
nescente, abriga quase 10% do que resta da outrora gran-
de floresta. Essa área foi recentemente classificada em
cinco blocos que apresentam uma concentração maior
de fragmentos florestais. Quatro deles compartilham as
características básicas da maior parte do que resta da
Mata Atlântica. São espaços rurais, em geral montanho-
sos, que conseguiram sobreviver ao impacto destrutivo
das atividades agropecuárias. Um desses blocos, no en-
tanto, apresenta um diferencial histórico importante,
situando-se no interior da área metropolitana do Rio
de Janeiro (Rocha et al., 2003).
Essa floresta urbana, talvez a maior do mundo, tem
papel fundamental na composição do cenário natural do
Rio. Representa um dos primeiros (data de 1861) exem-
plos de restauração ecológica por meio do refloresta-
mento da América Latina ou mesmo do Ocidente. É um
excelente exemplo de planejamento e gestão de zona
periférica de área urbana em desenvolvimento, num
binômio no qual uma parte influencia a outra ao longo
do tempo. O Jardim Botânico do Rio de Janeiro, criado
por D. João VI em 1809, contribuiu decisivamente para
o estudo científico das espécies integrantes da Mata
Atlântica, de grande diversidade, tendo fornecido mu-
das para o processo de reflorestamento das encostas de-
vastadas pelo plantio do café. Esse aspecto confere um
significado cultural ao valor natural da floresta urbana,
transformando-a num atributo cultural, um legado de
eventos históricos e de desenvolvimento social, que tam-
bém tem valor ambiental, reafirmando sempre a impos-
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sibilidade de dissociação entre patrimônio ambiental
e patrimônio cultural.
O Parque Nacional da Tijuca é composto por qua-
tro partes que se integram em um conjunto: o Maciço da
Tijuca, a Serra da Carioca, o Conjunto Pedra da Gávea e
Pedra Bonita, a Serra dos Pretos Forros e Covanca. É jus-
tamente o conjunto dessas encostas verdes, localizadas
no cerne da metrópole, que compõe o pano de fundo da
apreensão visual da cidade vista do mar. Os habitantes do
Rio contribuem com esse processo, agregando a esta ima-
gem um valor intangível e presencial. Intangível é a for-
ma como esse recurso natural e cultural é fruído diaria-
mente por centenas de habitantes da metrópole a seus
pés, quer seja de modo contemplativo, apreciando de lon-
ge ou de perto sua beleza, ou de modo ativo, servindo-se
da floresta para práticas de lazer. Em seu sentido pre-
sencial, a floresta confere ao Rio parte de sua identidade
visual, é sua presença no contexto da cidade,
parte da “Cena de Identidade” do carioca.
É importante assinalar que o processo
de culturalização de áreas naturais no Brasil
não se iniciou com os portugueses. As pri-
meiras transformações do cenário natural
do litoral Atlântico pelas atividades desen-
volvidas pelos seres humanos datam de pelo
menos 12.000 anos atrás. Tanto os paleoin-
dígenas quanto os indígenas não produzi-
ram processos mais intensos de desfloresta-
mento. No entanto, a prática da queimada
para a implantação de pequenos cultivos está
presente nessa região há milhares de séculos.
Os índios não tinham o hábito de ocupar o
interior das florestas, em geral preferiam
ocupar as áreas de transição entre ecossis-
temas, como a zona costeira, onde o manejo
múltiplo dos recursos naturais se dava mais
facilmente. É sabida a existência de sítios
arqueológicos das ocupações de povos co-
letores-caçadores (sambaquis) e de aldeias
tupinambás na região metropolitana do
Rio, porém, sobre as áreas florestadas pouco se sabe, po-
dendo uma pesquisa científica voltada para o registro
das ocupações anteriores revelar novos dados que confi-
ram ainda maior valor a esse componente da paisagem.
A História do Brasil contada pelosmonumentos e sobrados
O complexo urbano-paisagístico do Rio de Janei-
ro é um caso bastante singular no conjunto dessa cate-
goria, em geral composta por cidades onde a unidade
no uso de determinada tipologia arquitetônica é uma
das características mais marcantes.
A cidade, iniciada na barra, posteriormente trans-
ferida para o interior da baía, sobre o Morro do Castelo,
onde as edificações principais eram o Colégio dos Jesuí-
tas, a Igreja Matriz e Casa de Vereança, desce para a vár-
O Jardim Botânico,criado porDom João VIem 1809, pesquisaas espéciesintegrantes daMata Atlântica.
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zea na marinha próxima ao porto e daí segue, desen-
volvendo-se num quadrado irregular que tem em cada
ponta um morro: o do Castelo, o de Santo Antônio (hoje
Largo da Carioca), que se colocava atrás da lagoa de
mesmo nome e alimentava a vala que posteriomente
deu nome à Rua da Vala (hoje Uruguaiana) aos fundos.
Nas outras pontas do quadrado, na região da Prainha
(hoje Praça Mauá), temos o Morro de São Bento e o
Morro da Conceição. Até os dias de hoje, esse trecho da
área do Centro é sua porção mais carregada de sentido
simbólico e historicidade.
Quem transita atualmente pelo Centro não tem
noção de que circula sobre áreas anteriormente ocupa-
das por lagoas, pântanos e praias, aterradas
ao longo dos últimos quatro séculos. Parte
do território da cidade fluminense foi mo-
dificada e ampliada, tendo como principal
instrumento a terra fornecida com o des-
manche de morros da cidade. É opinião con-
sensual que os agenciamentos feitos pelo
homem sobre esse sítio agregaram-lhe va-
lor. Parte dessas ações encontram amparo
nas tradições do urbanismo português, no
qual as questões de interesse coletivo, como
a saúde da população, regras de higiene e
outros aspectos da saúde pública, mere-
ciam regulamentação feita pela Câmara por
meio de normas de posturas.
São também características de nossa
herança portuguesa a implantação da ci-
dade sobre as colinas, o papel das igrejas e
ordens religiosas no traçado urbano, a pra-
ça do comércio, a própria relação da cida-
de com o território. Costeando a praia, o
caminho longo, do qual partem as vias que
criarão o traçado em formato de tabuleiro
de xadrez de conformação da área urbana,
os espaços públicos definidos nos primeiros
séculos da cidade e até mesmo boa parte dos
lotes mantêm-se até hoje, sendo entrecor-
tados pelas intervenções dos anos subseqüentes que têm
uma função de modernização da cidade.
Embora a produção açucareira do Rio de Janeiro
não fosse das mais significativas, a posição meridional da
cidade possibilitou, ao longo do século XVII, a tão pro-
palada centralidade entre as províncias espanholas do
estuário do Rio da Prata e os portos negreiros na África.
Essa posição geográfica privilegiada será substituí-
da sem que o porto perca sua importância pelo acesso
ao Caminho do Ouro, região mineira de extração do
minério, por volta de 1704.
Datam da segunda metade do século XVIII, no pe-
ríodo do Vice-Reinado, as grandes obras de estruturação
Arcos da Lapa.Uma preocupaçãodo governo noséculo XVIIIcom o abastecimentode águaspara a cidade.
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: RIO
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da cidade: o aqueduto da Carioca, a preocupação com
sistema de abastecimento de águas para a cidade a ser
implantado mais tarde. É também desse período o em-
prego da pedra nas portadas de igrejas e monumentos,
acrescentando um acabamento luxuoso à cidade, até
então de pedra e cal. O Largo do Paço (atual Praça XV
de Novembro), espaço oficial do poder colonial, foi re-
modelado tanto em seu traçado, reordenado pelo En-
genheiro-brigadeiro José Fernandes Pinto de Alpoim
quanto pela reforma de seus elementos de composição
do espaço urbano: o Paço dos Governadores, o sobrado
dos Telles de Menezes, a Igreja e o Convento de Nossa
Senhora do Carmo e a Igreja contígua da Ordem Tercei-
ra do Carmo. O Cais de Jacques Funck, com o chafariz
de Mestre Valentim também em pedra de cantaria, com-
pletou um pouco mais tarde essa “sala de visitas”, que
mereceu destaque nas descrições daqueles que visitaram
a cidade naquele período.
Com a chegada de forma triunfal de D. João, em 8
de março de 1808, no que foi descrito como mais do que
uma cerimônia oficial, uma verdadeira festa popular, o
Rio passa a ser a metrópole de um império que se pre-
tende grande e marítimo, que ia dali para Lisboa até
Goa e Macau. A população da cidade dobrou e passou a
ser formada também pelos muitos estrangeiros que apor-
tavam, muitos deles versados em assuntos científicos
como a Botânica, já que nossa flora abria nova perspec-
tiva de estudo da natureza. Em 1816, chega a Missão
Francesa, composta, dentre outros, pelo arquiteto Victor
Grandjean de Montigny, que projetou o prédio da An-
tiga Alfândega (hoje Casa França-Brasil), a Academia
de Belas Artes (cuja portada está hoje no Jardim Botâ-
nico do Rio de Janeiro), a sua própria residência na Gávea
(dentro da PUC), todos no estilo neoclássico, que apa-
rece pela primeira vez no Brasil. O Teatro São João foi
construído no Largo do Rocio (hoje Praça Tiradentes),
o Jardim Botânico, criado próximo à Lagoa de Sacope-
napan (Lagoa Rodrigo de Freitas). O comerciante An-
tônio Elias Lopes oferece sua casa para D. João, e as obras
do que será a Versailles Tropical se iniciam. Em São Cris-
tóvão, no paço do reinado de D. Pedro I e de Pedro II,
terá participação decisiva o paisagista Glaziou, respon-
sável pela remodelação de vários jardins da corte, como
o Passeio Público, inicialmente obra de Mestre Valentim.
Já aqui teremos, portanto, a semente do desenvolvimen-
to da cidade nas direções sul e norte, a partir da criação
destes focos de atenção depositados pela Família Impe-
rial. No Primeiro Reinado, a economia tinha substituí-
Lagoa de Sacopenapan,atual LagoaRodrigo de Freitas.
FOTO: RIOTUR
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do o ouro pelo café, que trazia para cidades a possibili-
dade de construção de novos e luxuosos sobrados com
janelas e sacadas. A Santa Casa da Misericórdia torna-
se um hospital modelo. A distribuição de água na cida-
de é feita por um sistema de chafarizes espalhados por
vários pontos. A cidade ganhou arborização e ilumina-
ção a gás, rede de esgoto e abastecimento domiciliar de
água (1874), hotéis, jardins públicos.
No início do século XX, a modernidade se impunha
com o avanço do processo de industrialização. A cidade
busca aproximar-se do modelo parisiense Belle Époque,
com os edifícios em estilo art nouveau, neogóticos, neo-
românticos, que recheiam a Cinelândia, e a recém aberta
Avenida Central (hoje Rio Branco), artéria de ligação de
duas extremidades da cidade, em uma delas, o novo por-
to. Para sua construção, a avenida derrubou cerca de 640
prédios de um área muito povoada. A população mais
pobre estava sendo expulsa do Centro, buscando abrigo
nos morros próximos, em edificações construídas preca-
riamente, as favelas. Instalam-se o contraste entre a cida-
de rica e européia, dos projetos urbanísticos do Prefeito
Pereira Passos, inspirados em Haussman, e o inferno dos
excluídos, que marca não apenas esta mas todas as cida-
des da América Latina. A despeito da distrofia social, a
cidade desempenha seu papel de metrópole modelo ao
longo da primeira República.
Novas mudanças importantes voltam a ocorrer na
cidade com o Estado Novo, que com seu sistema presi-
dencial forte, afastou-se dos princípios da democracia li-
beral. Os aspectos culturais se impõem, e o Rio surge como
a foco irradiador da cultura que se busca autêntica, a
partir das discussões mantidas na Semana de Arte Mo-
derna de 1922. Novas intervenções urbanísticas são pro-
postas, desta vez por Alfred Agache, e levadas a cabo no
que seria a Esplanada dos Ministérios Carioca, a área do
Castelo, planificada com o desmanche do Morro do Cas-
telo para o aterramento que produziu a Avenida Beira-
Mar. O trinômio ministérios da Fazenda, do Trabalho e
da Educação e Saúde permanecem hoje como documen-
tos desse momento, testemunhando a riqueza das discus-
sões sobre Arquitetura que marcaram o período de iní-
cio da tão consagrada Arquitetura Moderna brasileira,
que vai produzir na cidade jóias como o Conjunto Resi-
dencial Parque Guinle, do arquiteto Lúcio Costa, o MAM
de Reidy, o edifício do Banco Boavista, de Niemeyer, en-
tre tantas outras obras notáveis que quem visita o Rio
tem a oportunidade de ver.
Finalmente, para falarmos de paisagem cultural ca-
rioca, ou paisagem do Rio, ou qualquer outro nome que se
deseje dar à ode que esta cidade merece de seus habitan-
tes, não podemos nos esquecer de quem lhe dá vida e sen-
tido: o carioca. Nascido ou não na cidade, os muitos ha-
bitantes do Rio completam seu colorido especial, com sua
alegria que lhe permite sambar ao varrer o sambódromo,
manter o humor em tempos de caos. É este habitante re-
sistente e iluminado que merece ver sua cidade elevada à
condição de Patrimônio Cultural da Humanidade, para
que se possa falar do Rio de Janeiro da floresta urbana, da
arquitetura peculiar, do cenário natural único, da beleza
da Baía de Guanabara. Que nossa “Cena de Identidade”
não tenha manchas é nosso desejo para o futuro.
Thays Pessoto de Mendonça Zugliani – Natural do Rio de Janeiro, é formadaem Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Santa Úrsula (RJ). Atualmenteexerce a função de Superintendente da 6ª SR/IPHAN. Foi agraciada com o prêmiodo Ministério da Cultura – “Mulheres que fazem cultura” no ano de 2005.
Desfile de escolasde samba noSambódromo.
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TUR