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    201APRESENTAO

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    O SAGRADO SELVAGEM NASPERIFERIAS URBANAS: AS TENSESENTRE TRADIO E MODERNIDADE

    Claudio Pereira Noronha

    Doutorando pela Universidade Metodista de So Paulo (Umesp). Integrante do grupo de

    pesquisa Religio e Periferia na Amrica Latina (Repal).E-mail: [email protected]

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    R E S U M O

    No presente trabalho, nos propomos a discutir as noes de sagrado selva-gem nas periferias urbanas. Com base no pensamento de Roger Bastide,discutiremos at que ponto as instituies religiosas nas sociedades contem-porneas conseguem, ou no, controlar ou domesticar o sagrado. Preten-demos ainda analisar em que medida elementos inerentes a determinadosgrupos religiosos, como a possesso e o xtase religioso, participam do pro-cesso contribuindo para aumentar a tenso entre os ditames da tradio e osanseios por novas vivncias com o sagrado, tornando-o selvagem ou, emoutras palavras, pouco domesticado. A intenso pela anlise nas regies deperiferia se d, essencialmente, pelo fato de concentrarem grupos religiosos(como umbanda e pentecostalismo) que consideramos mais propensos aum sagrado menos controlado pelas instituies religiosas.

    P A L A V R A S - C H A V E

    Sagrado selvagem; Roger Bastide; possesso; xtase religioso; periferiasurbanas.

    1 . I N T R O D U O

    O propsito deste trabalho analisar o conceito desagrado selvagem no contexto das periferias urbanas. Apoia-mo-nos, para tratar do assunto, nas formulaes de Bastide

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    (2006) sobre as noes em torno do sagrado, mais especifica-mente as circunstncias que podem torn-lo selvagem oudomesticado. Tais conceitos aludem maior ou menor capa-cidade de as instituies religiosas administrarem a tenso entre

    os fiis e sua tradio. Dizendo de outro modo, at que pontoo conjunto de crenas e significados, principalmente na socie-dade contempornea, mantm-se controlado pelas instituies,ou constri-se a partir das vivncias cotidianas e particularesdaqueles que buscam uma relao prpria com o divino.

    Em torno do problema emergem algumas questes: atque ponto o sagrado pode, realmente, ser controlado? pro-vvel que perambule solto pelos caminhos que bem deseja,sem que seja possvel dom-lo? Seu carter misterioso ou

    extraordinrio se que podemos atribuir-lhe definies permite tal encarceramento em padres normativos, sejamsociais ou religiosos?

    Tais arguies renem, em torno de si, discusses maisamplas. Entre elas: 1. a relao entre indivduos e religio nassociedades arcaicas (em que impera a tradio) apresenta dife-renas significativas em relao s sociedades modernas (cujasescolhas religiosas prevalecem); 2. na modernidade, h certa

    oposio em questes doutrinrias ou litrgicas entre reli-gies com maior ou menor grau de intelectualidade, como tam-bm religies consideradas mais ou menos racionais; 3. nassociedades contemporneas, encontramos enorme diversidadereligiosa, determinada, entre outras coisas, por diferenas so-cioculturais e geogrficas. Tais diferenas de certa forma carac-terizam o sagrado no tempo e no espao, e, em certo sentido,a maneira como as instituies o controlam.

    Diante de um assunto to amplo, nossa especificidade

    ser analisar o fluxo do sagrado pelas religies que encontramnos espaos perifricos da sociedade, vistos tanto do ponto devista geogrfico como social. a, nos rinces afastados dosgrandes centros, que encontramos determinados grupos reli-giosos, como o pentecostalismo e a umbanda. principal-mente sobre eles que recaem as suspeitas de um sagrado poucodomesticado, o que talvez se explique por se afinarem to bemcom as cidades urbanas (e suas periferias), locais propciospara um sagrado selvagem.

    Cabe frisar que tal reflexo no se ater somente aosreferidos grupos, pois a discusso transcende, em muito, o

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    pentecostalismo e a umbanda. Isso porque o tema nos obriga,em grande medida, a estabelecer comparaes doutrinrias elitrgicas com outros movimentos religiosos, partes do diver-sificado campo religioso brasileiro. No que se refere liturgia,

    daremos alguma ateno aos fenmenos do transe, da pos-sesso e do xtase religioso, esses, em algum grau, ligados aosgrupos religiosos presentes em nossa anlise. Por estarem, pelomenos em tese, relacionados selvageria do sagrado, seromuito teis em nossa discusso.

    2 . O S A G R A D O S E L V A G E M

    Como arcabouo terico, , sem dvida, de grande eatual relevncia para a compreenso da dinmica social dareligio (MENDONA, 2007). Os textos de Bastide (2006),que fazem parte da obra O sagrado selvagem, foram reunidosna dcada de 1970 por seu discpulo Henri Desroche ,momento em que grupos como pentecostalismo e umbandademostravam grande insero junto populao mais pobre.As razes disso fazem parte de nossa anlise. De l para c, ocampo religioso vem se reordenado com enorme intensidade.Vimos o crescimento do pentecostalismo o mesmo noocorrendo com a umbanda e a perda de fiis, a cada dcada,nas tradies religiosas como catolicismo e protestantismohistrico. O nmero de pessoas que se declaram sem reli-gio tem tido, tambm, aumento expressivo inclusive nasregies de periferia. Grupos denominados Nova Era, com-postos por uma imensido de prticas msticas e espiritualis-

    tas pouco institucionalizadas , ajudam a compor o cenrioreligioso contemporneo.Diante disso, apresentam-se algumas questes: o que,

    de verdade, significam os conceitos de sagrado selvagem, e,por conseguinte, sagrado domesticado na obra de Bastide?Como podemos encaixar os diversos grupos religiosos nessascategorias? Quais so os limites entre uma noo e outra? Querelao h entre os conceitos e o processo de crescimento oudiminuio dos grupos religiosos em questo? Sabemos do de-safio de responder a cada uma das questes, o que tentaremosfazer no presente captulo.

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    2 . 1 . N O E S D O S AG R A D OS E LVAG E M E M B A S T I D E

    Bastide (2006), ao introduzir o tema, pergunta: Ser quea morte dos Deuses institudos (em doutrinas e dogmas!) proclamada por Nietzsche acarretaria o desaparecimento daexperincia instituinte (transformadora) do sagrado em bus-ca de novas formas nas quais se encarnar? O autor indaga,ainda, se a crise das organizaes religiosas no se encontra naincompatibilidade entre a experincia religiosa pessoal e osquadros institucionais nos quais quiseram mold-la. H umasuspeita nesse questionamento, de que, por parte das institui-es, existe o anseio de retirar o poder explosivo caracters-ticos do sagrado considerado ameaador ordem social(BASTIDE, 2006).

    A crise das instituies religiosas permeou o debate aca-dmico e religioso durante uma boa parte do sculo XX, e,nesse sentido, muito se falou sobre o assunto. Uns decretaramo fim da religio, considerada por muitos uma m interpre-tao da realidade na poca, baseada, sobretudo na observao

    da crise religiosa europeia. Outros, mais cautelosos, sugeriramo declnio dos compromissos religiosos e o ganho da autono-mia do indivduo em relao ao sagrado (PIERUCCI, 1998;BARRERA, 2002; HERVIEU-LGER, 2008). Na percepode Bastide (2006), a crise religiosa o que, por exemplo, setraduz no caso do cristianismo da perda de fiis ou diminuioda presena e vnculo institucional, tanto nas igrejas catlicastradicionais ou protestantes histricas esboa, de certa ma-

    neira, o descontentamento de seguidores na rigidez doutrinriae litrgica presentes nas instituies, que exemplificaramosaqui por: 1. pouco espao para experincias emocionais; 2. pou-ca autonomia do prprio corpo; ou ainda 3. a experincia dosagrado rigidamente marcada pela coletividade. Marcas de umsagrado que se pretende domesticar.

    Em determinados lugares, como na Europa, viu-se umgrande afastamento de pessoas das igrejas. Decorrncia de umexacerbado controle doutrinrio? Nas sociedades tradicionais,

    baseadas em uma solidariedade mecnica, cujos vnculos so-ciais so pautados por uma conscincia coletiva (DURKHEIM,

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    1999), ao contrrio da sociedade moderna, h pouco espaopara qualquer desvio, pois o sagrado fortemente controlado(BASTIDE, 2006).

    O que ir definir, portanto, as sociedades tradicionais em rela-o a nossa sociedade ocidental no ser tanto a no-existncia

    do sagrado selvagem, e sim o esforo para submet-lo a um

    controle da coletividade assim que ele vem luz [...] (BASTIDE,

    2006, p. 255).

    A despeito da separao, no campo conceitual, do que tradicional ou do que moderno, na prtica tais elementos seconfundem. Tomemos a Igreja Catlica como exemplo. Emcerto sentido, o catolicismo romanizado menos permissivo devoo pessoal que o catolicismo popular. No Brasil, essa ma-neira de ser catlica, com seus santos pessoais, e, em muitoscasos, alocados nas regies mais afastadas do pas (por exem-plo, nordeste e interior do Estado de So Paulo), configura-sepor procisses, rezas, milagres, supersties. Elementos mgi-co-religiosos absorvidos pelo catolicismo decorrente do con-tato e influncia das tradies indgenas e africanas (SILVA,

    2005). Em certo sentido, o catolicismo popular caracteriza-semais pelo sagrado selvagem do que o catolicismo tradicional1.

    No Brasil, como na Amrica Latina, a realidade mostrouuma diminuio de algumas igrejas, como dissemos anterior-mente, mas com uma dinmica diferente. As Igrejas Catlica eProtestante (no campo histrico) perderam muitos fiis nas l-timas quatro ou cinco dcadas. Contudo, o crescimento dopentecostalismo, em toda sua diversidade, significou uma esp-cie de renovao do jeito de ser protestante que trocam a reli-gio do livro pela inspirao divina (BASTIDE, 2006, p. 264).

    Para Bastide, estaramos vivendo um momento de umanova busca apaixonada pelo sagrado. Essa ideia destaca-se nacitao a seguir: Contudo, esse sagrado que vemos novamentesurgido na cultura e na sociedade de hoje quer-se um sagrado

    1 A despeito de tal distino, o catolicismo, comparado ao protestantismo histrico seria

    uma religio mais espiritual, menos racional, por preservar, por meio de elementos comovestes sacerdotais, gestos, sons etc., o drama litrgico-simblico: um firmamentosombreado no qual se abriga o sagrado (MENDONA, 2007, p. 25).

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    selvagem (BASTIDE, 2006, p. 251). Esse seria recriado eno copiado buscando inspirao nos modelos que usam ostranses coletivos das populaes primitivas ou mesmo nos cul-tos de possesso.

    No se quer, com isso, dizer que transe ou possessosejam, em essncia, categorias ligadas a um sagrado selvagem.Em determinados grupos, cuja tradio passa por maior con-trole, ocorrem dentro dos padres determinados pelo coletivo.H uma domesticao do sagrado. O candombl pode ser-vir-nos de exemplo. A relao das divindades (orixs) e seusfilhos ou filhas de santo ocorre dentro de determinados pa-dres tradicionais, e poucos desvios ocorrem nesse universoreligioso (BASTIDE, 2006). Por outro lado, movimentos reli-giosos como a umbanda e o pentecostalismo, cujas origens sedevem a religies tradicionais, baseiam sua liturgia em ele-mentos extticos, em que transe e possesso so absolutamentecentrais. Na umbanda, a mediunidade da me ou pai de santopermite uma comunicao dialogada (RIZZI, 1997) com asentidades afro-brasileiras e indgenas. No pentecostalismo osfiis so possudos pelo Esprito Santo2. Seriam esses movi-mentos religiosos modelos de um sagrado selvagem?

    Mendona discutindo a obra de Bastide registra: Osagrado uma fora que irrompe nesses momentos [de ano-mia social e religiosa] e provoca turbulncias tendentes a mo-dificar aquelas foras, que, domesticadas, corroem a esperana(MENDONA, 2007, p. 24). por meio dessas foras, afir-ma o autor, que se criam as utopias religiosas e polticas. Um-banda e pentecostalismo, por exemplo, ganharam espao emum momento de transformaes sociais. Nas primeiras dca-das do sculo XX, ocasio de grande urbanizao e industria-lizao o que significou enorme desestruturao social de-vido s mudanas culturais os dois grupos religiosos foramatrados tanto pela populao vinda do espao rural para ourbano como pelos migrantes de diversas regies do pas, es-pecialmente do nordeste (CAMARGO, 1961, 1973).

    Os dois movimentos religiosos rompem, cada um aoseu modo, com os elos da tradio. A umbanda, ao misturar a

    2 Rizzi (1997) adota trs modelos de transe: transe de possesso com e sem dilogo, transede inspirao e transe medinico. O assunto ser desenvolvido adiante.

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    tradio africana e indgena, com elementos do kardecismo,contribui para o relaxamento de um controle coletivo. J no mais necessrio que os filhos(as) de santo, ou mesmo o m-dium, passe pelo rigoroso caminho da iniciao (central no

    candombl). J no so mais, necessariamente, filhos(as) deuma mesma nao. Cada terreiro de umbanda tem, at certoponto, autonomia. Por outro lado, os mdiuns umbandistasno se limitam a serem mensageiros, de comportamentos mo-rais, do plano espiritual (elemento caracterstico do karde-cismo), mas tornam-se canais para espritos como caboclos epreto-velhos, cujas sesses eles comandam.

    O pentecostalismo, movimento que cresce a cada pero-do, apresenta maior complexidade de anlise para nosso tema.Isso porque sua enorme diversidade dificulta compreendermosat que ponto o controle institucional tem maior ou menoreficcia diante dos ditames do Esprito. Com menor centrali-dade da Bblia nos cultos, nesse grupo religioso o Esprito Santopassou a comandar o rumo dos trabalhos eclesiais. Isso acarretamenor possibilidade de um culto previsvel. Mendona (2007)sugere que no pentecostalismo encontre-se uma selvageria vista aqui no como um xtase violento, mas, sim, de difcil

    controle que se tenta constantemente domesticar.O pentecostalismo em seu modelo clssico, de forma

    mais evidente na Congregao Crist no Brasil, pode nos aju-dar mais facilmente a descrever uma liturgia louvor, oraes,testemunhos etc. controlada pela instituio. Mas possveluma generalizao? Os pentecostalismos surgidos nas ltimastrs ou quatro dcadas conseguem manter o sagrado em esta-do de domesticao? Sem a pretenso de resolver o proble-

    ma, digamos que o assunto em torno do pentecostalismo complexo. Citemos a msica, dentro e fora das igrejas, comoexemplo: o espao de louvor, dentro da igreja, tem se traduzi-do em uma grande variedade de ritmos. Permite-se at rock,rapou samba. At poucas dcadas atrs, eram representaesdo que havia de mais mundano coisas do demnio.

    Fora da igreja no diferente. A msicagospel,que re-ne os jovens das mais variadas formas, ganha cada vez maisespao entre os evanglicos tambm entre os catlicos,especialmente os carismticos. O louvorzo um exemplo(TAVAREZ; CAMURA, 2004). Reunir-se para escutar

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    msica, orar e louvar a Deus hoje algo muito comum para osjovens evanglicos em diversos pontos do pas (MEINERZ,2004; RUMSTAIN, 2007). O elemento central nessa questo: tais eventos ocorrem fora da igreja. Por maior controle ins-

    titucional que se mantenha, o que ocorre por consequncia defortes regras disciplinares proibies em beber, fumar oumesmo fazer sexo. Os jovens sentem-se muito vontade paracantar, danar ou vestir-se como bem entendem. Como con-trolar um sagrado que ocorre fora das paredes eclesisticas? Seh nesses casos o pressuposto da sacralizao do profano, nohaveria, por outro lado, uma profanao do sagrado?

    Como dissemos anteriormente, no simples definir as

    fronteiras do selvagem e do domesticado, e o exemplo anteriornos mostra isso bem. Digamos que os grupos religiosos, cujatradio tem maior presena do coletivo, mantm maior do-mnio sobre os elementos simblicos, ao contrrio daquelesque individualizam a construo do sagrado. O mundo mo-derno mais propcio ao tipo de religiosidade individual, oque, em tese, diminuiria o controle. Contudo, nem tudo tosimples, e Bastide est ciente de tal complexidade.

    Toda Igreja constituda possui decerto seus msticos, mas des-

    confia deles, delega-lhes seus confessores e diretores espirituais

    para dirigir, canalizar e controlar os seus estados extticos, isso

    quando no os trancafia em algum convento de onde seus gri-

    tos de amor desvairado no conseguem se fazer ouvir (BAS-

    TIDE, 2006, p. 263).

    Transe e possesso: relaes entre o sagrado selvagem extase religioso.

    At aqui tratamos das noes de sagrado selvagem e sa-grado domesticado. O objetivo foi introduzir a discusso doinstitucional religioso e sua capacidade de administrar a ten-so entre o individual e o coletivo (tradio) na construo dosagrado. Agora, seguiremos o debate abordando conceitos detranse, possesso e xtase. Tais noes mantm, entre si, gran-de interdependncia na realidade emprica. So tambm cate-

    gorias que transitam no centro e na periferia das relaes so-ciais e religiosas.

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    No que diz respeito a um dos mais profundos dramasreligiosos, que a comunicao ou tomada dos seres humanospelas divindades, possvel afirmar que, de uma maneira ou deoutra, e em algum estgio de seu desenvolvimento, foram en-corajadas por todas as religies (LEWIS, 1971). Esses encon-tros extticos, comumente chamados de possesso que Lewisdefine pela invaso do indivduo por um esprito possuemenorme relao com outro importante aspecto de nosso tema:o transe religioso. Rizzi (1997, p. 80) o define como um es-

    tado particular do indivduo, durante o qual se evidenciammodificaes psicofisiolgicas, num contexto ritual religioso.Pode, ainda, ser entendido como estado de dissociao, carac-terizado pela falta de movimento voluntrio, e, frequentemen-te, por automatismo de ato e pensamento, representados pelosestados hipntico e medinico (LEWIS, 1971, p. 41).

    O transe tem sido associado s religies de tradio afri-cana no Brasil com as afro-brasileiras identificados com

    fragmentos de superstio, quando no a formas de patologia(RIZZI, 1997). Tal associao ocorre, principalmente, devido possesso pelas divindades: orixs, no caso do candombl, ede entidades espirituais, na umbanda. Embora haja uma in-tensa associao entre o transe e possesso, ou mesmo a ideiade que o primeiro decorrente do segundo, Lewis (1971) afir-ma que o transe pode ocorrer sem qualquer relao com enti-dades espirituais. Seria o caso para explicar algumas doenas.

    Rizzi (1997), sintetizando as diversas opinies sobre o

    assunto, adota os seguintes modelos de transe: 1. transe depossesso dialogada, em que h comunicao entre entidadese consulentes (como na umbanda); 2. transe de possesso semdilogo, em que apenas h a encarnao das divindades pelosfiis, mas sem tal comunicao (como no candombl); 3. tran-se de inspirao, em que o fiel mantm sua personalidade, mas investido pela divindade e torna-se seu porta voz (como nopentecostalismo); e o 4. transe medinico, em que o mdiumtorna-se um canal entre vivos e mortos (como no kardecismo).Adotaremos esse modelo para analisar o transe nos grupos re-ligiosos aqui descritos.

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    O que nos interessa nesses fenmenos sua relao como conceito de sagrado selvagem. As tradies religiosas procu-ram garantir certo controle sobre o sagrado, transformando oespontneo em institucional. Quando, por qualquer razo, h

    um relaxamento do controle por parte da comunidade, tudo oque est contido mas em estado latente nos fenmenosextticos, e aqui falamos de seus elementos de selvageria, re-bentam sua roupagem institucional (BASTIDE, 2006).

    Se a domesticao do sagrado ocorre tanto pelos proces-sos institucionais como pelos cdigos morais gerados pela co-munidade, o retorno ao selvagem, por sua vez, tem origemtanto no enfraquecimento da instituio religiosa tradicionalcomo na passagem de uma sociedade orgnica a uma socie-dade anmica (BASTIDE, 2006). A sociedade brasileira ofe-rece bons exemplos. Isso porque, no Brasil, o desenvolvimentoda sociedade fez surgir grupos religiosos sincrticos, o que en-fraquece os mecanismos de controle:

    [...] o poder de controle e domesticao de uma religio sincr-

    tica evidentemente menos forte que o de uma religio no

    sincrtica, j que fica dividido entre demasiadas postulaes

    distintas, no raro contraditrias (BASTIDE, 2006, p. 257).

    H polmica em torno do conceito de sincretismo. Nopretendemos discuti-la aqui. Levaremos em considerao so-mente que, para Bastide, as trocas culturais significam influn-cias mtuas no necessariamente simtricas. O candombl,por exemplo, operou uma aproximao entre as tradies afri-canas e o catolicismo, de forma que suas divindades no se

    amalgamaram, mas to somente construram elementos deidentificao (BASTIDE, 1971)3. Os orixs, por suas caracte-rsticas, se identificam com os santos catlicos, o que permitiuaproximaes simblicas. verdade que houve grande sim-biose, a ponto de os orixs serem chamados de santos.

    3 Atualmente h uma tentativa de africanizao do candombl. Analisando a questo

    superficialmente, digamos que a inteno no passa por tornar-se uma religio africana,mas sim, e, sobretudo, realizar o culto dos orixs africanos sem a participao dos smboloscatlicos em sua liturgia (LPINE, 2002).

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    Embora o candombl no seja, em todo o territriobrasileiro, uma tradio homognea, pois em cada regio for-mou-se a partir de diferentes naes africanas, ele possui ele-mentos litrgicos comuns. Entre eles, a possesso por suas di-

    vindades. Mas at que ponto o transe e a possesso contribuempara maior ou menor selvageria nessa tradio? Se obser-varmos o contexto social vivido pelo negro no Brasil, sobretu-do no perodo de escravido, podemos afirmar que o candom-bl serviu como elemento de resistncia cultural e religiosa(LODY, 1987; PRANDI, 1995). Considerando o histricode subjugao do negro, como trabalhos forados, violnciafsica e pouca liberdade cultural e religiosa, o modelo religiosoencontrado no candombl sustentado na histria oral, emregras e papis rigorosos cumpridos por homens e mulheres ena fora vital (ax) que passa pela msica, dana, gestos e pre-parao de alimento contribuiu para a preservao, por m-nima que seja, de um universo simblico ligado ao seu localde origem a frica.

    A descida dos santos (ou orixs) nas cerimnias , so-bretudo, uma celebrao em que conta-se uma histria mito-lgica (PRANDI, 1991). Os terreiros, pequena representao

    mtica e mstica da frica, consagrados pela fora do ax, com-punham um tempo e o espao sagrados (BASTIDE, 1978).Nesses momentos rituais, especialmente as iniciaes, cujoprocesso preparatrio bastante rigoroso, que os(as) filhos(as)de santo crescem espiritualmente e aprendem a lidar com otranse religioso, que, se no bem aprendido e controlado, po-de tornar-se violento (BASTIDE, 2006).

    Lewis (1971), ao estudar esses fenmenos em pequenas

    sociedades, enfatiza que em muitas delas o transe (em cultosperifricos ou marginais) tem um papel social especfico aosexcludos (mulheres, pobres etc.). A possesso implica, entreoutras coisas, um fortalecimento simblico do possudo emrelao ao seu opressor, devido aos perigos que a encarnaode um esprito pode representar4.

    4 Em relao ao catolicismo, o candombl possua um carter perifrico (marginal). Para

    o branco, o culto, nessa religio, possivelmente representava algum tipo de perigo,na medida em que os negros eram possudos por divindades desconhecidas (vistascomo demonacas).

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    Procurando, ento, responder nossa pergunta, o can-dombl, tanto no contexto rural como no urbano, apresentapoucas caractersticas de um sagrado selvagem. Isso porque acomunicao entre os adeptos e suas divindades faz parte de

    um modelo, at certo ponto, controlado pela comunidade. Otranse acontece em situaes muito bem definidas, e no ocor-re em situaes que poderiam ser inconvenientes (BASTIDE,2006). Dentro da comunidade a possesso representa, para osiniciados ou lideranas (pais e mes de santo), certo prestgio,pois um elemento central. No implica em caos, ao contrrio, justamente nesses momentos em que tudo est em ordem.Evidentemente que existem os desvios, contudo, busca-se, omais possvel, control-los.

    Mas nem tudo calmaria! O fim da escravido trouxeum conjunto de mudanas na organizao social e forou certadisperso de grupos que passaram a viver em stios ou fazendas,isolados. Muitos negros assimilaram o catolicismo popular co-mo religio. Outros comearam, de forma individualizada, amisturar sua religiosidade, ou fragmentos dela, com elementosda tradio indgena, do catolicismo popular e do espiritismo(BASTIDE, 1971, 2006). Exemplo dessa mistura a macum-ba. J existindo nos meios rurais, foi nas grandes cidades, em

    meio a toda a turbulncia do processo de urbanizao, que amacumba pode ser vista como uma forma de culto. No ape-nas se distancia dos elementos tradicionais, mantidos pelasnaes africanas, mas que rene, em torno de si, todos aquelesque vivenciam processos de desestruturao social, como ex--escravos, migrantes e a populao empobrecida de modo ge-ral (BASTIDE, 1971).

    Estendendo-se, dividindo-se em bairros, a cidade no permite

    solidariedade de classe constituir-se em toda a sua generalida-de ela a despedaa em grupos de vizinhana , e a macumba,que j no retida por uma memria coletiva estruturada, embo-ra permanecendo em grupo, se individualiza. Cada sacerdote(ou quase todos) inventa novas formas de ritual ou de novosespritos; [...] Estas so aceitas por homens que nada tm emcomum, ainda uma vez, alm da sua situao em baixo nvel daescala social, e cujas formas de sociabilidade, a famlia, a profis-so, so tambm desorganizadas. Da a fluidez dessa religio,sempre em perptua transformao, o que torna difcil a descrioda macumba(BASTIDE, 1971, p. 408, grifo nosso).

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    Prandi (1990), ao contrrio de Bastide, no entende amacumba como degradao do candombl descrita comoprticas de manipulao religiosa desprovidas de comunidadesou cultos organizados. O autor sugere que: a

    Macumba [no Rio de Janeiro], portanto, deve bem ter sido a

    designao local do culto aos orixs que teve o nome de can-

    dombl na Bahia, de xang na regio que vai de Pernambuco a

    Sergipe, de tambor no Maranho, de batuque no Rio Grande

    do Sul (PRANDI, 1990, p. 3).

    Parece-nos, contudo, que os autores veem na macumbauma precursora da umbanda.

    Por sua complexidade de constituio, ou seja, uma quan-tidade maior de universos simblicos reunidos, a umbandatorna-se uma religio mestia. Alis, isso a torna uma espciede representante da religiosidade brasileira, cuja principal ca-racterstica sociocultural a miscigenao. Lembremos que,para Bastide, quanto mais sincrtica a religio, mais prximado sagrado selvagem ela est. A umbanda, comparada ao can-dombl, permite menor domesticao. Possui maior auto-nomia em seus espaos de culto e seus membros no esto liga-das a uma nao (uma famlia de filhos e filhas de santos). Oselementos extticos (transe e possesso) ocorrem com menorprevisibilidade do que no candombl, pois quem assume ocomando da sesso so as entidades espirituais que, nesse caso,realizam o comando via transe dialogado (RIZZI, 1997).

    Tais noes podem ser relativizadas, essencialmentequando tratamos desse grupo religioso nos grandes centros ena populao de classe mdia. Nesses casos, uma necessidade

    maior de moralizao e controle litrgico permeia o grupo, atporque esto, geralmente, sob maior presena da FederaoUmbandista (BELOTI, 2004). Contudo, ser que nas regiesdas periferias urbanas o mesmo controle ocorre? Como se ma-nifestam as divindades em regies cujas necessidades bsicas,em geral, so muito pouco atendidas?

    No apenas discutiremos a relao entre os elementosextticos e o sagrado selvagem nas religies afro-brasileiras,mas tambm, e principalmente, no pentecostalismo, cujas

    manifestaes do Esprito Santo so importantes para o temaem discusso.

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    3 . O S A G R A D O S E L V A G E M N A SP E R I F E R I A S U R B A N A S

    Abordaremos o sagrado selvagem no contexto das peri-ferias urbanas. A inteno discutir como as religies que tmcomo centralidade litrgica fenmenos emocionais e extti-cos transe e possesso se relacionam e operam em meio auma populao que habita regies cuja carncia se faz presenteem muitos aspectos de sua vida cotidiana (BARRERA, 2010).Para tanto, seguiremos analisando os grupos religiosos que semostraram, historicamente, mais adaptados a essa realidade: aumbanda e o pentecostalismo (CAMARGO, 1973). Este lti-

    mo vem crescendo a cada perodo, principalmente nas perife-rias. No entanto, sua diversidade de denominaes o quesignifica diferentes formas de relao com o sagrado torna atarefa de classificao bastante complexa, em torno de nossotema, se que ela possvel!

    3 . 1 . O S AG R A D O N A P E R I F E R I A

    Em que medida a construo do espao no apenas doponto de vista geogrfico, mas tambm sociocultural podeinterferir na relao dos indivduos com o sagrado? Existem di-ferenas, substanciais, entre centro e periferia, no que se refere capacidade das instituies religiosas de controlar o sagrado?

    Partimos da ideia de que existe, pelo menos em algunsaspectos, uma relao direta entre as periferias e o sagrado sel-vagem, assim, determinadas situaes a seguir, apresentam-se

    vinculadas formao dos espaos perifricos nas grandes ci-dades brasileiras. Entre elas esto: 1. processo tardio e desorde-nado de urbanizao e industrializao com influncias naformao do espao urbano , visto que at as primeiras dca-das do sculo XX o Brasil era um pas eminentemente rural(CAMARGO, 1961; SANTOS, 2008); 2. mudana, relativa-mente brusca, de uma mentalidade rural para uma cultura ur-bana, o que levou parcela da populao, em pouco tempo, amudar de uma estrutura social tradicional, baseados em forteslaos religiosos e familiares, para o jeito de ser da moderni-dade escolha da pertena religiosa, famlias nucleares etc.

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    (CAMARGO, 1961); 3. marcante segregao socioespacialdividindo de maneiras diversas, em diferentes momentos as diferentes classes sociais, resultando, para as classes maispobres (habitante das periferias), em situaes de alta vulnera-

    bilidade social (CALDEIRA, 2000; MARQUES; TORRES,2004); 4. considervel processo migratrio seja do rural parao urbano, seja das pequenas para as grande cidades. Em talprocesso, a maioria das pessoas que se deslocou o fez por faltade escolha (SINGER, 2002; SANTOS; SILVEIRA, 2006),indo tambm, por poucas opes, habitar as regies mais afas-tadas nos grandes centros.

    Como sugere Camargo (1961, 1973), a partir dos anos1930, as mudanas ocorridas nas sociedades dos grandes cen-

    tros urbanos que comearam a se formar nessa poca construram um campo propcio para o crescimento de gru-pos religiosos como a umbanda e o pentecostalismo. Essesdois grupos religiosos, de alguma forma, romperam com ele-mentos tradicionais do candombl (uma das bases simblicasda umbanda) e do protestantismo histrico (de onde o pente-costalismo tem origem).

    A umbanda eliminou, em seus componentes religiosos,o processo inicitico e os sacrifcios de animais do candombl.

    Desse universo religioso manteve o elemento de transe e pos-sesso (agora por entidades espirituais), alm do ritmo dasdanas e dos tambores. Agregou elementos da tradio indge-na e kardecista. Essa forte hibridizao, conforme registra Bas-tide (2006), sugere uma tendncia para um menor controledos elementos sagrados. Umbanda e pentecostalismo estive-ram sempre muito associados cura e resoluo de proble-mas e aflies cotidianos (FRY; HOWE, 1975), questo quese potencializa nas regies de maior carncia.

    A ausncia de polticas pblicas voltadas sade, edu-cao, ao saneamento bsico, infraestrutura urbana etc., nasregies de periferia, possivelmente contribuiu para um habitusreligioso princpio formador de determinados tipos de gos-tos, preferncias e disposies religiosas (BOURDIEU, 2007)bastante adaptadas s necessidades e aos interesses dessa popu-lao (SCHFER, 2009), voltado, muito mais para uma for-ma de religio prtica, do que intelectualizada. O pentecosta-lismo, comparado ao protestantismo histrico, possui umaliturgia menos intelectual e racional, devido, entre outras coi-sas, menor centralidade bblica.

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    H, no pentecostalismo, a ideia de possesso. Para ogrupo uma manifestao de Deus no caso, o Esprito San-to. No necessariamente os pentecostais usam o termo posses-so, pois os fiis se sentem batizados (quando recebem a pri-

    meira manifestao), inspirados, habitados ou glorificadospelo Esprito de Deus. Isso tem feito do pentecostalismo umareligio muito eficaz para aqueles em situao de anomia so-cial, como o caso dos migrantes que vieram do meio rural,ou das pequenas cidades para os grandes centros.

    A ideia de inspirao divina remete-nos a um aspectointeressante: a cada culto, as lideranas, recebem uma inspira-o ou revelao, em outras palavras, uma comunicao deDeus. No caso do pentecostalismo, encontramos, seguindo o

    modelo de Rizzi (1997), dois tipos de possesso. A possessode inspirao, encontrada na glossolalia e na revelao, e a pos-sesso dialogada, quando ocorrem os exorcismos, pois h odilogo com o demnio. Isso faz do culto pentecostal, tal quala umbanda, um espao litrgico pouco previsvel.

    Concordamos com Mendona (2007) que h, por partedas instituies pentecostais, uma tentativa de domesticaodesse sagrado, que em certo sentido circula mais solto. ver-

    dade que a Bblia no mais to central na liturgia pentecos-tal, mas constitui-se no lastro pelo qual as revelaes seroaceitas ou no. O conjunto de dogmas e doutrinas, impostasaos membros, sem dvida conseguem estabelecer certo con-trole. Mas como controlar todo xtase e emoo emanadopelos louvores e oraes em que gritos e rodopios espalham-sepelos templos, alm dos testemunhos esfuziantes dos pastores,obreiros, irmos e irms?

    Como j mencionamos, a diversidade pentecostal im-

    plica uma grande variao na forma de conduzir a construodo sagrado. H grupos tradicionais, como o caso da Con-gregao Crist no Brasil, mas h tambm igrejas em que apreocupao com vestimentas, ou linguajar, praticamente noexistem. Contudo, estas tm influenciado, sobremaneira, asigrejas tradicionais. No podemos negar que a hierarquia ecle-sistica busca, todo o tempo, estabelecer limites na flexibili-dade doutrinria e litrgica que ocorrem no interior de muitasigrejas. Mas at que ponto isso possvel nas regies de perife-rias? Como controlar pequenas igrejas que, muitas vezes, sexistem na prpria localidade? Como impedir que fiis de uma

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    igreja frequentem outras denominaes, o que permite-lhes co-nhecer outras formas de vivenciar a experincia pentecostal?

    muito comum nas periferias encontrarmos pessoas vi-sitando, tranquilamente, outras denominaes. No que isso

    no ocorra nas regies centrais, mas certo que em determi-nados lugares as fronteiras tornam-se facilmente transpon-veis. O que diramos, ento, das pequenas igrejas, aquelas cujopastor tambm o fundador? Essas so, em geral, encontradasaos montes nas periferias. Por tudo isso, consideramos quetenso entre o sagrado selvagem e o sagrado domesticado naigreja pentecostal, , atualmente, bastante intensa, e seu cres-cimento, a cada perodo, no cessar de aument-la.

    4 . C O N S I D E R A E S F I N A I S

    Propusemo-nos, neste texto, a discutir as noes de sa-grado selvagem nas regies de periferias urbanas. O tema noscolocou um grande desafio: pr em debate a densidade tericade Bastide e a realidade complexa do campo religioso brasilei-ro (especialmente em sua condio contempornea). Definir

    as nuances entre o sagrado selvagem e o domesticado j , porsi s, um intento difcil. Encaixar a diversidade religiosa den-tro dessa classificao, muito mais. Nesse sentido, no temos apretenso, aqui, de formular concluses, mas to somente dis-correr alguns poucos comentrios.

    O sagrado vive em uma constante tenso entre o desejoinstitucional do controle e a busca insacivel pela liberdade. Ocontrole justifica-se pela necessidade da manuteno do statusquo, mais especificamente, de uma ordem religiosa e social (BAS-

    TIDE,2006; MENDONA, 2007). por essa razo que reli-gies tradicionais, baseadas na comunidade, conseguem maiorcontrole. Mas a selvageria irrompe nos momentos de transfor-maes sociais. Nesse aspecto, a poca em que vivemos bas-tante propcia a esse sagrado pouco domesticado, pois estamosem tempo de intensas mudanas (BASTIDE, 2006).

    J no bastassem a pluralidade e a diversidade religiosa,consequncias de um mundo secular, as ltimas dcadas dosculo XX, marcadas pelo processo de globalizao, contribu-ram para a flexibilidade das fronteiras culturais, e, por conse-guinte, das religiosas (ORO, 1997; PACE, 1999; TERRIN,

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    2003). No apenas as pessoas se sentem vontade para transi-tar de uma religio a outra, mudando de pertena, como aindavisitar, e participar, de inmeras organizaes mantendo umapertena original (SOUZA, 2001). Opes o que no faltam.

    Grupos religiosos, msticos, esotricos ou espiritualistas emgeral classificados como Nova Era ou Novos Movimentos Re-ligiosos compem um universo de possibilidades, com rarasexcees, pouco institucionalizadas, que permitem uma diver-sificada composio pessoal do sagrado (AMARAL, 2001;CAMURA, 2003).

    Como sugere Camura (2003), esses grupos transitamentre os dois universos: por um lado utilizam-se de elementos

    xamnicos, iniciticos, prticas mgicas diversas, elementosdotados de poderes (pedras, cristais, talisms), batismo no Es-prito etc. Por outro, conjugam slidas linhas de continuidadecom o projeto moderno, baseados na centralidade do indiv-duo. Este cada vez mais tornando-se o fiel da balana entre osagrado institudo e o sagrado selvagem.

    THE SACRED WILD IN THE URBANPERIPHERIES: THE TENSIONSBETWEEN TRADITION ANDMODERNITY

    A B S T R A C T

    In this paper we propose to discuss the notions of sacred wild on the urbanperipheries. Based on the thought of Roger Bastide, we will discuss theextent to which religious institutions in contemporary societies, could, ornot, control or tame the sacred. We also intend to examine to what extentelements inherent to certain religious groups, such as the possession andreligious ecstasy, participate in the process helping to increase tension be-tween the dictates of tradition and the yearning for new experiences withthe sacred, making it wild or, in other words, little tame. The intention ofthe analysis in the regions periphery occurs essentially because religiousgroups concentrate (as Umbanda and Pentecostalism) that we considermost likely to a less sacred controlled by religious institutions.

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    K E Y W O R D S

    Sacred wild; Roger Bastide; possession; religious ecstasy; urban peripheries.

    R E F E R N C I A S

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