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Altares de benzedeiras – A arte do excesso1
Geslline Giovana Braga (UFPR/PR)
Resumo: Cada benzedeira tem um ritual único, com símbolos móveis que cruzam
matrizes religiosas, fitoterápicas, industriais e artísticas. As casas são os lugares desses
rituais de cura. Os altares domésticos traduzem visualmente todos os elementos
mencionados acima em arranjos estéticos, são interfaces que misturam as imagens de
santos católicos, das entidades de umbanda, dos orixás do candomblé, fotografias
pessoais, ex-votos fotográficos e outros tipos de ex-votos, objetos eletrônicos e
industriais, ao lado de pinturas e artesanatos confeccionados pelas mãos dos próprios
especialistas de cura que “instalam” os altares. Todos esses elementos heterogêneos
caracterizam os altares como composições híbridas e simbólicas, “obras abertas”, com
finalidade ritual. Motivada por questões apontadas por Sally Price em “Arte primitiva em
centros civilizados”, de Alfred Gell em “Art and Agency” e a partir do conceito de
instalação presente na arte contemporânea e na religiosidade popular, pretende-se mostrar
que a dinâmica da construção do altar assemelha-se a da arte contemporânea (ou em
alusão a Price, “arte contemporânea em lugares periféricos”) por suas resignificações,
usos de códigos, “agência dos objetos” e estética do excesso, que inspiram artistas
contemporâneos como Nelson Leirner e Farnese.
Palavras-chave: altar, arte contemporânea, agência.
Introdução
Benzedeiras2 são especialistas domésticas de curas mágico-religiosas. Em suas
casas acessam um repertório fluído, que inclui elementos sagrados de religiosidades de
variados matizes, saberes relacionados ao uso de plantas e manipulação de objetos, a fim
de interferir na realidade. Distantes dos espaços públicos oficiais das religiões, conduzem
suas práticas de acordo com lógicas particulares, que dizem sobre o repertório e trajetória
de cada benzedeira e tornam cada casa um lugar de práticas únicas. Mesmo tratando-se
de um fazer hereditário e apreendido, as resignificações relacionadas ao ritual são
constantes nas práticas domiciliares das benzedeiras.
A benzedeira se vê como uma portadora de um “dom”, recebido divinamente, para
a cura, o que a coloca mais próxima a Deus e aos santos, uma mediadora capaz de acessar
ao divino de forma direta e fazer a comunicação entre a esfera humana e a sagrada. Ao
1 “Trabalho apresentado na 28º Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 2 e 5 de
julho, em São Paulo, SP, Brasil.”
2 Mesmo existindo muitos homens benzedores, desrespeito a norma culta e utilizo a terminologia no feminino porque as mulheres são a maioria entre os especialistas de cura domiliciares.
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mesmo tempo em que o dom a torna especial impõe obrigações, como curar a quem a
procurar sem receber remuneração para tanto. O dom como dádiva deve ser eternamente
retribuído em forma de cura aos outros.
Presentes em todo Brasil, as benzedeiras figuram no imaginário social como
“velhinhas sempre com um raminho na mão e um sorriso nos lábios”. Na Região Centro-
Sul do Paraná e na Região Metropolitana de Curitiba essa imagem está em
transformação, mesmo as benzedeiras que moram em regiões rurais veem-se obrigadas a
transformar suas práticas e ações cotidianas: organizam-se em movimentos sociais,
tornam-se líderes comunitárias, assumem cargos no poder legislativo municipal e curam
doenças que não pertenciam a seus repertórios tradicionais, como stress e depressão.
Diante de tais transformações um elemento permanece comum: a presença dos
altares nas casas3. O altar demarca o espaço do sagrado, diante dele a benzedeira ora,
recebe consulentes e faz atendimentos. Estão constantemente em construção, reunindo
representações em desenho e estatuária, ex-votos fotográficos e de outras naturezas,
objetos religiosos, devocionais e relíquias sagradas junto a outros objetos “industriais”,
que ali são arranjados em função de sua estética ou de resignificações e usos rituais.
Lugares de devoção e também de contemplação, pois existe a intenção de produzir o belo
e encantar o receptor. Os altares são elementos visíveis de mediação com o sagrado,
simbolizam o poder da benzedeira e quando seus significados são explorados
etnograficamente revelam-se como um campo em si a ser pesquisado.
Fotografia 1: Altar de Dona Elvira – União da Vitória - PR
Minha atenção voltou-se para os altares ao deparar-me constantemente com um
3 Ver o documentário etnográfico “Instalações – Rituais”, produzido através da Bolsa Funarte de
Produção Crítica dos Conteúdos Artísticos e Culturas Populares, sobre o mesmo tema do presente artigo em www.vimeo.com/1384461 .
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mesmo retrato em diferentes casas. Junto da onipresente Nossa Senhora Aparecida, que
ocupa sempre o centro dos altares, percebi o antigo retrato em preto-e-branco de um
homem de barbas, sentado, com as pernas cruzadas. Meu desconhecimento sobre o santo,
diante da pergunta sobre quem era, trazia a certeira afirmação: “É São João Maria”. Fui
apreendendo sua história na oralidade das benzedeiras, aos poucos compreendi que o
retrato ultrapassava, nas narrativas, a condição inicial da fotografia como ícone e índice.
Diante de tal constatação, comecei a perguntar sobre todos os objetos dos altares e a
conotação desses me levou a outra percepção do altar que ultrapassa a lógica do
ornamento ao produzir significado e sem romper com sagrado, aproxima-se da arte.
Fotografia 2: Altar doméstico da benzedeira Tânia, imagens de Nossa Senhora Aparecida
ao centro e retrato de São João Maria afixado no quadro, em Mafra - SC.
Instalações de arte
O que é arte, é uma pergunta que persegue a gênese da palavra. A contemplação, a
produção de conhecimento através do visível, do sensível, da exaltação do belo, da
representação realista do sagrado e do “dom” do artista, que pareciam ser as estruturas
que qualificavam as expressões humanas como artísticas, são colocadas em cheque com
os movimentos de Arte Moderna. Não se pretende aqui traçar um histórico da arte, apenas
ilustrar através dos processos históricos de que maneira as instalações tornaram-se
presentes na arte contemporânea.
Sabe-se que as artes, especialmente a pintura e a escultura, foram fomentadas no
período do Renascimento, no século XVI, graças a Igreja Católica, em sua ânsia em
atingir e encantar os não-letrados com as representações dos santos. A arte foi tomada
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pela Igreja não só como ornamento, mas como forte elemento para aprendizado de seus
preceitos. Basta pensar nos temas de telas clássicas, como a anunciação, a crucificação e
a última ceia, por exemplo, que se rementem a passagens bíblicas, fundamentam o
catolicismo, suas práticas e dogmas. A pintura e a escultura clássica tinham assim um
status diferente de outras artes plásticas, sendo muitas vezes apenas elas compreendidas
como arte, enquanto outras expressões eram compreendidas como “artesanato”.
No final do século XIX, depois de libertos pela fotografia da obsessão pelo real,
os artistas organizam-se em movimentos que vão buscar outras referências, caso do
cubismo, que se inspirou na arte primitiva. Já no início do século XX, o dadaísta Marcel
Duchamp causou impacto com os ready-made, objetos cotidianos destituídos de suas
finalidades práticas e expostos nos museus.
Em meio a novos experimentos, os artistas pretenderam pretensamente fugir das
telas. Na década de 1920, Kurt Schwitters foi o primeiro a realizar uma obra considerada
“instalação”, que consistia em sua própria casa, chamada “Merzbau”. A casa Merz foi o
conceito elaborado e utilizado pelo artista: “Merz significa criar relações, de preferência
entre todas as coisas do mundo” (2007, p.18). Merzbau era a própria casa do artista
constantemente rearranjada, por estruturas e esculturas nas paredes juntas a uma grande
quantidade de objetos. Merz era fruto do período entre guerras, Schwitters considerava
que o artista ao reunir objetos reorganizava o novo: “Tudo estava de algum modo morto e
importava construir algo novo dos cacos. Mas isso é Merz” (2007, p.22).
Em 1961, o grupo Fluxus, também alemão, liderado por George Maciunas, teve
como uma de suas principais formas de expressão as instalações, que reuniam numa
única obra música, pintura, escultura, fotografia, arquitetura e objetos industrializados, a
fim de produzir as mais variadas interações com o receptor. Um dos objetivos do grupo
era instaurar a arte no cotidiano, com a noção da arte ao alcance de todos.
No Brasil podemos destacar Nelson Leirner e Farnese de Andrade, como dois
artistas que fizeram das instalações suas formas de criação artística. Ambos, de certa
maneira, tiveram em algum momento como referência a religiosidade popular. Leiner
utiliza imagens de santos arranjadas e acumuladas em suas instalações. Farnese faz dos
oratórios instalações, usando também imagens de santos e de ex-votos fragmentadas,
encontradas na praia ou compradas em antiquários: “O uso dos oratórios fomentou minha
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tendência litúrgica – a qual desde minha experiência litúrgica já existia. Talvez por minha
origem mineira (barroca?), usava elementos dessa tendência – restos de altares, santos,
ex-votos – mais como décor do que por gosto (...)”. (2005, p.183)
Fotografia 3: Detalhe de Caminho dos Santos, de Nelson Leiner.
Disponível em http://www.nelsonleirner.com.br/portu/comercio.asp?flg_Lingua=1&flg_Tipo=O
Fografia 4: Oratórios de Farnese de Andrade. Disponível em:
www.parabolicadoblum.blogspot.com
Ernest Fischer destaca a magia como um dos elementos constituintes da arte.
Assim como o mágico, o artista, ao manipular objetos, muitas vezes resignificados,
pretende interferir na realidade de alguma forma. “A arte é necessária para que o homem
se torne capaz de conhecer e mudar o mundo. Mas a arte também é necessária em virtude
da magia que lhe é inerente” (FISCHER, 1965, p.20). As instalações transformaram a
produção artística moderna, dispensando o artista do apreendizado de uma técnica e da
necessidade de uma pré-disposição, talento ou dom para a arte. Em contrapartida, ao
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manipular objetos para produzir novas significações, a qualidade do artista passou a ser o
engenho, a criatividade, o senso crítico e a intelectualidade. Na mesma proporção, o
receptor passa a ter um papel central ao atribuir novos significados às obras.
Instalações de fé
O termo “instalar”, na religiosidade popular, especialmente naquelas influenciadas
pela Umbanda e pelo Candomblé, significa atribuir vida a uma imagem colocada num
altar. A partir do momento que uma imagem sai da loja, deixa de ser produto, passa a ser
de responsabilidade daquele que a comprou ou a recebeu, passa a ser dotada de vida, ou
melhor, de “agência”. Não são mais apenas representações que cumprem funções
icônicas. De acordo com Alfred Gell a noção de agência implica em ação, “causação” ou
mediação (GELL, 1994, p.6), que não são próprias dos ícones, em geral estáticos. Gell
adota e recorre à definição triádica do signo de Charles Peirce, para quem o signo é
dividido em ícone, símbolo e índice. Nesse sentido, instalar significa transformar a
representação icônica no próprio referente, dotá-la de agência.
Saly Price no livro “Arte Primitiva em centros civilizados” aponta como entre os
especialistas em arte, a arte primitiva é sempre considerada ingênua, o artista tornado
anônimo e a obra considerada expressão coletiva do povo (PRICE, 2000, p.91). No caso
do artista popular no Brasil, ele também é considerado incapaz de produzir algo
conceitual e também de interpretar signos, a maior parte desse tipo de produção é
considerada “artesanato”.
Assim, a estética da religiosidade popular influencia artistas que trabalham com
instalações e só assim, quando apropriada por artistas é considerada arte. A benzedeira
não está inscrita nem mesmo na categoria de artista primitivo, não é considerada artista,
no entanto ao instalar o altar estabelece significações, que correspondem a um todo
complexo, da mesma natureza do artista.
Gell referencia-se a Price para comentar sobre o uso do termo estética. Para Gell a
utilização do termo soa como um reducionismo, impedimento para uma antropologia da
arte. Utilizei aqui o termo estética e arranjo estético, no sentido hegeliano, pensando
existir um visualidade expressiva que pode ser reconhecida, sem que isso possa impedir a
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perspectiva de uma interpretação antropológica.
As benzedeiras, especialmente ao receberem a imagem de um santo - grande parte
dos santos presentes nos altares das benzedeiras são dádivas recebidas de consulentes por
ocasião de curas alcançadas – estabelecem uma relação de pertencimento com a imagem
a chamando de “meu” ou “minha” antes do nome. Também oferecem à imagem objetos
devocionais com flores e velas ou outros elementos associados à preferência ou
especialidades do santo. Maria Bueno4, por exemplo, recebe rosas vermelhas
5 e perfumes
no altar da benzedeira Carmen – que incorpora Maria Bueno durante os benzimentos,
oferendas normalmente dadas à Pomba gira na Umbanda.
Fotografia 4: Maria Bueno no altar de Dona Carmen, cercada de flores e perfumes, em Palmas – PR.
Quando uma estátua que fora instalada no altar se quebra, deve ser retirada da
casa e em seguida depositada no cemitério ou em um lugar considerado sagrado. De
acordo com a benzedeira Dona Santa, de Palmas (PR), “não presta ter santo quebrado
em casa”. A quebra do santo é sua morte simbólica, não prestar nesse sentido indica que
mesmo os restos da imagem ainda são dotados de agência. Os cacos das imagens
recebem tratamento semelhante aos dos corpos humanos, embora não entrem em
putrefação, ainda assim não podem ser depositados em qualquer lugar, ou simplesmente
dispensados no lixo, precisam permanecer próximos ao sagrado. Por ocasião da
conversão de muitos católicos às igrejas evangélicas, que não permitem o uso de
imagens, é cada vez mais comum ver coleções inteiras de santos intactas sendo
4 Santa não-canônica de Curitiba – PR, que é também considerada um espírito nos rituais de mesa branca
do espiritismo e um entidade na Umbanda. 5 De acordo com relatos populares no local de seu assassinato nasceu uma roseira.
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depositadas em muitos lugares sagrados. Mesmo quando perde seu caráter simbólico pelo
devoto, a imagem não ganha tratamento comum.
Fotografia 5: Parque da Gruta de Nossa Senhora de Lourdes onde são depositados os santos quebrados na
cidade de Palmas (PR). Prática comum em todo Paraná.
Entre as benzedeiras as imagens são instaladas nos altares, que em geral são feitos
nas salas das casas. Quando a benzedeira tem um cômodo exclusivo para as bênçãos,
passam a existir dois altares ou mais na casa, na sala ou dentro do quarto. Seu João
Maria, benzedor de Guarapuava (PR), diz que o altar do quarto é para proteção pessoal
do benzedor, enquanto o da sala é para o consulente. Em algumas casas existe um altar na
cozinha especialmente dedicado a São Benedito, santo cozinheiro, protetor da cozinha e
responsável pela prosperidade da casa. Mesmo nesse caso é interessante observar que
dificilmente uma imagem permanece sozinha, sempre são acompanhadas de outros santos
ou objetos devocionais. São Benedito deve receber café todas as manhãs,
preferencialmente em xícara amarela, que simboliza o ouro e garante fartura.
Os altares em geral são feitos em cima de uma mesa, revestida com uma toalha
branca, numa analogia à expressão “mesa branca” do espiritismo. Podem estender-se
pelas paredes, ser em forma de prateleira, ou mesmo ocupar uma estante. Em cada lugar
parece predominar um tipo específico de altar. Na região de Rio Negro (PR), por
exemplo, como mostra a fotografia abaixo, são comuns os altares que ocupam os cantos
encaixados às paredes. Já em Guarapuava são usados os oratórios (ver fotografia 8).
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Fotografia 6: Altar de Dona Alexandrina, em Irati - PR
Enquanto compõe seu altar a benzedeira está inspirada no altar da igreja, assim
tem na estatuária o elemento central. Todo o resto tem relação com a posição dos santos,
o lugar deles está ligado às preferências da benzedeira, que pode ter relação com a
especialidade do mesmo e da forma como é “usado” pela benzedeira em seus rituais.
Alguns santos, como São Braz, protetor da garganta, tem seu pescoço amarrado por fitas
para que crianças não se afoguem. São Jerônimo, “santo letrado”, é cercado de folhas de
caderno, de estudantes que pedem para ir bem nos estudos.
Grande parte das benzedeiras é católica, “católicas apostólicas romanas” como
preferem declarar-se. Nos altares, no entanto, estão presentes os santos católicos, os não-
canonizados e algumas entidades de Umbanda. São comuns os Pretos e Pretas Velhas, a
quem a figura do benzedor é associada. E, principalmente, Iemanjá que é chamada por
muitas apenas de Nossa Senhora. Para essas benzedeiras não há sincretismo, ou
associação. “Iemanjá é Nossa Senhora”. Mesmo àquelas que negam ou hostilizam a
influência da religiosidade afrobrasileira, Iemanjá é uma Nossa Senhora, sem
representação ou analogia. Nos altares onde as entidades de Umbanda e os orixás estão
presentes, ou ficam lado a lado com o santo que sincretizam, ou separados em oposições.
Caso do altar da benzedeira Marta, onde o “povo da Umbanda” fica atrás dos santos
católicos, alguns até escondidos discretamente detrás de uma cortina branca. A
distribuição dos objetos nos altares demonstra como a identidade de cada benzedeira é
fluída e diversa. Nesse espaço de construção de significação, tudo tem agência: a
disposição dos objetos, a frequência com que estão presentes, as suas cores e as relações
entre os próprios objetos.
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Fotografia 7: Altar de Dona Marta, benzedeira e vereadora da cidade de São João do Triunfo6, as imagens
de entidades da Umbanda estão atrás do santos católicos, os quadros de Pretos Velhos ficam detrás das
cortinas, mas Iemanjá esta entre as Nossas Senhoras.
A finalidade do altar é devocional e ritualística, mas também pretende causar
empatia através do ornamento. Existe o desejo unânime entre as benzedeiras de produzir
o belo quando se constrói um altar. Dona Arlete diz que monta seu altar com fins
didáticos, para que as pessoas aprendam a ser devotas através das imagens.
Fotografia 8: Dona Arlete ao lado de seu oratório, em Guarapuava – PR
Como já foi dito anteriormente, a quase totalidade das estátuas das benzedeiras
são presentes, dados por consulentes em sinal de agradecimento por uma cura realizada.
Assim, o principal elemento do altar é também um ex-voto. Portanto, o acúmulo de
6 A cidade foi a segunda do Brasil a ter uma Lei Municipal que regulamenta o fazer das benzedeiras, a
primeira foi a cidade vizinha de Rebouças.
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imagens indica a devoção e o poder da benzedeira. Preenchem os espaços entre santos,
em maior profusão, outros objetos sagrados como rosários e bíblias e também objetos
devocionais como velas e flores. Poderíamos dizer que esses são os elementos comuns.
Outros tipos de ex-votos, como as fotografias, não são exibidas como se faz em
santuários, são apenas amontoadas em algum espaço vago. O ex-voto tradicionalmente é
uma forma de comunicação entre santos e homens, o agradecimento ao santo é feito
através do objeto. Depois de depositado o objeto comunica aos outros homens a
realização do santo, ao mesmo tempo que a quantidade aumenta a eficácia simbólica. Ao
não expor o seu ex-voto a benzedeira parece não querer santificar-se, ou efetivamente não
comparar-se aos santos. O ex-voto é exibido quando a entrega é parte do processo que
garante a eficácia de uma determinada bênção. Seu Abranches, por exemplo, realizava
uma bênção para a criança parar de chupar chupeta, e ao fim de três dias de benção a
criança entregava a chupeta ao benzedor que as dispunha nas paredes do consultório. O
excesso de chupetas sinalizava a eficácia da benção.
Fotografia 9: Criança recebendo benzimento de Seu Abranches para parar de chupar chupeta. Ao fundo, nas
paredes, chupetas expostas como prova da eficácia da bênção.
Os ex-votos fotográficos são ocultados, mas os retratos de santos e médiuns
regionais são exibidos juntos aos santos oficiais, atribuindo-lhes a mesma significação
dos oficiais. São João Maria é o mais recorrente, como já dito, na maioria das vezes são
retratos antigos herdados de familiares que conheceram o santo, assim ao mesmo tempo é
um objeto sagrado e de memoração afetiva.
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Fotografia 10: Retrato de João Maria presente no altar de Dona Santa, Palmas – PR.
O culto ao retrato de São João Maria, que também recebe a alcunha de monge e
profeta, é comum na Região Sul e Sudeste do Brasil. De acordo com alguns historiadores,
entre eles Paulo Pinheiro Machado (2004), a história de três homens se confunde e por
contiguidade, na narrativa popular, todos passam a ser chamados genericamente de São
João Maria. A alcunha de “santo” dada por seus contemporâneos concedeu a eles a aura
de gozar da santidade em vida entre os populares.
Não posso afirmar com toda propriedade, mas ao que parece a sincretização dos
três monges num único nome, deu-se não só através de uma continuidade histórica, mas
também porque costumou-se chamar de São João Maria aquele que aparece no retrato
popular. “Ainda hoje, pode ser encontrada, nos pequenos oráculos domésticos, a foto de
‘São João Maria’ ao lado de imagens de santos católicos. As pessoas mais idosas da
região ainda consideram João Maria um verdadeiro profeta.” (THOMÉ, 1997, p.52 op.cit
Adelar Heinsfeld “A Questão Social da Guerra do Contestado, 1988, p. 28-48).
Em minha pesquisa etnográfica nos locais de peregrinação e nos altares de
benzedores e curandeiros, encontrei reproduções fotográficas, estátuas, desenhos e
pinturas, baseadas no mesmo retrato em que São João Maria aparece “sentadinho” e uma
segunda em que aparece em pé. A imagem mais usual, “sentadinho”, parece ter sido feita
já no processo seco, pois apresenta tons em preto e branco, não podendo ter sido
realizada no processo úmido em que a imagem final apresentava tons amarelados,
resíduos da albumina. Os relatos trazem que João Maria d’Agostim poderia ter morrido
com 115, ou 128 anos, em alguns dos clichês fotográficos se lê: “São João Maria de Jesus
propheta com 180 anos ”, assim a existência deles se sobreporia.
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Fotografia 11: Apenas duas benzedeiras tem o retrato em pé, Dona Alice, em Irati-PR, e Dona Elvira, em União da Vitória – PR, ambos são retratos herdados de família.
Para os teóricos da arte e da semiologia, em princípio a fotografia é um ícone por
ser uma reprodução, mas podemos considerá-la também um índice, por tratar sempre de
um “isto foi”, como sugere Barthes (1984). A fotografia trata de “isto” ou “aquilo”
passados. Associadas as duas principais características da fotografia ela pode ser tomada
como o próprio real. O retrato de São João Maria entre as benzedeiras ganha poder, em
primeiro lugar, por tratar-se de uma espécie de prova da sua existência e comprovante das
narrativas. O retrato torna-se símbolo por ser cultuado, ostentado e por tomar parte no
ritual. De acordo com Turner, no ritual o símbolo também pode ser transformado em
ação: “O Símbolo é a menor unidade do ritual que ainda mantém as propriedades
específicas do comportamento ritual; é a unidade última de estrutura específica em um
contexto ritual” (Turner, 2005, p.49). Nos rituais de benção, a manipulação dos símbolos
tem o objetivo de acionar e transformar o real. Lévi-Strauss diz que a função simbólica
do mito também age através das imagens comuns a um mesmo repertório social. Como
uma mesma estrutura, o símbolo aciona o mito: “Quer seja o mito recriado pelo sujeito,
quer seja tomado de empréstimo à tradição, ele só absorve suas fontes individuais ou
coletiva (entre as quais se produzem constantemente interpenetrações e trocas), o material
de imagens que êle emprega; mas a estrutura permanece a mesma, e é por ela que a
função simbólica se realiza” (LÉVI-STRAUSS, 2003, p.235).
As benzedeiras atribuem milagres não ao santo, mas à sua fotografia. A
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representação toma o lugar do referente, assim como fazem quando benzem uma
fotografia. O segundo é tomado pelo primeiro, assim como Leach diz acontecer nos
processos mágicos, em que o sinal é tido como índice. “Os actos mágicos são índices
disfarçados de sinais, uma vez que pretendem ser mecanismos automáticos de causa e
efeito” (1976, p.73). Possuir um retrato indica a posse da própria pessoa, aproximando a
benzedeira ao santo de sua devoção. Assim, “pedir” ao retrato garante a eficácia
simbólica do pedido, como se fosse dirigido ao próprio santo, diferente das estátuas, que
são mediadoras. A fotografia comprova a existência do santo, atesta sua passagem recente
e é tomada na intimidade dos retratos familiares, usados para manter visível um
antepassado. A fotografia de João Maria nos altares tem agência não só pela santificação
popular do homem retratado, mas em função do uso cartesiano contemporâneo da
fotografia (Pinney, 1995), onde a imagem é um ícone da certeza, é prova tomada como
referente. Assim, o santo do retrato “andou no mundo”, “esteve entre nós”, e a fotografia
prova a proximidade familiar e assim adquire importância ritual e agência. Não é mais o
santo da fotografia, é a fotografia do santo.
A fotografia é ainda resignificada de outras maneiras entre as benzedeiras, são
comuns as bênçãos de retratos na ausência do consulente7, algumas benzedeiras também
dizem não aparecer em fotografias, ou aparecer como santas.
Os objetos de uso no ritual também são exibidos no altar, como as plantas, a água,
agulhas, tesouras, palhas, ovos, fios, cera de abelha, entre outros. Os altares ainda são
preenchidos por objetos unicamente decorativos, tudo aquilo que parece belo ou especial
para benzedeira o destino é o altar, laçarotes de buquês, troféus, papel de ovos de páscoa,
etc. A construção dos altares, o lugar que ocupam na casa, a disposição dos santos, os
usos da fotografia e os objetos industrializados são elementos sígnicos que levam a uma
compreensão do tipo de religiosidade exercida pela benzedeira.
7 Tema tratado em minha dissertação de mestrado “Retratos da bênção – usos da fotografia entre as
benzedeiras de Campo Largo – PR” (UFPR - 2010)
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O altar e a lógica da instalação de arte contemporânea
“Di Cavalcanti, Oiticica e Frida Kahlo tem o mesmo valor que a benzedeira do bairro” Frase extraída da música Sucrilhos, do rapper Criolo, do álbum Nó na orelha – 2011
Depois de muito observar e tentar compreender a dinâmica da construção do altar,
conclui que as motivações da montagem são sagradas, mas não se articulam unicamente
nesse campo. O altar é lugar de mediação com o divino, a benzedeira se considera uma
mediadora do sagrado, é no altar que essa comunicação se expressa, onde a eficácia é
traduzida na agência dos objetos.
Podemos dizer que o altar é uma obra de arte aberta, como são consideradas as
obras de arte contemporâneas, porque o receptor pode interpretá-los de acordo com o seu
repertório. A as imagens de Iemanjá, por exemplo, podem nos sugerir influências da
religiosidade afro-brasileira, porém para algumas benzedeiras, não. Num altar é possível
interpretar signos e desvendar certos códigos que falam sobre a religiosidade da
benzedeira e do brasileiro em geral.
Pensar numa mesma lógica entre a instalação de arte contemporânea e o altar da
benzedeira, não significa querer transformar a benzedeira em artista, mas sim dizer que a
ela é tão capaz de se expressar através dos arranjos de imagens e de objetos quanto o
artista contemporâneo. E, com objetivos similares, comunica-se conceitualmente,
proporcionando o apreendizado de conteúdo e produção de reflexões. Se retomarmos
Ernest Fischer, ainda poderíamos destacar a finalidade mágica do altar e da arte.
Como já dissemos, a obra artística é instalada a fim de produzir significado, da
mesma maneira a benzedeira o faz em seu altar. A benzedeira inicialmente dispõe de
objetos já associados ao sagrado de forma simbólica. O que torna a construção do altar
próxima das instalações é a profusão e a resignificação dos objetos e a montagem dos
arranjos, a agência se consolida na ação e interação entre os objetos. O excesso desses
objetos, juntados aos outros de natureza não sagrada, e a maneira como são distribuídos e
acionados, torna a prática conceitual, formando assim sistemas simbólicos que atuam em
diferentes camadas, produzindo significados diversos e garantido eficácia simbólica à
benzedeira.
Tomar um altar como arte, considerar que a benzedeira pode conceber um lugar
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com a mesma lógica do artista não significa afirmar que altar é arte e benzedeira é artista,
embora ambos possam sê-lo, já que quando o artista contemporâneo toma os elementos
da religiosidade esses são então considerados arte. Pensar o altar como instalação oferece
uma nova possibilidade de leitura ao etnógrafo e confere à benzedeira a capacidade de
comunicar-se conceitualmente por imagens, direitos que muitas vezes são dados apenas
aos artistas, que pode apropriar-se da estética da benzedeira e das ferramentas da pesquisa
de campo da antropologia, como sugerem Hal Foster (1996) e George Marcus (2004).
Considerar essas aproximações, ousar transitar como os artistas, extrapolar o sagrado e
tocar a arte, amplia a compreensão da agência do altar, que está no excesso, distribuição e
resignificação dos objetos.
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2005.
Catálogo da exposição “Kurt Schwitters 1887/1948 – O artista Merz”. Curitiba: Museu
Oscar Niemeyer, dezembro de 2007.