Sandra Wolffenbuttel Analisabilidade Evolucao Do Conceito e Vicissitudes
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SOCIEDADE PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE
INSTITUTO DE PSICANÁLISE
ANALISABILIDADE: EVOLUÇÃO DO CONCEITO E VICISSITUDES
Autora: Sandra Regina S. Machado Wolffenbüttel
Orientador: Mauro Gus
Porto Alegre, setembro de 2003
Versão Modificada em 2007
ANALISABILIDADE: EVOLUÇÃO DO CONCEITO E VICISSITUDES
Sandra Wolffenbüttel*
INTRODUÇÃO
Etchegoyen (1987), referindo-se às indicações terapêuticas da Psicanálise,
afirma que estas constituem um tema relevante tanto por sua importância prática
quanto por revelar um fundo teórico de real complexidade. Ferro (1998) descreve
que a literatura a respeito dos critérios de analisabilidade é ao mesmo tempo
muito vasta e com pontos de vista muito diversos em relação ao tema. Partindo
destas questões, da necessidade de começar a estabelecer minha pretendida
nova identidade de psicanalista e busca por tentar diferenciar a abrangência da
psicanálise da de outras formas terapêuticas em saúde mental, que aqui não são
focos de discussão, apresento uma breve revisão e discussão dos critérios e do
conceito de analisabilidade a partir do modelo clássico de Freud (1904), incluindo
sua evolução ao longo deste século de Psicanálise e conceitualização atual, com
o intuito de melhor compreender e adequar à indicação de tratamento
psicanalítico.
REVISÃO E DISCUSSÃO
As indicações e contra-indicações para a Psicanálise foram fixadas por
Freud em Conferência realizada no Colégio Médico de Viena em 12 de dezembro
de 1904. Nesta, desde cedo, já enfatizou que a indicação deve levar em conta não
somente a doença, mas a personalidade do indivíduo. Sempre sob este
referencial, considerava que devessem ser recusados os pacientes que não
possuam certo grau de formação e um caráter razoavelmente digno de confiança,
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* Médica Psiquiatra pela UFRGS, Membro candidato da SPPA.
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os que não buscam tratamento por seu sofrimento, mas sim atendendo a outros, e
os casos em que houver urgência em eliminar os sintomas com rapidez. Freud
acreditava que a idade do paciente teria muita importância na escolha do
tratamento, argumentando que às pessoas próximas dos cinqüenta anos de idade
faltaria suficiente plasticidade dos processos anímicos e que o material a ser
elaborado prolongaria indefinidamente a duração do tratamento. Em relação às
indicações segundo o diagnóstico clínico, reivindicou a Psicanálise como método
de escolha no tratamento de todas as formas crônicas de histeria com fenômenos
residuais, o vasto campo dos estados obsessivos, as abulias e similares, ou seja,
o que hoje denominamos Neuroses. Considerava-a contra-indicada nas psicoses,
apesar de deixar em aberto a possibilidade de abordagem futura mediante uma
modificação apropriada do método, descartando seu emprego nos estados
confusionais, de deterioração ou retardo mental. Com relação às psicoses, Freud
(1917) considerava que, sendo os pacientes psicóticos essencialmente narcísicos,
não seriam acessíveis à Psicanálise porque não desenvolveriam uma Neurose de
Transferência, mas uma Neurose Narcísica, de resistência intransponível. Tal
posicionamento foi mantido em toda sua obra. Ainda que Freud tenha insistido que
se tratassem somente os neuróticos, seus próprios casos nem sempre o eram,
ocorrendo-me como prováveis exemplos o Homem dos Lobos e o Homem dos
Ratos.
Cabe referir que na atualidade, as restrições de Freud para o tratamento de
crianças e idosos se modificaram muito, sendo a análise aplicável às crianças de
primeira infância (Melanie Klein, 1926, Anna Freud, 1946), enquanto os indivíduos
de mais idade são vistos com mais otimismo, podendo manter suficiente
plasticidade, pois a acessibilidade em grande parte é determinada pela estrutura
de caráter, não sendo impedimento um acúmulo de material a elaborar já que,
como ensinou o próprio Freud, os acontecimentos decisivos abarcam o período da
amnésia infantil, repetindo-se sem cessar ao longo da vida e na transferência,
assim permitindo o tratamento psicanalítico (apud Etchegoyen).
Dando seguimento à revisão da evolução do conceito de analisabilidade,
verifiquei que para Fenichel (1945), a dificuldade de uma análise corresponde à
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profundidade da regressão patológica, sendo os pontos de fixação nas neuroses
decisivos à acessibilidade. De acordo com este raciocínio, a psicanálise seria
indicada na seguinte ordem decrescente: na histeria, na neurose obsessiva, nas
neuroses pré-genitais de conversão, nas depressões neuróticas e nos transtornos
de caráter. As perversões, adições e neuroses impulsivas, comparáveis aos
transtornos de caráter severos (fronteiriços), têm por ele sua analisabilidade
questionada e determinada pelas características individuais de cada caso. Já os
casos de distúrbio psicossomático poderiam corresponder à categoria de qualquer
outra neurose (apud Fenichel).
A psicanálise para Fenichel estaria contra-indicada nas psicoses, nos casos
maníaco-depressivos severos e nas esquizofrenias.
Referindo-se ao posicionamento de Freud com relação às psicoses, o autor
ponderou que esta regra geral tem exceções importantes, não sendo absoluta a
distinção entre neurose e psicose, podendo o que resta de relações objetais nas
psicoses servir de base para que se restabeleça um mínimo de capacidade
transferencial na análise, tornando o paciente acessível ao método.
Com relação às contra-indicações relativas, não baseadas no diagnóstico
clínico, Fenichel acrescentou àquelas já descritas por Freud, situações
desfavoráveis de vida que excluam toda possibilidade de gratificação e em que a
neurose propicie uma espécie de ilusão: a trivialidade de certa neurose, onde o
transtorno causado não compense o esforço, tempo, dinheiro e energia
necessários à análise; a presença de ganhos secundários suficientes para que
haja uma recusa em abrir mão da neurose; a contra-indicação da análise com um
determinado analista, considerando aspectos não só do paciente, mas do próprio
analista e do par analítico.
Em uma revisão histórica, Etchegoyen (1987), inicia referindo-se ao
Simpósio de Arden House de 1954, destacando entre os trabalhos apresentados
os de Leo Stone, Edith Jacobson e Anna Freud. Tendo considerado o trabalho de
Stone como de valor perdurável, descreveu que Stone estabeleceu o uso do
método psicanalítico, ainda que com a introdução de parâmetros, como forma de
tratamento para distúrbios que ultrapassam as fronteiras da neurose.
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Stone considerou que além dos critérios nosográficos psiquiátricos devam
ser levados em conta os elementos dinâmicos da personalidade do paciente. Sua
avaliação final foi a de que ainda que as neuroses de transferência e os
transtornos de caráter de grau de psicopatologia associados continuem sendo as
indicações gerais ideais para o método clássico, a abrangência e os objetivos da
psicanálise se ampliaram, para incluir praticamente todas as categorias
nosológicas psicogênicas (apud Wallerstein, 2005).
Paradoxalmente, Stone postulava que os transtornos neuróticos de média
gravidade e aqueles tratáveis farmacologicamente não configurariam indicações
para a análise. Jacobson abordou o tratamento de depressões severas, incluindo
as reativas graves, borderlines e a psicose circular, opinando também serem
tratáveis apesar das dificuldades no desenvolvimento e análise da transferência.
Já o comentário de Anna Freud coincidia com o de Stone.
A conclusão na Conferência de Arden House foi de que o método
psicanalítico seria aplicável aos transtornos psicogênicos que ultrapassam os
limites da neurose, ainda que a tarefa seja bastante difícil.
Alguns anos após, em 1958, Natcht e Lebovici, em El Psicoanálisis Hoy,
retornaram aos critérios de indicação de Freud, tornando-os ainda mais estritos.
Seguindo a Freud (1904) e Fenichel (1945), dividiram as indicações e contra-
indicações da psicanálise em função do diagnóstico clínico e da personalidade do
paciente.
Com relação às indicações pelo diagnóstico, Natcht e Lebovici
consideraram a psicanálise aplicável às neuroses sintomáticas, muito menos
aplicável às neuroses de caráter, sendo as indicações mais difíceis de serem
estabelecidas nas perversões, válidas as tentativas de tratamento nas psicoses
menos graves e de difícil aplicação nos casos francos de psicose. Salientaram
ainda a força do ego como fator de primeira importância. Apesar de admitirem
exceções, consideraram que somente os adultos jovens, até os quarenta anos,
seriam de incumbência da análise. Como fatores de importância para a contra-
indicação, destacaram a existência de ganho secundário muito arraigado, o
narcisismo e o masoquismo nas formas mais primitivas, as tendências
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homossexuais latentes com influência no funcionamento do ego (perversidade) e
os casos com marcada facilidade para o acting-out.
Também contrastando com o Simpósio de 1954, no Simpósio de
Copenhagen, em 1967, foi reafirmado um estreitamento nas indicações para a
psicanálise (apud Etchegoyen). Neste, fundamentando-se na teoria clássica,
Elizabeth R. Zetzel introduziu seu conceito de analisabilidade.
Em seu trabalho, entre 1956 e 1969, Zetzel realizou uma investigação sobre
a transferência e a aliança terapêutica e, partindo do conceito de que as relações
de objeto se estabelecem antes da situação edípica e são de natureza diádica,
destacou a importância da consolidação da relação diádica enquanto pré-requisito
para que se possa enfrentar a relação triangular do Complexo de Édipo.
Partindo da definição de que o que falha no neurótico é a relação edípica,
que é alcançada na análise pela via regressiva, como neurose de transferência,
postulou que enquanto a neurose de transferência reproduz o Complexo de Édipo,
a aliança terapêutica é pré-genital e diádica. Deste modo, para ela somente uma
firme relação diádica com a mãe e com o pai (confiança básica de Erickson) cria
as condições para estruturar e resolver a situação edípica, já que equivale a
capacidade de distinguir a realidade interna da externa.
Em “The Analytic Situation” (1966), a Dra. Zetzel expõe seus critérios de
analisabilidade, registrando as funções básicas para o desenvolvimento da aliança
terapêutica, que seriam: a capacidade de manter a confiança básica na ausência
de gratificação imediata; a capacidade de manter a discriminação entre o objeto e
o self na ausência do objeto; e a capacidade potencial de admitir as limitações da
realidade. Seus critérios de analisabilidade buscam precisar as indicações e
contra-indicações da psicanálise que estão além das categorias diagnósticas, pois
Zetzel baseia-se na teoria das funções autônomas do ego. Para ela, a
incapacidade de reconhecer e tolerar uma situação triangular autêntica e de
discriminar a realidade interna da externa tornaria impossível a aliança
terapêutica, base para que se instaure uma neurose de transferência analisável. A
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autora considerou também que não seria analisável o paciente cujas defesas
houvessem se estabelecido prematuramente (antes da situação edípica genital).
Mesmo autores da escola de Zetzel (como Stone e Jacobson, e a própria
Anna Freud), não compartilharam totalmente dos seus critérios. Para Etchegoyen,
os critérios da Psicologia do Ego são válidos para medir as dificuldades de um
caso e estabelecer um prognóstico, mas não para definir uma contra-indicação
para a análise.
Greenson (1967), neste mesmo período, partiu do pensamento de Freud
com relação aos pacientes psicóticos e argumentou que muitos dos pacientes que
procuram tratamento não podem ser classificados com precisão porque têm
características tanto da neurose quanto da psicose.
Para o autor o diagnóstico clínico é importante para determinar a disposição
do paciente para a análise, mas em geral leva-se muito tempo até que se obtenha
um diagnóstico definitivo, sendo que este informa pouco dos recursos saudáveis
do paciente. Também os sintomas não estão ligados a síndromes específicas,
podendo não informar sobre a estrutura de personalidade do paciente. Sendo
assim, deve-se avaliar o paciente como um todo e não apenas por seu diagnóstico
clínico ou patologia.
Além de suficiente motivação e sofrimento para aceitar as exigências da
análise, o autor destaca como de muita importância a existência de certa
flexibilidade e elasticidade nas funções do ego do paciente, com capacidade em
regredir, em abandonar o controle de seus pensamentos e emoções, renunciar
parcialmente ao seu teste de realidade, e ainda assim nos compreender, fazer por
conta própria algum trabalho analítico, controlar suas ações e emoções após a
sessão e manter-se em contato com a realidade (capacidade para regredir e sair
da regressão no relacionamento com o analista).
Greenson ainda destaca ser necessária a capacidade de empatia, a qual
depende da capacidade para uma identificação parcial e temporária com outros,
que precisa estar presente tanto no paciente quanto no analista. Ele preconiza a
análise de experiência, dizendo ser deliberadamente vago com o paciente quanto
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ao tempo que irá precisar para definir sua indicação terapêutica, considerando que
somente a experiência real de um período de análise pode determinar, com
segurança, se um paciente está apto para fazer análise. Neste ponto, parece-me
que um período prolongado de uma análise de experiência, passa a ser
simplesmente uma análise e, como tal, sujeita às vicissitudes do processo
analítico, em especial a questão da acessibilidade.
Ainda que tenha citado os bons resultados terapêuticos obtidos por
Rosenfeld (1952) com o uso da análise clássica em pacientes psicóticos, afirmou
que a maioria dos psicanalistas considera que os pacientes fixados
narcisicamente exigem modificações no procedimento psicanalítico padronizado.
Deste modo, se por um lado o autor reafirma os critérios de Fenichel (1945)
quanto às indicações de análise clássica, por outro abre a possibilidade de
tratamento analítico, ainda que com modificações, para pacientes não neuróticos.
Posteriormente, contrapondo-se ao conceito de analisabilidade de Zetzel
surgiu o conceito de acessibilidade de Betty Joseph (apud Etchegoyen).
Joseph (1975), focalizando um determinado grupo de pacientes muito
diversificados em sua psicopatologia (mas que têm em comum uma cisão da
personalidade) observou que a acessibilidade depende da personalidade profunda
do paciente e não corresponde a uma categoria diagnóstica, havendo pacientes
de mais difícil acesso do que outros.
Seu conceito de acessibilidade surge do próprio trabalho analítico e
consiste em buscar acesso ao paciente, considerando o fenômeno a partir do
narcisismo e tipos especiais de dissociação, propondo-se a tratá-los. O paciente
de difícil acesso de Joseph vincula-se a personalidade como se de Helen Deusth
(1942), ao falso self de Winnicott (1960), a pseudo-maturidade de Meltzer (1966) e
aos pacientes narcisistas de Rosenfeld (1964), com sua excisão das partes
dependentes do self (apud Joseph).
Etchegoyen (1987) considera que pelo conceito de analisabilidade se
buscaria detectar e classificar previamente, enquanto que a acessibilidade
somente poderá ser estabelecida no próprio curso da análise, sendo que o
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conceito de analisabilidade pode incluir o analista, enquanto o conceito de
acessibilidade é mais vincular.
Considerando os fatores pessoais do paciente, Etchegoyen destaca a
importância da motivação como critério para a análise, já que quem se analisa
empreende um caminho, pois a análise é quase uma escolha de vida por muitos
anos, uma escolha por buscar a verdade, aonde o que temos a oferecer é um
tratamento longo e penoso, cuja premissa básica é conhecer a si mesmo.
Citando Bion (1962), refere que a atitude mental frente à verdade e ao
conhecimento de si mesmo influi muito no desenvolvimento do tratamento
analítico. Alerta que mesmo a busca espontânea ou a falta dela podem não nos
auxiliar a identificar um desejo autêntico de se tratar, podendo estar encadeada
com a própria patologia do paciente e, sendo assim, ser parte da tarefa analisar e
tentar resolver. Por outro lado, refere que uma pessoa que seja solitária e que não
disponha de um meio que lhe dê suporte na falta da análise, é sempre difícil de
ser analisada. Devem ser considerados no momento da indicação, ainda que não
sejam a essência, fatores como a dependência real e concreta de outros, incluindo
a dependência financeira e meio familiar hostil à análise.
No final da década de 80, Etchegoyen referia não achar convincente o
conceito de que a situação analítica seja determinada pelo par, porém propunha-
se a discutir o conceito de par analítico. Para tal, tomou como base os conceitos
de Liberman e Baranger.
Liberman (1969) parte de suas idéias sobre os estilos lingüísticos
complementares, e postula que o analista tenha um ego idealmente plástico.
Quanto maior a plasticidade do ego do analista, maior a riqueza de tons em sua
personalidade, podendo assim formar o par necessário com as notas que faltam
ao paciente.
Em trabalhos de maior relevância os Baranger (1961/62, 1964) partem da
teoria do campo e do baluarte. Descrevem que o Campo é uma situação
basicamente nova, criada pela análise e atravessada por linhas de forças de
ambos os componentes da dupla. No processo, o campo se cristaliza ao redor de
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um baluarte, o qual é construído pelo paciente, mas está sempre ligado às
limitações do analista. O campo se estrutura sobre a base de uma fantasia
inconsciente que pertence a ambos. O par poderá fracassar pelo que o paciente
fizer e pelo que o analista não puder resolver. Tal conceito implica uma limitação
individual de cada analista com relação a pacientes a quem possa ou não analisar.
Considero que a partir da teorização dos Baranger passa-se a enfatizar o
trabalho da dupla analítica e a capacidade de cada analista como critérios
fundamentais para a acessibilidade e analisabilidade do paciente.
Segundo Etchegoyen, o conceito de reverie de Bion (1962) também se
apóia no conceito de par analítico e, quanto mais reverie tiver o analista, mais apto
estará para receber qualquer paciente. Este modo de compreender está também
presente no conceito de holding de Winnicott (1955), como uma condição do
analista, que não depende especialmente do paciente.
Etchegoyen posiciona-se considerando ser possível analisar o
desenvolvimento pré-edípico, sendo tarefa do próprio trabalho analítico ir
delimitando gradualmente as duas áreas que sempre existem, mesmo nos casos
mais perturbados.
A capacidade em diferenciar a realidade externa da realidade psicótica não
se dá de modo absoluto, e sim aumenta com o crescimento e desenvolvimento
mental, sendo função principal do analista promovê-los. Todo paciente em algum
momento passará por situações psicóticas. O analista vai ter que travar a batalha
nos piores lugares, porque ali será colocado pelo analisado, e sair-se-á bem na
medida em que possa superar suas dificuldades pessoais e suas limitações
técnicas e teóricas. Ocorre-me aqui a importância da análise didática enquanto
instrumento fundamental para a disponibilidade do analista no trabalho com o
paciente.
O autor ainda pondera que os casos francos de psicose, perversão, adição
e psicopatia são sempre difíceis e deve-se pensar detidamente antes de tomá-los.
Autores na França, Inglaterra e América do Sul pensam que o método
psicanalítico seja também aplicável a outros tipos de pacientes, diferentes
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daqueles que estabelecem uma neurose de transferência. Para estes, podem ser
analisados, ainda que sejam mais difíceis, os aspectos psicóticos, farmacológicos,
perversos ou psicopáticos da transferência (apud Etchegoyen).
Wallerstein (2005), em um trabalho sobre as raízes históricas e situação
atual da psicanálise e da psicoterapia de orientação analítica, refere que à medida
que pacientes mais doentes e mais desorganizados (especialmente transtornos de
personalidade narcisista e organização borderline de personalidade) foram
incluídos dentro da esfera de ação psicanalítica (p. 55), os parâmetros da
psicanálise, inicialmente conceitualizada para pacientes neuróticos, foram
estendidos para além da interpretação (Gedo, 1979, apud Wallerstein), sendo seu
foco desenvolvido sobre a interação de duas subjetividades (do analista e do
analisando).
Antonino Ferro (1998), partindo de uma definição complexa e abrangente
de Campo (1986) como uma função cujo valor depende da sua posição no
espaço-tempo: sistema de infinitos graus de liberdade, dotados de infinitas
determinações possíveis que este assume a cada ponto do espaço e a cada
instante do tempo, propõe o que chamou de um vértice radical para os critérios de
analisabilidade. Para ele, de maior importância é o que nomeou critério de
capacidade de pôr-se à prova, pelo qual todo analista deveria ter consciência, com
base na própria análise, no seu funcionamento mental e grau de tolerância ao
risco e à frustração, até onde pode ir ao analisar. Descreve o conceito de
analisabilidade enquanto possibilidade de cura, ponto de chegada. Coloca, no
entanto, que este conceito foi acrescido, e em boa parte substituído por outros
dois: o da idoneidade para análise, concebido como capacidade de estar no
setting e de viver um processo transformador (Limentani, 1972); e o da
acessibilidade à análise (Joseph, 1985), conceito pelo qual podemos tão somente
fazer uma distinção do grau de dificuldade de acesso a um paciente (apud Ferro).
Referindo-se às situações de interrupções da análise, Ferro coloca como
válida uma análise que vá até onde possa ser feita por uma determinada dupla,
considerando que analisável não signifique garantia de um processo que chegará
11
até a suposta conclusão de uma última etapa prevista. Em uma análise, descreve
como infinitas as aberturas de sentido e os mundos possíveis que podem ser
ativados.
Ferro comenta que para ele o critério de analisabilidade é um critério a
posteriori, pois não sabemos a princípio quais “histórias” (da dupla, do mundo
interno, da história) ocorrerão durante a análise e o quanto a função Alfa do
Campo e o aparelho para pensar os pensamentos de Campo serão capazes de
transformar os elementos Beta do Campo e, assim, manter o processo. Para ele,
todo o paciente difícil, ou não analisável segundo alguns parâmetros, tão somente
nos confronta com aspectos desconhecidos de nós mesmos, dele e das nossas
teorias (Gaburri; Ferro, 1988).
Receber um novo paciente implica também riscos à vida mental do analista,
pois os pacientes muito graves comportam o confronto e a metabolização de
angústias muito primitivas e por vezes catastróficas.
Ferro acrescenta que, sem ser um critério de analisabilidade, já no primeiro
encontro deva-se avaliar a possibilidade de operações transformadoras na
sessão, com relação às capacidades de formar imagens, histórias, reveries que se
ativam na dupla, como indicativos do funcionamento futuro desta dupla e do que
terão a tratar.
Por fim, refere que a atenção dos que se dedicaram ao tema da
analisabilidade deslocou-se significativamente do estudo das características do
paciente, para as características da dupla e da interação entre um determinado
paciente com um determinado analista. Em seu modo de conceber a
analisabilidade, enfatiza predominantemente o campo e a capacidade e
disponibilidade do analista e bem menos as características do paciente.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pelo exposto, fica evidente que ao longo deste século de psicanálise houve
uma oscilação nas fronteiras de sua abrangência como método terapêutico, por
vezes estendendo-se, por vezes recuando.
O próprio conceito de analisabilidade modificou-se desde o início,
primeiramente destinado a definir a indicação ou contra-indicação da análise,
depois incluindo o conceito de acessibilidade, até chegar à concepção de Ferro,
como possível de ser estabelecido somente durante a análise e abrangendo até
seu término, demonstrando ser um conceito que permeia todo momento da
análise e a qualquer momento importante e útil de ser pensado para nortear nosso
trabalho.
Nos primórdios da psicanálise, o próprio Freud deixou em aberto a
possibilidade de conseguir no futuro uma maneira de tratar os casos que não
estivessem no âmbito das neuroses de transferência. Neste século de psicanálise
a clínica passou a requerer um constante questionamento da especificidade do
método analítico e do possível alargamento do que se compreende analisável,
sendo a analisabilidade cada vez mais relacionada à capacidade do analista e da
contratransferência.
Considero o deslocamento na ênfase para as características da dupla e
interação entre um determinado paciente com um determinado analista, o Campo
e principalmente a capacidade e disponibilidade do analista e bem menos as
características do paciente, como resultante do aprofundamento na compreensão
do “fenômeno” analítico em si, tendo por trás uma fronteira de indicações e contra-
indicações que já foi, dentro do possível, estabelecida anteriormente. Ainda hoje
são úteis muitas das recomendações de Freud (1904), suas indicações e contra-
indicações, redefinidas e aprimoradas por Fenichel (1945) e Greenson (1967).
Os desenvolvimentos que se seguiram aos conceitos de holding, objeto
transicional e espaço potencial de Winnicott e a função de reverie de Bion,
especialmente as questões de Campo dos Baranger, da intersubjetividade e mais
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recentemente as teorizações de Green (1999) e do casal Botella (2002) do
irrepresentável e da figurabilidade (Botella; Botella, 2003), voltados à necessidade
de construir o não-construído, tem contribuído muito para que possamos ter
acesso terapêutico a pacientes das chamadas patologias do vazio, borderlines,
ampliando os recursos técnicos e as fronteiras da analisabilidade.
Adicionalmente, a introdução de parâmetros, incluindo o uso de
psicofármacos, pode permitir uma abrangência ainda maior, favorecendo a
acessibilidade para o tratamento de pacientes com diagnósticos clínicos mais
graves.
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