Revista Praia Vermelha - Política Social e Serviço Social 18_1 2008

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POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL: ELEMENTOS HISTÓRICOS E DEBATE ATUAL 1

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  • POLTICA SOCIAL E SERVIO SOCIAL: ELEMENTOS HISTRICOS E DEBATE ATUAL 1

  • 2 . PRAIAVERMELHA . 13 . Segundo semestre 2005

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    PRAI

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    HA

    Estudos de Poltica e Teoria Social

  • 4 . PRAIAVERMELHA . 13 . Segundo semestre 2005

    PRAIAVERMELHAEstudos de Poltica e Teoria Social

    uma publicao semestral do Programa de Ps-Graduao da Escola de Servio Social (PPGSS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), cujo objetivo constituir-se num instrumento de interlocuo com outros centros de pesquisa da rea de Servio Social e Cincias Sociais, procurando colocar em debate as questes atuais, particularmente aquelas relacionadas nova face da Questo Social na sociedade brasileira

    EDITORES

    Carlos Nelson Coutinho

    Giuseppe Cocco

    Jos Maria Gomz

    Jos Paulo Netto

    Maria de Ftima Cabral Marques Gomes

    Myriam Lins de Barros

    COMIT EDITORIAL

    Cleusa dos Santos

    Eduardo Mouro Vasconcelos

    Erimaldo Matias Nicacio

    Francisco Ary Fernandes de Medeiros

    Ivo Lesbaupin

    Janete Luiza Leite Hanan

    Leilah Landim

    Lilia Guimares Pougy

    Maria das Dores Campos Machado

    Maria Helena Rauta Ramos

    Marlise Vinagre Silva

    Nobuco Kameyama

    Sara Nigri Goldman

    Suely Souza de Almeida

    Yolanda Aparecida Demetrio Guerra

    Zuleica Lopes Cavalcanti de Oliveira

    CONSELHO EDITORIAL

    Alcina Maria Martins (ISSS -Coimbra/Portugal)

    Ana Elizabeth Mota (UFPE)

    Danile Kergat (GEDISST - CNRS/Frana)

    Dayse Solari (Univ. Republica La Uruguay)

    Helena Hirata (GEDISST - CNRS/Frana)

    Suen Hessle (Universidade de Estocolmo/Sucia)

    Jean Lojkine (EHESS/Paris)

    Leandro Konder (PUC/UFF)

    Maragarita Rosas (Univ. La Plata/Argentina)

    Maria Lcia Carvalho Silva (PUC/SP)

    Michael Lwy (EHESS/Paris)

    Maria Ozanira Silva e Silva (UFMA)

    Richard Marin (Univ. de Toulouse-le-Mirail)

    Snia Alvarez (EUA)

    Sulamit Ramon (London School of Economics)

    Vicente de Paula Faleiros (UNB) Reinaldo Gonalves (UFRJ)

    Ivete Semionato (UFSC)

    ASSESSORIA EDITORIAL

    Andr Provedel Silva

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    PRAI

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    HA18

    Nmero 18 Primeiro Semestre 2008

    Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJPrograma de Ps-Graduao em Servio Social - PPGSS

    Estudos de Poltica e Teoria Social

  • 6 . PRAIAVERMELHA . 13 . Segundo semestre 2005

    Solicita-se Permuta / Exchange Desired

    Todos os direitos reservados.

    Nenhuma parte desta revista poder ser copiada

    ou transmitida sem a permisso dos editores.

    As posies expressas em artigos assinados

    so de exclusiva responsabilidade de seus autores

    DESIGN GRFICO

    Andr Provedel

    REVISO Maria de Ftima Bastos M. Migliari

    PRAIAVERMELHAEstudos de Poltica e Teoria Social

    Praia Vermelha: estudos de poltica e teoria social /Universidade Federal do Rio de Janeiro. Programa de Ps Graduao em Servio Social - Vol. 1, n.1 (1997) - Rio de Janeiro: UFRJ. Escola de Servio Social.Coordenao de Ps Graduao, 1997-

    SemestralISSN 1414-9184

    1. Servio Social-Peridicos. 2. Teoria Social-Peridicos. 3. Poltica-Peridicos I. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Programa de Ps-Graduao em Servio Social

    CDD 360.5CDU 36 (05)

    UFRJ - Escola de Servio Social

    Programa de Ps-Graduao

    Av. Pasteur, 250 - fundos

    CEP 22290-240

    Rio de Janeiro RJ

    Telefone (21) 3873-5438

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    [email protected]

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    PRAI

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    HA18

    Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJPrograma de Ps-Graduao em Servio Social - PPGSS

    Estudos de Poltica e Teoria Social

    Poltica Social e Servio Social:elementos histricos e debate atual

    Nmero 18 Primeiro Semestre 2008

  • 8 . PRAIAVERMELHA . 13 . Segundo semestre 2005

    PRAIAVERMELHAEstudos de Poltica e Teoria Social

    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

    REITOR

    Alosio Teixeira

    PR-REITOR DE PS-GRADUAO E PESQUISA

    Jos Luiz Fontes Monteiro

    ESCOLA DE SERVIO SOCIAL - ESS

    DIRETORA

    Prof Dr Maria Magdala Vasconcelos de Arajo Silva

    VICE-DIRETOR

    Prof Dr Gabriela Maria Lema Icasuriaga

    COORDENAO DE POS-GRADUAO STRICTO SENSU

    Prof Dr Yolanda Aparecida Demtrio Guerra

    COORDENAO DE POS-GRADUAO LATO SENSU

    Prof Dr Cleusa Santos

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    SUMRIO

    Apresentao

    Assistncia e Poder: revendo uma articulao histricaAna Maria Quiroga

    E a famlia, como vai? Um olhar sobre os programas de transferncia de renda no Brasil sob a tica da famlia Anne Caroline de Almeida SantosCeclia Paiva Neto CavalcantiFernanda Carneiro SoaresJaqueline Pereira Rodrigues

    Servio Social e Subjetividade Erimaldo Nicacio

    Poltica Urbana e Servio Social Maria Carmelita Yazbek

    Forma mercadoria assumida pela terra e submisso da propriedade funo social: uma contradio nas cidades do BrasilRaimunda Nonata do Nascimento Santana

    A nova poltica social no Brasil: uma prtica acima de qualquer suspeita terica?Maria Lucia Teixeira Werneck Vianna

    Sem leno nem aceno de adeus: formao de massas em tempo de barbrie: como a esquerda social pode enfrentar esta questo?Marildo Menegat

    Assistentes sociais e mercado de trabalho nos anos 1970Pedro Simes

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    APRESENTAO

    Este nmero da Revista Praia Vermelha apresenta um conjunto de artigos com um leque muito variado de temas de interesse para o Servio Social e as Cincias Sociais. Temos, assim, uma profuso de olhares que conduzem a novas investidas intelectuais e novos procedimentos analticos que possi-bilitam a compreenso e a interpretao da realidade contempornea.

    No texto da prof Ana Maria Quiroga, intitulado Assistncia e Poder: re-vendo uma articulao histrica, a autora prope reexaminar as anlises sobre o lugar da assistncia na dinmica da sociedade brasileira. Para Quiroga, esta foi historicamente foi concebida como ocupando um lugar subalterno e/ou residual seja na estruturao econmica seja na formao e manuteno das elites polticas no pas. luz de novas contribuies historiogrficas acerca do modelo colonial portugus, implantado em todas as suas colnias, o estudo explora a tese que a assistncia representou um lugar fundante na estruturao da sociedade nacional.

    O ensaio Estado e Polticas Sociais, elaborado pela prof Maria Carme-lita Yazbek, oferece elementos sobre a constituio e desenvolvimento das Polticas Sociais na sociedade capitalista contempornea, particularizando o caso brasileiro e as polticas de natureza scio-assistencial. Desenvolve uma reflexo histrico-conceitual sobre a relao Estado / Polticas Sociais, destacando a emergncia do Estado de Bem Estar Social, contemplando os princpios que o estruturaram e sua crise recente com o processo de acumu-lao do capital globalizado. Apresenta ainda as principais caractersticas histricas da Poltica Social no pas, bem como da Poltica de Assistncia Social, destacando a PNAS e o SUAS.

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    O artigo Nova Poltica Social no Brasil: uma prtica acima de qualquer sus-peita terica?, de autoria da prof Maria Lucia Teixeira Werneck Vianna, extremamente atual, posto que aprofunda o debate sobre a focalizao das polticas sociais no Brasil. Para a autora, as polticas sociais voltaram-se para os pobres e/ ou excludos, assumindo um carter focalizado, fugindo da concepo de seguridade social presente na Constituio de 1988. A reflexo empreendida pretende avivar esse debate, considerando que essa orientao desrespeita a Constituio e, no entanto, vem se afirmando como consensual, revelando esmorecimento dessa discusso, nos crculos acadmicos, em torno do princpio da universalidade.

    Resgata, portanto, a salutar controvrsia em torno de premissas e con-

    ceitos que embasam diferentes estratgias de enfrentamento da pobreza.

    Em E a famlia, como vai? Um olhar sobre os programas de transferncia de

    renda no Brasil sob a tica da famlia, as autoras Anne Caroline de Almeida

    Santos, Ceclia Paiva Neto Cavalcanti, Fernanda Carneiro Soares, Jaqueline

    Pereira Rodrigues analisam o Programa Bolsa Famlia, situando-o no atual

    contexto em que se inserem as polticas sociais, dentro do padro requerido

    pela nova ordem econmica mundial que toma como foco principal a famlia

    enquanto referncia e objeto de interveno desse programa. Nessa perspecti-

    va, discutem as recomendaes dos organismos internacionais que colocam

    a famlia como objeto central de interveno, para em seguida problematizar

    esse enfoque no interior do prprio programa analisado.

    Referenciada nos atuais modos de apropriao, disputas, controle e

    usos da terra no espao urbano brasileiro, a profa. Raimunda Nonata do

    Nascimento Santana em seu ensaio Forma Mercadoria Assumida pela Terra e

    Submisso da Propriedade Funo Social: uma contradio nas cidades do Brasil,

    busca demarcar certas dimenses da contradio estabelecida entre a forma

    mercadoria assumida pela terra e determinados mecanismos poltico-jur-

    dicos de planejamento territorial e poltica habitacional, arquitetados no

    sentido de fazer prevalecer funo social da propriedade urbana. Aborda

    ngulos da complexidade da forma urbana sob o capital, destacando-se o

    mercado de terras e os agentes histricos envolvidos na apropriao, dis-

    putas e controle da terra do ponto de vista fundirio, delineando alguns

    mecanismos poltico-jurdicos quanto garantia de direitos de propriedade

    da terra para morar. Assim, a autora traz novos elementos para pensar os

    desafios da poltica urbana na perspectiva de efetivao da funo social da

    propriedade urbana no Brasil.

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    Em Sem leno nem aceno de adeus - formao de massas em tempo de barbrie: como a esquerda social pode enfrentar esta questo? O prof. Marildo Menegat discute as transformaes do capitalismo nas ltimas dcadas, indicando o surgimento de claros limites -internos e externos - no processo de acu-mulao de capital como parte das tendncias histricas em andamento. Para o autor, estes limites se manifestam como foras de destruio, aqui entendidas como uma aberta regresso barbrie. A partir desta premissa realiza uma reflexo sobre a constituio de um sujeito coletivo que possa produzir a negao do capital na sua fase de auto-dissoluo. Para isto o autor recorre a uma tradio da filosofia poltica que possibilita pensar as formaes de massa e suas formas de ao.

    No artigo intitulado Assistentes sociais e mercado de trabalho nos anos 1970, prof. Pedro Simes apresenta os resultados de sua pesquisa sobre este tema. Aborda o Servio Social nos anos setenta, a partir da PNAD de 1976. Para o autor, duas razes justificam sua anlise referenciada nessa base de dados: a primeira diz respeito a uma ausncia de informaes sobre o perfil profis-sional e sobre o mercado de trabalho dos assistentes sociais neste perodo; enquanto que a segunda refere-se ao fato da PNAD ser a base de dados mais antiga disponvel para consulta. No decorrer do seu trabalho o autor elabora uma base de dados a partir dos microdados da PNAD, contextualiza a pro-fisso at os anos setenta para, em seguida, realizar a anlise do material emprico, fazendo um tratamento estatstico dos dados, identificando as distines internas do perfil dos assistentes sociais e de suas formas de insero no mercado.

    A discusso da subjetividade tarefa de grande importncia para o Servi-o Social considerando suas implicaes na prtica profissional do assistente social. O artigo Servio Social e subjetividade, de autoria do prof. Erimaldo Niccio, revela como o tema das relaes humanas e do sujeito emerge no Servio Social nas abordagens do servio social de casos e servio social clnico. Desvela alguns obstculos para uma abordagem mais sistemtica da questo da subjetividade no debate profissional do Servio Social. Nesse sentido, o autor tenta suprir lacunas no que diz respeito reflexo sobre esse tema de grande relevncia para os assistentes sociais.

    Aps os artigos referentes a esse nmero, encontra-se a resenha elabo-rada pela profa. Isabel Cristina Costa Cardoso sobre a coletnea Cidade, transformaes no mundo do trabalho e polticas pblicas: a questo do comrcio ambulante em tempos de globalizao, organizado pela profa. Maria de Ftima Cabral Marques Gomes, convidando o leitor a ampliar o olhar e os termos

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    do debate sobre o mundo do trabalho e a cidade a partir de uma perspectiva interdisciplinar.

    Certamente neste nmero do peridico do Curso de Ps- Graduao em Servio Social, que tem como eixo de preocupao Estudos de Poltica e Teoria Social, os temas e debates contemplados tanto no plano da teoria como da ao profissional possuem perspectivas variadas que, embora dife-rentes, por vezes se colocam como abordagens complementares das questes aqui discutidas, estimulando, assim, a reflexo e orientando intervenes poltico-profissionais, para a construo de uma sociedade mais justa.

    Maria de Ftima Cabral M. Gomes

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    ASSISTNCIA E PODER: revendo uma articulao histrica

    Ana Maria Quiroga *

    Resumo:Este estudo prope um re-exame das anlises acerca do lugar da assistncia

    na dinmica da sociedade brasileira, onde historicamente foi concebida como

    ocupando um lugar subalterno e/ou residual seja na estruturao econmica

    seja na formao e manuteno das elites polticas no pas. luz de novas

    contribuies historiogrcas acerca da estrutura do modelo colonial portugus

    implantado em todas suas colnias, analisamos a vinculao da assistncia, apre-

    sentada socialmente sob o manto da Misericrdia defendendo a idia de que

    ela representou um lugar fundante na estruturao da sociedade nacional.

    Palavras chave: Assistncia, Poder, Misericrdias

    Abstract:This study proposes a re-examination of the role of social assistance in the

    dynamics of Brazilian society, in which it has historically been conceived as

    occupying a subaltern and/or residual place either inside the economic structure

    or in the formation or maintenance of the countrys political elites. Inspired by

    the new historiography contributions about the structure of the colonial Portu-

    guese pattern implanted in all of its colonies, in this study we analyze the links

    of social assistance, socially appearing under the mantle of Mercy and

    defend the idea that it has represented a foundation role inside the structure of

    the National society.

    Keywords: Social Assistance, Power, Mercy.

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    Este estudo prope um re-exame das analises acerca do lugar da assistn-cia na dinmica da sociedade brasileira, onde historicamente foi concebida como ocupando um lugar subalterno e/ou residual na estruturao econmi-ca ou na formao e manuteno das elites no pas. Usualmente considerada como vinculada aos valores religiosos, caridade crist, e s instituies de ajuda e socorro aos pobres, a assistncia foi relativamente pouco estudada enquanto esfera de acumulao e mobilizao de recursos e formao de elites que se configuram (e atuam freqentemente), em nome dos pobres. Quase sempre envoltas em misses e iderios altrustas, as instituies sociais voltadas para as populaes mais desfavorecidas, so socialmente quase que justificadas por si mesmas. Mesmo academicamente, tornou-se quase um lugar comum entender as origens da assistncia como vinculadas caridade crist tanto em relao s suas instituies sociais como em relao aos agentes responsveis por sua atuao e aos iderios que os mobilizavam. Em nossas concepes tericas, na era moderna, o arcabouo valrico - institucional da assistncia caritativa e filantrpica - reduziu-se perdendo quase que totalmente seu sentido com o desenvolvimento do capitalismo, a constituio e consolidao do Estado e a gradativa consolidao dos direitos sociais, institudos na esfera jurdica e poltica da sociedade.

    A estruturao institucional da assistncia e sua persistente vinculao com as esferas religiosas, mesmo no Estado republicano de direito, foi como que considerada reminiscncia das origens da rea. Talvez valesse aqui uma diretriz bsica dos estudos antropolgicos acerca das sociedades em extino segundo a qual, nenhuma instituio, norma ou prtica social, permanece se no tiver sentido ou funo na nova sociedade.

    Tomando essa diretriz e luz de novas contribuies historiogrficas acerca da estrutura do modelo colonial portugus implantado em todas as suas colnias, retomamos alguns estudos j iniciados em pesquisas anteriores

    ( Ess/Cnpq 20011) sobre o lugar e a vinculao da assistncia com a forma-o da sociedade brasileira em geral, suas principais cidades e a formao de elites locais e nacionais.

    Temos como pressupostos que, longe de representar uma esfera residual e secundria, a assistncia apresentada socialmente sob o manto da Miseri-crdia representou um lugar fundante na estruturao da sociedade nacio-nal. O modelo assistencial implantado no pas, e que perdurou durante todo o perodo colonial at os alvores da republica, foi extremamente amplo.

    Ele marcou grande parte da relao do estado colonial com as deman-das das populaes de suas capitanias e cidades nascentes;

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    Ele representou uma esfera de acumulao patrimonial e transaes creditcias;

    Ele formatou organizaes s quais se filiaram setores dominantes da produo colonial inclusive garantindo-lhes o acesso no s a recursos como prpria administrao dos negcios pblicos;

    Ele colaborou na configurao de uma sociedade estruturalmente desigual, atuando, nos limites de uma realidade perifrica, no contorno das mazelas decorrentes das crises de produo e da prpria economia colonial.

    Todas essas dimenses assumidas pela esfera da assistncia esto a exigir novos estudos e pesquisas que nos conduzam a novas leituras acerca de sua historia (e realidade atual) e seu significado no contexto da manuteno da estrutura social da realidade brasileira, no s em relao pobreza (leitura mais ou menos convencional) mas principalmente em relao formao de elites e sua manuteno nas esferas do poder.

    As novas leituras da assistncia no modelo colonial portugus

    Nos ltimos anos, a historia social e econmica portuguesa tem apre-sentado interessantes e inovadores estudos que jogam novas perspectivas de anlise para a trajetria assistencial na experincia brasileira. De fato, foi principalmente a partir da dcada dos 80 do sculo passado, que se assistiu a um renovado interesse pelo estudo das instituies e sistemas de assistncia que operaram tanto em Portugal como no vasto e descontnuo Imprio colonial portugus.

    A abertura poltica vivida no ps-1974, a reintroduo no pas de estu-dos histricos (muitos dos quais realizados no estrangeiro, durante toda a ditadura salazarista), a revoluo informtica que i0nvadiu a historiografia

    portuguesa2 alm da adoo de novos paradigmas de anlise histrica en-focando aspectos anteriormente desapercebidos ou ignorados, permitiram maior ateno s dimenses polticas e econmicas relativas aos interesses dos doadores de recursos de caridade e s estratgias de poder a eles articu-ladas o que gerou um tipo de abordagem que se afasta muito daquela que os historiadores da primeira metade do sculo, difundiram ( S, 2001:11)

    Destacaramos dois grandes tipos de contribuies historiogrficas:

  • POLTICA SOCIAL E SERVIO SOCIAL: ELEMENTOS HISTRICOS E DEBATE ATUAL 17

    De um lado os trabalhos de S (1997, 2001); Palomo ( 2006); Abreu (2001) Serro (1998) que analisam as estruturas e o papel da assistncia enquanto dispositivo legitimador do poder na sociedade portuguesa transformando-se posteriormente, num dos pilares do modelo colonial, onde alm do apoio s elites locais, as instituies de assistncia configuravam-se como um dos elementos que marcava a presena da Coroa e de seus representantes nas diferentes sociedades coloniais ( S, 1997).

    O segundo grupo de estudos relacionados historia econmica portu-guesa refere-se ao papel das instituies religiosas em geral e das Misericr-dias especficamente, na movimentao de crditos e gesto de patrimnios configurando um particular sistema bancrio onde as normatizaes cannicas contra o manejo religioso do dinheiro, a usura e o emprstimo a juros ( Le Goff, 2006) foram justificados pela dimenso de colocar-se a

    servio das boas causas (Amorim,2006, Pardal, 2002, Matoso, 2004)3

    No primeiro grupo, tem-se os trabalhos daqueles historiadores que, sem desprezar as dimenses religiosas que presidiam a formao e a ao de organizaes leigas (Irmandades, Corporaes e Confrarias) e instituies assistenciais, do a essas dimenses novas interpretaes. S ( 1997 e 2001) considera que as Instituies de Caridade eram, antes de tudo, arenas cruciais nas lutas pelo poder ao nvel local, onde sua presena e atuao ofereciam oportunidade de afirmao social, prestigio e privilgios s fa-mlias das elites e aos indivduos que delas participavam. Existentes desde o perodo medieval, essas Instituies sofreram um processo de reforma,

    no incio do perodo moderno4, quando sua constituio e funcionamento foram articulados e regulamentados pelo poder rgio. Neste processo, um tipo especfico de confraria foi eleito como instituio modelar de assistncia, tanto na Metrpole, como nas sociedades coloniais: As Misericrdias.

    Ainda que socialmente apresentadas como instituies pias de assistncia aos mais pobres, as Misericrdias apresentavam uma configurao institu-cional onde os privilgios representavam um de seus fatores estruturantes. Os privilgios concedidos s Misericrdias funcionaram sempre como um importante estmulo a sua criao e desenvolvimento, ultrapassando em muito a importncia de aspectos espirituais ou meramente devocionais (S, 2001:39)

    Os privilgios e regalias referiam tanto s organizaes, como a seus membros participantes, com nfase em seu grupo dirigente (os Membros da Mesa: provedores, escrives, mordomos e tesoureiros). Tratava-se de van-tagens econmicas e sociais para os irmos; condies preferenciais para o

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    exerccio das atividades assistenciais e privilgios para angariar recursos. Assim, desde a coleta oficial de esmolas (com pedidores autorizados), at a condio de testamenteira de nobres e funcionrios coloniais, a explorao de barcos de passageiros, passando pelo depsito e emprstimo de dinheiro a juros ou o recebimento de rendas e foros de bens imveis, as Misericrdias diversificaram suas fontes de rendimentos de tal forma que, grande parte delas, constituram slidos patrimnios fundirios rurais e urbanos.

    Entretanto o aspecto mais importante destacado pelos estudiosos portu-gueses a importncia atribuda pela Coroa na criao dessas organizaes no s em todas as vilas e cidades do Portugal Metropolitano como nas regies ultramarinas, institucionalizando-as como instncias que monopoli-

    zaram5 o sistema de assistncia pblica; constituram-se como instrumentos moralizadores das comunidades e como ncleos de poder, garantindo assim uma partilha de poderes e uma interlocuo privilegiada entre o poder central e os interesses locais. (Abreu, 2001)

    Palomo (2006) no se refere especificamente s Misericrdias e aos siste-mas da assistncia, mas ao processo por ele denominado de confessionalizao caracterstico de Portugal da Contra Reforma que abrange o uso da religio pelo poder poltico, na era moderna, dada sua ampla interiorizao ao nvel dos diferentes territrios e suas populaes. A confessionalizao significou tanto o uso da argumentao religiosa pelas autoridades seculares, como a progressiva incorporao da Igreja ao corpo do Estado e o uso das estrutu-

    ras eclesisticas como instrumento de comunicao com os sditos.6 Alm do carter poltico-ideolgico nitidamente conservador de tal processo, as

    dimenses confessionais7 constituram-se em um dos elementos fundamentais para entender o carter e as mltiplas funes assumidas pelas instituies de assistncia, simultaneamente leigas e religiosas, articuladoras de uma intrincada relao pblico-privado, relao essa que, a despeito das tentativas posteriores de regulao estatal da filantropia realizadas pelos Estados republicanos, deixaram marcas ainda possveis de serem observadas, nos dias atuais.

    Um segundo grupo de estudos contemporneos da historiografia portu-guesa, a nosso ver bem menos conhecidos no Brasil e na rea da assistncia, constitudo por trabalhos ligados perspectiva de uma histria econmica das instituies religiosas, onde essas, em geral e as Misericrdias, em par-ticular so analisadas pela tica de sua vinculao s prticas de emprs-timos e movimentaes creditcias, alm das anteriormente j conhecidas acumulaes patrimoniais. Obviamente, os estudos a que tivemos acesso,

  • POLTICA SOCIAL E SERVIO SOCIAL: ELEMENTOS HISTRICOS E DEBATE ATUAL 19

    realizados nos anos 90, analisam os registros contbeis (freqentemente precrios) existentes em algumas das principais Misericrdias do pas de forma a avaliar no s o quantitativo de capital a juros emprestado e recuperado, como identificar a provenincia social de grande parte dos devedores. (Pardal, s/d)

    A rigor, a exigncia de registros (tombamentos) do patrimnio e das rendas das Instituies de Assistncia fizeram parte da interveno rgia quando da reforma da Assistncia no pas, ao lado de outras medidas ra-cionalizadoras: instaurao de contabilidade de receitas e despesas, reagrupamento de instituies e hospitais, nomeao de provedores e administradores, ampliao da escala de atendimento, manuteno de bens e equipamentos doados em testamentos etc. Com isso visava-se a um enquadramento da atuao das instituies aos parmetros definidos pelo poder central, melhorando a gesto institucional como resposta onda de denncias de desvio de bens e recursos destinados aos pobres em proveito de particulares, administradores e confrades. Essas medidas alm de precariamente respeitadas, representaram um reforo do poder senhorial nas diferentes localidades, uma vez que a nomeao de dirigentes dos estabelecimentos foi freqentemente atribuda a indivduos aliados da Coroa.

    Vrios estudos realizados tanto em relao Metrpole quanto nas reas nas quais as Misericrdias foram transplantadas como coadjuvantes da ocupao colonial (Pardal, s/d; Amorim, 2002, 2006; S, 2001; Abreu, 2001) so unnimes na indicao do duplo papel desempenhado por essas Instituies: por um lado associavam irmos que fizeram fortuna volta de prticas de juros...Por outro as prprias confrarias, para sustentao de seus legados e misses, praticavam emprstimos. Assim, as instituies religiosas e para-religiosas tornaram-se palco de prticas econmicas dos homens de seu tempo (Amorim,2002:1).

    Examinando os dados dos registros de entradas e sadas de recursos na Misericrdia de vora, Pardal ( s/d) chega a concluses semelhantes aos demais estudos realizados por esse conjunto de autores, quais sejam: as sa-das foram sempre superiores aos retornos sendo generalizado o atraso ou o no-pagamento tanto dos juros como do principal; o desequilbrio entre o dinheiro emprestado e recuperado comprometia a sustentabilidade das instituies o que exigia freqentes apelos ao poder central no sentido da transferncia de novos subsdios alm de um incremento de novas coletas junto populao das reas sob jurisdio das Instituies e fora delas. Quanto composio do crdito, o maior volume de capital emprestado

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    relacionava-se ao clero (secular e regular) alm de homens de negcios e da elite local ( muitos deles tambm pertencentes prpria administrao das Misericrdias analisadas).

    As Misericrdias e a experincia brasileira

    A implantao das Misericrdias no Brasil enquanto irmandades e con-frarias e como responsveis institucionais pela administrao dos servios das Santas Casas, acompanham o processo colonial do pas estendendo sua presena posteriormente, durante todo o Imprio quando iniciam seu decl-nio. Este se caracterizar pela gradativa perda da amplitude de suas funes e sua substituio por outras instituies pblicas e/ou privadas.

    De qualquer forma, as Misericrdias no Brasil foram contemporneas

    da fundao de numerosas vilas e cidades em todo o territrio nacional.8 Na verdade, a fundao das Misericrdias nos territrios ultramarinos se-guiu dois grandes modelos: O primeiro , quando acompanhou a instalao dos colonizadores em espaos ainda mal dominados (caso da ndia, Norte da frica e Oriente). O segundo, como aconteceu no Brasil e na costa afri-cana, a fundao se deu s depois dos territrios terem sido valorizados e economicamente rentabilizados, com conseqente implantao de uma estrutura administrativa e institucional do colonizador. (Abreu, 2001) De qualquer forma, mais que uma mera instituio assistencial, as Miseri-crdias integraram a estruturao do modelo colonial, sendo um de seus pilares. O patrocnio real e a moldagem institucional ( seguindo o modelo de Lisboa) deram destaque e protagonismo s Misericrdias entre as demais

    organizaes locais.9

    A real amplitude de sua ao nas diferentes reas da realidade brasileira ainda tema a ser aprofundado. De fato, para o territrio metropolitano, e parte dos lugares de alm-mar, h uma enorme quantidade de estudos,

    abrangendo quase todas as cidades e vilas que contaram com tal instituio.10 No caso do Brasil, os estudos so mais esparsos sendo fundamentais, por sua riqueza de dados, os de Russel-Wood (1981) e o de Mesgravis (1976) sobre

    as Santas Casas de Salvador e de So Paulo11. Recentemente dois estudos realizados na Ps Graduao em Histria da Unicamp retomam as anlises da Santa Casa: O primeiro (Rocha, 2005) analisa o papel da Irmandade da Santa Casa de Campinas na evoluo urbana e econmica da cidade e do complexo cafeeiro no Oeste paulista, na transio do escravismo para

  • POLTICA SOCIAL E SERVIO SOCIAL: ELEMENTOS HISTRICOS E DEBATE ATUAL 21

    o trabalho livre. Aqui analisada a participao da Instituio no s no atendimento das demandas sociais postas pela transio capitalista na rea, como sua relao com os grupos dominantes locais. O segundo, Gandelman (2005), analisa os f luxos de mercadorias, populaes e valores morais nas duas pontas do Atlntico- Salvador e Rio de Janeiro- no Brasil e Porto , em Portugal enfocando os recolhimentos femininos realizados pelas Santas Casas das trs localidades.

    Deve- se destacar ainda um outro estudo acerca da Santa Casa do Rio de Janeiro, realizado por Nogueira Pinto e Hermely (2001) no seio da pesquisa Modernizao e Novas Configuraes do Social. Este, ainda no publica-do, analisa a Santa Casa do Rio de Janeiro como um primeiro modelo de interveno filantrpica, no Brasil, e sua articulao com a forma histrica que lhe seguiu, a chamada filantropia higienista.

    Em todas essas pesquisas alguns aspectos emergem de forma ntida. O primeiro deles a enorme complexidade apresentada por essas insti-tuies de assistncia o que resultaria redutor analis-las apenas por uma tica meramente religiosa ou de simples organizaes de caridade. Alis, quase todos os estudos, tanto em relao s Misericrdias do reino, como, e principalmente, s implantadas nas colnias, destacam as tenses entre as esferas eclesisticas e as Irmandades e suas instituies. bem verdade que, no empreendimento colonizador, a Coroa portuguesa teve a Igreja Catlica como companheira de viagem uma vez que a expanso da f e a converso

    do gentio constituram em operadores de sua legitimao.12 Por outro lado, o apoio rgio ( e de seus representantes locais) e as regulaes estatutrias e de funcionamento por eles criadas, constituam-se em formas das Instituies

    das Misericrdia escaparem aos controles eclesisticos.13

    De qualquer forma, as relaes entre as Misericrdias e as estruturas de poder so absolutamente incontestveis seja em relao ao poder real que as constitua e legitimava, seja em relao aos poderes locais dos senhores. Neste mbito, duas grandes relaes devem ser destacadas: uma de carter poltico organizativo e outra de carter mais nitidamente econmico. No primeiro caso, as Misericrdias, como Irmandades prioritrias dentre as demais, foram base de organizao para os Homens de Bem das localidades nas quais se

    instalavam.14 As regras de admisso indicavam, a rigor, o mltiplo sentido assumido pela expresso Homens de Bem. Exigia-se do irmo: ser limpo de sangue; ser livre da toda infmia; ser de bom entendimento sabendo ler e escrever; ser abastado de meios de modo a que possa acudir ao servio da Irmandade, sem cair em necessidade de aproveitar-se dos bens que lhe

  • 22 . PRAIAVERMELHA . 13 . Segundo semestre 2005

    corra por suas mos. Tais regras tinham implcitas vrias excluses que expressavam preconceitos de classe, credo e cor e, na prtica, terminavam por limitar o acesso aos possveis candidatos Irmandade ( principalmente sua Mesa Diretora) o que resultou numa concentrao entre pessoas com

    capacidade econmica e reconhecido prestigio social.15

    Desta forma e em termos gerais, as irmandades da Misericrdia foram, na expresso de Russel-Wood (1981) organizaes sociais de irmos aristo-crticos, catlicos e brancos que tiveram nelas (ou atravs delas) acesso a outras instncias tanto da administrao colonial quanto do poder poltico

    dos Conselhos e Cmaras locais.16 importante destacar que, como se deu em outras regies do Brasil e do Imprio portugus, buscando o maior grau de proteo possvel foram eleitos como provedores os governadores gerais e vice reis (Russel-Wood, 1981:89). Fechava-se assim o crculo entre a direo da Instituio e o poder poltico local e colonial.

    Em relao s articulaes entre as Instituies de Assistncia e as esferas da economia colonial os dados apresentados nas diferentes pesquisas, so de tal forma abundantes, que permitiriam um estudo a parte. Nos limites do presente artigo, importante salientar em primeiro lugar, que a mera observao das datas de fundao das diferentes Santas Casas indicativa de sua concomitncia com os diferentes ciclos econmicos vividos no pas. Aqui, como em Portugal, onde o fortalecimento da monarquia mediante a centralizao do poder refletiu-se no campo assistencial, a Irmandade da Misericrdia ao assumir todas as obras de assistncia social teve garantido alguns monoplios como os da coleta de doaes em dinheiro e outros bens dirigidos aos pobres, enfermos e desvalidos e a execuo de testamentos e heranas. Alm disso, intermediava valores e penses enviados pelos colonos a seus parentes na metrpole; fazia emprstimos de dinheiro a juros e principalmente, financiava empreendimentos de particulares prin-

    cipalmente ligados aristocracia agrria e demais homens de negcios.17

    Coincidentemente muitos desses indivduos tambm participavam da Mesa Diretora fundindo (ou subordinando) seus interesses particulares aos da Instituio e vice versa.

    Uma ltima relao merecedora de destaque entre as instituies de assistncia e a estrutura de poder poltico e econmico aquela estabelecida com a escravido.

    Uma das contradies fundamentais do projeto colonizador dos estados europeus era precisamente a transio de relaes servis para o assalaria-mento, em suas metrpoles, coexistindo com a instaurao e manuteno

  • POLTICA SOCIAL E SERVIO SOCIAL: ELEMENTOS HISTRICOS E DEBATE ATUAL 23

    de relaes de escravido, em suas colnias. No caso brasileiro, as formas de trabalho compulsrio (escravismo) inicialmente pensadas em relao aos indgenas, foi logo substituda pelo trabalho negro cujo trfico ali-mentou um dos setores mais rentveis do comrcio colonial (Novais, 1990). Como sistema de permanncia mais longa dentre todas as naes do Novo Mundo, a escravido ultrapassou o perodo colonial e permaneceu durante todo o Imprio, marcando profundamente a configurao da sociedade brasileira, a constituio de seus sujeitos sociais e as prprias noes de cidadania.(Carvalho,2007)

    As articulaes entre a estrutura escravista e as Misericrdias foram relativamente pouco contempladas nos estudos por ns analisados alm, obviamente da: excluso de negros e mestios no acesso Irmandade e a seus servios hospitalares e fnebres (Russel-Wood, 1981 e Mesgravis, 1976); da excluso de rfs de cor nos recolhimentos femininos (Rocha, 2005); da obrigao de pagamento do hospital pelos donos de escravos (Rocha,2005) e do uso de escravos em seus servios, alm da participao das Misericrdias na venda de escravos herdados pela instituio.

    J no perodo do Imprio, quando ganham fora o debate e as mobiliza-es abolicionistas, a Irmandade, instituda por homens ligados direta ou indiretamente ao trabalho escravo, assume uma neutralidade em relao ao tema ( Rocha,2005) apesar de seu acesso s esferas legislativas das provncias e ao prprio governo imperial.

    Na verdade, as Misericrdias aps a independncia, libertam-se das regulaes do reino e de sua congnere lisboeta, mas no de sua umbilical relao com o poder. Passa agora para o Estado Imperial Brasileiro do qual seu principal instrumento de interveno assistencial. Mudam as elites econmicas que dela participam, novas demandas de atendimento lhe so feitas agora frente a uma sociedade que, permanecendo extremamente hie-rarquizada, se complexifica ao longo do sculo XIX e no incio do sculo XX. Novas filosofias, principalmente relacionadas ao atendimento mdico e administrao hospitalar, passam a questionar o trabalho at ento re-alizado pelas Santas Casas.( Rocha,2005; Nogueira Pinto e Hermely,2001)

    Durante todo o sculo XX, essas instituies (e seus desdobramentos) que, por mais de 300 anos, hegemonizaram a rea assistencial vo se debater num surdo trabalho de manuteno de seu acesso aos recursos pblicos e aos privilgios legais num processo cujas configuraes e conseqncias ainda merecem maiores estudos.

  • 24 . PRAIAVERMELHA . 13 . Segundo semestre 2005

    Breves concluses: necessidade de novos estudos histricos e atuais

    Seria extremamente simplista e anacrnico estabelecer, sem maiores investimentos de pesquisa, ligaes entre as instituies (e os perodos aqui contemplados) e a realidade atual da assistncia no pas. Talvez as melhores concluses a que podemos chegar, sejam aquelas passveis de serem extradas como hipteses para novos estudos, acerca das articulaes entre a assistn-cia, as esferas do poder poltico e as elites econmicas, hoje to diversificadas. Sem dvida, a complexidade institucional que todas essas esferas assumem atualmente, torna mais intricada as relaes envolvendo economia, poder e religio, historicamente de difcil desvendamento. No entanto essas trs reas continuam extremamente presentes e ditando rumos no s ao nvel da sociedade (o que seria mais ou menos bvio considerando a importncia de cada uma delas) mas principalmente, ao nvel da assistncia social, mesmo enquanto poltica pblica.

    A rigor, ao longo de toda a trajetria deste pas, esses modelos histricos foram transformando- se ou sendo reeditados nas configuraes institucio-nais e de financiamento de grandes (e pequenas) instituies assistenciais. O acesso ao poder e s suas instncias decisrias permaneceu (e permanece) sendo eloqente a recente constituio do Conselho Nacional da Assistncia Social, (como um dos rgos deliberativos mximos da poltica pblica no pas ) onde a representao eleita pelas entidades prestadoras de servios constituda apenas por organizaes ligadas ao campo religioso. Alm disso, estudos recentes realizados pelo IPEA (2007) acerca dos recursos pblicos canalizados atravs de imunidades e isenes de contribuies tributrias (Certificado de Entidades Beneficentes de Assistncia Social- Cebas) demonstram que apenas 13% so dirigidos para a rea de assistncia social que totaliza 60% do nmero de entidades contempladas. As organizaes privadas de educao e sade, minoritrias numericamente, so as que detm 87% dos benefcios concedidos em nome do atendimento aos mais pobres e vulne-rveis da sociedade.

    Sem dvida, hoje a histrica relao entre assistncia e poder envolve outros atores sociais e passa por outros caminhos, labirintos e atalhos cujas configuraes esto a exigir novos e urgentes estudos e pesquisas.

  • POLTICA SOCIAL E SERVIO SOCIAL: ELEMENTOS HISTRICOS E DEBATE ATUAL 25

    ABREU, Laurinda. O papel das Misericrdias dos lugares de alm mar na formao do Imprio Portugus Revista Histria, Cincias, Sade- Manguinhos, vol. 8 n 3, Rio de Janeiro, 2001

    AMORIM, Ins. Patrimnio e Crdito: Misericrdia e Carmelitas de Aveiro ( Sec. XVII e XVIII) In Anlise Social, vol.XII ( 180), Lisboa, 2006

    ____________. Gesto patrimonial e estruturas creditc ias: rumos e directr izes em duas instituies: Misericrdia de Aveiro e o Convento de Freiras Carmelitas de Aveiro, no sculo XVIII XXII Encontro APHES Empresas e Instituies em Perspectiva Histrica Universidade de Aveiro PT. Novembro de 2002

    CARVALHO, Jos Murilo. Cidadania no Brasil: o longo caminho- 9 Ed.- Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2007

    CORREIA, Fernando da Silva. Estudos sobre a histria da Assistncia. Origens e formao das Misericrdias portuguesas, Lisboa, 1944

    GANDELMAN, Luciana Mendes. Mulheres para um Imprio: rfs e caridade nos recolhimentos femininos da Santa Casa da Misericrdia ( Salvador, Rio de Janeiro e Porto Sec.XVIII) Tese de Doutorado: Depto Histria/UNICAMP, 2005

    IPEA. Polticas Sociais: Acompanhamento e Anlise, n 14, Braslia, fevereiro de 2007

    LE GOFF, Jacques. A Bolsa e a Vida: Economia e Religio na Idade Mdia, Lisboa: Teorema, 2006

    MATOSO, Joo. Jogos Sociais: Histria e ActualidadeIn Os Jogos Sociais da Santa Casa da Misericrdia de Lisboa: Ao Servio das Boas Causas, Lisboa: Museu So Roque/Santa Casa, 2004

    Referncias bibliogrcas

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    S, Isabel dos Guimares. Quando o rico se faz pobre: Misericrdias, caridade e poder no Imprio Por tugus 1500-1800;- Lisboa:Comisso Nacional para as Comemoraes dos Descobrimentos Portugueses, 1997

    _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ .As M iser i c rd ias Portuguesas de D. Manuel a Pombal, Lisboa: Livros Horizonte, 2001

    SERRO, Joaquim Verssimo A Misericrdia de Lisboa: Quinhentos Anos de Histria, Lisboa: Livros Horizonte, 1998

  • 26 . PRAIAVERMELHA . 13 . Segundo semestre 2005

    *Assistente Social, Doutora em Antropologia Social, Professora do Programa de Ps- Graduao em Servio Social-PUC-RIO

    1. Pesquisa Modernizao e novas conguraes do social realizada entre 1999-2001 onde foram analisadas a lantropia religiosa, a lantropia higienista e as novas lantropias empresariais inseridas nos movimentos de responsabilidade social. (ESS/CNPq, 2001)

    2. No que anteriormente dcada dos 80 inexistissem estudos acerca das Misericrdias em Portugal e nas Colnias. Mesmo no Brasil, Russel Wood pesquisa sobre a Santa Casa da Bahia, na dcada dos 60 e Laima Mesgravis, sobre a Santa Casa de So Paulo (1976). O que vai modicar-se nos ltimos anos do sculo 20 em Portugal, a possibilidade de acesso e o levantamento sistemtico de livros de contas, atas de reunies e srie de dados nominais, entre outras fontes, que permitiram o tratamento de informaes anteriormente impossvel de abordar. (S, 2001:11)

    3. Desde o ano 1783, quando foi instituda, at os dias de hoje a Santa Casa de Misericrdia de Lisboa administra as diferentes loterias denominadas jogos sociais ao servio das boas causas. Segundo Matoso, Esta onda de prosperidade que atualmente ainda se observa, onde se destacam por um lado as lotarias clssicas e, por outro lado, o Totoloto e Loto 2, o Totobola,e Totogolo...pode muito bem passar pela consolidao de uma nova conscincia coletiva de solidariedade, resultante da sociedade passar a encarar estes jogos, no como forma de alguma entidade pblica ou privada obter lucro, mas como meio de minorar carncias econmicas e sociais. (Matoso, 2004: 14)

    4. Como em outras partes da Europa, em Portugal no contexto em que as cidades comearam a sofrer a presso de uma populao crescente e de um auxo de mendigos, assiste-se a uma reao generalizada por parte das elites no sentido de disciplinar a caridade privada, e reorganizar a assistncia de forma a dar resposta a uma presso cada vez maior dos pobres sobre os ricos e sobre as Instituies locais.... A mesma escalada da vagabundagem e mendicidade que esteve na origem das grandes reformas europias da assistncia, em Portugal desenvolveu-se uma forma particular de tornar teis indivduos que no exerciam qualquer atividade: direcion-los para os novos espaos alm-mar, como potenciais militares ou colonizadores . Assim muito antes da Inglaterra e da Frana, e, diferentemente do encerramento nas grandes instituies de trabalho forado -as Workhouses inglesas e francesas, esses grupos eram utilizados como colonizadores onde as penas de degredo ou o embarque como soldados para os novos territrios,eram formas de redimi-los (S, 1997:56)

    5. O sistema de monoplios era de resto o modo normal de conceber a atividade econmica, e o monoplio rgio, o modo como os reis entenderam a empresa colonial. No nos espantar portanto que o sistema se aplicasse assistncia, e s Misericrdias frente s demais confrarias concorrentes(S, 2001:61)

    6. Palomo fundamenta-se em autores alemes da histria poltica europia (devedores de Norbert Elias) que estudam os processos (simultaneamente polticos, sociais, religiosos e culturais) promovidos, a partir dos estratos superiores da sociedade, no sentido de regrar as relaes sociais, cada vez mais complexas a partir da era moderna. Distingue o disciplinamento, com caractersticas mais coercitivas, da confessionalizao fundada em dimenses mais pedaggicas e persuasivas de interveno do poder religioso na doutrinao e dominao de instituies sociais e das prprias populaes de is.

    7. Segundo o autor, as diferentes tradies religiosas da Europa Ocidental (o catolicismo, o luteranismo e o calvinismo) utilizaram processos equivalentes de confessionalizao.

    8. No h muita preciso quanto s datas de fundao de numerosas Misericrdias no Brasil. A honra da primeira fundao disputada pelas Capitanias de S. Vicente e de Pernambuco. Os historiadores geralmente concordam em que o galardo deve caber Irmandade de Santos, fundada por Brs Cubas, em 1543. (Russel- Wood,1981:30). H entretanto divergncias em relao a outras datas: Olinda(1539), Bahia (1549); Espirito Santo (1551); So Paulo (1599?); Ilheus (1564); Rio de Janeiro (1582); Paraba

    Notas

  • POLTICA SOCIAL E SERVIO SOCIAL: ELEMENTOS HISTRICOS E DEBATE ATUAL 27

    (1585). J no sculo XVII foram fundadas: So Luis (1622); Belm (1650); Itamarac (1611); Igarassu (1629); alm de Recife, Porto Seguro e Sergipe, sem datas precisas mas indicadas como fundadas nos ns do sculo XVII (Mesgravis,1976). No sculo seguinte, acompanhando o deslocamento da economia colonial em direo s Minas Gerais e ao centro sul brasileiro tem-se: Ouro Preto (1738); So Joo Del Rei (1783);Diamantina (1790); Santo Amaro(1778);Penedo (1767);Campos dos Goitacazes(1792);e nalmente, j no sculo XIX, Sabar(1812); Parati (1822);Porto Alegre (1814); Sorocaba (1803) Campinas (1871) cf. Gandelmam (2005) e Rocha, 2005

    9. Embora o sentimento de religiosidade e a tradio portuguesa transposta para o Brasil tenham promovido a criao de vrias Irmandades voltadas para a prtica das cerimnias litrgicas e festas religiosas, algumas dedicando-se tambm a obras de assistncia, como a Irmandade da Candelria que em 1763 assume a administrao do Hospital dos Lzaros e em 1881 cria um asilo para infncia desvalida, nenhuma se destacou tanto quanto a Irmandade da Misericrdia que, em razo da amplitude de suas prticas assistenciais, adquiriu rapidamente grande relevo no contexto da nova sociedade (Nogueira Pinto e Hermely, 2001:1.

    10. S (2001) apresenta uma amplssima bibliograa acerca de diferentes tipos de estudos e pesquisas sobre as Instituies em Portugal e nas colnias. Para essas, com nfase na ndia, o trabalho de Abreu (2001) fundamental.

    11. Sobre a Santa Casa da Misericrdia do Rio de Janeiro, dois livros constituem-se em referncia bsica: o de Flix Ferreira, A Santa Casa da Misericrdia Fluminense, e o de Vieira Fazenda, Os Provedores da Santa Casa da Misericrdia da Cidade de S. Sebastio do Rio de Janeiro. Embora partam das mesmas fontes - os arquivos da Santa Casa do Rio - cada um privilegia aspectos diferentes da vida da instituio: o primeiro enfatiza as crises administrativas e nanceiras, que ocorrem durante o sculo XVIII; o segundo d nfase grandeza de seus provedores. Enquanto Flix Ferreira, embora reconhecendo a importncia da Santa Casa e os relevantes servios de assistncia por ela prestados, assume uma perspectiva crtica, Vieira Fazenda assume uma perspectiva mais ufanista. Trata-se, no entanto, de obras complementares, j que cada uma oferece informaes relevantes sobre a mesma instituio. (Nogueira Pinto e Hermely, 2001)

    12. Sem dvida, o entrelaamento entre a Coroa portuguesa e a Igreja Catlica e o processo de confessionalizao (Palomo, 2006) disseminado tanto no reino como nos territrios conquistados, so bastante conhecidos.No que se refere expanso colonial, a responsabilidade pela organizao religiosa das terras obrigava a Coroa portuguesa a nanciar as estruturas eclesisticas que se implantavam nos territrios, dotando Igrejas paroquiais e conventos, concedendo esmolas a frades e missionrios, pagando vencimentos aos clrigos. (Abreu,2001) evidente tambm que a monarquia tinha interesse nessa articulao, caso contrrio no a nanciaria.

    13. As Irmandades em geral, e as da Misericrdia em particular freqentemente rejeitavam a tutela eclesistica. Defendendo as prerrogativas de associaes leigas com autonomia, eram apoiadas pelo Rei que contrabalanava, atravs de alianas com as irmandades, o crescimento exagerado do poder do clero e seus inmeros privilgios.(Nogueira Pinto e Hermely, 2001)Tais tenses atingiram seu pice no sculo XVIII, e mais tarde na gesto Pombalina, quando os bispos foram lembrados que no deveria haver lugar para misturas de jurisdio, e nas Misericrdias mandavam os mesrios e o Rei(Abreu,2001)

    14. Os primeiros estatutos (denominados Compromissos) tinham como princpio a igualdade entre os seus membros, exigindo-se apenas que o provedor fosse pessoa honrada, de autoridade, virtuoso, de boa fama e muito humilde e paciente e que entre os irmos no houvesse distino de classe, apenas que tivessem boa fama e honestidade. O princpio da igualdade, porm, foi rapidamente corrompido, pois logo nos Compromissos posteriores introduziram a diviso dos irmos em duas classes: os nobres e os mecnicos, assessorados pelos letrados, sendo que apenas a primeira categoria podia fazer parte da Mesa diretora da irmandade, formada pelo provedor, escrivo, mordomos, tesoureiro e denidores. (Mesgravis, 1976 apud Nogueira Pinto e Hermely, 2001).

  • 28 . PRAIAVERMELHA . 13 . Segundo semestre 2005

    15. O prestgio social que a Irmandade conferia a seus membros constitua uma das grandes motivaes para a ela pertencer. Os privilgios concedidos aos membros da Irmandade, as exigncias feitas aos candidatos admisso que davam um cunho nobilizante aos que dela participavam, principalmente se pertenciam primeira categoria, a dos que podiam chegar Mesa, agiam como estimulante para sua organizao e continuidade. (Mesgravis, 1976).

    16. Nos diferentes territrios ultramarinos, em termos gerais assistiu-se a um cerrar de leiras por parte de um reduzido nmero de indivduos que, quase sem alternncia, pelos benefcios que da decorriam, serviam como mesrios das Santas Casas e como vereadores municipais(Abreu,2001)

    17. Assim, o nanciamento da colheita de acar, a compra de escravos, a compra de gado, ou simplesmente a aquisio de uma casa na cidade eram razes para se recorrer aos emprstimos na Instituio. (Russel-Wood, 1982:49).

  • POLTICA SOCIAL E SERVIO SOCIAL: ELEMENTOS HISTRICOS E DEBATE ATUAL 29

  • 30 . PRAIAVERMELHA . 13 . Segundo semestre 2005

    E A FAMLIA, COMO VAI? um olhar sobre os programas de transferncia de renda no Brasil sob a tica da famlia

    Anne Caroline de Almeida Santos 1

    Ceclia Paiva Neto Cavalcanti 2

    Fernanda Carneiro Soares 3

    Jaqueline Pereira Rodrigues 4

    Resumo:A partir da crise capitalista de 1970 um novo padro de proteo social passa

    a ser exigido visando a sua adequao nova ordem econmica mundial. No

    Brasil a adoo desses preceitos ditados pelos organismos internacionais data

    dos anos 1990 e signica uma ruptura com o processo de constituio de um

    sistema de proteo social ensejado pelos princpios constitucionais de 1988. No

    tensionamento entre o projeto democrtico e o privatista de proteo social, as

    polticas sociais brasileiras tm sido conduzidas de modo a fazer prevalecer esse

    ltimo. Nesse contexto, a famlia redescoberta como fonte privada de proteo

    social, passando a ser alvo preferencial das polticas de combate pobreza,

    expressas nos programas de transferncia de renda. Este artigo traz algumas

    reexes em torno desses programas sob a perspectiva do direito e no que se

    refere centralidade na famlia.

    Palavraschave: proteo social, seguridade, neoliberalismo, poltica social,

    famlia.

  • POLTICA SOCIAL E SERVIO SOCIAL: ELEMENTOS HISTRICOS E DEBATE ATUAL 31

    Abstract:

    After the capitalist crisis of 1970, a new model of social protection has beginning

    to attend to require of the new world economic order. The adhesion at these

    orientations for Brazil tempted the breaking with the Constitutions precepts.

    So the denition of the social politic in the Brazil is conducting through two

    adverse projects: the democratic and the private. Until the moment the last has

    prevailing. In this context the family is recovered like the principal institution

    of the welfare. The family has been the public main of the poverty confronts

    politics too. This article analyses how the family has been treat in the rents

    programs under perspective of the right.

    Keywords: social protection, security, liberalism, social politic, family

    Introduo

    famlia sempre coube o papel de proteo e socializao primrias, de anteparo social, provedora de cuidados aos seus membros, sendo consi-derada a instncia natural de atendimento s necessidades sociais. Com a institucionalizao da proteo social e a constituio do welfare state, essa funo tendeu a ser assumida pelo Estado, pelo menos nos pases que expe-rimentaram a constituio de um sistema de proteo social mais amplo, passando este a assumir a responsabilidade pelo bem-estar da sociedade, compartilhando-a com as famlias quando a questo se relacionava mater-nidade, infncia, velhice, doena. J nos pases que, segundo a classificao de Esping-Andersen, assumiram um modelo conservador ou liberal, ou ainda naqueles que no experimentaram modelos estruturados de bem-estar, como os perifricos, manteve-se uma compartilha do Estado com as famlias e a sociedade em geral na proviso social, resguardando-lhes o papel tradicional que historicamente lhes coube.

    Com a crise do capital nos anos 70 e a conseqente crise do welfare state, os canais tradicionais de proviso de bem-estar, como a famlia e a sociedade, so revalorizados dentro da perspectiva de mercantilizao e assistencializa-o da proteo social, encampada pelo iderio neoliberal hegemnico.

  • 32 . PRAIAVERMELHA . 13 . Segundo semestre 2005

    Essa orientao no Brasil, onde historicamente as famlias sempre as-sumiram o protagonismo na proviso das necessidades dos seus membros, faz com que a tradio j existente, assuma feies modernas

    Nesse contexto se percebe uma nfase na assistncia, condizente com as diretrizes neoliberais, e coincide com o momento em que a famlia passa a ocupar centralidade nos programas governamentais.

    Cumpre salientar que a priorizao da famlia como unidade estrutu-radora das polticas no novidade, embora parea haver um deslocamento na forma e nos objetivos que a tomam como referencial diferentemente dos que orientaram sua abordagem no passado. Tambm preciso reconhecer que existem diferentes perspectivas na contemporaneidade que tomam a centralidade na famlia sob vieses distintos. Problematizar tal centralidade, considerando essas diferentes perspectivas, procurando identificar novos e velhos elementos que ela traz o que se pretende abordar neste trabalho, dedicando especial ateno ao Programa Bolsa Famlia (PBF) pelo papel que os programas de transferncia de renda vm assumindo no reordenamento da proteo social na Amrica Latina. Na primeira parte situaremos o Programa no atual contexto em que se inserem as polticas sociais dentro do padro requerido pela nova ordem econmica mundial para, na segunda parte, nos atermos questo de como esse programa est focalizando a famlia.

    A centralidade dos programas de combate pobreza no atual padro de proteo social brasileiro

    No reordenamento da proteo social conduzido pelo iderio neoliberal de mercantilizao e assistencializao dos bens e servios sociais, a assistn-cia assume centralidade no mbito das polticas sociais, ganhando expresso nos programas de combate pobreza. Por sua vez esses programas tm se constitudo em aes de transferncia de renda impulsionadas pelo debate internacional sobre os mnimos sociais que ressurge na dcada de 1980 no momento da crise do capital e, conseqente crise do welfare state.

    No Brasil esse debate chega tardiamente e no momento em que o pas se rende aos preceitos neoliberais. Lanado na agenda brasileira pelo Projeto de Lei n 80/1991 do senador Eduardo Suplicy, o debate sobre os mnimos sociais mobilizou diferentes matrizes terico-culturais, polarizando a de-fesa dos mesmos em duas perspectivas fundamentais. Uma mais restritiva e ancorada no projeto neoliberal, defende os programas de transferncia de

  • POLTICA SOCIAL E SERVIO SOCIAL: ELEMENTOS HISTRICOS E DEBATE ATUAL 33

    renda como um mecanismo compensatrio, residual e focalista, eficiente no combate pobreza e substitutivo dos programas e servios existentes. Outra, centrada na lgica do direito, os entende na tica da redistribuio da riqueza e da universalidade e complementares s polticas j existentes (Yasbeck, Silva e Giovanni, 2004).

    As experincias nacionais at o momento tm sido conduzidas seguindo

    a primeira orientao, condizente com a adeso a esse Projeto. Nesse sentido

    os programas tendem a assumir um carter compensatrio e focalizado na

    extrema pobreza. Alis, em funo da atual poltica econmica fica difcil

    para as polticas sociais assumirem outro carter que no o compensatrio.

    Isso por conta tanto da natureza recessiva das polticas macroeconmicas,

    centradas na tica do equilbrio fiscal, levando a ajustes fiscais continuados,

    com cortes sistemticos de despesas, como e, em decorrncia de, os fundos

    pblicos, que custeiam as polticas sociais, estarem sendo apropriados como

    importante fonte de composio do supervit primrio atravs de mecanismos

    como a Desvinculao das Receitas da Unio (DRU), criada em 2002 e que

    permite ao governo aplicar livremente um percentual substantivo desses

    recursos. A resultante desse desvio de parcelas significativas dos recursos da

    Seguridade Social o impedimento de maiores investimentos e ampliao

    de direitos na rea social (Boschetti e Salvador, 2006).

    Estudos e pesquisas sobre os gastos sociais pblicos so reveladores do modelo restritivo que tem prevalecido na implementao dos programas de transferncia de renda. Boschetti e Salvador (2006) analisando o financia-mento e investimento da Seguridade Social no Brasil no perodo de 1999 a 2005 constatam que o Fundo Nacional da Assistncia Social (FNAS) teve o maior crescimento entre os fundos nacionais, sendo que a destinao dos recursos desse Fundo se concentra em benefcios de transferncia de renda, no qual o Benefcio de Prestao Continuada (BPC) e a Renda Mensal Vitalcia (RMV), chegaram a absorver 91,67% e 89,14% dos recursos em 2004 e em 2005, respectivamente. Sendo que o financiamento do PBF sai de outras receitas do Ministrio de Desenvolvimento Social (MDS) e no passa pelo FNAS, estando, com isso, fora da poltica de assistncia social e fora do controle social dos conselhos. Mas a receita do MDS no a nica fonte de recursos do Programa, uma vez que esses tambm saem de outras polticas, como a da sade que em 2005 teve 6,26% dos recursos do seu Fundo aplicados no PBF. A questo que se coloca aqui no o fato em si do FNS est custeando outras aes que no a da sade, pois a lgica constitucional da seguridade era a de um nico fundo financiando as trs polticas, o problema que

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    esse fato revelador da orientao que tem marcado a implementao das medidas de combate pobreza pela renda mnima, ou seja, a lgica foca-lizadora nos segmentos mais pobres, de carter residual e na perspectiva de substituio dos programas e servios existentes e no da ampliao da proteo social.

    Esses dados evidenciam a centralidade da assistncia, mas no dela na perspectiva do direito e enquanto poltica pblica, uma vez que o mesmo estudo revela que, nos mesmos anos, praticamente 90% dos recursos do FNAS ficaram comprometidos com o BPC e a RMV, as aes socioeduca-tivas e protetivas no chegaram a 5%. O que se percebe com a prevalncia dos programas de transferncia de renda e a forma como esses esto sendo implementados, na lgica substitutiva e no complementar, uma nfase na perspectiva da assistencializao da proteo social.

    A famlia na agenda dos organismos internacionais de orientao para o reordenamento da proteo social

    O imperativo reordenamento da proteo social vem sendo conduzido e desenhado pelos organismos internacionais, tanto os de financiamento (Fundo Monetrio Internacional, Banco Mundial e Banco Interamericano de Desenvolvimento, principalmente), como os de cooperao tcnica (Orga-nizao Internacional do Trabalho e UNESCO), que buscam a conformao de novos padres de proteo social adequados ao projeto neoliberal e, nesse sentido, propagam os novos eixos que enunciam e/ou ratificam os novos paradigmas de polticas sociais. Esses emergem e so difundidos num cenrio internacional atravs de documentos oficiais, artigos e outras produes bibliogrficas. Para fins deste trabalho nos ateremos s orientaes do Ban-co Mundial (BM) e da Comisso Econmica para Amrica Latina e Caribe (CEPAL), por entendermos que esses organismos apresentam um nmero maior de publicaes que fazem meno aos objetos de estudo: polticas de combate pobreza e famlia.

    Segundo o relatrio do Banco Mundial 2000-2001, a pobreza aparece como um estado de privao acentuada de bem-estar e pode ser maior ou menor de acordo com o grau de vulnerabilidade do indivduo ou famlia. Den-tre as causas da pobreza o Relatrio aponta: a) a falta de renda e de recurso para atender as necessidades bsicas: alimentos, habitao, vesturio e nveis aceitveis de sade e educao; b) a falta de voz e de poder nas instituies

  • POLTICA SOCIAL E SERVIO SOCIAL: ELEMENTOS HISTRICOS E DEBATE ATUAL 35

    estatais e na sociedade; c) a vulnerabilidade a choques adversos, combinada com a incapacidade de enfrent-los. Ou seja, as causas no esto relacionadas questo social e ainda fazem uma leitura da pobreza a partir da incapa-cidade e fracasso pessoal de prover seu auto-sustento e bem-estar.

    Para seu enfrentamento o Relatrio prope estratgias recomendando que o combate pobreza dever ser feito a partir de aes em trs reas que possibilitem promover oportunidades, facilitar a participao e aumentar a segu-rana dos indivduos, bem como complementariedades mtuas do governo, da sociedade civil, do setor privado e dos prprios pobres no intuito de efetivar essas aes. Ao ser destacada no momento de incapacidade, fracasso, em face de uma falha no mercado privado, os pobres talvez s possam contar com os servios prestados pelo Estado (p.81), a interveno estatal aparece em car-ter residual, emergencial e focalizada nos segmentos mais pobres. Reforada pela retrica de escassez dos recursos pblicos e incapacidade administrativa para a promoo e prestao de servios eficientes para a populao, os pr-prios indivduos, ss ou em conjunto com seus grupos familiares, tornam-se os principais responsveis pela proviso de seu bem-estar.

    Nesse contexto, a famlia tomada como uma instncia nata de anteparo

    social e que pode proteger seus membros dos riscos5 que os levariam a uma situao de vulnerabilidade. Tais riscos poderiam ser atenuados mediante estratgias como a diversificao das fontes de renda familiar existentes (formas criativas de enfrentamento a sua situao de pobreza) e da prpria auto-proteo (auto-seguro: economias, poupanas e alienao de bens du-rante as crises; seguro-informal: partilha de bens atravs de redes de apoio mtuo entre os membros de uma comunidade, grupos ou famlia extensa). O que se observa a predominncia da famlia e da comunidade como esferas potenciais de formao de redes scio-econmicas apoiadas nos vnculos de afetividade e solidariedade.

    Seguindo o raciocnio de que a famlia um espao de relaes intersub-jetivas que propiciam a socializao primria dos indivduos, a abordagem de alguns artigos da CEPAL enfoca ainda a importncia da famlia na pro-duo/reproduo de valores. Esta concebida como instncia primordial, lugar da intimidade, construo de sentidos e expresso de sentimentos, elementos que tambm influiro na formao e, conseqentemente, na capacidade em tomar iniciativas em meio a situaes adversas. Por isso, pressupe-se que a partir do modo pelo qual se do as relaes entre os membros familiares que um indivduo ou um grupo familiar obter seu sucesso ou fracasso social, visto que os indivduos que possuem trabalho

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    e bons vnculos scio-familiares so considerados includos nas redes de integrao social, porm a ausncia desses, torna os indivduos propensos s zonas de vulnerabilidade. Nesta perspectiva a famlia tende a ser tomada apenas como uma instncia de virtudes, e no de contradies, que, como qualquer outra instituio, pode tambm se constituir em espao de repro-duo da dominao, explorao, opresso, violncia, alm de ser respon-sabilizada pelas dificuldades que se encontra, uma vez que a concepo de pobreza assumida, como vimos, a compreende fora das relaes sociais que produzem as desigualdades sociais.

    A famlia no centro das polticas assistenciais

    Embora a famlia tenha sido alvo, direta ou indiretamente, de muitos

    programas assistenciais, historicamente foi negligenciada no nosso pas,

    relegada a um plano secundrio no cenrio das polticas sociais. Enquanto

    questo social, foi configurada de forma fragmentada, sendo as polticas

    sociais estruturadas sob a tica do indivduo. Dentro dessa lgica, a organiza-

    o dos servios centrada na perspectiva do indivduo-problema (a criana,

    o adolescente, a mulher, o idoso) a partir de situaes especficas (doena,

    delinqncia, abandono, maus tratos, explorao, etc.) ou, ainda, de acordo

    com as suas necessidades (sade, educao, habitao etc.), traduzindo-se

    em aes pontuais, atomizadas e insuficientes, uma vez que no enfrenta

    efetivamente a real situao de vulnerabilidade social, econmica e pessoal

    desses indivduos, tampouco dos seus grupos familiares.

    Se a famlia foi relegada a um segundo plano nas diretrizes e programas propostos pelas polticas sociais brasileiras, a mesma foi privilegiada histori-camente por parte do Estado como uma instituio essencial na reproduo de valores da ordem social vigente, passando este a intervir, atravs de seus aparelhos ideolgicos, no controle das famlias populares, suspeitas de no cumprir bem o seu papel, da qual a Fundao Leo XIII um exemplo. Ou seja, a utilizao da famlia uma referncia importante para solidificar prticas e valores que constituem a direo tico-poltica dos diferentes contextos das polticas sociais no Brasil. (Cavalcanti et al., 2000)

    Por sua vez as polticas e programas sociais implementados mais recen-temente passam a ter na famlia o alvo de suas aes. A questo de fundo que se coloca aqui se essa centralidade na famlia vem ao encontro da perspectiva neoliberal de eleg-la para que essa possa assumir o papel de

  • POLTICA SOCIAL E SERVIO SOCIAL: ELEMENTOS HISTRICOS E DEBATE ATUAL 37

    provedora do bem-estar de seus membros, como fonte privada de proteo social, ao mesmo tempo em que se constitui como instrumento de controle social, reforando antigas prticas dentro de uma relao historicamente estabelecida com as famlias pelo Estado brasileiro, ou se vem dentro da perspectiva de estruturao das aes a partir da tica da articulao e in-tegrao das polticas pblicas, ao tomar a famlia enquanto uma unidade de referncia mais abrangente que o indivduo, tal como preconiza a atual Poltica Nacional de Assistncia Social (PNAS) que institui em 2004 o Sistema

    nico da Assistncia Social (SUAS)6.

    Ao tomarmos o caso do PBF, maior programa de transferncia de renda posto em prtica no Brasil e atual carro-chefe do Governo, podemos perce-ber, dentre as suas premissas bsicas, que o Programa ao eleger a famlia como pblico-alvo de suas aes, reconhece a necessidade de se enfocar a famlia como unidade da ao do Estado, superando a abordagem fragmentada e segmentada de cada um de seus membros, a partir de critrios distintos (idade e sexo, por exemplo) (MDS, 2005, p. 5). Nesse sentido e na sua concepo, o Programa busca avanar em relao aos seus antecessores, que nele so absorvidos com a unificao, que, em sua maioria, ainda se voltavam para alguns membros e no a famlia como um todo. Ou seja, o Bolsa Escola se voltava s crianas de 6 a 15 anos; o Bolsa Alimentao a crianas at 6 anos; o Carto Alimentao, embora voltado s famlias, priorizava aquelas chefiadas por mulheres, com idosos, crianas e/ou nutrizes.

    Contudo, se o PBF possibilita a incluso de famlias sem filhos no caso das que se encontram em situao de extrema pobreza, cuja renda per capita de at R$60,00, as famlias em situao de pobreza, cuja renda chega at R$120,00, podem ingressar no Programa mediante a sua composio incluir crianas e adolescentes de at 15 anos, gestantes ou nutrizes, o que demonstra ainda a priorizao de alguns segmentos em detrimento da famlia em sua unicidade, no caso aqui as crianas e mulheres grvidas ou amamentando constituem o pblico-alvo preferencial.

    Apesar do Programa Bolsa Famlia se pautar por uma concepo ampliada de famlia, ao abranger os novos arranjos familiares (famlias monoparentais, reconstitudas, unies no s legtimas, como estveis, etc.) reconhecendo os laos afetivos e de solidariedade e no somente consang-neos, ao definir o usurio prioritariamente responsvel pelo benefcio e ao direcionar as condicionalidades a determinados membros da famlia d a perceber que essa ainda tratada de forma ideologizada no mbito dos pro-gramas scio-assistenciais, atravs de concepes estereotipadas que ainda se

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    pautam pelos papis de homem-pai e mulher-me (Mioto, 2004). Isso pode ser constatado quando se observa que no PBF o principal usurio respons-vel pelo benefcio a mulher, seja ela me ou av, e as condicionalidades na rea de educao e sade, atravs das quais pretende-se garantir a incluso dos usurios em servios sociais necessrios para o combate pobreza, so direcionados majoritariamente s mulheres e s crianas.

    Tal perspectiva coaduna com a proposta de enfrentamento da pobreza do Banco Mundial em que a famlia considerada como responsvel central pelo enfrentamento da pobreza. De acordo com esta proposta, as mulheres e crianas devem ser priorizadas no mbito das polticas governamentais, uma vez que constituem os membros mais vulnerveis da famlia. J a ado-o de condicionalidades no mbito da sade e da educao d-se devido estas serem consideradas como elementos centrais por parte dos organismos internacionais para que os usurios superem a situao de pobreza e alcan-cem autonomia. Com isso, objetiva-se maior insero social e aumento de oportunidades para que essas famlias possam se auto-sustentar.

    Quanto possibilidade de uma interveno mais integrada na perspec-tiva da intersetorialidade que o Programa aspira, atravs da articulao das suas aes com outras polticas sociais, percebe-se que a mesma fica restrita ao cumprimento das condicionalidades e ainda assim quando essas so viveis, j que o acesso, sobretudo sade, enfrenta as dificuldades da crise que o setor enfrenta com a falta, fundamentalmente, de investimento. Sendo que as condicionalidades se voltam para gestantes, nutrizes e crianas at sete anos, os demais membros da famlia, ou sejam, mulheres estreis ou que no esto em idade reprodutiva, homens, idosos, crianas acima de sete anos e adolescentes no so sequer considerados no mdulo do PBF no Sistema de Vigilncia Alimentar e Nutricional (SISVAN) do Ministrio da Sade responsvel pelo registro do acompanhamento das condicionalidades.

    Considerando as dificuldades tcnicas, operacionais e de infra-estrutura que sofrem as trs polticas para garantir a incluso integral das famlias nos servios oferecidos, cada qual dentro do que lhe compete, o que se ob-serva, a partir do caso do estado do Rio de Janeiro analisado no mbito da nossa pesquisa, que quando muito o acesso a esses servios se restringe ao cumprimento das condicionalidades.

    Para a sade, a que tem apresentado mais dificuldade para fazer o acom-panhamento das condicionalidades, o Programa chega a ser considerado desastroso, utilizando-se das prprias palavras de uma tcnica responsvel pela gesto do PBF nessa rea. Tal constatao no novidade, visto que a

  • POLTICA SOCIAL E SERVIO SOCIAL: ELEMENTOS HISTRICOS E DEBATE ATUAL 39

    insero do Programa na sade se d justamente na ateno bsica, o n crtico do Sistema nico de Sade (SUS). No tensionamento entre o projeto sanitrio e o projeto privatista que tem marcado e direcionado a implemen-tao do SUS a partir da dcada de 1990, tem prevalecido o modelo centrado na prtica curativa, consoante aos interesses do segundo projeto voltado para a mercantilizao da ateno sade. A resultante disto a concentrao de investimentos na ateno curativa, em detrimento de aes de preveno e promoo da sade. No estudo de Boschetti e Salvador (2006) isso se evi-dencia nos nmeros que revelam um total de recursos aplicados na ateno hospitalar e ambulatorial de 52,11% em 2004 e 49,94%, em 2005, sendo que a ateno bsica recebeu nos mesmos anos 14,49% e 15,05%, respectivamente. Alguns programas preventivos voltados para o controle de determinadas doenas, como HIV/AIDS, tuberculose e hansenase, assim como aes de vigilncia epidemiolgica, sanitria e ambiental receberam recursos espe-cficos, mas que somados chegaram a 6,16% em 2004 e em 2005 tiveram uma pequena reduo perfazendo um total de 6,09%. Com esses dados possvel se perceber a dificuldade de operacionalizao do PBF nessa poltica, a cargo dos postos de sade, que sofrem, sobretudo com a insuficincia de profissionais, ou dos Programas de Sade da Famlia (PSF). Esses ltimos, focalizados e territorialmente delimitados na maioria dos municpios, no conseguem abarcar toda a populao beneficiria. Portanto, no podem ga-rantir o acesso aos servios relativos ao cumprimento das condicionalidades nem realizar seu acompanhamento.

    Com relao assistncia, a dificuldade no diferente. Com financia-mento de R$ 1,80 por famlia/ms, meta de atendimento de 1.000 famlias por equipamento, com equipe reduzida e operando acima da capacidade instalada, os Centros de Referncia da Assistncia Social (CRAS) enfrentam a dificuldade de se estruturarem e funcionarem como preconiza a PNAS, ou seja, garantindo o atendimento efetivo, o que implica em acompanhamento integral s famlias, e monitoramento e avaliao da rede de servios sociais. Dada as dificuldades, os CRAS incorrem no risco de se tornarem plantes de emergncia para atendimento das demandas espontneas. Se considerarmos ainda o movimento de transferncia da execuo das aes do Estado para a iniciativa privada e da sociedade civil, alis j histrico na assistncia, os CRAS podem ter ainda sua atuao reduzida fiscalizao dos servios prestados pelas organizaes no-governamentais.

    Apesar de estarmos problematizando aqui a situao dos CRAS, convm salientar que o PBF, embora j inserido no MDS, ainda no se encontra den-tro da poltica da assistncia. Este fato coloca o Programa fora do controle

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    social dos conselhos e faz com que a sua insero ocorra em outra estrutura, quase sempre replicada nas administraes estaduais e municipais, contri-buindo para a desarticulao entre o Programa e os CRAS, como pudemos observar pelo estudo realizado no Estado do Rio de Janeiro. Esse desenho confere carter assistencialista ao Programa, tomado como um fim em si mesmo, desconsiderando que o combate pobreza no pode ser objeto de uma nica poltica, quanto mais de um s programa.

    Dada a meta pretensiosa do PBF, o MDS tem tido que lidar com a questo das portas de sada do Programa. Na impossibilidade de atender toda a populao excluda, inclusive a elegvel dentro dos critrios altamente seleti-vos e excludentes do PBF, h que se operar com mecanismos de revezamento que garantam atendimento tambm aos que ainda esto de fora. Para as famlias que no so desligadas por conta da falta de cumprimento das concidionalidades, deve-se criar alternativas de emancipao, essas voltadas para a incluso produtiva. Alm dos municpios j estarem empreendendo aes de gerao de trabalho e renda atravs dos chamados programas complementares do PBF com os parcos recursos da assistncia quando h um fundo especfico, o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) e uma poltica especfica para essa rea, o prprio MDS j anunciou a criao de uma Secretaria de Oportunidades em sua estrutura. Mais uma vez o trabalho aparece como promotor da integrao social, assim como a assistncia se afirma como se constituiu historicamente, ou seja, como oposio ao direito ao trabalho, quando a porta de sada deveria ser com relao situao de vulnerabilidade e no da proteo social, o que faz com que estar inserido no mercado de trabalho, no prescinda da assistncia social.

    Nesse contexto se percebe que a intersetorialidade efetivamente no alcanada no Programa. Seja porque a assistncia assume competncias que no so suas, como as de gerao de trabalho e renda, superpondo aes, seja porque as condicionalidades tendem a buscar muito mais o critrio de permanncia no Programa que, se por um lado propicia o acesso dessa po-pulao a outros servios sociais, embora de forma restrita, por outro pode atribuir a forma de dever ou obrigao aos direitos sociais conquistados historicamente, como a sade e a educao. Nesse caso, acaba por promover o acesso atravs da obrigatoriedade e no na perspectiva da cidadania. Ou seja, as contrapartidas exigidas so cumpridas, muitas vezes, para que no se perca aquela pequena, porm substancial, fonte de renda.

    Considerando que o PBF opera um direito o direito renda parece-nos impertinente e at inconcebvel garantir o acesso ao direito renda atravs de exigncias que, inclusive, recaem sobre outros direitos sociais.

  • POLTICA SOCIAL E SERVIO SOCIAL: ELEMENTOS HISTRICOS E DEBATE ATUAL 41

    Sob a tica dos direitos, a um direito no se deve impor contrapartidas, exigncias ou condicionalidades, uma vez que a condio de pessoa deve ser o requisito nico para a titularidade de direitos. A responsabilidade em garantir o provimento e a qualidade desses servios aos portadores desses direitos compete aos poderes pblicos responsveis. A obrigao do cumprimento das condicionalidades (garantir escolas, postos de sade) nessa perspectiva, cabe a esses poderes, e no s pessoas. Por isso, o Programa deve reconsiderar suas concepes acerca da imposio de condicionalidades e de obrigaes aos benecirios, pois a titularidade de um direito jamais deve ser condicionada. O Estado no deve punir e, em hiptese alguma, excluir os benecirios do Programa, quando do no cumprimento das condicionalidades estabelecidas e/ou impostas. Dever-se-ia responsabilizar os municpios, estados e outros organismos governamentais pelo no cumprimento de sua obrigao em garantir o acesso aos direitos atualmente impostos como condicionalidades. (Zimmermann, 2006)

    A lgica das condicionalidades tem penalizado as famlias, transferindo a responsabilidade que cabe ao Estado para elas. No se discute a escola, no interessa se o rendimento escolar caiu e se a taxa de repetncia se elevou, a famlia tem que manter seu filho na escola para garantir o direito bsico renda ou, se preferirmos, o direito civil que, aqui no caso, se refere ao direito vida. Da mesma forma se atribui famlia falta de interesse, acomodao, se os adultos desempregados no manifestam desejo em participar dos cursos de capacitao profissional que nada vo alterar sua situao de vulnerabilidade no mercado, quando a opo pela atual poltica econmica no capaz de promover postos de trabalho, muito menos sustentveis, estveis e protegidos.

    No pretendemos esgotar neste artigo a anlise do PBF sobre outros ngulos, tais como a questo do valor irrisrio do benefcio que nos remete questo dos mnimos sociais, esquecida e no resolvida no nosso debate, e do processo de descentralizao ainda restrito, pois o cadastramento das famlias e o acompanhamento das condicionalidades competem ao muni-cpio mas no o acesso, este definido pelo Governo Federal, questes essas que fugiriam aqui do objeto central de anlise. Com relao interveno na famlia observa-se que, enquanto unidade de referncia, a mesma ainda no consegue ser assumida pelo Programa.

    Como vimos, em sua execuo o PBF ainda se volta para alguns segmen-tos prioritariamente, como as mulheres e as crianas, inclusive reforando o papel histrico das mulheres de cuidado dos seus membros e que se tornam alvo das aes scio-educativas, na perspectiva tambm histrica de reforo de prticas e valores desejveis afinados com a direo tico-poltica pretendi-

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    da pelo projeto hegemnico, onde as polticas sociais tornam-se instrumentos para o seu alcance. Alm de priorizar alguns segmentos em detrimento da famlia como um todo, as dificuldades histricas de articulao e integrao das aes somadas reduo do gasto social, que conferem centralidade aos programas de transferncia de renda, estrangulam o PBF na perspectiva do alcance de uma proteo social mais ampla, reduzindo o mesmo a um programa assistencialista voltado para minimizar os efeitos mais nefastos da poltica econmica. Nesse contexto as famlias vo sendo desligadas do Programa em funo de no terem cumprido com as condicionalidades ou no atenderem mais aos critrios de elegibilidade e no porque conseguiram romper com a situao de vulnerabilidade que originou o acesso ao benefcio. Mantm-se, assim, um ciclo vicioso de retroalimentao da pobreza, sem que sejam fornecidas condies objetivas s famlias para romperem com o circuito marginal de insero social (produo, consumo e cidadania) em que se encontram.

    Concluso

    Se famlia sempre coube a funo de reproduo subjetiva e material, bem como de proteo de seus membros, com a emergncia de um novo tipo de organizao social e formao do Estado moderno, onde as demandas sociais se transformaram em direitos adquiridos pelos cidados, muitas das atribuies familiares foram re-alocadas na esfera pblica, passando o Estado, em maior ou menor medida, dependendo dos diferentes contextos scio-histricos, a assumir a proviso do bem-estar social.

    Com a crise capitalista no final do sculo XX, esse processo se reverte e a proteo social passa a ser compartilhada, na perspectiva de co-respon-sabilidade, com as esferas sociais: Estado, mercado e sociedade civil, nela includa a famlia.

    Nesse cenrio de crise econmica mundial, em que a prioridade a eco-nomia, qual se aplicam polticas visando apenas ao reequilbrio fiscal e conteno do gasto social, observa-se um processo processo este decorrente de aumento da concentrao de renda e queda na renda do trabalho de desemprego estrutural, de f lexibilizao dos direitos sociais, de aumento da pobreza e da excluso social. Configura-se, em suma, um quadro em que contraditoriamente ao que se apregoam as famlias se tornam cada vez mais vulnerveis e impossibilitadas de assumir a tarefa de proteo de seus membros.

  • POLTICA SOCIAL E SERVIO SOCIAL: ELEMENTOS HISTRICOS E DEBATE ATUAL 43

    Da, coloca-se como imperativo que as intervenes via programas e po-lticas sociais forneam assistncia e subsdios para que as famlias possam romper com a situao de vulnerabilidade em que se encontram, em vez de serem penalizadas por suas impossibilidades. Para avanar nesse sentido preciso uma articulao entre os programas e polticas sociais de modo que atendam s mltiplas necessidades do grupo familiar na perspectiva da garantia de direitos e no de cobrana de deveres, a qual acaba por respon-sabilizar os indivduos pelas problemticas que sobre eles incidem. Um dos meios para se alcanar maior nvel de articulao e integrao inter e intra-setorial e institucional a estruturao de aes em torno da famlia, o que permite integralizar polticas sociais setorizadas, considerando diferentes problemticas atuantes no mesmo ambiente social, pois possibilita estabe-lecer prioridades em uma instncia mais complexa que o indivduo.

    Assim, se por um lado e na perspectiva neoliberal, a famlia tem sido retomada como fonte privada de proteo social e, conseqentemente, des-responsabilizao do Estado, por outro e na perspectiva da conformao de um sistema de proteo social pblico e abrangente, ela reabre o debate em torno da necessidade de se pensar num novo desenho para as polticas sociais de modo a garantir maior alcance em suas aes e, conseqentemente, resultados mais efetivos.

    A assistncia nessa segunda perspectiva assume uma funo estratgica, pois dado seu carter transversal, articulador das demais polticas pblicas contribui para a constituio de um sistema mais amplo de proteo social, resgatando a perspectiva da seguridade social. Esse reconhecimento da im-portncia da assistncia diverge da centralidade que se confere a ela hoje no atual padro de proteo que se tece no pas, dentro da tica de focalizao nos segmentos mais pobres e na perspectiva da assistencializao. Natural-mente que para a assistncia assumir essa funo estratgica, faz-se mister a reorientao da poltica econmico-social na direo da construo de um projeto nacional de desenvolvimento econmico promotor da incluso.

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