Revista Patrimonio 34 IPHAN

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Patrimônio Revista do Nº 34 2012 Histórico e Artístico Nacional História e Patrimônio

Transcript of Revista Patrimonio 34 IPHAN

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    N 342012

    Histrico e Artstico Nacional

    Histria e Patrimnio

  • Revista do PatrimnioHistrico e Artstico Nacional

  • Revista do PatrimnioHistrico e Artstico Nacional n 34 / 2012

  • Histria e PatrimnioOrganizao: Mrcia Chuva

  • Rplica da esttua Pensador angolanoAcervo do Museu do Dundo, em Luanda, Angola

    Presidenta da Repblica do BrasilDilma Rousseff

    Ministra de Estado da CulturaAna de Hollanda

    Presidente do Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional

    Luiz Fernando de AlmeidaChefe de Gabinete

    Weber SuttiProcurador-Chefe Federal

    Heliomar Alencar de Oliveira Diretora de Patrimnio Imaterial

    Clia Maria CorsinoDiretor do Patrimnio Material e Fiscalizao

    Andrey Rosenthal SchleeDiretora de Planejamento e Administrao

    Maria Emlia Nascimento SantosDiretor Substituto de Articulao e Fomento

    Claudio Antonio Marques LuizOrganizao

    Mrcia ChuvaEditorao e Reviso Geral

    Ana Carmen Amorim Jara CascoProduo

    Vera Lcia de MesquitaCapa, Abertura e Apoio Diagramao

    Aluzio de CarvalhoIconografia e Legendas

    Cintia Mayumi Carli Silva Reviso e Padronizao de Texto

    Alexandra BertolaRosalina Gouveia

    DiagramaoNjobs Comunicao (a partir do projeto grfico de Victor Burton)

    Capa e abertura: ilustrao que representa trecho do rio Tocantins, localizado a sudeste da regio norte brasileira, que documenta a ocupao da regio por volta de 1781Acervo Mapoteca do Itamaraty, Ministrio das Relaes Exteriores

    Folha de rosto: Cais de Venda do Pescado Foto: E. Cavalcante, 1974. Acervo: Arquivo Central do Iphan

    A Revista do Patrimnio publicada pelo Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional, do Ministrio da Cultura, desde 1937. Os artigos so autorais e no refletem necessariamente a posio do Iphan e da organizadora deste nmero, Mrcia Chuva.

    Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico NacionalSEPS 713/913, Lote D70390-135 Asa Sul Braslia DF

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    Homenagem pstuma

    Este nmero da Revista foi marcado pela perda de dois grandes historiadores que para ele contriburam Sandra Jatahy Pesavento e Manoel Luiz Salgado Guimares. A gacha Porto Alegre brilha singular na poesia de Mrio Quintana, O mapa. E por meio dela brilha tambm a cidade qualquer, o esprito urbano sem nome, que vai do pequeno mundo de cada um ao universal, ao humano.Que a simplicidade da poesia fale por ns das perdas que no podemos dimensionar, que no sabemos traduzir. O mapa

    Mrio Quintana

    Olho o mapa da cidade Como quem examinasse

    A anatomia de um corpo... ( nem que fosse meu corpo!)

    Sinto uma dor esquisita Das ruas de Porto Alegre

    Onde jamais passarei... H tanta esquina esquisita

    Tanta nuana de paredes H tanta moa bonita

    Nas ruas que no andei (E h uma rua encantada

    Que nem em sonhos sonhei...) Quando eu for, um dia desses,

    Poeira ou folha levada No vento da madrugada, Serei um pouco do nada

    Invisvel, delicioso Que faz com que o teu ar

    Parea mais um olhar Suave mistrio amoroso

    Cidade de meu andar (Deste j to longo andar!) E talvez de meu repouso...

    O mapa. In: Apontamentos de histria sobrenatural.

    So Paulo: Globo, 1976 by Elena Quintana

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    Lu iz Fe r nando d e A lme ida

    Apresentao

    Apresentar ao pblico um novo nmero da histrica e sempre atual Revista do Patrimnio Histrico Artstico Nacional, editada pelo Iphan, como abrir as portas e janelas de uma casa brasileira. Dessas que preservamos com o prazer e o orgulho comprometido com a proteo e a difuso de nossas razes histricas. Casa cheia de compartimentos e recantos, memrias, rudos e cheiros, que convido o leitor a descobrir e conhecer.

    Melhor ainda essa metfora quando pensamos que o assunto deste nmero a Histria, disciplina que desde os primrdios do Iphan acompanha suas prticas e a inerente construo de saberes que preservar o patrimnio produz em cada Nao que se dispe a enfrentar este desafio. Histria que comparece em nossa prtica, seja na atribuio de valores aos bens culturais, seja na forma de compreender a lgica que constitui nossa identidade nacional, seja na abordagem que fazemos dos grupos sociais que do sentido ao patrimnio que preservamos. Histria que resgatamos, interpretamos e difundimos para proteger e preservar as mais diversas dimenses e expresses do nosso patrimnio cultural.

    Cuidadosamente organizado pela historiadora Mrcia Chuva, ex-funcionria deste Instituto e sua permanente colaboradora, que hoje enriquece os quadros universitrios como professora do Departamento de Histria da Unirio, este nmero da Revista aborda as diferentes relaes da Histria com a preservao do patrimnio cultural brasileiro. Rene pesquisadores e profissionais que, com seriedade e zelo, trouxeram suas contribuies a este tema to antigo quanto atual, mas necessariamente permanente na nossa rotina de trabalho. A todos os colaboradores, manifestamos os nossos sinceros agradecimentos por terem tornado realidade mais este nmero da Revista.

    Neste momento em que o Iphan, consolidando e recriando continuamente as suas prticas, amplia sua capacidade de trabalho por meio da vertente da formao profissional, conferida pelo reconhecimento das atividades de seu mestrado profissionalizante, entregar ao pblico este nmero da Revista soa quase como sublinhar essa caracterstica que gostaramos de valorizar e que a de reunir teoria e prtica, produo acadmica e formao profissional. Afinal, a superao do abismo que muitas vezes parece cindir o pensar e o fazer o nosso desafio permanente na construo cotidiana dos caminhos da preservao do patrimnio.

    Se a mediao dinmica entre teoria e prtica nosso desafio permanente, o tema deste nmero da Revista instiga novas percepes e perspectivas sobre o papel dos historiadores na preservao do patrimnio. E estamos convencidos que esta reflexo propiciar experincias nicas para o compartilhamento de ideias, saberes, prticas e aes desenvolvidas cotidianamente para que o nosso patrimnio, memria e cultura sejam alicerces do futuro.

    Com a metfora da casa, convidamos os leitores a conhecerem todos os recantos da Revista. Boa visita!

    Crio de Nazar, Belm (PA), registrado em 2005 no Livro dasCelebraes como manifestao cultural que integra o patrimnioimaterial brasileiro. Foto: Francisco Moreira da Costa, sem data. Em Crio de Nazar. Rio de Janeiro: Iphan/MinC, 2006. (Dossi Iphan n. I)

  • Histria e Patrimnio

    Mrcia ChuvaIntroduo Histria e patrimnio: entre o risco e o trao, a trama 11

    Parte I em foco o camPo do PatrImnIo

    Dominique Poulota razo patrimonial na europa do sculo XVIII ao XXI 27

    Jos Carlos Reiso tempo histrico como representao intelectual 45

    Jorge Colimaterialidade e imaterialidade 67

    Mrcia Mansor DAlessiometamorfoses do patrimnio o papel do historiador 79

    Manoel Luiz Salgado GuimaresHistria, memria e patrimnio 91

    Andrea Daherobjeto cultural e bem patrimonial representaes e prticas 113

    Roberto Conduru artifcios para inventar e destruir arquitetura, histria, preservao cultural 131

    Mrcia ChuvaPor uma histria da noo de patrimnio cultural no Brasil 147

    Parte II HIstrIa e PoltIca

    Analucia Thompson, Cludia F. Baeta Leal, Juliana Sorgine, Luciano dos Santos TeixeiraHistria e civilizao material na revista do Patrimnio 167

    Carla da Costa Dias e Antnio Carlos de Souza Limao museu nacional e a construo do patrimnio histrico nacional 199

    Marcus Tadeu Daniel Ribeiroentre o ser e o coletivo o tombamento das casas histricas 223

    Lia Mottao patrimnio cultural urbano luz do dilogo entre histria e arquitetura 249

    Daryle Williamsalm da histria-ptria as misses jesutico-guaranis, o patrimnio da humanidade e outras histrias 281

    Jaelson Bitran TrindadePatrimnio e histria a abordagem territorial 303

    Parte III temas clssIcos da HIstrIa, noVos oBjetos de PatrImonIalIzao

    Lilia Moritz Schwarcznacionalidade e patrimnio o segundo reinado brasileiro e seu modelo tropical extico 337

    Alberto da Costa e Silvao Brasil na frica atlntica 361

    Flvio Gomes terra e camponeses negros o legado da ps-emancipao 375

    Sandra Jatahy PesaventoHistria, literatura e cidades diferentes narrativas para o campo do patrimnio 397

    Jos Carlos Sebe Bom MeihyHistria oral e identidade caipira, espelho, espelho meu? 411

    Mrio de Andradenoturno de Belo Horizonte 427

    notas Biogrficas 440

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    Mrc ia Chuva

    Introduo

    H i s t r i a e p a t r i m n i o : e n t r e o r i s c o e o t r a o , a t r a m a

    Viver muito perigoso... Querer o bem com demais fora, de incerto jeito, pode j estar sendo se querendo o mal, por principiar. Esses homens! (...)

    Guimares Rosa1

    Se os historiadores produzem o passado e o passado que faz uma nao,2 os historiadores do patrimnio fazem poltica, inventando o patrimnio nacional, atribuindo valor e significados a bens e prticas culturais que circunscrevem os limites da nao. Sabemos bem que o trabalho do historiador ao fabricar um patrimnio no seu prprio ofcio da escrita da histria est integrado a um projeto de nacionalizar, de construir o Estado e, portanto, de poder.

    Certa produo historiogrfica e sociolgica em debate pelo menos desde os anos 70 e j clssica na atualidade3 trouxe novos ingredientes para se refletir sobre essa ambiguidade do papel desse historiador e do intelectual de um modo geral. Essa literatura

    1. Fala de Riobaldo, personagem de Joo Guimares Rosa em Grande serto: veredas (1984:14).2. Para o assunto, ver Eric Hobsbawm (2000), dentre outros vrios estudos que fez acerca do nacionalismo e dos processos de construo da nao.3. Podemos citar, a ttulo de exemplo, Michel de Certeau (1982), Michel Foucault (1979), Pierre Bourdieu (2006) e, noutra vertente, E. P. Thompson (1998).

    apontava os numerosos constrangimentos a que estavam submetidos, na sua produo intelectual, em funo de um processo de formao, enquadramento e disciplinarizao que delineava um lugar de fala, limitado por regras de diversas naturezas. Dentre elas, podem ser destacadas as de financiamento de estudos, postos a julgamentos sobre suas finalidades e objetivos por comisses de alto nvel, bem como as regras que regem a oferta de trabalho, lembrando ainda que o perfil e a poltica das instituies em que esto inseridos, entre outros aspectos, impem a agenda dos estudos do momento. Alguns desses autores, em confronto com interpretaes totalizantes acerca dos fenmenos sociais, verificavam, tambm, que diante de estratgias de dominao identificadas em microescalas e em diferentes tipos e nveis de relaes havia a possibilidade de pequenas subverses ou da adoo de sutis tticas de resistncia; noutra vertente, pode-se falar na porosidade ou nas brechas que se verificam em todo sistema e que arejam e alimentam esperanas de transformao. Ainda que circunscritas a determinados limites, essas aes de resistncia, aparentemente insignificantes, colocam em movimento as relaes e podem alterar a realidade de uma ordem imposta ou dominante, num jogo vivido cotidiana e mais ou menos silenciosamente. evidente,

    Pg. 8: Crio de Nazar, Belm (PA). Foto: Luiz Braga, sem data. Em Crio de Nazar. Rio de Janeiro: Iphan/MinC, 2006. (Dossi Iphan n. I)

    Pg. 10: Forte Coimbra margem direita do rio Paraguai, na cidade de Corumb (MS) Tombamento realizado pelo Iphan na dcada de 1970. Foto: Edgar Jacintho, 1975Acervo: Arquivo Central do Iphan, seo Rio de Janeiro

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    nessa perspectiva, que para todo exerccio de violncia simblica ao qual somos submetidos na qualidade de sujeitos histricos4 verificam-se nossas capacidades inventivas nos limites de possibilidades de ao de que dispomos. Essa estranha margem de manobra, ou em melhores palavras, essa interseo entre um profundo pessimismo e a utopia de se construir um mundo melhor esse espao obscuro cujos usos e possibilidades so sempre quase completamente desconhecidos , cremos, que mobiliza os homens para a ao.

    O drama da modernidade, que se institui a partir da certeza de ruptura do presente para sempre descolado do passado (Hardman, 1992), instituidor das naes e das histrias nacionais, tambm fundador das prticas de preservao do patrimnio cultural. O presentismo a que estamos submetidos na atualidade,5 quando, alm do corte com o passado, tambm as conexes com o futuro esto rompidas pela falta de utopias, parece tornar esse drama eterno: o risco de se viver sem referncias e sem perspectivas faz essa modernidade ser vivida na forma do drama e leva produo de memrias em excesso, numa busca permanente de referncias, laos, vnculos de identidade que apaziguem a existncia do homem moderno.

    naquela margem de manobra ou interseo, referida acima, que este nmero da Revista se inscreve, apontando o vigor da relao entre histria e patrimnio, tanto na construo deste quanto na reflexo acerca dessa prtica

    4. Vale dizer, violncia essa disseminada nas relaes de poder que tambm exercemos em diferentes circunstncias e lugares, cujas clivagens no esto diretamente remetidas aos antagonismos de classes. 5. Conforme Franois Hartog (2003), o presentismo seria o regime de historicidade que rege a contemporaneidade.

    historiogrfica vcio da profisso no qual o historiador constri a dialtica do seu ofcio. Em metfora, o risco permanente do abismo. Mas o risco tambm um trao.

    Em realidade, condensando de modo brutal o dito, foi o risco que lanou a historiadora gacha Sandra Jatahy Pesavento a escrever seu artigo para esta edio no pequeno intervalo de tempo no qual, quem sabe, enganou a morte e ofereceu a si mesma o deleite de viver a vida fazendo o que bem queria. Nesse rol de possibilidades e realizaes, nos limites de tempo que dispunha, ela escolheu continuar cumprindo a sua sina de narrar, de fazer do risco o trao e fabricar um patrimnio, que nos legou pela forma verdadeira e apaixonada que tecia a trama da histria. Presto aqui sincera homenagem a essa mulher surpreendente que tive a sorte de conhecer e admirar.

    A perda repentina de Manoel Luiz Salgado Guimares, no auge de sua produo intelectual, foi um choque de realidade. As peas que o destino prega so sempre um alerta para o historiador: nem tudo tem sentido; o acaso, o ilgico, a desrazo tambm so constituintes do devir histrico. Coincidncia sem sentido, a publicao deste nmero da Revista do Patrimnio, dedicado ao dilogo entre histria e patrimnio, sai marcada pela perda e ao mesmo tempo pela valiosa contribuio de Sandra Pesavento e Manoel Salgado. Ambos que, generosamente, ao longo de anos, estimularam, provocaram e instigaram esse dilogo. Remendando esse espao roubado do prelo, fao singela homenagem ao querido Manoel, historiador brilhante mestre de todos ns.

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    P o r u m a n o o d e p a t r i m n i o c u l t u r a l

    A publicao de um nmero da Revista do Patrimnio dedicado relao entre histria e patrimnio , sem dvida, sinal de que vivemos novos tempos.6 Para compreender a oportunidade desse empreendimento, vale ressaltar que, no campo do patrimnio, a histria sempre esteve presente, fosse como disciplina subsidiria, fosse como metodologia de investigao voltada para a produo de conhecimento sobre o patrimnio cultural , fosse ainda como narrativa para a atribuio de valor de patrimnio a subsidiar a sua gesto. No contexto brasileiro, contudo, a presena da histria nas prticas de preservao do patrimnio cultural se deu, por muito tempo, de modo subliminar, ocultando (ou mesmo limitando) as contribuies da disciplina para o campo da preservao e, em especial, o papel do historiador como produtor de narrativas que tambm fabricam o patrimnio. Esperamos, neste volume da Revista do Patrimnio, apresentar diferentes usos e perspectivas que a histria pode oferecer para o campo da preservao, trabalhando no sentido de abrir caminhos para um tratamento integral do patrimnio cultural, ultrapassando a diviso histrica e ainda existente na atualidade entre patrimnio material e imaterial.

    O historiador no concebe a reflexo

    6. No poderia deixar de agradecer equipe da Copedoc, especialmente os historiadores da rea de pesquisa, Analucia Thompson, Cludia Leal, Juliana Sorgine e Luciano Teixeira, que colaboraram desde a concepo do projeto deste nmero e ao longo de toda a sua produo. Eles ingressaram no Iphan por concurso em 2006, juntamente com cerca de 20 historiadores, prova de que realmente vivemos novos tempos, pois, at bem recentemente, eram bem poucos os que compunham os quadros da instituio.

    que no se aproprie do tempo como categoria histrica e como categoria de anlise. Ser ela, justamente, que dar unidade aos artigos deste nmero da Revista, a fim de avanar na considerao sobre as contribuies especficas da histria no campo do patrimnio.7

    Por opo, a maior parte dos autores deste nmero de historiadores de formao. Contudo, em defesa da interdisciplinaridade constituinte do campo do patrimnio, trouxemos ao dilogo arquitetos, antroplogos, historiadores da arte, que aceitaram o desafio da reflexo interdisciplinar, considerando que todos eles estabeleceram em suas trajetrias alguma relao com a histria e enfrentam esse dilogo na sua lida profissional. Optamos tambm por mesclar as contribuies de autores de dentro e de fora do Iphan, explicitando seus diferentes lugares de fala, considerando que se trata de dilogos no somente interdisciplinares, mas tambm interinstitucionais e, por fim, entre intelectuais comprometidos em refletir sobre o campo do patrimnio.

    Como sabido, a origem das prticas de preservao do patrimnio cultural no mundo moderno est associada aos processos de formao dos estados nacionais, no sculo XIX; modelo que se multiplicou globalmente conforme a nova ordem mundial que se instalava ento. Naquele contexto, coube aos historiadores

    7. A categoria profissional dos antroplogos tem buscado refletir sobre sua especificidade nesse campo, colocando em evidncia as ambiguidades dessa tarefa, a complexidade dessa ao e as questes de ordem tica que ela envolve. Para o assunto, ver Isabela Tamaso (2006) e Antnio Augusto Arantes (2001).

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    (como uma das questes fundadoras da disciplina da histria que se constitua) a escrita das histrias nacionais. nesse contexto que um conjunto de bens arquitetnicos e monumentais consagrado como patrimnio nacional, cujos atributos o tornam prova da existncia da nao e de suas origens em tempos imemoriais, configurando uma identidade prpria, isto , apropriadamente nacional. Ao final do sculo XX, o surpreendente desenvolvimento cientfico-tecnolgico e os enfrentamentos sociais, ideolgicos e culturais levaram ao fim de utopias e a brutais desiluses, resultando tambm numa crise de referncia sobre o lugar do intelectual no mundo contemporneo.

    A temtica se apresenta hoje, portanto, numa perspectiva bastante distinta daquela descrita anteriormente, contudo, ainda relacionada questo das identidades. Ao mesmo tempo em que vimos ocorrer um redimensionamento simblico das fronteiras nacionais, vimos o mergulho no universo singular das identidades locais territorializadas e a proliferao de memrias como uma caracterstica sui generis da contemporaneidade. Nessa nova configurao, o campo do patrimnio cultural sofreu ampliao e mudanas significativas para lidar com um mundo saturado de memrias.8 Tais fenmenos vm intrigando historiadores e cientistas sociais e tm se tornado objeto de investigao de programas de ps-

    8. Em outra perspectiva, esse fenmeno pode ser visto tambm como a crise de identidades provocada pela globalizao e localizao, que tem gerado novas formas de identidades, conforme tratado por vrios autores em diferentes contextos. (Tamaso, 2006)

    graduao, de laboratrios de pesquisa e de financiamento por agncias de fomento tambm no Brasil. Este parece ser o momento em que se encontra em franca expanso o dilogo entre a produo acadmica e a produo reflexiva advinda das instituies executivas de preservao cultural, em especial o Iphan, cuja prtica ainda referencial nesse assunto. E dele pretendemos tirar o maior proveito.

    Dentre os investimentos que vm sendo feitos, nas ltimas dcadas, no sentido de consolidar essa rea de investigao, podemos destacar nomes consagrados como o do gegrafo ingls David Lowenthal (1998) ou o do antroplogo argentino Nestor Garcia Canclini (1997), na perspectiva latino-americana. Nesta Revista, optamos pela traduo de um artigo do historiador francs Dominique Poulot, que tem desempenhado papel significativo na atualidade, no sentido de configurar um campo especfico de investigao relacionado ao patrimnio cultural a partir da contribuio disciplinar da histria. Ao mesmo tempo, vale destacar o carter interdisciplinar que tem dado ao seu empreendimento, aproximando especialmente a histria e a antropologia, como integrante do LAHIC.9

    Dois aspectos perpassam a narrativa deste nmero da Revista: o primeiro deles o questionamento feito, de modo explcito ou no, sobre o sentido da diviso entre materialidade e imaterialidade do

    9. O LAHIC Laboratoire dAntropologie et dHistoire de lInstitution de la Culture um laboratrio de pesquisa, de carter interdisciplinar, que se prope ao estudo da instituio da cultura. Foi criado em 2001, integrando LEcole des Hautes Etudes en Sciences Sociales EHESS, na Frana.

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    patrimnio cultural que ainda se apresenta na atualidade. O segundo se refere ao carter interdisciplinar da reflexo e da ao no mbito da preservao cultural. Nenhuma disciplina tem condies de assumir, na sua totalidade, as discusses sobre a preservao cultural, tampouco a formao de profissionais para atuarem nessa seara. Contudo, a importncia da contribuio de cada disciplina nesse universo inter e multidisciplinar , justamente, o que ela pe em dilogo graas sua singularidade.

    A partir dessas consideraes, os artigos foram reunidos em trs partes, que se apresentam numa sequncia de sentido. Detalhadas a seguir, a primeira parte remete reflexo sobre a histria da configurao do campo do patrimnio cultural, problematizando aspectos conceituais constituintes desse campo. Na segunda parte, a nfase est na reflexo sobre a gesto do patrimnio cultural no Brasil. E, na terceira parte, o foco est na possibilidade de temticas tradicionais da histria do Brasil fazerem vislumbrar novos objetos para a categoria de patrimnio cultural.

    Preocupados especialmente em compreender as razes que levaram dimenso superlativa alcanada pelo campo do patrimnio cultural na atualidade e amplitude de temas e questes postos na agenda da contemporaneidade no campo da cultura que, de certo modo, passaram a ser tratados sob a tica da patrimonializao, pretendemos evidenciar, na Parte I, intitulada Em foco o campo do patrimnio como a pesquisa histrica pode elucidar questes capazes de colaborar com a formulao de alternativas para a preservao cultural. O

    recurso a interpretaes em diacronia e o reconhecimento da pertinncia de diferentes temporalidades em um mesmo contexto brasileiro de espao-tempo, alm do trabalho sistemtico com fontes documentais de diferentes naturezas, que do especificidade ao seu trabalho, permitem ao historiador, na maioria das vezes, identificar novos problemas que estavam ocultados pela memria histrica10 ou por leituras expeditas que se reproduzem acriticamente.

    Reunimos aqui os artigos que de algum modo problematizam a noo de tempo e provocam a reflexo acerca da acelerao da produo de memrias no presente. O artigo de Dominique Poulot, referido anteriormente, afina-se com essas preocupaes. Nele, o autor divulga sua ideia a respeito da existncia de uma razo patrimonial, estabelecendo nexos, consonncias e confrontos entre o discurso histrico e o discurso patrimonial.11

    Atento ao alerta de Michel de Certeau sobre os riscos do uso do tempo como um mero instrumento de taxionomia, Jos Carlos Reis apresenta em seu artigo, numa perspectiva diacrnica, um amplo universo de leituras sobre as apropriaes da noo de tempo como categoria operativa para a reflexo historiogrfica. Reis preocupa-se em caracterizar o vestgio como coisa (aquilo que deixa a mensagem durar e assegura a passagem anterior de outros homens) e como

    10. A noo de memria histrica est sendo usada aqui na perspectiva adotada por Carlos Alberto Vesentini em seu livro A teia do fato. 11. Disponvel no original em francs no site http://www.lahic.cnrs.fr/IMG/pdf/article_poulot.pdf. Ttulo original: Histoire de la raison patrimoniale en Europe, XVIIIme XXIme sicles.

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    sinal (que carrega em si a sua data sem tomar o lugar do que ela representa), referindo-se preocupao com a imagem que o futuro ter do presente. Damos aqui um passo adiante na reflexo sobre a diviso hoje existente entre a materialidade e a imaterialidade do patrimnio cultural.

    Jorge Coli, num mergulho radical sobre a materialidade e a imaterialidade da obra de arte, questiona a real importncia da conservao da matria, se no seriam as suas representaes em outros suportes (em reprodues fotogrficas etc.) ou mesmo pela memria (as representaes do esprito) que trariam o real sentido do ato de preservao. Nesse caminho, Coli prope a distino entre autor e artista para introduzir uma polmica discusso no campo das polticas de conservao do patrimnio cultural acerca da autoridade do artista em definir sobre a preservao ou no da sua obra, pois, em sua radicalidade, o que importa so as apropriaes da obra no tempo, pelos sujeitos pensantes que ela produz. O tema trabalhado nos levou a refletir sobre as consultas feitas regularmente ao arquiteto Oscar Niemeyer a respeito da restaurao de sua obra na cidade de Braslia tombada em nvel federal e declarada Patrimnio Mundial pela Unesco. Sem dvida, esse assunto pode ser remetido outra natureza de questes, relativa tica na preservao do patrimnio cultural.

    Sobre tica e o ofcio do historiador, Mrcia Mansor DAlessio aponta para uma reflexo sobre construes identitrias, que almejam estabilidade (seja ela de ordem social, poltica, emocional etc.). A construo de uma memria nacional provocou, historicamente, uma guerra de

    memrias, citando Andr de Chastel, mas para a autora, essa tenso ainda est presente nos dias de hoje, em funo dos debates em torno do direito memria. No Brasil, esse direito, conquistado juridicamente com a Constituio de 1988, faz parte, ainda, da agenda contempornea, pois vrios grupos continuam lutando para sair da invisibilidade a que esto submetidos. Uma das possveis contribuies do historiador a proposio de ferramentas metodolgicas para lidar com a experincia da alteridade no tempo.

    Manoel Salgado nos oferece uma reflexo sobre os usos e demandas contemporneos do passado, no intuito de esmiuar o trabalho simblico de patrimonializao e refletir sobre a transformao de objetos em algo distinto daquilo para o qual foram produzidos. Se, na origem, patrimonializar significou a ruptura do presente com o passado, a conscincia de que se vivia um novo tempo levou elaborao de um luto pela sua perda e necessidade de se preservar marcas desse tempo perdido. Na atualidade, o excesso de produo de memrias tem colocado em xeque sentidos at ento consagrados e formulado novos problemas ao historiador. O caso do DDR Museum (dedicado antiga Repblica Democrtica Alem), em Berlim, apresentado pelo autor paradigmtico da realidade que vivemos hoje.

    Por que no pensarmos sobre a ao de patrimonializao na atualidade como uma atualizao do drama da modernidade, na medida em que a escala amplificada que assume essa ao hoje pode significar no sua repetio (que redundaria em farsa no verdadeiro esprito ps-moderno), mas em

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    transformaes significativas do mesmo? Para isso novos problemas de entendimento devem ser colocados em pauta e quem traz a lume essa questo, numa certa perspectiva, Andrea Daher, ao propor o rompimento com o antigo paradigma iluminista e romntico de que haveria garantias de qualidade eterna numa obra, seja ela qual for. Definitivamente, preciso aceitar que tais bens no possuem valores intrnsecos para se refletir sobre os valores de uso do patrimnio cultural, tendo em vista a dificuldade de se considerar a imaterialidade dos usos diversos dos bens culturais, ainda encontrada nos discursos e prticas da atualidade. A autora vai analisar a persistncia do paradigma modernista ainda em vigor nas prticas de preservao e as dificuldades da advindas para a proposio de uma nova perspectiva de tratamento do patrimnio cultural.

    Semelhante crtica tambm realizada por Roberto Conduru em seu artigo. No dilogo entre histria e arquitetura, o autor estabelece uma srie de aproximaes e distines entre as disciplinas, num jogo dialtico que nos leva a refletir sobre a historicidade das mesmas em suas relaes com o campo do patrimnio cultural, apontando que a construo dos patrimnios tem participado da construo dos campos da histria e da arquitetura. Para exemplificar essa afirmativa, faz referncia ao desprezo feito arquitetura acadmica pelos modernistas do patrimnio, focalizando o caso do Instituto de Educao, na cidade do Rio de Janeiro, cujo tombamento em nvel federal foi rejeitado. Considerando a prevalncia dada ao projeto, especialmente o modernista, o autor nos

    conduz a uma reflexo sobre a imaterialidade do fazer arquitetnico e levanta indagaes sobre a sua preservao.

    A atualidade da discusso sobre o nacional, conforme consagrado por Benedict Anderson (2008), quer pela sua colocao explcita, quer ainda pela sua invisibilidade em favor de outros recortes de identidade possveis contidos no(s) nacional(is), nos levou a propor a reflexo histrica e historiogrfica acerca da natureza dos bens patrimonializados e dos processos instaurados para essa patrimonializao, bem como das formas de consagrao, salvaguarda e gesto do patrimnio cultural no Brasil.

    Fechando essa parte, ento, apresento um artigo de carter projetivo, cujo objetivo instigar a reflexo sobre a possibilidade de novos paradigmas que operem, efetivamente, com uma noo de patrimnio cultural integradora das categorias material e imaterial, apontando para o carter histrico dessa diviso, no mbito da poltica brasileira de patrimnio cultural.

    Na Parte II, denominada Histria e poltica dois artigos esto voltados para construo de uma histria do pensamento e do campo do patrimnio cultural no Brasil, relacionando suas redes e suas matrizes tericas. Em artigo de flego, os historiadores Analucia Thompson, Cludia Leal, Juliana Sorgine e Luciano Teixeira fazem uma anlise diacrnica da Revista do Patrimnio, focando o papel da histria na Revista. Seus 33 nmeros foram divididos em duas fases, sendo que, na primeira (de 1937 a 1978), foi trabalhada a gnese da noo de civilizao material e seus contedos configuradores de um novo espao de conhecimento, especialmente concentrada

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    na viso de Afonso Arinos de Melo Franco, buscando compreender com qual noo de histria se operava ento. Nesse exerccio, os autores identificaram o historiador como categoria predominante entre aqueles que escreviam na Revista, no definida pela formao acadmica naquele momento inicial, mas por outros critrios relativos a sua trajetria socioprofissional. A segunda fase, que perdura at a atualidade, o momento em que o peridico investe numa abordagem multidisciplinar e visa ampliar o dilogo com diferentes setores da sociedade. Desse modo, por meio da sua Revista, o Iphan se posiciona no campo do patrimnio constitudo e que cada vez mais se especializa, consagrando sua natureza mltipla, diversa e interdisciplinar.

    O artigo de Antnio Carlos de Souza Lima e Carla Costa Dias analisa as relaes entre o Museu Nacional na esfera da antropologia e o Sphan, nos anos 30 e 40, ambas instituies voltadas cada qual a seu modo para elaborar e disseminar uma ideia de nao. Nesse complexo empreendimento, um elo surpreendente serviu de enlace e constituiu redes, na gesto de Helosa Alberto Torres e de Rodrigo Melo Franco de Andrade, frente das instituies, respectivamente: a ideia de popular, apresentada historicamente no artigo. Sphan e Museu Nacional compartilharam a organizao de expedies do fotgrafo Herman Kruse ao serto baiano, que duraram at o ano de sua morte, em 1947, com o propsito de colecionar peas que fizessem ver o mais tpico dos nossos elementos, o sertanejo e tambm de fotografar a arquitetura tradicional ali encontrada. Vale destacar a originalidade do tema e sua atualidade, nesse momento em

    que o popular se confunde com o patrimnio imaterial nas polticas de preservao, assim como a complementaridade do acervo documental fotogrfico das duas instituies, que os autores valorizam e do a conhecer.

    Outros trs artigos desta parte vo analisar diferentes estratgias do Iphan na gesto do patrimnio cultural que privilegiam a perspectiva histrica, considerando o vis poltico que d sentido s escolhas e impingem tomadas de deciso.

    Marcus Tadeu Daniel Ribeiro polemiza, em seu artigo, a poltica institucional do Iphan que evita os tombamentos das chamadas casas natais ou, conforme prefere o autor, casas histricas, por considerar prejudicial empreender aes de proteo em imveis de remisso evocativa memria de personalidades, exceo daqueles depositrios de acervo arquivstico, documental ou artstico. Explicitamente contrrio a tal poltica, o autor descreve, classifica e analisa tombamentos de casas histricas realizados pelo Iphan, trabalhando diacronicamente a ideia de valor histrico nas aes institucionais, relacionando-as com matrizes da historiografia brasileira. Ao instigar a polmica, o autor afirma defender no o culto da imagem por meio desse tipo de tombamento, mas a compreenso da mentalidade de uma poca, por meio de estudos a respeito da ao de sujeitos, estudos esses que devem ser empreendidos visando ao tombamento, preservando assim vestgios que possam documentar a histria brasileira.

    Lia Motta, tambm preocupada com a preservao de vestgios que possam documentar a histria da ocupao do territrio brasileiro, apresenta o relato

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    da experincia de aplicao do Inventrio Nacional de Bens Imveis em Stios Urbanos Tombados INBI-SU, concebido nos anos 80 para enfrentar o problema de gesto do patrimnio urbano. A riqueza do artigo est na sua cuidadosa descrio da metodologia, pondo em evidncia suas principais filiaes tericas, tais como a adoo do conceito de cidade-documento, que inaugurou os novos tombamentos de cidades realizados pelo Iphan, naquela dcada, e sua estrutura de trabalho interdisciplinar, visto como nica possibilidade de efetivamente criar um trabalho de preservao do patrimnio cultural renovado, inaugurando-se, ento, uma cultura interdisciplinar no Iphan. Mais interessante, contudo, a capacidade da autora ela mesma arquiteta de apresentar o dilogo entre arquitetos e historiadores na anlise da forma urbana. Essa metodologia, aprimorada na dcada de 1990, com a sua institucionalizao, tornou-se perifrica como alternativa de gesto do patrimnio urbano na atualidade, fruto das tenses da poltica institucional tratada no presente artigo.

    Daryle Williams introduz no debate deste nmero da Revista a temtica do patrimnio cultural universal numa perspectiva poltica. Para tanto, analisa os vestgios das misses jesutico-guarani no Brasil e na Amrica do Sul e as estratgias para sua gesto. A histria de um patrimnio nacional consagrado curva-se s possibilidades e s tenses do Patrimnio da Humanidade, reconhecido pela Unesco em 1984, do patrimnio regional, reconhecido pelos pases-membros do Mercosul em 1996 e tambm do patrimnio local neste caso, presena constante na histria do

    patrimnio no Brasil. Para o autor, no possvel entender a trajetria histrica de um patrimnio cultural brasileiro sem pensar na prtica e na escrita de uma histria ptria nacional (e nacionalista), ambas direcionadas pelo estado central.

    Fechando essa parte, o artigo-depoimento de Jaelson Bitran Trindade, primeiro historiador contratado pelo Iphan, em 1970, relata, numa perspectiva quase pessoal entre a memria e a histria, conforme dito por ele mesmo, a trajetria das pesquisas desenvolvidas na sede regional do Iphan em So Paulo. Enfatiza, principalmente, o perodo em que Lus Saia esteve frente da sede regional, de 1937 a 1975, que contou tambm com a mtica figura de Mrio de Andrade entre os seus funcionrios at 1945, ano de sua morte. Vale lembrar que Lus Saia fora aprendiz de Mrio de Andrade, tendo participado das famosas viagens de inventrio ao Nordeste brasileiro realizadas ainda no Departamento de Cultura de So Paulo.

    Por fim, na parte III, denominada Temas clssicos da histria, novos objetos de patrimonializao, reunimos os artigos que abordam questes clssicas da histria, mas que, no campo da preservao cultural, se apresentam como novos temas, para os quais ainda no dispomos de experincia acumulada nem de referenciais conceituais consolidados para identificao de objetos, bens e prticas culturais, cuja patrimonializao poderia ser de interesse, tampouco para avaliar os aspectos polticos que envolveriam tal ao. Esses artigos contribuem para a construo de novos objetos de patrimonializao, considerando em especial a perspectiva de uma abordagem

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    integral do patrimnio cultural, associada ao compromisso com a valorizao da diversidade cultural brasileira pensada aqui historicamente. Desse modo, tais artigos podem ser estimulantes no sentido de se promover a ressignificao de vestgios materiais antes no reconhecidos como representativos de uma identidade brasileira em construo, tanto quanto um redimensionamento de questes atualmente tratadas de modo setorial. Ou seja, abordam temas e valorizam aspectos j incorporados em aes voltadas para a salvaguarda do patrimnio imaterial, especialmente relacionados cultura afrodescendente, de modo que sejam tambm incorporados aos debates relacionados ao patrimnio material.

    Lilia Schwarcz discute a construo de uma espcie de comunidade imaginada como uma poltica de Estado durante o governo de d. Pedro II. Esse tema foi at bem pouco tempo desprezado pelas aes de proteo do patrimnio cultural em nvel federal, pelo entendimento dos fundadores dessa ao no Brasil de que as origens da nacionalidade se revelaram em expresses artsticas do perodo colonial, em particular na intensa produo das Minas Gerais, o que no teve continuidade no perodo seguinte, ps-Independncia, quando foi entendido que no projeto de civilizar o pas e construir a nao do Imprio, o fundamental era assemelhar-se ao europeu. Dessa forma, os elementos artstico-arquitetnicos ento construdos perderam aquele carter de expresso genuna da brasilidade ao tentar se espelhar nos modelos europeus de ento. Embora essa viso no seja mais predominante, a

    proteo de bens que tm relao com a construo da nao no sculo XIX ainda hoje medocre em termos quantitativos. Desse modo, desconstruindo essa viso limitada relativa ao perodo, a autora vai apresentar o explcito desejo do imperador de construir uma nacionalidade e vai mostrar que selecionar, destacar e criar um determinado patrimnio nacional e procurar em um passado mtico as estacas desse edifcio foi tarefa premeditada do Segundo Reinado, que buscou uma origem remota, em uma regio lendria onde conviveriam indgenas e nobres brancos. Obviamente, era impensvel a considerao do negro nessa comunidade de sentido que se pretendeu construir na ordem escravista.

    Alberto da Costa e Silva, ao apresentar um panorama das relaes histricas entre Brasil e frica, iniciadas ainda no sculo XVI (com o deslocamento de negros escravizados no Brasil para a frica, junto com portugueses, a fim de recuperar o territrio de Angola tomado pelos holandeses) at o momento em que essas relaes foram bastante minimizadas, ao final da Grande Guerra, produz uma narrativa carregada de sentidos e identidades que, nascidos da fenda da dispora, foram compartilhados especialmente pelos chamados retornados aqueles africanos escravizados no Brasil que retornam frica ao longo do sculo XIX. Em um emaranhado de linhas fronteirias que se fazem e se desfazem concreta e simbolicamente, apresenta-nos um surpreendente, amplo e diverso acervo de patrimnio cultural que, por uns instantes, nos faz esquecer o imenso Atlntico que se impe entre os dois continentes. A reduo

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    desse contato com o fim do intenso comrcio martimo abriu um processo de anglicizao, afrancesamento e mesmo reafricanizao desses grupos. Contudo, o autor destaca a presena ainda marcante da arquitetura e dos antigos fortes em vasta regio da costa atlntica africana, at a linha do Equador. A perspectiva apresentada por Alberto da Costa e Silva nos sugere uma reflexo sobre as possibilidades de integrao cultural por meio da proposio conjunta de bens culturais do Brasil com pases africanos, em especial os de lngua portuguesa como patrimnio mundial Unesco (de natureza vria), considerando a contiguidade territorial dos dois continentes, sendo o Atlntico uma linha de fronteira tnue que, apesar do drama histrico, irmanou mais do que distinguiu os povos.

    Tendo como preocupao colaborar com as discusses acerca do tratamento a ser dado aos stios detentores de remanescncias de antigos quilombos para atender ao que determina a Constituio Brasileira de 1988, Flvio Gomes aborda experincias da escravido e ps-emancipao, tema caro historiografia brasileira, trazendo luz s contribuies que o historiador, no exerccio do seu ofcio, pode oferecer. Nessa tarefa, descreve diferentes formas de aquilombamento, cruzando registros de antigos quilombos com evidncias contemporneas com comunidades negras remanescentes, articulando diferentes fontes documentais. Fez registros de memrias em comunidades negras no Par, onde aparecem narrativas fragmentadas sobre fugas de escravos, sobre migraes, trocas, feiras, tenses e solidariedades

    com populaes indgenas e tambm sobre experincias ps-1888. Para o autor, o investimento em investigaes histricas sobre as experincias camponesas do passado pode trazer novos conhecimentos para uma definio mais ampla dos quilombolas histricos e das comunidades negras, bem como dos vrios significados dos quilombos e seus remanescentes, reduzindo, com isso, as dificuldades para o reconhecimento, demarcao e efetiva titularizao da posse dessas terras, problemas enfrentados por esses grupos para garantir seus direitos na atualidade.

    Sandra Jatahy Pesavento trabalha com a cidade, tema clssico para a histria. Para isso, relaciona a histria com a literatura, narrativas que se entrelaam, justamente, no espao urbano, lcus de origem e produo desses textos. A autora percorre caminhos que a levam s similitudes e s diferenas dessas duas formas de falar do real: a histria, que produz verses acerca do passado; e a literatura, sem o mesmo compromisso de encontrar verses que remetam ideia de verossimilhana com relao ao passado. Para a autora, as duas narrativas se mesclaram para construir uma histria da cidade e, para compreender esse processo, prope a diluio de fronteiras para relativizar a dualidade entre verdade/fico ou outras oposies que simplificam em demasia a realidade. Para radicalizar, a autora nos provoca com a afirmativa de que os fatos histricos so tambm eles criao do historiador, propondo que tal confronto se desfaa com a ideia de que as duas narrativas so representaes discursivas que falam do real e reinventam o passado.

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    Ambas tomaram a cidade como objeto e, como a memria, presentificam um ausente. A autora se prope, ento, a entrelaar os trs campos na cidade histria, literatura, memria remetendo construo das identidades urbanas como um processo social e individual a um s tempo. Abrir essas fronteiras o grande desafio do historiador contemporneo que, numa atividade multidisciplinar, deve estabelecer dilogos com outros objetos e temas.

    Jos Carlos Sebe Om Meihy apresenta vrios aspectos terico-metodolgicos que envolvem o fazer da histria oral, considerando pontos que a tornam, sem dvida, um modo j consagrado de produo historiogrfica, mas, tambm, um recurso polmico em relao a seus usos. Apresenta como estudo de caso curiosa discusso a respeito das representaes em torno do caipira em Taubat, cidade natal de dois ilustres criadores dessa mtica figura da cultura brasileira, por eles desenhada de modo antagnico: Monteiro Lobato e Mazzaropi. A fim de compreender os vnculos afetivos e identitrios daquela populao com o ser ou no ser caipira, nas palavras do autor, realizou uma srie de entrevistas nas ruas da cidade buscando a opinio de seus moradores sobre as esttuas instaladas pela Prefeitura em praa pblica em homenagem ao caipira.

    O que apontamos at aqui no deixa dvidas sobre a complexidade do campo do patrimnio cultural. Para circunscrev-lo, destacamos alguns processos pertinentes sua preservao, nos quais se situam boa parte dos problemas enfrentados na atualidade, que envolve o setor privado,

    o Estado e os movimentos sociais, quer porque ainda no se dispe de padres ou ferramentas de ao, quer porque os dispositivos existentes no detm mais a legitimidade desfrutada anteriormente.

    1) Sobre o processo de seleo visando patrimonializao: coloca-se em discusso hoje a representatividade social do processo de seleo de bens culturais que se tornam patrimnio seja por meio do tombamento seja por meio do registro, bem como dos processos instaurados para compartilhamento dessa seleo e indicao de sua consagrao pela chancela do Estado. Nesse aspecto, a conformao e as atribuies do Conselho Consultivo do Patrimnio Cultural, vinculado ao Iphan, e tambm dos demais conselhos ligados aos rgos de patrimnio nos outros nveis de poder so postas em discusso.12 Nesse assunto, incluem-se tambm os debates acerca das novas abordagens sobre objetos historicamente consagrados como patrimnio cultural.

    2) Sobre a valorizao da diversidade cultural brasileira: trata-se do longo processo de consolidao de novos paradigmas a partir dos debates instaurados na Constituinte e dos resultados concretos alcanados a partir do texto constitucional de 1988, com a identificao de outras fontes de identidade advindas do reconhecimento da pluralidade e diversidade cultural formadora da sociedade brasileira, para alm do reducionismo histrico do mito das trs raas. Nesse

    12. Isabela Tamaso (2006) indaga a respeito do papel do antroplogo nesse tipo de Conselho, por se tratar de uma esfera de poder que hierarquiza prticas culturais. Na mesma linha de preocupao, ver artigo de Regina Abreu e Manuel Ferreira Lima Filho (2007).

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    assunto, novos objetos materiais ou imateriais passam a ser vistos na perspectiva da patrimonializao, relacionados cultura popular de modo amplo, s culturas indgenas, aos afrodescendentes e tambm s culturas dos imigrantes no Brasil e que precisam de um tratamento como patrimnio cultural no dividido em material e imaterial.

    3) Sobre a gesto do bem cultural patrimonializado: a gesto do patrimnio cultural chancelado pelo Estado, por meio de polticas pblicas, que agregam valor simblico, intervm na economia de mercado de bens culturais. Essa ao altera o valor econmico dos bens, valorizando o patrimnio mobilirio (de obras de arte em geral, inclusive de produo popular) e tambm o patrimnio imobilirio urbano, especialmente quando apropriado pelo turismo.13 H circunstncias em que, por outro lado, ocorre uma desvalorizao do valor econmico da propriedade privada, impedida de se transformar ou de ser demolida pela especulao imobiliria urbana. Em qualquer dessas situaes, o importante perceber a ambivalncia dos efeitos da patrimonializao pela ao do poder pblico em relao sua mercantilizao, pois, ao mesmo tempo em que quer proteger o bem cultural da destruio est promovendo a sua transformao. Tambm as manifestaes culturais sofrem alteraes ao serem chanceladas pelo Estado. Instala-se, por vezes, uma espcie de concorrncia entre os produtores e/ou praticantes,

    13. Para o assunto, ver tambm o estudo de Leila Bianchi Aguiar (2006) sobre patrimnio e turismo, com estudo de caso sobre a cidade de Ouro Preto.

    pela titularizao do registro, ou ainda, alteram-se as prticas para se adaptarem a demandas do mercado turstico, atrado pela declarao de patrimnio cultural atribuda pelo poder pblico.

    4) Sobre os aspectos jurdicos da preservao cultural: todas as aes de patrimonializao requerem ferramentas jurdicas para sua implementao. Nesse caso, a natureza dos bens vai interferir na escolha das ferramentas apropriadas, bem como na inter-relao com os problemas e as ferramentas de outros setores como o meio ambiente, a gesto urbana, os direitos culturais, a questo agrria e a posse da terra etc. Em relao s manifestaes culturais relacionadas a bens de natureza imaterial (ofcios, festas coletivas, feiras etc.), as aes de salvaguarda empreendidas pelas polticas pblicas remetem a problemas jurdicos relacionados aos direitos difusos, que requerem ferramentas jurdicas ainda inexistentes, bem como geram consequncias sobre essas manifestaes, intervindo, inevitavelmente, na sua trajetria histrica, nos seus traos, no seu modo de estar e de se relacionar com o mundo.

    Com a narrativa que compe, no todo, este nmero da Revista dedicado relao entre histria e patrimnio, gostaramos de oferecer aos leitores os equipamentos para uma longa viagem, na qual se debrucem sobre a complexa trama que envolve as prticas de preservao do patrimnio cultural. Pens-las em consonncia com a proposio de uma razo patrimonial, sem deixar de atentar para os matizes prprios que singularizam o caso brasileiro, parece-nos uma interessante porta de entrada. A todos ns, boa sorte na viagem.

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    Pg. 25: Feira em Ferro Veloso (AL), registrada por Mrio de Andrade Acervo: Arquivo Central do Iphan, seo Rio de Janeiro

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    Domin ique Pou lo t

    A razo patrimonial na Europa do sculo XVII I ao XXI

    O patrimnio, que se tornou smbolo de elo social, est hoje em toda parte, da mobilizao dos corpos polticos instituio cultural.1 Paralelamente, a realidade do turismo internacional, tendo em vista a importncia de suas repercusses econmicas, torna a interpretao do patrimnio, ou mesmo sua simulao, um instrumento quase sempre decisivo para o desenvolvimento local (Greffe, 2003). O imperativo de conservao da herana material e, de agora em diante, da imaterial, impe-se, portanto, sem discusso nos pases desenvolvidos, bem como no resto do mundo. A cada dia adquire um carter mais geral e de obrigatoriedade, manifestando-se por meio de dispositivos legais e de regulamentao, cujo mbito de aplicao se amplia cada vez mais. Alm disso, a realidade das destruies (iconoclasmos religiosos ou ideolgicos, danos colaterais de conflitos ou domicdios concertados),2 que, sem dvida, se tendeu a subestimar ou a considerar

    1. Ver Beghaim (1998). As recomposies de heranas materiais na Europa no final do sculo XX resultaram em uma patrimonializao nostlgica ou no (Boym, 2001; Verdery, 1999), enquanto o ensasmo cultural multiplicava as anlises do jogo referencial de segunda mo Marjorie Garber (2003). Sobre os casos franceses Bensa A. e Fabre D., Une histoire soi, Mission du Patrimoine ethnologique, cahier n 18, Paris, MSH, 2001.2. J. Douglas Porteous e Sandra E. Smith (2001) fornecem a geografia dos empreendimentos deliberados de destruio de moradias e territrios construdos.

    abolidas desde o final da 2 Guerra Mundial, recentemente fez recrudescer o sentimento de urgncia que sempre acompanhou e nutriu a conscincia patrimonial.

    Buda de 55 metros de altura no Vale Bamiyan, Afeganisto Foto: F. Rivire, Unesco. Acervo: Wikimedia Foundation/Wikicommons (http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Tall-Buddha-Bamiyan_F.Riviere.jpg)

    A manifestao de um ponto de vista contrrio uma eventual recusa da patrimonializao ou sua crtica radical s pode ser considerada vndala, estigmatizada como tal, ou, ao menos, no significativa no debate pblico. A emergncia de crticas tornou-se, de fato,

    Local do Buda destrudo pelos talibs em 2001 no Vale Bamiyan, AfeganistoAcervo: Wikimedia Foundation/Wikicommons(http://en.wikipedia.org/wiki/File:BigBuddha.jpg)

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    .. bastante improvvel afora a expresso de divergncias sobre a melhor maneira de tratar os monumentos, os objetos e os stios. Mais que isso, essas preocupaes, outrora estreitamente profissionais, passaram a ocupar amplamente o espao pblico, ensejando numerosos colquios, oficinas ou entrevistas, onde so debatidos os meios e os fins, o futuro e os limites eventuais do fenmeno, em geral, dentro das prprias instituies patrimoniais.3 A perspectiva erudita na matria assemelha-se, sobretudo, a um levantamento das expertises feitas de forma contraditria sobre esta ou aquela iniciativa da administrao, ou sobre esta ou aquela opo de restaurao ou de interveno (Bessy e Chateaubriand, 1995). Os comentaristas no se furtam em destacar as contradies ou as ambiguidades dessa gesto, os limites das polticas pblicas e, com mais frequncia, todavia, o peso dos constrangimentos externos para lastimar desvios em relao a uma suposta idade de ouro da preservao, e para reafirmar a necessidade de uma poltica sempre respaldada na erudio dos especialistas.4 A perspectiva de uma histria da administrao cultural, por mais que liberta das argcias de militantismos contrariados, no basta tampouco para construir um

    3. Dos Entretiens du Patrimoine aos encontros Muse-Muses do Louvre, a atualidade recente francesa testemunha de um movimento internacional iniciado no comeo da dcada de 1970, por mim assinalado em Le Dbat na ocasio.4. Tal , finalmente, o propsito de Franoise Choay em Lallgorie du patrimoine (1996). Por outro lado, uma sociologia crtica e o projeto de uma arqueologia geral, concorrente com a histria da arte, esboaram uma denncia do patrimnio, tido por brao armado desta ou daquela disciplina, ou como o defensor de interesses particulares.

    objeto especfico, por ser, ela prpria, vtima da diversidade dos campos de interveno e de competncia dos servios aos quais deve prestar contas. No raro, ela espelha as partilhas entre disciplinas e histrias especializadas, que resultam em um dilogo de surdos, ou mesmo em conflitos implcitos (Poirrier e Vadelorge, 2003). Tanto que, na Frana, o patrimnio suscitou apenas, de maneira geral, um interesse bastante relativo no campo da pesquisa em histria e em cincias sociais diferena do arquivo, a um s tempo objeto e instituio de memria relativamente prximo primeira vista.5 Contudo, da mesma forma que o crescimento da preocupao com a memria permitira outrora a Pierre Nora pensar os lugares de memria nacionais, a atualidade viva da patrimonializao um convite para questionar a construo dessa forma de obrigao e de responsabilidade no tocante presena material do passado.6 A atualidade dessa abordagem evidente: se o arquivo contou, na antiga configurao dos saberes histricos, com a vantagem do segredo a ser desvendado que lhe era constitutivo , o patrimnio pode contar com a vantagem

    5. O arquivo assumiu o carter de uma metfora central no trabalho da teoria cultural depois de Michel Foucault e Jacques Derrida na reflexo epistemolgica conduzida por historiadores e antroplogos sobre a questo da leitura dos arquivos, assim como em uma srie de interpretaes da paisagem, do corpo ou da fotografia (Rosalind Kraus), bem antes de ser objeto de uma (re)apropriao crtica pelos arquivistas. Tornou-se aos poucos uma figura privilegiada para pensar a tecnologia estatal, sobretudo em sua verso imperial do sculo XIX. Em termos foucaultianos, dir-se-ia que o patrimnio no a soma dos monumentos conservados nem a instituio que os conserva, mas as regras de sua prtica, o sistema de seus julgamentos. Para o estado da arte cf. Jean Boutier, Jean-Louis Fabiani, Jean-Pierre Olivier de Sardan (1999, 2001).6. Sobre o caso dos museus ver Ludmilla Jordanova (1989) e Daniel J. Sherman (1989).

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    ..da sua publicidade na nova disposio da histria cultural, na qual o explcito , por sua vez, privilegiado pela investigao.

    Convm apreender a histria dos patrimnios como conjuntos materiais e, de modo indissolvel, como saberes, valores e regimes do sentido.7 Dessa forma, ser preservado da teleologia manifestada, por exemplo, na criao de sries retrospectivas de episdios tidos a posteriori como patrimoniais e que, presumidamente, desembocam na legislao contempornea.8 Evitar-se-, ainda, a tentao de estabelecer topografias dos patrimnios sob a forma de inventrios de outro pas sem maiores implicaes para ns. Ou repertrios que enunciam os comportamentos em relao ao passado material segundo uma escala de julgamentos morais e profissionais , do desprendimento cientfico ao zelo partidrio, de modo a expor falsificaes e manipulaes, desconsiderando a complexidade do investimento em todo processo de patrimonializao.9 Trata-se menos de distinguir entre o que de fato

    7. Ver, alm dos estudos clssicos de David Freedberg, Ann Kibbey (1986). 8. Ao assumir a parte de anacronismo que reveste um intitulado de histria do patrimnio para os sculos que precederam ao nosso, meu projeto se exporia seno reprovao de identificar uma essncia do patrimnio ao longo dos sculos. O fenmeno particularmente evidente em uma tradio de compilaes legislativas frequente na Itlia por motivos evidentes: Leggi, bandi e provvedimenti per la tutela dei beni artistici e culturali negli antichi stati italiani, 1571-1860, editado por Andrea Emiliani (1996). Sobre os usos do anacronismo, ver as reflexes de Nicole Loraux (1993) e G. Didi-Huberman (2000).9. David Lowenthal props, sucessivamente, esses dois tipos de abordagens em duas obras enciclopdicas, The past is foreign country (1985) e em The heritage crusade and the spoils of history (1998), que respondiam a um programa resumido anteriormente em David Lowenthal & Marcus Binney (1981).

    herdado e o que (re)construdo, ou entre fices sinceras e invenes desonestas, do que de questionar a produo e o consumo da prpria evidncia patrimonial, a um s tempo imaginrio e instituio.10

    O patrimnio como o princpio subterrneo e a manifestao autoproclamada de um trabalho social e intelectual: querer apreender o gesto patrimonial no seio da histria social e cultural pensar nos recortes e nos enquadramentos aos quais ele se consagra em uma relao sempre complexa com o que o organiza. A temporalidade material segundo a expresso usada por Bernard Lepetit (1995) para evocar a paisagem urbana do tempo solidificado a adquire valor em nome de vnculos, de convices, mas tambm de racionalizaes eruditas e de condutas polticas. A relao ntima ou secreta de um proprietrio, de usufruturios a ttulos diversos, de especialistas ou de iniciados em determinados objetos, lugares ou monumentos, torna-se pblica, quando esses so patrimonializados. Inversamente, como exposto por Simmel, aspectos outrora pblicos da herana partilhada ficam, certamente, sob a garantia do segredo.11

    10. Esse breve panorama dos pontos de vista a propsito do patrimnio, que me disponho a desenvolver ulteriormente, remete aos mesmos sistemas de partilha observados em outros campos quando se trata de discutir o indiscutvel, conforme a demonstrao de Alain Desrosires, particularmente na razo estatstica e no debate social. A oposio passa, por um lado, entre a descrio e a prescrio e, por outro lado, na prpria linguagem da cincia, entre posio realista que fala da fiabilidade da medida e o esforo da histria social ou da sociologia construtivista do conhecimento para examinar os laos entre taxionomia e sociedade. Ver Alain Desrosires (1993). 11. Sobre este texto de Simmel, ver Pierre Nora (1976). Daniel Fabre desenvolveu a problemtica do viver no patrimnio no presente em Domestiquer lhistoire Ethnologie des monuments historiques (2000).

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    .. O patrimnio encarna, em suma, um crescendo em generalidade de obras e objetos singulares, concebido de forma til para a ao de conhecimento e de conservao coletiva.12 Nisso, o patrimnio parece constituir um campo de aplicao privilegiado para reexaminar trs questes sob o ngulo da circulao social: a do olhar erudito sobre obras e objetos materiais; a da historicizao de uma sociedade e, de forma mais geral, de sua relao com regimes de historicidade;13 e, por fim, a da tica e da esttica que dela decorrem ou qual esto ligadas (a exemplaridade e a adeso,14 mas tambm a emancipao ou a denegao).15

    A partir dessas conquistas, pode-se adiantar que a evidncia do patrimnio se enuncia nos discursos contemporneos sob forma de uma razo especfica; que ela mobiliza sociedades e procedimentos diante

    12. O patrimnio pertence em grande parte ao domnio do paradigma indicirio de Carlo Ginzburg, mas, desdobrado, se assim se pode dizer, j que a incluso de um monumento no patrimnio remete, por um lado, sua poca histrica e, por outro lado, ao trabalho dos servios que assim o definiram: ele , dito de outra forma, o indcio e o cone de duas pocas. Que as representaes escamoteiam as prticas que as organizam uma das lies de Michel de Certeau na sua reflexo sobre a heterologia e a histria.13. Regime de historicidade [...] podia ser entendido de duas formas. Em uma acepo restrita, como uma sociedade trata seu passado e o utiliza. Em uma acepo ampla, na qual o regime de historicidade serviria para designar a modalidade de conscincia de si de uma comunidade humana (Franois Hartog, 2003:19). Cf. os trabalhos de Grard Lenclud (1992) e de J. Revel (1995). Ver tambm J. Revel e F. Hartog (2001). Um ponto de vista sociolgico que se interessa pela relao com a temporalidade o de Andrew Abbott (2001 e 2003). 14. A sociologia da legitimidade cultural deveria ser integralmente citada aqui. Sobre a histria intelectual da exemplaridade, assim como a das obras-primas que atravessam a do patrimnio sem recobri-la exatamente, ver Walter Cahn (1979) e Michel Jeanneret (1998).15. A literatura sobre o conjunto desses assuntos vastssima, mas os escritos mais teis parecem-me ser Moses I. Finley (1990), Arnaldo Momigliano (1998), Peter Burke (1969), Donald R. Kelley (1997) e seu comentrio crtico por Jean-Pierre Cavaill, George Huppert (1973) e Paul Ricoeur (2003).

    de objetos e culturas; e, por fim, que engaja narrativas de acesso, de (re)apropriao, de fruio, que constroem diversas convenes eruditas e populares.

    Pretendo, pois, desenvolver, simultaneamente, trs eixos de investigao, a saber:

    1 . A c r e d i b i l i d A d e p A t r i m o n i A l

    Em um momento no qual o simbolismo do patrimnio desempenha um papel to importante no debate pblico, especificamente em recomposies mais ou menos voluntaristas de legitimidade cultural, no se pretende aqui sondar a opacidade dos seus objetos em uma abordagem hermenutica prpria histria da arte; nem estabelecer, paralelamente ao seu interesse artstico, documental, ilustrativo ou erudito, seu valor de comunicao em nome de eventuais disciplinas museologia, heritologia (Pickstone, 1994). No se trata, tampouco, de traar a progressiva elaborao de uma conscincia coletiva, desde os balbucios dos primeiros arautos at seu coroamento sob uma administrao esclarecida; nem de escrever a crnica de progressivos enriquecimentos, no crescendo da proteo aos monumentos e na multiplicao dos museus. A perspectiva , ao contrrio, de desconstruir as representaes de identidade convencionadas de um patrimnio para insistir sobre as novas configuraes de seu estatuto, sobre suas incessantes recontextualizaes, sobre as desvalorizaes e as deslegitimizaes que o permeiam.

    O discurso patrimonial foi inicialmente uma categoria de celebrao prpria

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    literatura artstica, sob a forma de exaltao a uma cidade ou nao apreendidas em suas tradies e obras, como Andr Chastel o resumiu com base em Julius Von Schlosser. A Idade Moderna assistiu multiplicao das listas de obras e colees de cidades no campo da escrita antiquria (Schlosser, 1984).16 Em seguida, com a nova configurao cultural aberta pela Revoluo Francesa, o propsito se confundiu com a luta contra o vandalismo: ele se tornou um compromisso para a manuteno do status quo. No apagamento do Antigo Regime nos objetos de memria e nas suas civilidades, veem-se configurar novas relaes com a coletividade ao longo do sculo XIX. Uma das manifestaes

    16. Pouco estudados na Frana, esses campos so, ao contrrio, bastante explorados na Inglaterra: ver Rosemary Sweet (1997, cap. 1, notadamente sobre o antiquariato).

    mais espetaculares decorre no domnio do edificado , ao lado da conservao stricto sensu, do surgimento de intervenes que respondem progressiva instaurao de um academicismo da conservao-restaurao (Denslagen, 1994; Jokilehto, 1999; Sette, 2001).17 O vnculo da nao com a conservao passa por evidente com a emergncia de comunidades imaginadas (Anderson, 1991): a maioria dos objetos que contam, e cuja beleza pertence a todos como Victor Hugo proclamou torna-se a encarnao do esprito de uma coletividade particular (Miller, 1998). Eles se inscrevem em um lugar uma jazida , que eles ilustram e que os engaja em uma

    17. Ver tambm os estudos de caso reunidos em P. G. Stone e G. Planel (1999).

    Exemplo de vandalismo ideolgico na Frana: Abadia de Cluny, demolida entre 1798 e 1823, e reconstruda posteriormente. Foto: Patrick Giraud Acervo: Wikimedia Foundation/Wikicommons. (http://fr.wikipedia.org/wiki/Fichier:Cluny_Tours_et_Clochers.jpg)

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    .. reivindicao de autoctonia em um culto da transmisso.18 Percorrer os objetos nacionais, tal um proprietrio, torna-se, para o cidado, um ato poltico uma prova de civismo. Esse comrcio particular com as lembranas delineia formas culturais gerais e coloca em ressonncia esttica e poltica, do sublime nostalgia, dando lugar a enunciados mltiplos do in situ (Marchand, 1996). A arqueologia, em particular, fornece um conjunto de demonstraes reinvestidas ao sabor de eventuais revivals.19

    Ao longo do sculo XX, a noo de conservao engaja claramente uma representao da historicidade: o princpio de precauo contm uma conservao dita preventiva definida de forma estrita, enquanto as reflexes administrativas no cessam de afirmar que o patrimnio um presente do passado (Group-Conseil, 2000). Paulatinamente, o patrimnio assume uma posio crtica sob a forma de um aproveitamento positivo e de um julgamento de valor que afirma escolhas. Confessa-se marcado por embates polticos, econmicos e sociais, que ultrapassam largamente as fronteiras disciplinares (entre histria, filosofia, esttica ou histria da arte, folclore ou antropologia) , assim como o mostrou, ao longo da dcada de 1970, o reconhecimento de novos patrimnios. Tal ainda o caso da conservao dos recursos intangveis, ou da conservao cultural definida no incio da dcada de 1980 e que recobre

    18. Ver Yan Thomas (1980:425 e 1998) e o trabalho em andamento do Garae sobre a vertente antropolgica.19. Dois exemplos muito significativos: John Hutchinson (2001) e J. F. Gossiaux (1995).

    uma profuso de esforos pblicos e privados em benefcio de comunidades mltiplas (Penna, 1999 e Clifford, 1997). Paralelamente, um patrimnio mundial marcado por controvrsias ps-coloniais notrias abre-se para um retorno reflexivo sobre sua composio e seus usos.20 Se, em todos esses casos, a perspectiva histrica pode ensejar uma tomada de conscincia dos silncios e das falsas evidncias, o papel de uma histria do patrimnio no se confunde com uma profisso de ceticismo epistemolgico, com a denncia dos abusos do passado, ou com a simples inverso do processo em proveito de objetos esquecidos ou negligenciados.

    O estudo da vida social dos objetos (Appadurai, 1986) apreendido, em particular, nos jogos do colecionismo ou mais geralmente na sua recepo orienta-se h alguns anos para uma histria de suas prticas de admirao esttica e de memorizao tica, de engajamento erudito e de apego cvico. Tornou-se, da escola de Warburg a Arnaldo Momigliano ou Frances Yates, de Paolo Rossi (1993) a Mary Carruthers (2002), ou Caroline Bynum (2001), uma frente pioneira da histria cultural e poltica. Por meio de perspectivas diversas oriundas de tradies culturais e nacionais heterogneas, ou mesmo de regimes cientficos incompatveis, esboa-se, contudo, uma imagem. Assim, Leonard Barkan mostrou a relao entre a arqueologia e a emergncia da categoria

    20. Ao lado das disputas j antigas sobre restituies de obras, Moira G. Simpson (1996) forneceu um quadro dos debates atuais sobre a restituio de objetos sacros e de restos humanos. Para uma anlise exemplar ver Yves Le Fur (1999).

  • Bem restaurado ps-vandalismo na Frana, sculo XIX. Detalhe da fachada da Catedral de Notre-Dame, Paris. Foto: Glria Torrico, 2008

    Bem restaurado ps-vandalismo na Frana, sculo XIX. Detalhe da fachada da Catedral de Notre-Dame, Paris. Foto: Glria Torrico, 2008

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    .. esttica no Renascimento (Barkan, 1999).21 Outros estudos procuram relacionar os objetos, as prticas e os discursos que gradualmente constituram o saber da histria da arte, do museu ao livro ilustrado e ctedra (Haskell, 1993).22 Reexaminando as grandes narrativas do saber antiqurio e histrico, da emoo visual (o deslumbramento, a ressonncia23) e da vontade poltica e social, trata-se aqui de deslocar a perspectiva, de uma genealogia da esttica e das disciplinas antiqurias das convenes patrimoniais como regime material e grandeza do passado.24 Dar-se- ateno, em particular, s crises e s tenses sociais e polticas; s polmicas e aos conflitos artsticos e culturais;25 s desarticulaes repentinas ou progressivas das relaes com o passado e o futuro. Tais momentos assistem inveno de poticas patrimoniais inditas em suas definies, escolhas e exigncias.

    2 . A s c i v i l i d Ades do pA tr imn io

    A histria da inveno e da publicizao do patrimnio, pela exposio e pela escrita, deve ser considerada graas ao estudo dos meios empregados para o seu (re)conhecimento; graas anlise de seus modos de identificao e de gesto, jurdicos e eruditos; graas, enfim, abordagem

    21. Ver a continuao em Haskell e Penny (1981).22. Pode ser complementado por Burke (2001).23. Retomando as formulaes gerais propostas por Stephen Greenblatt e Helga Geyer-Ryan (1990).24. Retiro essa perspectiva de Clifford Geertz (1983). 25. Ver notadamente sobre a abordagem dos sciences studies e suas possveis adaptaes s cenas centrais e locais Jean-Louis Fabiani (1997).

    de suas prticas e fruies.26 Gostaria de mostrar como so relatados os achados, por meio dos inventrios, dos percursos e dos intercmbios; como se elaboram, paralelamente, as intrigas, os tipos de inventores e os estilos de patrimnios em relao com a ecologia das imagens e dos lugares. essencial aqui a elaborao de um sentido visual do passado, das paisagens monumentais das cidades s do campo, em uma relao complexa com a historiografia e com os aprendizados eruditos. O estudo do patrimnio responde, em sua generalidade, aos trs princpios de perceptibilidade, de especificidade e de singularidade prprios sociologia da recepo, tal como Jean-Claude Passeron (1992, cap. IX e XII) o explicitou. Cada um dos objetos que contam identificado por meio de guias, relatos de viagem, correspondncias, dirios, catlogos, em funo de reprodues em circulao, da importncia das evocaes ou das citaes das quais o pretexto ou o princpio. Dar-se- ateno s articulaes desses objetos em diferentes discursos ou argumentos, eruditos ou familiares, e encenao de seus amigos em redes de socializao erudita e artstica e, especificamente, segundo os modelos disponveis de apostolado patrimonial.27 De fato, morais individuais e ticas coletivas so elaboradas ou adotam novas configuraes em relao a legados mais ou menos reivindicados e achados mais ou menos oportunos. Assim, conviria interrogar a forma na qual

    26. Para um exemplo de um ponto de vista metodolgico ver Sharon Macdonald (1998) e, em especial, Lynne Cooke e Peter Wollen (1998). 27. Conviria comparar com a tica da repblica das letras considerada por Ann Goldgar (1995) e criticada por Christian Jouhaud.

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    ..a emulao erudita e a rivalidade na fruio das coisas se exacerbam mutuamente, por exemplo, em proveito da identidade de uma populao, de uma memria religiosa (os Vaudois de Alexis Muston, saudado por Michelet) ou de uma cidade.

    Os amigos dos objetos patrimoniais, amadores ou profissionais, polgrafos ou especialistas, militantes e funcionrios, constitudos em comunidades de interpretao, erigem-se em porta-vozes ou em advogados das inovaes, apropriaes e atribuies.28 Algumas dessas figuras o antiqurio e sua runa, o conservador e seu museu, o folclorista e seu campo tornaram-se aos poucos esteretipos quase antropolgicos.29 Observ-los permite questionar as identidades construdas pela reciclagem de imagens, objetos e prticas deserdadas e simultaneamente dadas em herana. Dir-se-ia que os objetos patrimoniais permitem localizar diferentes configuraes de um social que se desdobra por meio de suas partilhas e recusas. Esses dependem e se conservam a partir de procedimentos, de convenes discursivas, de exigncias materiais ou tcnicas. Os guias de estudo ou os manuais pedaggicos, os documentos oficiais, e as atas das sociedades eruditas e, mais amplamente, os romances familiares dos patrimonializadores e toda a literatura dos apegos aos monumentos pertinentes alimentam especulaes sobre as nomenclaturas e interrogaes sobre

    28. Os estudos de microssociedades e trocas informais em seu seio multiplicam-se hoje em histria moderna e contempornea. Algumas observaes bastante sugestivas de Miguel Tamen (2001) podem, desse ponto de vista, servir de base metodolgica.29. Stephen Bann (1984), Donald Preziosi (2003) e minha nota crtica na Revue de lArt, setembro de 2004.

    a Histria, afirmaes moralizadoras e enumerao de hierarquias.

    Uma enorme diversidade de modos de fazer passa a operar. Modos de fazer que devem ser questionados do ponto de vista notadamente do tipo de escrita comum encontrada em apontamentos de laboratrio, em anotaes de pesquisa, cuja riqueza a etnologia comeou a explorar.30 O homem do patrimnio em campo, distinguindo-se do homem comum, deve referenciar o objeto com suas coordenadas temporais, espaciais , para situ-lo em suas ambies, explic-lo, interpret-lo.31 Esse percurso sempre mais ou menos uma autodidaxia, como, desde o sculo XVIII, se afirmava do connoisseurship, tido como um saber apreendido fora de andanas, ou seja, de viagens e de intercmbios. Da em diante, o leque de curiosidades se abriu, ensejando a coleta de grande nmero de detalhes, de recursos complementares ou intermedirios, com ares furtivos.32 Toda uma economia da arqueologia esboa-se, por exemplo, das descobertas fortuitas no cultivo da terra at sua inveno por antiqurios locais e seu reconhecimento

    30. Daniel Fabre (1993), Martin de La Sourdire e Claudie Voisenat (1997) e em outro plano, para figuras de escrita expostas, sendo algumas patrimonializadas, ver Armando Petrucci (1993) e Batrice Fraenkel (2002). 31. Bonnie Smith (1998) examina a questo de gnero no trabalho de arquivo e o seminrio particularmente a relao do trabalho original e da vulgarizao, do amador e do profissional de uma forma que poderia ser til aqui para pensar o lugar do feminino na elaborao de um corpus patrimonial e sua validao. Ver de forma mais geral o dossi reunido por Luisa Passerini e Polymeris Voglis, Gender in the production of History.32. Tomo este termo emprestado clssica anlise de Michel de Certeau (1980:36). A uma produo racionalizada, expansionista, tanto quanto centralizada, ruidosa e espetacular, corresponde uma outra produo, qualificada de consumo: essa astuta, dispersa, mas

    se insinua por toda parte, silenciosa e quase invisvel, j que no se faz notar com produtos prprios, mas pelas maneiras de empregar os produtos impostos por uma ordem econmica dominante.

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    .. no seio da erudio nacional, economia de longa durao desde o Antigo Regime at as redes mais densas da poligrafia do sculo XIX (Woolf, 2003). No distanciamento ou na proximidade das peas, na permanncia ou na fugacidade de sua exposio, na seduo eventual dos processos de sua reproduo entra em jogo uma publicidade ampliada dos patrimnios, que tece laos complexos com o comrcio de objetos e de imagens baratas, de mais ou menos bom gosto, nas franjas do popular e do pitoresco.33

    Em todos os casos, as viagens improvisadas e as misses planejadas, as visitas e as coletas, as compilaes e as investigaes, as intervenes restauradoras e o aprendizado de modos de fazer elaboram e sancionam procedimentos.34 Os detalhes a serem apreendidos ou, ao contrrio, as partes a serem negligenciadas respondem a diversos gneros de inscrio do notrio e do pertinente no seio de repertrios a construir (Leask, 2002). A tentativa de construir uma histria patrimonial da cultura material exige debruar-se sobre a erudio e o colecionismo, suas disposies tcitas, suas pequenas ferramentas, suas fruies mudas. Em suma, sobre todos os gestos e saberes que organizam a percepo e a representao dos objetos em funo de hierarquias entre saberes locais, vnculos particularizados e o horizonte de conhecimentos gerais de um homem de sociedade.35 Para alm disso, tratar-se- de

    33. Rosemary Hill (1997) e mais geralmente uma grande parte dos artigos da revista Things, como os de Res no campo da antropologia. 34. Cf. as perspectivas a partir de objetos de cincia abertas por Eric Brian (1999). 35. Ver Peter Becker e William Clark (2001). Para a oralidade, Franoise Waquet (2003) e para as comparaes com a vida de laboratrio a obra de Bruno Latour.

    dedicar um interesse particular aos princpios de construo de um corpus, estratgia do trabalho em comisso forma de resposta a crises e/ou a problemas de definio , e aos modos de inspeo e de inscrio em sries que pressupem, com frequncia, uma cadeia de categorias a serem preenchidas, de lugares a serem verificados, em resumo, uma hierarquia a ser enumerada. A documentao patrimonial, assimilada por Guizot ao gnero da estatstica descritiva alem, cria algarismos o que Eric Brian denomina inscrio dos signos numricos em condies particulares de produo. So algarismos comparados pouco a pouco, de uma nao a outra, para medir os pesos relativos dos patrimnios, e que conviria analisar no mbito dos intercmbios entre eruditos, administradores ou legisladores, e a opinio pblica (Brian, 1994). Ela produz tambm colees efmeras, torcendo a frmula de Francis Haskell, que so outras tantas (re)produes pela imagem (Mondenard, 2002) e pela escrita de objetos isolados em uma recontextualizao ad hoc, a da identificao de um Estado em um determinado momento do saber e do gosto. Ela fornece s geraes seguintes representaes concorrentes, e em todo caso fictcias, de um conjunto imperceptvel como tal, salvo se imaginarmos uma cartografia que se sobreponha ao territrio.36 Com frequncia, essas imagens no permitem que se considere o detalhe dos procedimentos de apresentao e de conhecimento que levaram a esse ltimo estado. Que se avaliem as incertezas das ofertas, das escolhas e dos

    36. Thomas DaCosta Kaufmann (2004) fornece um balano historiogrfico que, em certos aspectos, atravessa a questo.

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