Revista en03
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Transcript of Revista en03
#03abril 2014
ano III | gratuita
expedição (tentativa de ascensão)
bhrikuti e trekking
mustang Nepal > Abril | Maio 2013
revistaonline
Agulha Charlanon escalada alpes
Peña Prado escalada via Lago de la Luna
Curavacas, Peña Prieta e Espigueteascensão
Mizarela via monitor uma escalada fácil
Pirenéusascensão Aneto, Pico de Alba,Salvaguardia e Pico Mulleres
Agulha do Tour e Petite Fourche ascensão passada
> Ascensão
Esporão Migot na Chardonnet
Alpes
> Ascensão
Vignemale e Monte Perdido
Pirenéus
Pedro Guedes director
ficha técnica
Propriedade
ALPINE CLIMBERS, LDA
Rua do Amparo, nº 42 B
4350 - 031 Porto
Director/Editor
Pedro Guedes
Revisão Editorial
Maria João Leite
Design e Paginação
Pedro Vieira da Silva
Fotografia
Carlos Araújo
César Silva
Edgar Barbosa
Oldemiro Lima
Paulo Roxo
Pedro Guedes
Edição Fotográfica
Oldemiro Lima
Colaboram neste número:
Álvaro Reis
José Nunes
Maria Carronda
Pedro Guedes
Raquel Carvalho
Sandra Reis
Distribuição
Online / Gratuita
Periodicidade
Quadrimestral
Registo ISSN
2182-7885
04-20 >> expedição
Bhrikuti > Ascensão
22-27 >> alpinismo
Esporão Migot > Ascensão
28-31 >> escalada
Agulha Charlanon > Escalada
32-39 >> ascensão
Vignemale e Monte Perdido > Ascensão
40-54 >> ascensão
Pico Salvaguardia, Alba, Mulleres e Aneto > Estágio
56-61 >> ascensão
Curavacas, Peña Prieta e Espiguete > Ascensão
62-65 >> escalada
Peña Prado > Escalada
66-69 >> escalada
Mizarela > Escalada
70-76>> ascensão passada
Agulha do Tour, Tete Blanche e Petit Fourche
78 >> agenda
Próximas Actividades
Actualmente, e desde a última edição, estou envolvido em tantos projectos, que por vezes algo tão “apaixonante” como este “contar de histórias” vai ficando num plano diferente de trabalho.
Foram diversas montanhas, cumes, arestas, vias, glaciares, em diversos ambientes fascinantes e envolventes!
Não tenho tido muito tempo, a não ser para pensar nas pessoas que estão comigo, na realização das ativida-
des, na gestão da equipa, na capacidade de condução do grupo, na gestão do risco, na psicologia e, acima de
tudo, nas decisões e nos seus momentos. Presumo que compreendem, tendo em conta a dimensão destas
montanhas e toda a técnica associada quando somos os responsáveis pelos outros. Aliás, de cada vez que
estou responsável e a liderar, estas montanhas parecem maiores, parece que crescem a cada dia.
Tem sido realmente algo tão absorvente e apaixonante que gostava de vos poder contar mais, de poder dar
voz aos participantes das imensas actividades que fizemos e que não estão aqui nesta revista. Falta muita
gente, muitos locais ainda, muitas montanhas, muita história. Existe sempre tanto para recordar!
Expedição do Bhrikuti é a tentativa de um cume, no desenvolvimento do termo e classificação do que significa
realmente ter “sucesso”. Alpinismo no Migot é o culminar de um projecto de uma formação de alpinismo, com
diversas sessões teóricas e práticas, e algumas dessas vivências são também aqui partilhadas, como a
Agulha da Charlanon nos Alpes e Peña del Prado na zona da Ubina.
Esta revista “passa” ainda por diversas ascensões nos Pirenéus e ainda na zona das Fuentes Carrionas. Esta
última nos mais recentes programas da Alpine Climbers. Um novo projecto e mais dedicado a ascensões em
alta montanha.
Leva-nos também de volta ao passado, a recordar a ascensão de um estágio de alpinismo que organizámos
em Chamonix, onde subimos, entre muitas outras, à Agulha do Tour, à Tete Blanche e à Petite Fourche.
Espero que gostem, essencialmente que seja algo que vos toque e que sintam que, mesmo não estanto lá,
todos os que nos seguem fazem parte deste nosso projecto.
Dedico também esta revista a alguém que desapareceu no fim do ano passado, o José Silva, com quem
partilhei algumas actividades nos Alpes e que me marcou com a sua amizade, a sua forma de estar, o seu
riso contagiante e a forma inspiradora de viver a vida. Obrigado por me teres dado a aportunidade de viver
esses momentos contigo nessas actividades. Estás presente nesta revista…
Um grande beijinho à Beatriz e Patrícia!!!
Espero poder um dia dedicar muito mais desta revista apenas ao “Zé”.
02
#03
Pedro Guedes director
ficha técnica
Propriedade
ALPINE CLIMBERS, LDA
Rua do Amparo, nº 42 B
4350 - 031 Porto
Director/Editor
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Revisão Editorial
Maria João Leite
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Fotografia
Carlos Araújo
César Silva
Edgar Barbosa
Oldemiro Lima
Paulo Roxo
Pedro Guedes
Edição Fotográfica
Oldemiro Lima
Colaboram neste número:
Álvaro Reis
José Nunes
Maria Carronda
Pedro Guedes
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Distribuição
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Quadrimestral
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04-20 >> expedição
Bhrikuti > Ascensão
22-27 >> alpinismo
Esporão Migot > Ascensão
28-31 >> escalada
Agulha Charlanon > Escalada
32-39 >> ascensão
Vignemale e Monte Perdido > Ascensão
40-54 >> ascensão
Pico Salvaguardia, Alba, Mulleres e Aneto > Estágio
56-61 >> ascensão
Curavacas, Peña Prieta e Espiguete > Ascensão
62-65 >> escalada
Peña Prado > Escalada
66-69 >> escalada
Mizarela > Escalada
70-76>> ascensão passada
Agulha do Tour, Tete Blanche e Petit Fourche
78 >> agenda
Próximas Actividades
Actualmente, e desde a última edição, estou envolvido em tantos projectos, que por vezes algo tão “apaixonante” como este “contar de histórias” vai ficando num plano diferente de trabalho.
Foram diversas montanhas, cumes, arestas, vias, glaciares, em diversos ambientes fascinantes e envolventes!
Não tenho tido muito tempo, a não ser para pensar nas pessoas que estão comigo, na realização das ativida-
des, na gestão da equipa, na capacidade de condução do grupo, na gestão do risco, na psicologia e, acima de
tudo, nas decisões e nos seus momentos. Presumo que compreendem, tendo em conta a dimensão destas
montanhas e toda a técnica associada quando somos os responsáveis pelos outros. Aliás, de cada vez que
estou responsável e a liderar, estas montanhas parecem maiores, parece que crescem a cada dia.
Tem sido realmente algo tão absorvente e apaixonante que gostava de vos poder contar mais, de poder dar
voz aos participantes das imensas actividades que fizemos e que não estão aqui nesta revista. Falta muita
gente, muitos locais ainda, muitas montanhas, muita história. Existe sempre tanto para recordar!
Expedição do Bhrikuti é a tentativa de um cume, no desenvolvimento do termo e classificação do que significa
realmente ter “sucesso”. Alpinismo no Migot é o culminar de um projecto de uma formação de alpinismo, com
diversas sessões teóricas e práticas, e algumas dessas vivências são também aqui partilhadas, como a
Agulha da Charlanon nos Alpes e Peña del Prado na zona da Ubina.
Esta revista “passa” ainda por diversas ascensões nos Pirenéus e ainda na zona das Fuentes Carrionas. Esta
última nos mais recentes programas da Alpine Climbers. Um novo projecto e mais dedicado a ascensões em
alta montanha.
Leva-nos também de volta ao passado, a recordar a ascensão de um estágio de alpinismo que organizámos
em Chamonix, onde subimos, entre muitas outras, à Agulha do Tour, à Tete Blanche e à Petite Fourche.
Espero que gostem, essencialmente que seja algo que vos toque e que sintam que, mesmo não estanto lá,
todos os que nos seguem fazem parte deste nosso projecto.
Dedico também esta revista a alguém que desapareceu no fim do ano passado, o José Silva, com quem
partilhei algumas actividades nos Alpes e que me marcou com a sua amizade, a sua forma de estar, o seu
riso contagiante e a forma inspiradora de viver a vida. Obrigado por me teres dado a aportunidade de viver
esses momentos contigo nessas actividades. Estás presente nesta revista…
Um grande beijinho à Beatriz e Patrícia!!!
Espero poder um dia dedicar muito mais desta revista apenas ao “Zé”.
Pedro Guedes director
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Agulha do Tour, Tete Blanche e Petit Fourche
78 >> agenda
Próximas Actividades
Actualmente, e desde a última edição, estou envolvido em tantos projectos, que por vezes algo tão “apaixonante” como este “contar de histórias” vai ficando num plano diferente de trabalho.
Foram diversas montanhas, cumes, arestas, vias, glaciares, em diversos ambientes fascinantes e envolventes!
Não tenho tido muito tempo, a não ser para pensar nas pessoas que estão comigo, na realização das ativida-
des, na gestão da equipa, na capacidade de condução do grupo, na gestão do risco, na psicologia e, acima de
tudo, nas decisões e nos seus momentos. Presumo que compreendem, tendo em conta a dimensão destas
montanhas e toda a técnica associada quando somos os responsáveis pelos outros. Aliás, de cada vez que
estou responsável e a liderar, estas montanhas parecem maiores, parece que crescem a cada dia.
Tem sido realmente algo tão absorvente e apaixonante que gostava de vos poder contar mais, de poder dar
voz aos participantes das imensas actividades que fizemos e que não estão aqui nesta revista. Falta muita
gente, muitos locais ainda, muitas montanhas, muita história. Existe sempre tanto para recordar!
Expedição do Bhrikuti é a tentativa de um cume, no desenvolvimento do termo e classificação do que significa
realmente ter “sucesso”. Alpinismo no Migot é o culminar de um projecto de uma formação de alpinismo, com
diversas sessões teóricas e práticas, e algumas dessas vivências são também aqui partilhadas, como a
Agulha da Charlanon nos Alpes e Peña del Prado na zona da Ubina.
Esta revista “passa” ainda por diversas ascensões nos Pirenéus e ainda na zona das Fuentes Carrionas. Esta
última nos mais recentes programas da Alpine Climbers. Um novo projecto e mais dedicado a ascensões em
alta montanha.
Leva-nos também de volta ao passado, a recordar a ascensão de um estágio de alpinismo que organizámos
em Chamonix, onde subimos, entre muitas outras, à Agulha do Tour, à Tete Blanche e à Petite Fourche.
Espero que gostem, essencialmente que seja algo que vos toque e que sintam que, mesmo não estanto lá,
todos os que nos seguem fazem parte deste nosso projecto.
Dedico também esta revista a alguém que desapareceu no fim do ano passado, o José Silva, com quem
partilhei algumas actividades nos Alpes e que me marcou com a sua amizade, a sua forma de estar, o seu
riso contagiante e a forma inspiradora de viver a vida. Obrigado por me teres dado a aportunidade de viver
esses momentos contigo nessas actividades. Estás presente nesta revista…
Um grande beijinho à Beatriz e Patrícia!!!
Espero poder um dia dedicar muito mais desta revista apenas ao “Zé”.
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04-20 >> expedição
Bhrikuti > Ascensão
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Peña Prado > Escalada
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Agulha do Tour, Tete Blanche e Petit Fourche
78 >> agenda
Próximas Actividades
Actualmente, e desde a última edição, estou envolvido em tantos projectos, que por vezes algo tão “apaixonante” como este “contar de histórias” vai ficando num plano diferente de trabalho.
Foram diversas montanhas, cumes, arestas, vias, glaciares, em diversos ambientes fascinantes e envolventes!
Não tenho tido muito tempo, a não ser para pensar nas pessoas que estão comigo, na realização das ativida-
des, na gestão da equipa, na capacidade de condução do grupo, na gestão do risco, na psicologia e, acima de
tudo, nas decisões e nos seus momentos. Presumo que compreendem, tendo em conta a dimensão destas
montanhas e toda a técnica associada quando somos os responsáveis pelos outros. Aliás, de cada vez que
estou responsável e a liderar, estas montanhas parecem maiores, parece que crescem a cada dia.
Tem sido realmente algo tão absorvente e apaixonante que gostava de vos poder contar mais, de poder dar
voz aos participantes das imensas actividades que fizemos e que não estão aqui nesta revista. Falta muita
gente, muitos locais ainda, muitas montanhas, muita história. Existe sempre tanto para recordar!
Expedição do Bhrikuti é a tentativa de um cume, no desenvolvimento do termo e classificação do que significa
realmente ter “sucesso”. Alpinismo no Migot é o culminar de um projecto de uma formação de alpinismo, com
diversas sessões teóricas e práticas, e algumas dessas vivências são também aqui partilhadas, como a
Agulha da Charlanon nos Alpes e Peña del Prado na zona da Ubina.
Esta revista “passa” ainda por diversas ascensões nos Pirenéus e ainda na zona das Fuentes Carrionas. Esta
última nos mais recentes programas da Alpine Climbers. Um novo projecto e mais dedicado a ascensões em
alta montanha.
Leva-nos também de volta ao passado, a recordar a ascensão de um estágio de alpinismo que organizámos
em Chamonix, onde subimos, entre muitas outras, à Agulha do Tour, à Tete Blanche e à Petite Fourche.
Espero que gostem, essencialmente que seja algo que vos toque e que sintam que, mesmo não estanto lá,
todos os que nos seguem fazem parte deste nosso projecto.
Dedico também esta revista a alguém que desapareceu no fim do ano passado, o José Silva, com quem
partilhei algumas actividades nos Alpes e que me marcou com a sua amizade, a sua forma de estar, o seu
riso contagiante e a forma inspiradora de viver a vida. Obrigado por me teres dado a aportunidade de viver
esses momentos contigo nessas actividades. Estás presente nesta revista…
Um grande beijinho à Beatriz e Patrícia!!!
Espero poder um dia dedicar muito mais desta revista apenas ao “Zé”.
03
#03
índice
trekking
mustang expedição (tentativa de ascensão)
bhrikutiNepal > Maio 2013
“Seguindo os passos do sagrado para encontrar Bhrikuti. Quando o budismo, lendas, história e geopolítica se misturam”
“Paulo Grobel”
texto: Pedro Guedesfotografia: Edgar Barbosa
Esta frase faz-me parar e leva-me de
volta ao Nepal. Estamos no antes, no pré,
no planeamento, na selecção, na junção
de ideias, na definição, nos primeiros
passos e onde se juntam objectivos.
04
#03
05
#03
expedição
Toda uma ideia antes de partir
Vou liderar mais uma expedição e as perguntas que se me
colocam são sempre as mesmas: qual o projecto ideal? Qual
o plano assertivo para responder de forma correcta a uma
emergência? Qual o cume ao alcance de todos os partici-
pantes? Qual o melhor plano de aclimatação tendo em con-
ta cada um dos participantes? O quê, quem, quando, onde,
como?
Uma série de considerações diversas e de logística, onde
tudo isto faz sentido, e não quero deixar de responder a
nenhuma questão que se coloca no meu “eu interior”.
Tinha chegado da Argentina, do Aconcágua, mas o meu
pensamento regressava diariamente e numa constante ao
Nepal. Em cada leitura das montanhas do Damodar sei que
esta é a expedição que quero fazer. Não consigo pensar
em mais opções e o dia-a-dia leva-me sempre ao Bhrikuti.
É o Nepal, é o Bhrikuti que me vai na cabeça mesmo entre
os diferentes trabalhos, da loja e cursos. A expectativa é
grande! Quero “embarcar” numa nova viagem, numa expe-
dição, num projecto, na procura de algo diferente do mais
comum do Nepal.
As referências da zona do Mustang e do Damodar definem
como algo mais isolado, rodeado de montanhas inexplora-
das, numa mistura de montanha com o sagrado.
Paulo Grobel: a referência e a inspiração
Procuro informação das montanhas do Nepal, de algo que
seja fora do comum, e essa referência e inspiração têm o
nome de Paulo Grobel. Para além de ter uma página web e
livros muito bem documentados, é ao mesmo tempo uma
aventura a leitura dos relatos das suas expedições.
Paulo Grobel é um guia de alta montanha francês e um dos
mais dinâmicos e assíduos alpinistas em zonas remotas do
Nepal. Nas palavras relata as suas expedições pelo Nepal
quase como um convite onde “contaminando” qualquer alpi-
nista. Descubro com ele o Bhrikuti, uma montanha de 6.460
metros.
Bhrikuti situa-se no Nepal, na zona do Mustang e dos lagos
sagrados do Damodar. Paulo Grobel afirma com convicção
que ali encontramos um desejo de nos envolvermos num
ambiente desconhecido e de exploração. Descreve-o ainda
como um lugar nas montanhas dos Himalaias muito inespe-
rado, onde o céu se funde com os desertos das imensidões
tibetanas. Refere talvez até profundamente: “É acima de
tudo uma aventura humana, original e especial!”
Estava tudo decidido. Só faltava “contaminar” os alunos da
Espaços Naturais para participarem neste projecto! Pas-
sar a mesma referência e inspiração aos que me seguem;
aqueles que eu ensino e faço acompanhamento técnico pe-
las diferentes montanhas.
06
#03
Quero subir o Bhrikuti!
Sei de antemão que não estamos a falar de uma montanha
comercial, onde praticamente chegar ao cume está mais
garantido, ou tem maior possibilidade de sucesso.
Não é fácil convencer e reunir “equipa” para uma expedição
com estas características. O mais normal é afirmar, qua-
se como uma garantia, que o cume está ali, que todos vão
fazer cume. Algo que não existe mas que todos querem
ouvir-nos dizer. Na verdade é um efeito social forte, todos
querem atingir o alto, o cume. É a metáfora diária da nossa
sociedade, o que interessa é chegar ao alto, esquecendo
por vezes o caminho.
O Bhrikuti não é uma expedição comercial, vamos estar em
terreno desconhecido, em altitude, isolados e sem grandes
apoios ou comunicações. Deixarmo-nos envolver, desco-
brir, fazer parte, viver uma história, explorar… Processos
que fazem parte de todo um puzzle nesta expedição de al-
pinismo.
Não tem grande dificuldade e desta vez também não procu-
ro nada muito técnico.
Alpinismo e altitude são prioridade, se possível fazer a tra-
vessia integral do Bhrikuti.
A indicação que vem do Nepal é que possivelmente somos
a primeira expedição portuguesa no Bhrikuti e a percorrer
esta zona do Khumjungar. Entre 1982 e 2002 esta mon-
tanha teve 14 expedições pelas diferentes vias e apenas
dez pessoas chegaram ao cume, apenas cerca de quatro
pela via que pretendemos fazer. Ainda sem conhecimento
objectivo, mas nenhuma até ao momento a fez em travessia
do Bhrikuti. São apenas estatísticas até 2002, nada disto
atormenta a ideia, não temos de convencer patrocinadores
com chavões estatísticos. No entanto, saber que possivel-
mente ninguém a atravessou traz algo de fascinante, mas
ao mesmo tempo maior incerteza.
Quero subir o Bhrikuti, queremos! Somos já uma “Team
Expedition” de seis pessoas e vou liderar mais uma equipa
de alunos no Nepal. >>
07
#03
expedição
Fragmentos da partida
Ora estou aqui, ali ou acolá. O Nepal está para breve e mais
uma vez antes da partida estou por Marrocos, a guiar um
programa de alpinismo em cinco montanhas de 4.000 me-
tros, incluindo o Toubkal a montanha mais alta do Norte de
África. No refúgio do Toubkal, o meu pensamento deambula
com um “ainda aqui estou e já é tempo de partir de novo”.
Varrem-me a mente estes primeiros meses do ano que fo-
ram uma “loucura” de preparações, partidas e chegadas:
Argentina, várias idas de alpinismo na Ubina, Serra da Es-
trela, Fuentes Carrionas, agora Marrocos. Ainda tenho de
dar mais uma formação de montanhismo e já sigo para o
Nepal.
Nada de diferente do que tem sido nestes últimos anos, fal-
tando só juntar a tudo isto a logística de todos os outros
monitores que fazem equipa comigo nos mais diversos
cursos, a loja, a revista online e a família, que embora apa-
reça aqui no fim é sem dúvida o que me move. O Nepal es-
tava a chegar a passos rápidos, tudo muito próximo e todo
o tempo de preparação passou muito rápido. Os últimos
pormenores: as reuniões finais em equipa, os materiais
que ainda aguardo dos fornecedores, as tendas e fogões
específicos adquiridos para esta expedição, os mais de 100
liofilizados, as manapolas de expedição de alguns partici-
pantes, tenho ainda de colocar os percursos no GPS, com-
prar mais um conjunto de medicamentos úteis, preparar os
sacos de expedição, deixar os próximos cursos organiza-
dos, responder aos mais diversos pedidos de informação
e solicitações…
Nada diferente de todos os que se envolvem comigo nesta
expedição. Cada um procura deixar a sua vida o mais or-
ganizada possível para seguir esta expedição de 23 dias.
Parecem muitos dias mas na realidade são curtos, todas
as expedições seguem para este tipo de projectos com 30
dias, mas nós vamos encurtar o número de dias. Não por
querer, mas porque a vida de cada um não permite tanto
tempo.
Todos estes momentos finais, são como uma série de frag-
mentos, tudo passa tão rápido que fechamos os olhos e já
nos vemos no avião, já nos ouvimos uns aos outros e já
estamos em Kathmandu.
Kathmandu, a realidade
Chegámos a Kathmandu, capital do Nepal, já de noite e não
chegaram as nossas bagagens. Referem que estão em Lis-
boa, que não foram colocadas no avião, mas que não têm a
certeza pois foram avistadas em Dublin. Não vamos ter em
conta o valor envolvido em todo o equipamento que está
em cada saco, apenas nos preocupa a expedição, quere-
mos ir para a montanha e não temos nada de equipamento.
A incógnita é tão grande que vamos ter de seguir sem ba-
gagens e esperar que tudo vá ao nosso encontro. De avião,
de carro ou com carregadores, as bagagens vão chegar
até onde nós estivermos, seja em Pokhara, Jomoson ou
no campo-base. Nem que andemos todo o percurso com
a mesma roupa, queremos sim é o material no campo-ba-
se para o Bhrikuti. Afinal estamos no Nepal e sabemos que
com os “passos” certos tudo vai correr bem.
Seguimos do aeroporto para o hotel, em Thamel, bem no
centro turístico de Kathmandu, para alguns referido como
o “gueto”, mas por aqui passam todas as expedições e via-
gens dentro do Nepal. Ponto obrigatório no meio caótico de
Kathmandu.
Para alguns de nós não é novidade, mas para outros é a
primeira vez em Kathmandu e deixo que absorvam bem
todo esse impacto. É mais que uma viagem para o hotel.
Acima de tudo é uma pequena abordagem cultural ao Nepal.
Chegamos e estamos no ponto de partida!
08
#03
Conversa com o assessor de Elizabeth Hawley
Elizabeth Hawley é norte-americana e cronista das expe-
dições e escaladas no Nepal. É uma das figuras mais im-
portantes nas escaladas dos Himalaias e, mesmo sem nun-
ca ter escalado nada, é das pessoas mais respeitadas no
mundo do alpinismo. Tem um estilo de entrevista rigoroso
e uma grande parte dos alpinistas tem medo do que possa
escrever. Isto porque por vezes desmente alpinistas que
dizem ter subido a determinados cumes em grandes mon-
tanhas de 8.000 metros.
Ocupa-se também do “Himalayan Database” onde regista
todas as expedições que escalem no Himalaia nepalês. Os
dados abrangem as expedições para os cumes mais sig-
nificativos do Nepal. Esses dados são publicados pelo Clube
Alpino Americano.
Chego ao hotel e ouço o meu nome na recepção. Têm um
recado para eu ligar para o assessor da Elizabeth Hawley.
Penso de imediato que deve de haver engano ou “porque
quererá alguém tão importante falar comigo?”. Nem me dão
espaço para pensar ou reflectir, a recepção do hotel já fez
a chamada e passa-me de imediato o telefone. Entendi logo
que não posso fazer esperar.
Marquei para o dia seguinte pelo início da manhã, mas sem-
pre a pensar no que haveriam de querer de mim, falar do
quê em concreto. Penso que não tenha nada para relatar,
primeiro vou ainda de expedição e, se tudo correr bem, aí
sim talvez tenha algo para contar.
Depois de uma viagem entre diferentes escalas, de não
chegarem os sacos de expedição, adormeço a pensar na
“entrevista” para o database dos Himalaias.
O dia começa cedo. Temos os últimos pormenores logísti-
cos em Kathmandu, uma ida para um briefing no Ministério
do Turismo e a “entrevista”. Não consigo escapar e, depois
do pequeno-almoço, lá está sentado, no hall da recepção, o
assessor de Elizabeth Hawley. Segue na minha direcção e
chama por mim, tanta gente passa na recepção e deixa-me
a pensar como sabe que sou eu.
Explica-me quem é Elizabeth Hawley (como se eu não sou-
besse), que o Bhrikuti é importante, porque é significativo, e
quer informações no início e no fim da expedição.
Já me sinto com a pressão de que vou ter de fazer cume
para não ficar mal na fotografia.
Começo mesmo por aí e vou directo ao assunto, não quero
rodeios e explico que expedição é esta. Tento libertar toda
a pressão do sucesso de um cume, não quero deixar dú-
vidas e esclarecer que seguimos com humildade perante o
imenso Bhrikuti.
Escreve, escreve e não deixa de escrever… Observo, ana-
liso, tento interpretar os comportamentos, as reacções, os
gestos, acompanho todos os movimentos e não quero que
nada me passe ao lado. Explico que são alunos das forma-
ções em montanha da Espaços Naturais, qual o intuito da >>
09
#03
expedição
expedição e rápido surgem perguntas e mais perguntas.
Suscitei um feedback claro quando abordei o assunto de
trazer alunos para o Nepal. É um database e querem saber
tudo, nomes, idades, experiência, profissões, um sem nú-
mero de características e estatísticas. Por fim acabou por
ser uma conversa animadora e de grande aprendizagem.
Desespero de sair
Seguimos de Thamel para o Ministério do Turismo. É hora
do briefing e de levantar os permits da expedição. Senta-
dos no terraço do ministério vemos o rodopio à nossa vol-
ta, mas não sabemos porque estamos ali há tanto tempo.
Pergunto qual o problema, sabendo, e já estou habituado,
que existe sempre algo a ultrapassar. Foi-me garantido
que estava tudo tratado ainda estava eu em Portugal, mas
afinal enganaram-se no cume. Longas horas no terraço e já
sentíamos que íamos perder o avião com destino a Pokhra.
Pressão das bagagens e agora mais um dilema, ou pro-
blema. Acabam por me contar que não temos autorização
para aceder ao Bhrikuti pela zona do Mustang. Pretendem
que atravessemos pelos Anapurnas até Naar e daí para o
Bhrikuti Shail. Óptimo! Não é o cume que queremos fazer e
tento vislumbrar como vamos atravessar este problema.
O ministro tem de dar “palpite”, seguem ofícios e demais
procedimentos.
Chega a autorização para seguirmos ao longo do trekking
do Mustang e daí para o cume. Briefing final com o repre-
sentante do ministro, onde nos explica o código de conduta,
e desespero em sair rápido das burocracias para a mon-
tanha.
Trekking do Mustang
Chegados a Pokhara de avião desde Kathmandu, a única
preocupação continua a ser a incógnita das bagagens, dos
nossos sacos de expedição. As últimas informações indi-
cavam que já estavam a caminho e que chegariam de ma-
drugada, o que se confirmou horas depois.
10
#03
Estamos de partida para Jomoson em mais uma viagem dos
pequenos e famosos voos nepaleses. Sempre com chum-
bo da segurança aeronáutica internacional.
Nada que nos preocupe, pois aqui estamos centrados em
fazer passar 30 quilos por bagagem onde só podemos
levar 15 quilos. Há que fazer passar, estamos no Nepal e
quem por aqui anda sabe qual é o procedimento.
Tempo de respirar e apreciar o voo entre montanhas, ao
encontro dos carregadores em Jomoson e dividir os sa-
cos. O trekking do Mustang é parte integrante do plano de
aclimatação. Por um lado, é um percurso para conhecer
novos locais, mas tem também passagens entre diversas
altitudes superiores a 4.000 metros. Acima de tudo é um
percurso que nos permite aclimatar melhor para o Bhrikuti.
Estava no plano desde o início e trekking faz parte de qual-
quer expedição em altitude no Nepal.
O percurso desta primeira etapa leva-nos rápido a Kagbeni.
Aqui já se começa a sentir o tal ambiente do Mustang, onde
a paisagem já é mais característica e similar às leituras que
tínhamos efectuado sobre esta zona.
Aqui chega-se de jipe mas nós viemos a pé, tem boas con-
dições, boa alimentação e água quente que permite tomar
banho. Temos de aproveitar pois pode ser o último banho
de água quente destes dias na montanha.
Tenho reunião com o líder dos carregadores. São cerca de
30 quilos por saco de expedição e temos de aligeirar os sa-
cos. Não me parece bem carregarem às costas estes ma-
teriais, pelo menos desta forma, mas por outro lado sei que
é importante para eles este trabalho. Eles precisam disto,
eles querem ser carregadores, é daqui que tiram um bom
rendimento. Há que aligeirar os sacos para proporcionar
melhores condições: material técnico para um lado, outros
materiais para outro. Não quero pensar muito nisto, entre
nós resolvemos rápido o problema. Há que contratar mais
carregadores e isto passa a ser funcional.
Passámos um final de dia extraordinário com um pôr-do-
-sol entre montanhas. Foi parar, sentar e vislumbrar. Enfim,
montanha. Estamos bem melhor aqui. >>
11
#03
expedição
Kagbeni para Chele
Estamos nos 2.810 metros de altitude e vamos para Chele
aos 3.050 metros. Vamos dormir aí em lodge e com jantar.
O plano é sempre dormir e fazer refeições em lodge, pelo
menos até Tangge. Poupar na carga, na logística das refei-
ções, estar o mais confortável possível. Queremos guardar
as energias para depois de Tangge.
O percurso é feito por um estradão que está a ser cons-
truído e a desfigurar a zona. Claro que a paisagem que a
rodeia é fascinante, deslumbrante, mas ficaria bem melhor
se o caminho fosse o que estava, o ancestral. O estradão
desilude, mas nada que nos faça sentir mal. É tanto para
absorver naquelas montanhas. A cor é impressionante, as
montanhas são um contraste de cor entre o laranja, o cinza,
o verde e o branco da neve na alta montanha. Depois há
o azul do céu que se funde na linha entre a terra e o céu.
Talvez exista mesmo fundamento quando falam da terapia
da cor na vida.
Paragem em Chhusang para almoço, para conhecer mais
uma aldeia e contactar com a cultura local. Vamos tão fo-
cados na alta montanha, que só entendemos verdadeira-
mente que esta parte nos marca com o decorrer do tempo.
Aqueles momentos em que fazemos uma retrospectiva e
nos vêm as imagens das pessoas, as vozes, os risos e toda
a alegria daquelas pessoas. Daqui partimos por um caminho
entre o vale, que dá lugar a uma subida até Chele. Estes fi-
nais do dia são de aproveitar. Cada um tem o seu tempo, o
seu momento. Uns aproveitam para ler, outros para ouvir
música, conversar, passear pela aldeia, jogar cartas, entre
as muitas diversas tarefas de logística à volta dos sacos
de expedição.
Chele para Gheling
Este dia previa-se grande e longo. Vamos passar aos
4.000 metros de altitude e será importante no nosso pro-
cesso de aclimatação. Saímos cedo na direcção do colo
de Taklam e de Dajori. Esta primeira parte do percurso é
simplesmente fabulosa, num trilho escavado numa escarpa
sobre Ghyakar e, mesmo não podendo ficar muito tempo,
apetece parar, ficar e contemplar. Na verdade, o dia deve-
ria terminar aí nesse sítio para termos a oportunidade de
desfrutar mais.
Todos seguem bem e não quero deixar de filmar este local.
Quero fazer um relato da história da expedição, mas acima
de tudo quero que fiquem registadas as imagens do Mus-
tang. Estamos ali, estou a filmar, algo que antes de 1985 era
proibido... Andar e registar imagens destes locais.
Paragem em Samar para um chá e daqui para Syanboche,
passando em algumas passagens já quase aos 3.900 me-
tros. Abdicámos de passar no percurso alternativo da gru-
ta de Chungsi. Seria mais interessante de certeza visitar a
gruta sagrada, mas iríamos abdicar de passar aos 4.000
metros. Decisões que são constantes e que fazem parte
de uma expedição.
12
#03
Syanboche não me deixa muitas saudades, confesso! Tento
seguir uma alimentação equilibrada e saudável, fugindo aos
habituais temperos nepaleses. Um problema hepático (sem
razão aparente) que tive em 2002 não me permite abusar
muito nestes países. Em Syanboche levo no meu plano de
alimentação arroz e atum. Foi aquilo que pedi para me faze-
rem no lodge, ponto de paragem, mas entendi que algo não
estava bem de imediato. A refeição estava mesmo muito
má, pese embora o meu esforço para me alimentar. Pedi
para ver a lata do atum e lá tomei consciência de que aquilo
estava ali aberto, numa lata de um quilo há cerca de um ano.
A história vem realmente a seguir...
Bem, no momento nada interferiu e assim se seguiu para
Ghiling aos 3.570 metros de altitude. Levávamos três dias
de trekking em terras do Mustang.
Esta noite ia ficar marcada para mim pois tive uma intoxica-
ção alimentar, entendi que tudo estava mal. Vómitos, dores
de cabeça, dores musculares, tudo me levava a acreditar
que podia ter de voltar a Kathmandu. Estava a liderar uma
expedição e sabia que tinha de continuar. Restava era sa-
ber se conseguia…
Fiz um diagnóstico rápido e aquilo que me vinha ao pensa-
mento era que estava com botulismo. Sabia claramente os
sintomas, conhecia perfeitamente o que me podia aconte-
cer, restava agora dar tempo e tentar que não fosse tarde
de mais.
Ghiling para Tsarang
Pese embora estivesse em más condições, sabia que ti-
nha de seguir... A expedição não podia parar. Adaptação à
logística e assim fomos de jipe até Tsarang. Não me recor-
do de nada a não ser de chegarmos a Tsarang. O Plano B
já estava definido e estava garantido que todos poderiam
continuar até cume com um dos sherpas que liderava os
nossos carregadores.
Benditos electrólitos que levei de Portugal... Passei mais um
dia aqui em Tsarang a beber constantemente electrólitos.
Sabia que a incubação poderia demorar horas a dias, mas
sou profissional e uma expedição não pode parar. Temos
de continuar. Entendo que as pessoas que estão comigo já
têm no pensamento a possibilidade de voltar para trás. O
olhar deles falava constantemente dessa possibilidade. Te-
nho um plano B mas eu não estou ali para desiludir ninguém.
Preocupa-me apenas a confirmação de incubação da bac-
téria de botulismo, os danos respiratórios e para onde isso
pode levar. Mas temos de seguir...
Tsarang para Yara
Saímos de Tsarang na direcção de Tangee para poupar
tempo e fomos por um atalho, liderado pelo sherpa e mal
direccionado. Confesso que quando se está com dores ab-
dominais fortes, doente, o que menos se tem vontade é de
andar a controlar um sherpa. Seguia atrás dele e só lhe
dizia que ele não estava bem, mostrava o mapa, mas não
valia a pena. Digamos que estava a 200 metros do caminho
certo mas o sherpa levou-nos para um dia desse desvio.
Óptimo! Sem dúvida o percurso foi fantástico e agora, pen-
sando bem, ainda bem que fomos a Yara. Mas na altura não
foi bem assim, doente não apeteceu assim tanto desviar um
dia.
Yara é um local a visitar, entendo agora que não se pode
deixar de lá ir.
Podemos dizer que fomos ali ver o pôr-do-sol em conjunto.
Foi assim que terminámos o dia.
Yara para Tangee
Acordei já com vontade de ver Yara, bom sinal! Voltei à ex-
pedição...
Que lindo que é Yara e as grutas sagradas escavadas nas
montanhas.
Tempo de desfrutar de um percurso excelente que nos
leva até Dhechyang Khola.
Daí seguimos, sempre a subir, até ao colo de Sertang Danda
aos 4.015 metros, para entramos no caminho de Tangee.
Aqui estamos no final do que podemos chamar de “primeira
fase da expedição”.
Começa agora o acesso ao campo-base do Khumjungar.
Aqui a dormida já é em tenda e aproveitámos o tempo para
instalar acampamento, tomar banho num pequeno riacho e
para conhecer Tangee.
Este sítio é mesmo especial!
>>
13
#03
expedição
Entre montanhas no meio do nada
Tangee para Makar
Vamos entrar, segundo dizem as estatísticas, em locais
sem grande acesso a muitos ocidentais, que não andaram
muito por aqui. Sempre a subir. É assim que se sai de Tan-
gee, escolher o melhor percurso numa encosta não muito
definida de caminhos. Vamos para os 4.260 metros e são
1.000 metros de desnível. A envolvência é de grandes pla-
nos, qualquer vista tem uma grande imagem. Seja na alta
montanha, ao longe os vales, ou na imensidão do tal deserto
tão comentado. Daqui para a frente, embora seja Nepal, já
teve habitantes tibetanos.
Descida ao vale de Tangge Khola para instalar acampamen-
to aos 4.100 metros de altitude.
A água aqui é do degelo e obriga a uma tarde entretida en-
tre filtragem.
Makar fica entre montanhas. Ali mesmo do outro lado está
Bhrikuti, Khumjungar Himal, Jomonson Himal, tantas outras
e todas tão perto.
Estamos no meio do nada mas entre montanhas. Nunca en-
tendi bem a afirmação “estamos no meio do nada”, já que se
estamos entre montanhas afinal não estamos no meio do
nada... Estamos no meio daquilo que gostamos e não está
cheio de nada, mas sim o contrário.
Makar para campo-base
O plano de aclimatação segue bem e todos estão bem. Dei-
xa-me apenas intrigado o silêncio, mas de uma forma ou
de outra todos acabam por usar estes períodos de tempo
para reflexões mais pessoais. A introspecção está pre-
sente em todos, mesmo por vezes naqueles que não são
muito dados a esses momentos. A noção do espaço, a pai-
sagem, o silêncio, a própria actividade, talvez sejam ímanes
nesse sentido.
Passámos por ruínas de uma aldeia, que nos fazem imagi-
nar como seria lá viver há muitos anos. Uma linha de água
cristalina corre algures do alto, vem dar a este espaço en-
tre o verde e o árido. Penso de imediato que deveria ter
instalado o acampamento aqui. Estamos nos 4.200 metros
de altitude, aqui teria sido um bom local.
O percurso segue para o colo do Sherlang Danda aos 5.020
metros. Temos de subir ao colo e baixar para o outro lado,
procurando o melhor local para o campo-base. Só tenho
consciência deste local por imagens do Google Earth. Li-
dero uma expedição totalmente no desconhecido. Este é o
compromisso e todos os que participam têm essa cons-
ciência. Aceitam e sabem que estou também ali pela primei-
ra vez.
A subida é lenta, pois estamos a fazer aproximadamente
1.000 metros de desnível. As paragens são as suficientes
para hidratar o mais possível e para repor energias. Apro-
14
#03
veitamos também para assistir às brincadeiras normais
dos carregadores e até mesmo às chatices entre eles. Não
consigo decifrar bem a idade deles. Se por um lado imagino
que é mais do que 30 anos, por outro é tão pura a brin-
cadeira que me fazem lembrar um qualquer miúdo. Quan-
do estão carregados estão em silêncio. Imagino claro que
não dá para deixarem de estar concentrados na respira-
ção, mas quando param é tempo de rir e de se divertirem.
Tenho um enorme respeito por eles, principalmente porque
imagino que quem ganha com isto é a agência local.
A subida mesmo ao colo dos 5.020 metros parece feita em
areias movediças e o solo está cheio de sal. No princípio
achei que seria enxofre, ou magnésio, mas o líder dos sher-
pas diz-me que estamos em terra de sal. Sim realmente
já tinha lido que aqui nesta zona era rico quem tinha sal. Li
apenas e não explorei o sentido destas palavras.
Paragem neste colo para descansar, fotografar, contem-
plar todos os diferentes cumes que nos rodeiam e ver a via
de subida do nosso projecto.
Aqui tudo dá a impressão de estar próximo, todos os cumes
aparentemente iludem, de tão perto, a zona do campo-base
vê-se ali bem junto, vemos o vale, as moreias, os glaciares
lá no alto, o Bhrikuti ali mesmo.
É tempo de escolher um bom campo-base, que seja um
local protegido pelo vento, plano para as tendas e enfim
limpeza e instalação das tendas. É um bom local aos 4.600
metros de altitude. Trabalho de campo, pois é tempo de
preparar tudo. O objectivo é estarmos o mais confortá-
vel possível, embora com tendas minúsculas. A estratégia
para poupança de peso e volume foi trazer umas tendas de
alta montanha de um só tecido e a pesar 1.300 gramas. Ab-
dicar de umas coisas: ganhar numas, mas perder noutras.
Não sobra realmente muito espaço para estar no campo--
base nestas tendas, mas são também as tendas que vamos
levar para cima.
Passámos a tarde a bombar e a fazer músculo no filtro de
água. Precisamos de nos hidratar e temos de filtrar muitos
litros de água, pelo menos três litros para cada um, mais
ainda para as refeições liofilizadas. Não temos logística ne-
nhuma de campo-base e somos nós que fazemos todos os
trabalhos de campo e “domésticos”. Para as refeições foi
mesmo à base de pastilha para purificar a água em bidão de
cinco litros. Depois, deixar ferver no jetboil.
Campo-base: dia de aclimatação
O plano era subir já neste novo dia, depois de uma noite em
campo-base, e daqui sairmos para os 5.400 metros. Na re-
alidade, não era o plano original, o que estava pensado em
Portugal. O ideal era não nos precipitarmos embora todos
estivessem a sentir-se bem. Preparámos tudo com calma,
porque quando começarmos a subir não descemos mais.
Por outro lado, o Edgar fazia anos neste dia e queríamos ficar
ali. A festa não tem a mesma dimensão da que se estivesse
em Portugal, mas pôde falar com as filhas através de tele-
fone de satélite. Eu tenho um filho pequeno e sei que não é
>>
15
#03
expedição
fácil estar tantos dias em expedição. No entanto, o meu filho
habituou-se a ver o pai assim... A chegar e a partir cons-
tantemente. Não que seja bom mas é isto que faço na vida.
Vejo a preocupação constante do Edgar com as filhas, sem-
pre a ligar pelo telefone de satélite para saber se foram às
aulas, às explicações, se estão na avó. É um pai que está ali
distante mas sempre em contacto e que não quer perder
nada do que se passa no dia-a-dia das filhas. Ainda mais
neste dia, celebra o seu aniversário e nota-se as saudades
que tem das filhas! Como um pequeno SMS de uma delas o
faz mudar e estar mais sorridente… Por vezes estamos tão
preocupados com o que vem a seguir e a liderar todos es-
tes projectos, que estas pequenas coisas acabam por nos
chamar a atenção e focar mais nestes pormenores. Nem
só de cumes se vive numa expedição.
Assim se escutava os “Parabéns” no campo-base. Um dia
diferente para o Edgar!
O telefone de satélite traz as notícias enviadas pelo Car-
los Araújo desde Portugal. O Carlos é monitor de alpinismo
na Espaços Naturais. Pese embora não esteja connosco no
Nepal, faz parte do projecto e eu dependo das notícias que
me envia com a meteorologia. As previsões são de mu-
dança na meteorologia e não tenho “aberta” para grandes
projectos de travessia. Primeira alteração na via que que-
ríamos fazer. Vamos ter de apenas subir ao cume e baixar
pela mesma via. Um “apenas” que não é um simples apenas,
pois temos de subir ao campo 1 que está aos 5.400 metros,
ao campo 2 que está aos 6.000 metros e por fim ao cume
aos 6.470 metros e baixar para campo 1 se der. Precisa-
mos só para isto de uns bons quatro dias.
O Nepal é isto: andámos tanto para chegar aqui num trekking
em que se aproveita para aclimatar e depois temos apenas
uns dias para alpinismo, apenas uns dias para tentar cume.
Se a expedição fosse com mais de 30 dias certamente tudo
seria diferente. A vida não é assim para todos e as pessoas
que aqui estão não são alpinistas de profissão.
Campo-base para campo 1
O dia começou cedo para ultimarmos a desmontagem de
acampamento e colocarmos todo o material na mochila. Va-
mos subir a campo 1 e dormir aí aos 5.400 metros.
O percurso promete uma subida ao longo de toda a moreia
glaciar.
Saímos do campo-base com a calma de fazermos e de des-
frutarmos de todo o percurso. Foram cerca de quatro ho-
ras até campo 1. Estamos na base do glaciar, o lago glaciar dá
lugar a uma linha de água ao longo do vale, que desce a toda
a velocidade. Vamos instalar o campo-base numa zona mais
plana da moreia, nunca conseguindo limpar a grande quan-
tidade de pedras que aqui está. Não há outro local, por isso
tem de ser aqui mesmo.
As pequenas tendas já contrastam com a paisagem.
Depois de toda a instalação de acampamento, é tempo de
liofilizados, de repor as energias, de hidratar. Também de
parar um pouco, que aqui instalar um acampamento des-
gasta muito.
Tudo arrumado dentro das tendas, o que pode ser lá colo-
cado porque é minúscula, e o material técnico fica todo fora.
Alguns aproveitam para ouvir música, outros para conver-
sar. Cada um procura estar bem e sentir-se bem.
No meu caso é tempo de ir até ao glaciar e procurar a en-
trada para campo 2. Visto de campo 1 não parece fácil, vou
ter de instalar uma corda fixa e uma travessia. Lá mais per-
to acabo por verificar que é possível todos fazerem pro-
gressão em movimento e que não tem assim tanta inclina-
ção. Até tem, mas a passagem não estava visível. Lá no alto
vejo uma linha de possível abertura de uma via que gostaria
muito de fazer. Está no Sano Kailash, aos 6.425 metros. É
mais técnico do que o que procuro fazer aqui e no máximo
teria de ser para uma cordada de três. Requer progres-
são por largos, tem uns 800 metros de via e talvez uns 65
graus de inclinação sempre em neve. Chego-me mais perto
da via para a conhecer melhor.
Já estou aqui há algum tempo e talvez seja melhor descer
ao campo 1.
Baixar, baixar, e sem hesitar...
Já em campo 1 ainda faço umas pequenas filmagens, e che-
ga a hora de fazermos um controlo da saturação arterial,
da tensão arterial, do batimento cardíaco e de sintomas
que possam existir. Todos os dias, sem excepção, fazemos
esse registo, duas vezes: ao início do dia e mais ao fim da
tarde. Dá-nos alguns indicadores importantes para saber-
mos se tudo está a correr bem. Algumas pequenas altera-
ções mas estão todos bem, com excepção do Miguel. Assim
que entro na tenda nem foi preciso fazer muito controlo:
comunicava bem, tinha boa coordenação, mas não con-
seguia parar de tremer e tinha as pontas dos dedos com
cianose. Indicava falta de oxigénio. Coloquei o oxímetro e
estava com 50 por cento de saturação. Tinha de baixar de
imediato e não podia arriscar que ele permanecesse aqui
mais tempo. Fiz apenas um compasso para rectificações e
procurei auscultar à procura de um edema pulmonar. Me-
diquei-o com Adalat para edema pulmonar e Diamox. Con-
fesso que ainda hesitei se deveria dar já uma injecção com
dexametasona. A decisão foi aguardar e se realmente me
desse a indicação de um possível edema cerebral assim o faria.
16
#03
Teria de desmontar a tenda, pois não tinha tendas em cam-
po-base, preparar todo o material para que ele não tivesse
que carregar e daí baixar.
Momento de explicar a todos o que estava a acontecer e
que teria de baixar com ele. Não é fácil para ninguém eu ter
de baixar, é também o risco de se ter um só monitor numa
actividade de alta montanha, mas todos sabem antecipada-
mente como tem de ser e assumem este método. Também
é explicado que podem ter mais um monitor mas tudo será
mais dispendioso. Preferem sempre desta forma. A deci-
são passava por descer com o Miguel até ao campo-base e
voltar no dia seguinte a subir. Ficariam todos os outros em
campo 1, menos a Sandra que decidiu baixar, pois poderia
ajudar também.
Foi mesmo um grande dia, subir a campo 1 e baixar de novo
a campo-base. A chegada foi já ao cair da noite e foi tempo
de tenda e liofilizado. Entendo que com a rapidez deixei os
rádios e o telefone de satélite em campo 1. Queria comu-
nicar para saber se estaria tudo bem com os que lá esta-
vam. Ficou a ideia de que se algo corresse mal eles baixa-
riam de imediato, mas gostava no entanto de falar com eles.
Não vou dizer que tenha dormido bem nesta noite, acor-
dava constantemente a observar a moreia até ao campo
1. Via-se perfeitamente com a noite, e procurava alguma
luz. Como não via a luz acalmava e relaxava. Foi mesmo um
estado de vigilância.
Campo-base para campo 1e desce de novo a campo-base
O dia parece bom. Já estamos com algum atraso na subida
e vamos ter de ficar mais uma noite em campo 1. O Miguel
fica em campo-base e subimos para campo 1 em mais uma
“volta” pela moreia. A Sandra vem lenta e está com algumas
dificuldades. É normal depois de tanto esforço no dia ante-
rior. A culpa também pode ter sido minha, pois não ia pro-
priamente devagar. Tento evitar estar a elevar o ritmo e
de alguma forma estar a influenciar o ritmo dela. Vamos
seguindo na subida.
Estamos quase em campo 1 de novo, fomos mais rápidos
do que no dia anterior e dá para entender que a meteoro-
logia está a mudar.
À chegada a campo 1 contámos uns aos outros as histórias
do dia anterior: uns do campo 1 e nós da descida. Vamos
ficar em campo 1 para no dia seguinte subir a campo 2. Va-
mos ficar muito com timings curtos, mas queremos tentar
cume.
Tudo está muito cinzento e chegou um SMS a comunicar
que as previsões seriam de mudança. Fazemos novo con-
trolo de saturação para verificações. O Edgar está com a
saturação um pouco mais baixa, mas nada de preocupante.
A decisão era de se ter em atenção a ver se melhorava, ou
se pelo menos não baixava mais. Depois, se tudo estivesse
bem, subiríamos para campo 2 sem problemas. A satura-
ção é um indicador, mas o Edgar não tinha grandes sinto-
mas de mal agudo de montanha.
Entretanto a Sandra estava com os lábios e as pontas dos
dedos com cianose, não necessitaria de grande verificação
de saturação. Realmente estava baixa, mas por outro lado
chegou um novo SMS anunciando que ia haver tempestade
de neve depois das 12 horas. Lembro-me de olhar para
o relógio e de num instante essa neve começar a cair a
grande velocidade. Pensei bem. O Carlos não falhou no en-
vio das previsões e foi assertivo. Só restava descer, pois
com este mau tempo tudo iria ficar muito penoso. Fazer um
cume a 6.000 metros com neve pelo joelho ia ser de muita
dificuldade, e com o mau tempo piorava. Restava mesmo
descer e levar o material para campo-base. Precisávamos
das tendas, dos fogões, do saco-cama, das colchonetes,
entre outros. >>
17
#03
expedição
O silêncio demonstrava o quanto estávamos desiludidos,
mas o mau tempo fazia-nos descer e no íntimo todos sa-
bíamos que era a melhor decisão. Sempre queremos mais,
queremos chegar lá ao alto, mas sabemos que uma boa ex-
pedição não depende unicamente de um cume.
Chegámos ao campo-base num grande manto branco, res-
tava dormir para acordar no dia seguinte. Quando se tem
que descer assim tudo custa mais, esta noite e fim do dia
custaram mais.
Hora de desmontar tudo e partir de campo-base para o regresso
Organizar carregadores para novamente subirmos aos
5.000 metros, descer todo o vale, voltar a subir aos 4.260
metros e daí pela encosta até Tangge.
Um dia longo e que ao olhar para trás deixa saudades. Fe-
lizmente não se avista o Bhrikuti porque o mau tempo está
lá. Ainda bem, pois assim temos interiormente a “desculpa”
de estar lá o mau tempo. Não dava mesmo... Não que isto in-
teresse, porque existem coisas que não dependem de nós.
Chegados a Tangge é tempo de relaxar, alimentar, dormir.
Esta aldeia é incrivelmente bonita, acho que não prestei a
devida atenção na subida. Estou num pequeno paraíso. As-
sim passo um fim do dia a observar tudo na aldeia, as pes-
soas, as casas, os traços religiosos, o que cultivam, os sis-
temas de rega dos campos, procuro estar atento a tudo o
que consigo absorver.
Sinto que é tempo de descompressão, não fizemos cume,
mas procurei que fosse uma boa expedição para todos,
sendo que estarem todos bem é o que pretendo no fim.
Kali Ghandaki Nadi
O dia nasce e surge a ideia de descermos ao logo do rio...
Sinto que os carregadores não gostaram muito do plano
mas também não nos tentaram mudar.
Se sobem jipes e tractores ao longo do rio, então vamos
descer até Chhusang por aqui. Assim desta forma poupa--
se um dia de trekking e sempre conhecemos o rio. Aventu-
ras é aquilo que trazemos de miúdos e queremos mesmo é
explorar ao máximo.
Saímos de Tangge na direcção de Nanja Docan, procurando
ir ao encontro do Kali Ghandaki onde se juntam as linhas de
água. A saída diz-nos que não vai ser difícil, isto é largo e dá
para ir ao lado da linha de água. Isto é uma praia de pedras.
Salta a linha de água, e volta a saltar, volta a saltar, isto é um
labirinto de linhas de água. Ninguém quer molhar o calçado,
descalça, volta a descalçar. Está visto que não vamos ter
monotonia e se descemos apenas um quilómetro resta sa-
ber como vão ser os outros cerca de 20 quilómetros.
Até aqui o rio é baixo, por vezes alarga, mas estar sempre a
tirar calçado e com água fria não está a resultar bem. Rapi-
damente passamos para a parte em que calçados estamos
bem. Mais água e mais água, depressa passamos a água
pela cintura. Penso que já não voltamos para trás, estamos
com compromisso de envolvência nesta expedição aquá-
tica. Os carregadores parecem não gostar, mas sentem o
espírito e estão mesmo a divertir-se bastante. Não sabem
nadar mas com a nossa ajuda ultrapassam cada obstácu-
lo que surge. Não é só água, já estamos a falar de algum
caudal e temos que procurar as curvas onde a água perde
velocidade. Temos mesmo de agarrar os carregadores e
temos um ou outro susto com alguns a caírem literalmente
na água. Para eles está a ser uma aventura e esta é mesmo
a expedição deles. Desta vez quem está ali para auxiliar so-
mos nós mas esta é uma aventura deles. Nós é que quere-
mos descer este rio, mas eles querem muito mais que nós.
Vejo as horas a passar e sinto que descemos ao longo do
rio muito tempo, mas também sinto que não saímos nada do
sítio, vamos ter de acampar a meio. Lá vem um dos trac-
tores ao longe e resta negociar a descida para não ter de
ficar a meio caminho. Bom negócio e experiência extraor-
dinária, apelidada por nós de “tractor-raft”. A palavra não
está mal escolhida por ter sido aquilo que sucedeu na des-
cida ao longo do rio. Muito boa experiência e recomendável.
Em cima do atrelado do tractor percorremos na base de
falésias, onde pela largura apenas seguia o rio e o trac-
tor... Parecia feito à medida numa grande parte das vezes.
Bastava olhar para cima para vermos paredes nas laterais
com uns 300 a 600 metros. É conglomerado, e penso quan-
do irá cair lá do alto uma pequena pedra... Foram duas horas
assim até Chhusang.
Fizemos bem em descer de tractor. Muito rio, muito cau-
dal, isto ainda era longo para fazer com os carregadores.
Já estamos em Chhusang com grandes conhecedores da
área, aliás, pessoas que estudam a área em teses de dou-
toramento. Entendemos que fizemos uma descida em trac-
tor ao longo do rio não muito acessível a qualquer turista.
Por exemplo, a pessoa em questão nunca o tinha consegui-
do fazer. Valeu muita a pena!
Regresso ao caos...
Estas partes finais de regresso nunca têm muita história.
Na verdade têm, porque conhecer e passear pelas aldeias,
por Kathmandu, faz tudo parte de um mundo cultural e de
experiência. O problema é sempre o mesmo, pois como es-
18
#03
tamos empenhados numa expedição há mais de 20 dias,
queremos regressar rápido e acabamos por esquecer
esta parte cultural.
De Chhusang fomos de jipe até ao Jomoson. Ainda tivemos
uns episódios de trocas de jipes, de nos colocarem literal-
mente fora de um jipe pois venderam lugares em duplicado,
de um furo no pneu, de discussões entre locais, de muita
história em tão pequena viagem.
Passámos o dia em Jomoson nos 300 metros da “avenida
central” da aldeia, entre passagens de um lado para o outro,
entre visitas aos cafés, pelas lojas.
Já no dia seguinte regressámos a Pokhara no pequeno
avião das companhias aéreas nepalesas. Entendo sempre
porque não dão garantias de segurança a nível internacio-
nal, na Europa certamente estariam proibidos de voar. Con-
fesso que gosto muito de voar aqui, mais pela paisagem do
que pela questão da segurança, claro.
Mais um dia por Pokhara e mais um dia épico de viagem de
sete horas de carro até Kathmandu. Só pensava nesta via-
gem e só me perguntava porque não gastei os benditos 75
dólares do avião. Tinha demorado 20 minutos e já estava
em Kathmandu. Ninguém me tente convencer que faz parte
da experiência desta viagem. Só penso mesmo é que seria
uma experiência melhor e o tempo mais bem ocupado. A
estrada não tem nada que me faça querer estar ali.
Enfim no caos de Kathmandu, é tempo de passear. Ainda
agora cheguei e o assessor de Elizabeth Hawley já sabe que
já cá estou. Super profissionais. Ainda nem me instalei e já
marcam o questionário final. Assim foi. Explico ao porme-
nor tudo o que fizemos, e claro tudo o que não subimos, até
que altitude fomos, um sem número de pormenores para
estatística. Gostei muito da conversa e foi muito bom, pois
falaram-me de outros locais.
Fim de visita ao caos de Kathmandu e regresso às longas
horas de avião para chegar a casa. >>
19
#03
expedição
Sem cume, mas com mais uma boa experiência de montanha com o Miguel, a Melita, a Sandra, o Edgar e o Nóia. Foi muito bom estar ali e espero voltar muito em breve para o Bhrikuti ou para outra qualquer montanha do Nepal. <>Pedro Guedes
20
#03
BREVEMENTE em Junho de 2014...
6 dias em Travessia BTT no Atlas em Marrocos[ de Aguergour, Ljoukak, DiLjoukak, Tinguezou, Igli, Imlil a Timzilite. ]
ascensão
esporão migot na chardonnet Alpes > Julho 2013
22
#03
“Falar da ascensão à Agulha de Chardonnet pelo esporão Migot é, mais do que falar de uma ascensão isolada, falar de uma actividade que concluiu um processo de aprendizagem iniciado cerca de cinco meses antes, naquilo a que se chamou estágio dos seis meses.”texto: José Nunesfotografia: César Silva / Paulo Roxo
Esta actividade, que se iniciou em
Fevereiro, não obstante as normais
vicissitudes decorrentes de um Inverno
demasiado rigoroso, tinha-me permitido
apreender de forma mais estruturada
um conjunto de técnicas das quais só
tinha tido pequenos vislumbres em
actividades passadas, como a escalada
em gelo, em corredores de neve,
ascensões em primeira cordada com
montagem de pontos de segurança,
entre outras.
23
#03
alpinismo
“...uma excelente ideia.”
Chegado a Chamonix para uma actividade que seria o cul-
minar deste estágio sentia um misto de expectativa e apre-
ensão, a que já me havia habituado noutras idas aos Alpes.
Na verdade, era natural que o estágio nos Alpes servisse
para podermos pôr em prática estas novas técnicas em
vias mais longas e difíceis e como tal mais exigentes para
mim enquanto praticante.
Assim, quando nos reunimos com o Paulo e o Pedro, os
nossos monitores, para falarmos das actividades a realizar,
Chardonnet foi a primeira das hipóteses, porque segundo o
Paulo tinha todas as características para um final em gran-
de, já que para além da sua beleza natural tinha lances de
neve, gelo e misto, o que nos permitia pôr em prática os
novos conhecimentos adquiridos. Claro que esta via tinha
a desvantagem de implicar dois dias, um para aproximação,
outro para a ascensão propriamente dita, pelo que ficámos
de ver a evolução da actividade para uma decisão final.
Vicissitudes diversas acabaram por nos tirar dois dias de
actividade, pelo que quase naturalmente acabámos por de-
cidir, de forma consensual, apostar na ascensão da agulha
de Chardonnet, o que, pela sua espetacularidade, compen-
saria a falta de outras actividades.
E assim foi… Claro que inicialmente a ideia era subir a aresta
Forbes, a via mais clássica. Contudo, sem que eu perce-
besse bem como, começou-se a falar no esporão Migot, o
que para mim era indiferente já que não conhecia nenhuma
delas. Penso que, no fundo, a ideia dos monitores era fa-
zer uma ascensão de grande beleza e suficiente dificuldade
que nos testasse em novos ambientes… Pode dizer-se que
foi uma excelente ideia.
Assim, na quinta-feira, fizemos a aproximação à via median-
te subida ao refúgio Albert I (com a ajuda do teleférico até
meio do caminho). A aproximação permitiu perceber que
existia uma quantidade de neve anormal para altura do ano,
mas isso era algo a que esta época de neve já nos vinha
habituando.
24
#03
“...a vista era soberba.”
A chegada ao refúgio permitiu também observar demora-
damente o nosso objectivo, com a mais-valia de se conse-
guir observar a quase totalidade da via. Devo dizer que, ao
ouvir o Paulo apontar o percurso, o meu primeiro senti-
mento foi pensar que aquilo não era uma via, mas depois de
pensar melhor simplesmente apercebi-me que estávamos
a falar de um nível de exigência técnica claramente acima
de todas as outras coisas que havia já feito, daí não con-
seguir ver nada enquanto os outros viam uma forma de
chegar ao cume.
Naturalmente, como acontece quando saímos da nossa
zona de conforto, o sentimento de apreensão começou
a rondar, mas como nestas coisas pensar muito não faz
muito bem, dei por mim com o pensamento habitual, como
quando na escola faltavam dois dias para o teste e ainda
não tinha estudado nada: quando chegasse a hora, e não sei
bem como, estaria certamente preparado.
Após um jantar altamente calórico marcámos os desperta-
dores para a uma hora para sairmos às duas. Esperava-se
que fosse suficiente para apanharmos o último autocarro
em Tour que sairia às 18h15.
Tomado o pequeno-almoço e devidamente equipados, era
hora de sair. O tempo estava bom, embora bastante menos
frio do que seria expectável… Um prenúncio para o que nos
esperava.
A aproximação iniciou-se à hora marcada. Após cerca de
meia hora de marcha, o primeiro revés. Um problema na
bota de um elemento da outra cordada obrigou-os a voltar
para trás. Para além da enorme sensação de frustração
pelo desalento sentido nos colegas, a repentina solidão de
uma cordada de três para tão magnífica montanha deixou-
-me a matutar. Felizmente tivemos de começar a andar e
assim a cabeça esvaziou-se, dando lugar à concentração
exigível para uma travessia em glaciar.
A aproximação demorou cerca de três horas e, ao con-
trário de outras vias que já havia feito nos Alpes, esta foi
bastante solitária, já que os outros três grupos que nesse
dia empreenderam esta ascensão atravessaram directa-
mente o glaciar. Enquanto isso, utilizando parte da via para
a Agulha do Tour, nós fizemos um percurso um pouco mais
longo mas com um desnível menos acentuado, pelo que só
voltámos a ver outros alpinistas no preciso momento em
que atingíamos o início da via.
A chegada à base da via coincidiu com o início do amanhecer
e devo dizer que a vista era soberba. Um pouco à nossa
frente uma cordada de alpinistas espanhóis ocupou o início
da via, uma parede de neve dura partindo de uma rimaya
e que desembocava num esporão de rocha. Como não
queríamos esperar, a hipótese foi encontrar outro ponto
de entrada o que implicava mais extensão de parede e mais
inclinada (e uma zona onde a abertura da rimaya era maior).
Com distância entre cordadas bastante longas, iniciou-se
aquele período de espera normalmente apreensivo em que
vemos os outros subirem e receamos não sermos capa-
zes de repetir aqueles gestos. Contudo, todos esses re-
ceios, esses medos de falhar desvaneceram-se na altu-
ra em que os meus dois companheiros subiam já longe a
parede de gelo, a corda esticou e tive de meter o piolet na
neve para passar o obstáculo que marcava o início da via,
a referida rimaya.
Esta primeira parte da subida, feita com neve em excelen-
tes condições foi, curiosamente também, o último troço que
apanhámos em condições para o resto da subida. Ao che-
gar à zona de terreno misto na entrada de um esporão de
rocha a que se seguia um pequeno corredor de neve, co-
mecei a notar a neve anormalmente mole para a hora, isto
numa altura em que o sol mal se via, o que augurava uma
subida menos fácil.
Ao mesmo tempo o corpo começava a pagar alguma falta
de cuidado no ritmo imposto neste primeiro lanço. E é nes-
sa altura que se percebe a importância daqueles que, corda
acima, têm a nossa vida nas suas mãos. Sem dúvida que o
constante apoio e encorajamento dos meus companheiros
de cordada foi essencial para ir subindo devagar mas com
um ritmo o mais estável possível.
Como último na cordada, cruzei-me nesta altura com o pri-
meiro elemento da cordada espanhola que tínhamos entre-
tanto ultrapassado ao fazer o já referido atalho no primeiro
lanço. A partir daqui fomos sempre subindo mais ou menos
juntos, sendo de realçar o excelente comportamento des-
tes alpinistas, sempre a respeitar o nosso espaço (e nós o
deles, naturalmente).
Esta segunda parte foi alternando entre neve e esporões
de rocha que fomos contornando até chegarmos ao pri-
meiro ponto mais complexo, um corredor de gelo com cer-
ca de 30 metros.
Ver o Paulo (e depois o César) a subi-lo deu-me esperança
que não fosse assim tão difícil, embora a apreensão de uma
formação em gelo pouco conseguida tenha começado a vir
ao de cima. Contudo, assim que iniciei o lanço percebi que
o gelo estava em excelentes condições e, com pequenos e
seguros passos e anestesiado pela adrenalina, tudo se foi
fazendo até lá acima sem dificuldades de maior. >>
25
#03
alpinismo
“Chegados ao cume, a alegria...”
Assim chegámos ao ponto mais bonito e ao mesmo tempo
mais delicado da subida, uma aresta de neve bastante ex-
posta, com cerca de150 metros de comprimento, que se
desenvolve até um colo rochoso que antecede o cume.
Nesta altura, e após umas três horas de subida, o calor
fazia-se sentir bastante e a neve, em consequência, apre-
sentava-se bastante empapada.
Tornou-se assim necessário fazer a primeira parte des-
ta travessia em ensemble, já que a neve não oferecia as
mínimas condições para a colocação de pontos fixos (tí-
nhamos apenas uma possibilidade de meter um ponto fixo
numa zona de rocha, mas que ficava a cerca de 80 metros
da zona onde estávamos). E como sempre acontece nes-
tas situações, com o medo a favorecer uma extrema con-
centração, passo a passo (com a neve cada vez em piores
condições) e com calma chegámos lá acima.
Quase no cume podíamos observar o outro lado da mon-
tanha, o glaciar de Argentiére e tudo o que o rodeava, uma
imagem de uma beleza estonteante. Nesta altura ainda não
víamos o cume mas já o pressentíamos e, embora a traves-
sia até ao dito se tenha revelado algo exposta num ponto ou
outro, já nada nos fazia parar.
E foi assim que após alguns minutos pude observar o Pau-
lo no pequeno cume de neve e o César a chegar ao cimo.
Poucos minutos depois também eu lá estava. Chegados ao
cume, a alegria, o sentido de auto-superação e a recorda-
ção longínqua do momento em que, horas atrás, o primeiro
pé tocou na neve foram fontes daquela alegria inexplicável
de simplesmente chegar lá acima.
Ao contrário de outros que já tinha feito, este é um cume
pequeno e bastante exposto, pelo que, após a foto da praxe
e com os colegas espanhóis a chegar, foi preciso começar
a pensar na descida. E que descida…
“...desencordados a meio da pendente”
Após uma saída algo delicada do cume, em que tivemos de
fazer uma pequena travessia em neve bastante mole até
uma plataforma abaixo do cume, tínhamos para descer uma
pendente bastante inclinada, pelo menos até ao primeiro
rapel (sim, nesta fase a hipótese de descer a pé já estava
claramente fora das nossas cogitações). Demos então iní-
cio a um conjunto de seis rapéis.
Para mim foi uma experiência nova, pois embora já tivesse
feito rapel em neve e gelo nunca tinha feito tantos seguidos.
Nesta fase sentiu-se a utilidade dos rapéis feitos em rocha
nos últimos meses, o que permitiu uma descida automatiza-
da, rápida e segura, com um pequeno percalço quando não
encontrámos uma das reuniões (percebemos depois que
era mesmo assim, da terceira para a quarta reuniões era
preciso fazer uma pequena travessia) e tivemos que fazer
uma passagem desencordoados a meio da pendente.
26
#03
Chegados ao fim do rapel, desembocámos numa zona plana
ainda longe do glaciar mas que já permitia uma descida a pé
sem dificuldades de maior. Aproveitámos para um pequeno
reforço alimentar e iniciámos uma tortuosa e longa descida
até ao glaciar, já que a neve estava muito mole e as pernas
começavam a acusar o cansaço.
Após mais de uma hora lá atingimos o glaciar que também
já tinha visto melhores dias… Mas a partir daqui, com o na-
tural cuidado com as crevasses que já se viam debaixo dos
pés, lá fomos progredindo o mais rápido que podíamos, até
que cerca das 16 horas atingimos o piso firme do refúgio
Albert I.
Após um pequeno descanso, vimos as nossas opções: tí-
nhamos um último teleférico às 17 horas (que já não con-
seguíamos apanhar) e o último autocarro em Tour pelas
18h15. Tínhamos portanto que fazer a descida toda a pé (e
rápido, pese embora os pés e os joelhos já se queixassem
bastante). E assim foi. Depois da primeira fase da descida
ainda com alguns cuidados (face à grande acumulação de
neve) lá seguimos à velocidade possível até lá abaixo apro-
veitando o sol e o lindíssimo vale.
E tal foi a velocidade na descida que ainda tivemos de esperar 15 minutos pelo último autocarro antes de voltarmos a Chamonix para o merecido descanso (e banho).
No fim, apenas uma palavra:
inesquecível.
<>27
#03
alpinismo
escalada
agulha charlanon
Alpes > Julho 2013
“Estou novamente nos Alpes, mais concretamente em Chamonix. Esperam-me cinco dias de actividade mas a primeira de todas é um dia de escalada em rocha nas Agulhas Vermelhas, mais concretamente a escalada à Agulha de Charlanon.”texto: Raquel Carvalhofotografia: César Silva / Paulo Roxo
28
#03
“let the adventure begin!”
A actividade e as cordadas foram parcialmente definidas à
mesa, já que todas as boas decisões são tomadas em fren-
te a uma mesa, de preferência em boa companhia e comida.
Após uma breve passagem pela casa dos guias de monta-
nha de Chamonix ficam-se a saber as condições da via e
do acesso. Uma vez que este ano caiu água sob a forma de
flocos de gelo como se não houvesse amanhã, o início da
via e parte do caminho até à mesma encontram-se debaixo
de um manto de neve. Há que fazer uns ajustes ao plano ini-
cial e, em vez de poder ir com os confortáveis ténis (este
texto não foi escrito ao abrigo dos regionalismos do Norte),
tenho de levar nos pés as botas de montanha, para além de
a mochila ir com o peso extra dos crampons e do piolet.
No dia da actividade, o despertador toca cedo (a ideia é ten-
tar ir no primeiro teleférico do dia e voltar antes do último,
teoria que se revelou completamente falhada na prática)
e no apartamento há no ar um misto de ansiedade e ex-
pectativa. Afinal de contas, é a primeira actividade destes
cinco dias. Felizmente o dia amanheceu soalheiro, havendo
apenas uma ou outra nuvem de algodão no céu, fazendo-
-me esquecer o dia chuvoso e frio com que Chamonix me
presenteou aquando da minha chegada. Após um bom pe-
queno-almoço (que incluía pelo menos dois tipos de queijo
diferentes, pão fresco e café) é altura de deixar o aparta-
mento, colocar a mochila e, consequentemente, o peso nas
costas. É neste exacto momento que digo a mim mesma:
“let the adventure begin!”.
Estamos todos animados e quase tenho a certeza que al-
guém expressa os seus sentimentos sob a forma de can-
ção. Enquanto espero pela abertura do teleférico há mais
que tempo para admirar as montanhas que nos rodeiam. O
contraste das mesmas é igual em todo o lado, mas ali as
montanhas transmitem um “je ne sais quoi” e as bases ver-
dejantes que a certa altitude deixam de o ser, para dar lugar
a cumes de rocha nua ou de neve, têm um encanto especial.
À saída do teleférico sinto o sol a bater na cara de um modo
muito agradável como se estivesse a dar-me os “bons
dias”. Vou percorrendo o caminho que nos leva até à Agu-
lha de Charlanon e mais uma vez questiono-me porque é
que todos os acessos às vias têm de incluir subidas. Os
famosos neveiros de que nos tinham avisado que havia até
à base da via finalmente deram o “ar da sua graça. É altura
de tirar peso da mochila, os crampons vão para os pés, o
piolet para a mão e como é óbvio, ou não estivesse a es-
crever este texto do meu ponto de vista, é altura de co-
mer e beber qualquer coisa. As Agulhas Vermelhas encon-
tram-se do nosso lado esquerdo e agora é só encontrar
a agulha correcta, tarefa que se torna fácil devido à folha
propositadamente arrancada de um livro e ao croqui que
o Paulo desenhou. Vamos andando pelo meio da neve até
chegarmos perto da Agulha de Charlanon. Encontrar a via
certa revelou-se uma tarefa mais difícil, que rapidamente
se transformou numa verdadeira caça ao tesouro. O início
da via encontrava-se soterrado de neve e apenas se vis-
lumbrava uma plaquete a reluzir no meio da rocha. Como
não se encontrou mais nenhuma, decidiu-se que seria essa
a via que iríamos fazer, apesar de ser a mais difícil das que
estavam no croqui. Agora era altura de subir pela neve até
junto da plaquete.
A plataforma de rocha do início da via era tão enormemente
gigante que preparar o material, vestir o arnês e calçar os
pés de gato foram tarefas “interessantes”, para além de
conterem um elevado nível de contorcionismo e malabaris-
mo. Por este mesmo motivo ficou decidido que só teríamos
acesso à mesma à medida que fôssemos escalando. Claro
que como sou afortunada tive o prazer de passar um bom
tempo em equilíbrio numa saliência rochosa ao mesmo tem-
po que segurava os crampons pelas fitas numa das mãos e
verificava se o piolet se mantinha bem espetado na neve.
O meu consciente alertava-me para o facto de não poder
deixar cair nada (nem mesmo o meu próprio corpo) sob
pena de aterrar algures mais abaixo entre a rocha e a neve.
A melhor maneira de me abstrair desta situação era mes-
mo observar a magnífica paisagem que me rodeava. Assim
que primeira cordada deixou a plataforma vazia era tempo
de a segunda cordada poder aceder à mesma. >>
29
#03
escalada
Claro que agora o espaço ainda era mais exíguo, uma vez
que no início da via ficavam, em modo de acampamento ci-
gano, mochilas, botas, crampons e piolets. Só se iria subir
com o material mesmo essencial – roupa de aquecimento,
água e obviamente comida. Calhou-me ir em último e por
isso, antes de começar a escalar, verifiquei o estado do
acampamento cigano, coloquei magnésio nas mãos e siga –
o caminho é para cima!
“O impossível fez jus ao seu significado...”
O primeiro largo era pequeno, ou não tivéssemos nós co-
meçado a escalada a meio do mesmo, mas ainda deu para
aquecer, uma vez que existiam diedros engraçados a ultra-
passar. No largo seguinte houve a necessidade de passar-
mos da via onde estávamos para a via ao lado. A ideia era
boa, mas como entre a teoria e a prática vai uma grande
diferença acabámos por andar no meio de rocha solta. Ha-
via o cuidado redobrado de ver onde se colocavam os pés
e as mãos, de modo a não soltar nada sob pena de lesionar
alguém. Fui subindo ao meu ritmo e sem nunca descurar
este facto; apesar de ser a última do nosso grupo não sabia
se havia mais alguém a aventurar-se naquela via. Pelo ca-
minho ainda tive que encetar a missão impossível de retirar
um friend da parede. O impossível fez jus ao seu significado
e portanto a missão não teve sucesso, ficando um “amigo”
vermelho na parede só e abandonado à espera do nosso
regresso e de alguém que o conseguisse resgatar.
O dia foi decorrendo e fui subindo os diversos largos de
maior ou menor dificuldade. À medida que a altitude ia au-
mentando, o horizonte alargava-se e o vento frio ia aumen-
tando a sua intensidade, chegando por momentos a abafar
os efeitos fantásticos que o sol me proporcionava. De re-
pente, estava no último largo e como não era de grande
dificuldade sugeriram-me que fosse eu em primeiro lugar.
Abrir um largo nos Alpes tem outro sabor, outro encanto,
nem que seja pela altitude, pela paisagem ou mesmo pelo
ambiente em si. A via encontrava-se equipada, mas pelo
sim pelo não coloco uns friends e uns entaladores no ar-
nês. Olho para a via e realmente não me parece ser as-
sim tão difícil, mas as plaquetes estão bem distantes umas
das outras. Vou escalando e sei que algures há um passo
mais chato de fazer (o Paulo avisou-me disso). Assim que
lá chego identifico-o imediatamente. A protecção seguinte
ainda se encontra longe e a anterior idem aspas aspas. À
minha frente há uma fissura fantástica onde decido colocar
um friend. O Paulo já se encontra a fazer o rapel de descida
e pára para me dar umas palavras de incentivo e “sacar”
umas fotos. Há que continuar a subir e uma vez que o re-
ceio vem todo ao de cima coloca-se outro friend, e é nes-
te exacto momento que se escreve a história da “fissura
mais protegida por metro de rocha”. A reunião encontra-
-se perto. Sei disso porque já ouço a voz dos meus colegas
que iam na cordada anterior. Subo mais um pouco e lá es-
tão eles. Agora tenho de me auto-segurar e dar segurança
aos meus colegas de cordada. Passados alguns momentos
eles também chegam ao fim da via. É altura de tirar a foto da
praxe e começar a longa série de rapéis que nos esperam.
30
#03
Um, dois, três, quatro… Já não me recordo de quantos fo-
ram, mas ainda foram bastantes, e alguns deles feitos com
cuidados a redobrar devido à elevada possibilidade de que-
da de blocos de rocha. Pelo caminho ainda se realiza a se-
quela da “missão impossível”, mas mais uma vez verificou-
-se que aqui o impossível é mesmo impossível e que na via
vai ficar um friend.
“Os efeitos da inclinação da descidacomeçam a surgir...”
Finalmente chego à base do acampamento cigano e final-
mente posso trocar os já desconfortáveis pés de gatos
pelas botas. Mais um ou outro exercício de malabarismo
para a colocação dos crampons e eis que estou pronta para
o último rapel. No fim deste, parámos num aglomerado de
rochas e já que perdemos o teleférico de descida temos
tempo para ingerir calorias e repor os líquidos perdidos
com alguma calma.
No início, a descida até Chamonix não parece ser muito dura
e até vou por um caminho ladeado por árvores onde a incli-
nação não é muito acentuada. Mas… ao fim de algum tempo
já não posso ver o caminho, as árvores que o ladeiam e as
curvas que o mesmo faz. Os efeitos da inclinação da desci-
da começam a surgir: doem-me as pernas, os joelhos e os
dedos dos pés. É nesta altura que começo a questionar-me
se não será menos doloroso tirar as botas e continuar de
pés de gato ou mesmo descalça. Quando finalmente chego
ao plano horizontal o meu corpo já nem sabe o que é andar
correctamente e passo por um período ridículo e hilariante
de adaptação, mas ao menos já estou em Chamonix.
E foi assim que decorreu a primeira actividade dos cinco
dias que passei nos Alpes. Desta actividade ficam regis-
tadas em mim, nem que seja no meu subconsciente, uma
série de emoções e uma fantástica frase que nunca mais
irei esquecer:
“Aiguilles Rouges? Trés jolie!” <>
31
#03
escalada
ascensão
vignemale e monte perdido
Pirenéus > Agosto 2013
32
#03
“Por vales e montanhas encantadas”texto: Sandra Reisfotografia: Pedro Guedes
Foram cinco dias de montanhismo nos
Pirenéus em travessia e autonomia total,
com toda a carga para uma semana:
tenda, fogão, comida e equipamento
técnico de alpinismo. O peso, mais do
que os quilómetros e do que o desnível
previsto, foi definitivamente o desafio!
33
#03
ascensão
“Encantei-me pelos Pirenéus.”
Foi uma grande rota com início em Bujaruelo. Depois, subida
pelo Puerto de Bernatuara, acampamento nos arredores da
gruta Bellevue, ascensão do Pic Longue Vignemale (3.298
metros), passando pelo glaciar, descida pelo Vale D’Ossoue,
passagem por Gavarnie, descida a Bujuarelo, passagem e
subida pela Pradera de Ordesa e Vale de Ordesa, subida a
Goriz e daí a ascensão do Monte Perdido (3.355 metros),
com descida e regresso a Torla pelo percurso do GR11.
Estava algo ansiosa, pelo desafio do peso, mas extrema-
mente expectante. Há dois anos que queria fazer este per-
curso e as expectativas eram muitas. A beleza dos Pire-
néus entrou-me pelos olhos e pelos ouvidos nas inúmeras
fotos e relatos que vi e ouvi.
Encantei-me pelos Pirenéus. Têm uma magia qualquer que
não sei bem explicar… É curioso que em muitas partes do
percurso dei por mim a pensar no “Senhor dos Anéis”, na
descrição das paisagens das terras dos Elfos. Se calhar é
isso, há algo de conto de fadas nas paisagens, talvez pela
água abundante, pelo murmurar constante dos rios, pelas
lagoas e cascatas, pelas aves de rapina nos altos, abutres,
gaviões, grifos e uns bandos de corvos em gritos estri-
dentes que batem nas altíssimas paredes e ecoam pelos
vales, a sinalizar a nossa passagem. Verde, verde e verde
e muitas flores e árvores nos vales, num contraste abrup-
to mas harmonioso com a aridez rochosa, neveiros e gla-
ciares das quotas mais elevadas.
Animais por todo o lado, as manadas de vacas pirenaicas
às centenas a fazerem-se ouvir ainda antes de conseguir
vê--las, o tilintar dos badalos em música de fundo a acom-
panhar os nossos passos. Marmotas aos saltos por todos
os lados, na brincadeira, de pé nas patas de trás, com as
orelhas espetadas à escuta, à espreita nas suas covas,
deitadas, não, esparramadas ao sol nas rochas, que nem
lontras ou lagartos ao sol! Boa vida, a destas marmotas!
Ovelhas deitadas nos neveiros e a fazer esqui no gelo! Des-
ta não sabia, ovelha sabe esquiar! Fiquei estupefacta. Mas
bom, têm um casaco de peles cinco estrelas e com o ca-
lor que estava era deitadas na neve que se deviam sentir
bem! Rebanhos imensos de ovelhas e cabras em constante
movimento, cabras em alturas e terrenos surpreendentes,
todos os dias a saírem e a regressarem aos currais, con-
duzidas pela perícia e pelo incrível trabalho de equipa dos
cães pastores... Lindo, lindo demais... Que melhor se pode
querer para uma semana de actividade em montanha?
Fizemos duas ascensões e a primeira foi ao Pic Longue
Vignemale (3.298 metros): talvez mais dura e mais técnica,
mas foi a que gostei mais, pelo tipo de terreno, pela passa-
gem em glaciar e depois pela trepada fantástica na parte
final, em zona de blocos de rocha vermelha com um declive
interessante.
Tínhamos ficado a acampar na noite anterior perto de uma
cascata nos arredores da gruta Bellevue, noite de lua qua-
se cheia a jogar às escondidas com umas nuvens no hori-
zonte, que deram um contraste fotográfico ao pôr-do-sol
34
#03
registado para a eternidade pelas nossas três máquinas
fotográficas. Bons momentos a apreciar o entardecer, a
admirar e a identificar os picos circundantes, acompanha-
dos por um belo esparguete à bolonhesa liofilizado. Estou fã
desta bolonhesa!
E depois de uma noite bem dormida, com a suave cascata
como som de fundo, saímos de manhã cedo com a alvorada
e a ascensão foi muito boa e muito rápida. Diria, aliás, diver-
tida porque este é o tipo de terreno que mais gosto: trepe e
destrepe e glaciar. Adorei a subida, adorei a descida!
Descemos novamente ao sítio onde tínhamos montado
acampamento, já lá iam algumas horas, e comemos qual-
quer coisa, descansámos um pouco, desmontámos e ar-
rumámos tudo. Mochilas novamente às costas e lá fomos
nós por ali abaixo. O mais difícil acabou por ser esta descida
quase até Gavarnie logo de seguida. O joelho queixou-se e
foi ao fim dessas dez horas que as bolhas apareceram…
Quase 14 quilos às costas, para 53 quilos de peso, a faze-
rem mossa nos joelhos e nos tornozelos. E nem das bolhas
escapei desta vez. Com tantos quilómetros de montanha
nas solas das botas e tal ainda não me tinha acontecido!
Mas também quem me mandou esquecer das palmilhas em
casa?! Erro de principiante, quase parece. Mas as palmilhas
sempre estiveram nas botas (ainda estou para saber o que
lhes fiz, onde foram parar!) Como é possível algo tão pe-
queno ser tão incómodo e doloroso? As dores começaram
de facto a apertar e ao fim de dez horas de actividade an-
dava muito lentamente. E Gavarnie ainda estava a um par de
horas de caminho… O fim de dia aproximava-se e algumas
nuvens apareceram ameaçadoras no horizonte. O meu âni-
mo estava em baixo, cerrei os dentes, contive as lágrimas
de dor que irritavam os olhos e pensei: “se os peregrinos a
Santiago aguentam as bolhas eu também aguento!”
Mas felizmente despontou no horizonte uma cabana de
pastor miraculosamente... vazia. Que cansaço! E que bem
soube ter um tecto nessa noite. Porque a chuva resolveu
dar o ar de sua graça… Deu para descansar os pés e, ape-
sar da noite mal dormida, com os músculos cansados a não
darem descanso ao corpo, no dia seguinte acordei toda en-
tusiasmada. E só não digo fresca que nem uma alface, por-
que as bolhas não tinham miraculosamente desaparecido,
ainda lá estavam a fazer mossa. >>
35
#03
ascensão
Mas enfim, ao fim de duas horas de percurso chegámos fi-
nalmente a Gavarnie. E um “pequeno” desvio a uma farmácia,
uns Compeeds, 35 euros numas palmilhas super especiais
de corrida e outra mezinhas resolveram todos os males,
que foram de pouca duração e curta memória. E com as
palmilhas e os compits já foi possível continuar!
Pequenos “luxos, grandes prazeres!
A outra ascensão já foi no lado espanhol, mas só depois
de uma passagem em Gavarnie e pelo grandioso circo de
Gavarnie, com a sua imponente cascata e não menos bru-
tais e gigantes paredes, vias épicas da escalada em gelo.
Para além das palmilhas salvadoras, Gavarnie foi sinónimo
de esplanada na manhã soalheira, a deliciar-me com uma
tarte de maçã e um cappuccino, de conversa descontraída
e de decisão dos planos seguintes. Uma pausa de conforto
para estes montanheiros. Talvez por isso, por ser rara e
inusitada numa semana de montanha, tenha sabido tão bem.
Pequenos “luxos”, grandes prazeres! Mas não foram os
únicos…
Regressámos a Bujaruelo, depois de mais umas horas de
caminhada por prados cada vez mais verdejantes à me-
dida que íamos perdendo altitude, sob um sol tórrido e um
calor asfixiante, só atenuado pelas últimas horas de passa-
gem no bosque. Chegámos enfim ao parque de campismo. E
aí corri, corremos para o rio – lá tem uma pequena praia
fluvial maravilhosa – para mergulharmos as pernas e os
pés na água fria. Miúdos e graúdos a chapinhar na água e
alguns mais afoitos e menos friorentos atreviam-se a dar
uns mergulhos na zona mais funda! Fico sempre impres-
sionada com a quantidade de turistas de montanha e mon-
tanheiros que existe em Espanha e França. Tantas crianças,
pequenas, algumas de sete anitos, ou por aí, a fazerem es-
tes trilhos, alguns bem exigentes, vários quilómetros, aci-
dentados, com desnível! Famílias inteiras em férias de mon-
tanha, pais com bebés nas cadeirinhas às costas, crianças
pelas mãos, uns mais afoitos, outros ficam pelos parques e
por alguns passeios mais curtos, aldeias cheias de gente,
animação e flores vermelhas nas varandas. Que diferença
em relação a Portugal... Será que algum dia verei tanta gen-
te a fazer férias nas montanhas e a alegrar e a encher as
nossas aldeias?
Bom, mas voltando aos “luxos”... De facto, tenho de agra-
decer às bolhas e ao pé torcido que determinaram uma al-
teração do trajecto inicial e uma descida extra à civilização.
Além da tarte de maçã e do cappuccino, dos banhos re-
frescantes na praia fluvial, salivo só de recordar o frango
assado em forno de lenha ao almoço em Broto e o chuletón
extra no parque de campismo. Desta vez pedimos um quilo
de carne para os três, para dividir, mas como não tinham
uma peça única de um quilo deram-nos três de 400 gramas
pelo preço de um quilo… E comemos tudo!
E bem precisávamos de todas estas proteínas e calorias
nos restantes dias. A ascensão ao Monte Perdido... Outros
dois dias de actividade intensa!
36
#03
“... começou o trilho a sério...”
O primeiro dia, mais suave, com a passagem pelo belíssi-
mo e inigualável Vale de Ordesa. Os adjectivos são insufi-
cientes para o descrever. Como disse, de conto de fadas!
Aconselho todas as pessoas a visitarem esta maravilha da
natureza. E ter filhos e crianças pequenas não é desculpa,
pois vi dezenas e dezenas, se não centenas, de pais com
crianças pequenas, a passear, a fazer piqueniques, a meter
os pés nas águas... Camionetas saem de Torla de 15 em 15
minutos, cheias de gente, para as deixar à entrada do par-
que. E têm a mesma frequência no regresso a Torla, com a
última camioneta a regressar às dez da noite. Um exemplo
de parque natural de facto (mesmo com tantos visitantes
consegue ter taxas muito bem sucedidas de aumento de
população em muitas das espécies protegidas!) e que nós
em Portugal deveríamos seguir…
Passado o Vale de Ordesa, terminou o passeio e começou o
trilho a sério, por assim dizer, com a subida até Goriz, mui-
to agradável, com as vistas do Vale de Ordesa aos nossos
pés, distanciando-se aos poucos e escondendo-se final-
mente por trás das montanhas.
Montámos acampamento perto do refúgio de Goriz, com uma
vista deslumbrante para os vales aos nossos pés e cumes
nas nossas costas. Lembro-me com prazer de estar numa
sonolência agradável ao fim do dia, meia sentada, meia dei-
tada à porta da minha tenda a apreciar o movimento do re-
banho, enorme, que descia da montanha em frente, para um
sopé no vale mais abaixo. Mal as víamos, eram pontinhos
brancos ao longe, mas ouvíamos bem o cadenciar tranquilo
dos badalos, tal qual o som dos espanta-espíritos, que em-
balavam num agradável “deixar ir” e relaxavam os múscu-
los. Uma boa meia hora presa nesta magia ao pôr-do-sol, eu
e muitos outros que por ali acampavam, todos nós com o
olhar perdido no mesmo horizonte, em merecida indolência.
E a provar que na montanha tudo muda a qualquer instante
e muito rapidamente, o plácido fim de dia terminou, pouco
antes do sol se pôr completamente, quando estávamos nós
a terminar o nosso belo jantar de liofilizados, com a chegada
de uns grossos pingos de chuvas que, num ápice, se trans-
formaram em chuva contínua acompanhada de relâmpagos
e trovões! Medo… Isto de estar numa tenda super reduzi-
da, com uma mera colchonete de meio corpo a isolar-me
do chão tem que se lhe diga… Havia sempre a possibilidade
de correr para o refúgio com as tralhas atrás (ideia nada
agradável), mas a tormenta, apesar de sonora, passou ao
largo, os trovões estavam relativamente afastados e em
menos de uma hora, tal como veio, voou para longe! E as
estrelas foram despontando no céu.
Que sorte! Tínhamos conseguido “driblar” o mau tempo que
já estava previsto para o dia seguinte e que podia pôr em
perigo a nossa ascensão do Monte Perdido! Mas passou
sem danos. E no dia seguinte de madrugada, ao sair para
a ascensão, tínhamos céu limpo e condições perfeitas!
>>
37
#03
ascensão
“... a vista no fim desta rampa de pedra solta e cascalho é soberba.”
Por volta das 6h30 já estávamos de mochila às costas, com
o material necessário para a ascensão e comida para o dia.
Decidimos começar cedo porque ia ser outro dia muito
comprido e porque as previsões eram de mau tempo para
a parte da tarde. Não queríamos ser apanhados por mau
tempo na ascensão, nem na descida do Monte Perdido.
Aqui não havia passagem de glaciar. O desafio maior foi a
passagem de “La Escupidera”, uma pendente de cascalhei-
ra, de uns 300 metros a 45 graus... Tivemos sorte. Não ha-
via gelo nem neve e não foram precisos crampons, mas de
qualquer forma é uma última subida “agressiva” a requerer
bom trabalho de pés e muito cuidado! Fizemos bem e rápido
e a vista no fim desta rampa de pedra solta e cascalho é
soberba. Conseguimos ver ao longe o Vignemale, que tínha-
mos subido há dois dias, e a Lagoa de Marmores. Mais uns
metros e atingimos o cume, onde já estavam dois atletas de
ultra trail que fizeram o percurso todo desde a entrada do
parque em... 3h40! “Uau!”, é o que se me apraz dizer! Acho
que estes ultra trail runners são seres do outro mundo,
definitivamente!
A descida foi a correr, ou passo de semi corrida, pela cas-
calheira abaixo, porque acaba por ser mais fácil deslizar
assim pelas pedras rolantes! Difícil é quando não dá para
deslizar e o esforço de travar começa a fazer pressão so-
bre as articulações. E assim descemos e regressámos a
Goriz, directos para umas apetecidas coca-colas e batatas
fritas no refúgio, ao fim de 6h10 de actividade. Muito bom
para nós. Outro campeonato, diferente das marcas daque-
les super atletas!
E assim se estava a aproximar o fim de uma semana
fantástica. Faltava ainda descer tudo, de regresso pelo
belíssimo Vale de Ordesa, com toda a tralha às costas, mas
a perspectiva de um bom banho e de uma boa refeição
alimentaram as forças para os últimos quilómetros e as
últimas horas deste último longo dia. Foi mais uma descida
38
#03
intensa e só relaxei quando cheguei ao vale. Aí entrei em
passo de passeio, mais descontraído, a apreciar a paisa-
gem, mais umas fotos aqui e ali. Não há como resistir, por
muitas fotos que já tenha tirado de todos os ângulos, des-
te lugar encantado! Foi literalmente a arrastar os pés que
cheguei ao fim do percurso, dez horas depois, à entrada do
parque, para apanhar o autocarro para Torla, mas com a
satisfação de uma grande semana de actividade!
Foi uma semana intensa, uma actividade brutal, numa das mais belas paisagens de montanha que conheço. Superou em muito as minhas grandes expectativas e ficou a vontade de regressar!
<>
39
#03
ascensão
estágio picoSalvaguardia,pico de Alba,Mulleres e
Aneto Pirenéus > Setembro 2013
“Não há duas sem três...”texto: Sandra Reisfotografia: Pedro Guedes
Lá diz o ditado e com razão… Duas
actividades nos Pirenéus no espaço de
poucas semanas: a primeira na zona
de Torla/Ordesa e desta vez rumo a
Benasque, Pirineo Aragonés, no Parque
Natural Posets-Maladeta. Uma terceira
vez é agora obrigatória para confirmar
o ditado! E está no plano futuro, mais
próximo que distante, assim o pretendo.
40
#03
41
#03
ascensão
que requerem, nessas circunstâncias, alguma segurança
adicional com cordas. Estávamos prevenidos para essa
possibilidade, mas não foi preciso. O dia estava maravilhoso,
seco e com muito sol.
O percurso começou perto do parque de campismo do
hotel “Hospital de Benasque”, no Vall de Benás, vale típico
dos Pirenéus, um bálsamo para a vista e para a alma, ver-
de, aberto, com quedas de água de vários metros de altura,
riachos que acompanham os passos enquanto vamos no
vale em aproximação à via, paredes e picos imponentes em
volta a prender o olhar, os mais elevados com neveiros e
glaciares.
Vamos ziguezagueando na pendente, com o vale sempre
em vista, ganhando altitude tranquilamente, entre pinhei-
ros e verde, e admirando alguns dos cumes sobranceiros
e as vias de acesso ao cume. Vários caminheiros fazem o
percurso, vamo-nos cruzando várias vezes e alternando
posições, umas vezes nós à frente outras vezes outros,
com um ritmo determinado muito pelas paragens para tirar
“Tuca de Salvaguardia, uma ascensão de aquecimento.”
A vida dá voltas, os planos mudam e esta semana pirenaica
esteve para ser alpina. Mas constrangimentos vários de
última hora impossibilitaram a travessia prevista, nada que
tenha sido um grande problema de acomodar. Com um gru-
po pequeno foi fácil reajustar os planos e concordar com
um programa alternativo de cinco ascensões na zona de
Benasque, que preenchia os objectivos e as expectativas
de todos.
O Parque Natural Posets-Maladeta, assim declarado em
Junho de 1994, alberga 13 glaciares, todos considerados
Monumentos Naturais, sendo o de Aneto-Maladeta um dos
mais bem conservados e o de maior extensão dos Pire-
néus. A passagem por este glaciar na subida ao Aneto é um
dos pontos atractivos. Esta é uma área que alberga o maior
número de cumes de 3.000 metros dos Pirenéus e ainda
95 lagos, o que faz desta zona uma das mais concorridas e
visitadas por montanhistas, alpinistas e amantes de esqui.
Estabelecemos “campo-base” no Camping Aneto, mesmo à
saída de Benasque pela A139 rumo a Norte, nas margens
do rio Esera, e daí saímos todos os dias para os cumes pre-
vistos, regressando ao final do dia para um bom descan-
so. É uma óptima solução, em conta e bastante confortável
– duche reconfortante todos os dias, tempo para relaxar
depois das actividades, refeições em Benasque, quentes
e bem mais saborosas que liofilizados, massa Koka e atum,
não ter que montar e desmontar acampamentos todos os
dias. Principalmente permite aligeirar consideravelmente o
peso nas ascensões. Naturalmente aumenta um pouco os
quilómetros e desníveis a fazer todos os dias e as horas
de marcha, mas há que optar e desta vez o objectivo era ir
mais ágil, mais leve, mais rápido na progressão.
Tínhamos cinco cumes no plano, alguns emblemáticos da
zona de Benasque, todos com diferentes características:
Salvaguardia (2.738 metros), Posets (3.371 metros), Alba
(3.108 metros), Mulleres (3.010 metros) e Aneto (3.404
metros).
Na realidade, o Mulleres não estava previsto no plano inicial.
Mas ao aperceber-me que nas redondezas havia um pico
“feminino”, digamos que persuadi os meus companheiros de
que não poderia passar-lhe ao lado. Eles foram bastante
compreensivos com esta homenagem ao género!
Começámos pelo Tuca de Salvaguardia, uma ascensão de
aquecimento. É definitivamente um pico fácil e muito agra-
dável de se fazer, tem somente um ou dois pontos de pas-
sagem mais traiçoeiros pouco antes de chegar ao cume,
com lajes mais escorregadias com tempo húmido e chuva,
42
#03
fotos ou para apreciar uma ou outra perspectiva do vale e
das montanhas em redor, nomeadamente do Pico de Alba,
do glaciar e Pico de La Maladeta.
Assim pelo Canal de la Pena Blanca, trilho do GR-T-46, su-
bimos até ao Puerto de Benás onde invertemos para a es-
querda, saindo em direcção ao Tuca de Salvaguardia num
trilho que corre quase em cima da linha de fronteira, um
passo em Espanha, um passo em França. E aqui nos cru-
zámos com um grande grupo de franceses, que vinham do
lado francês, a fazer a ascensão.
O trilho aqui é mais estreito e exposto, paralelo ao vale em
baixo, mas que fazemos com facilidade e rapidamente, pas-
sando com tranquilidade os tais pontos mais expostos onde
a ajuda de uma corrente na parede confere alguma segu-
rança.
Chegámos ao cume na “hora H”... Ainda não estava ninguém
e por alguns momentos pudemos apreciar o silêncio e ob-
servar tudo em redor. Daqui conseguimos ver também o
lado francês, e os grandes lagos no sopé e no vale mar-
cam a paisagem e prendem o olhar... Lac de la Montagnette,
Lac do Maille, Borns du Port. O Refuge de Venasque está
estrategicamente posicionado nas margens de um dos
lagos. Imaginámos que seria uma boa opção de estadia e
conseguimos identificar alguns dos bonitos trilhos que dali
se podem fazer. Chegaram alguns espanhóis e finalmente o
grande grupo de franceses. A tranquilidade foi-se e quase
não há espaço no cume para todos. Hora de regressar!
Depois de comer alguma coisa e hidratar, retomámos ca-
minho, regressando pelo mesmo trilho e fomos seguindo as
voltas, idas e vindas de um helicóptero que parecia fazer
passeios panorâmicos, passando /aterrando no Refúgio de
La Renclusa, donde se pode aceder ao Mulleres, ao Alba, ao
La Maladeta e ao Aneto. Tentámos descobrir onde andava
o helicóptero pelo som, num jogo de esconde-esconde com
os cumes e vales. Assim distraídos e na conversa, não tar-
dou nada estávamos novamente no vale e no parque. Cedo
terminou este primeiro dia, umas cinco horas de actividade,
coisa soft. Depois de uma passagem rápida no parque de
campismo para um duche e muda de roupa, seguimos para >>
43
#03
ascensão
a vila de Benasque, onde, para além da incontornável visita
e do tour pelas lojas de montanha, acabámos por terminar o
dia a aproveitar o pôr-do-sol e a temperatura amena numa
esplanada, a ver a banda a passar e a comer umas tapas.
Ou não estivéssemos nós em Espanha. Jantámos cedo e
cedo regressámos ao parque, porque no dia seguinte a al-
vorada era cedo e o dia ia ser longo. Acabou o aquecimento,
a partir de agora é a sério!
“Posets (3.371 metros)...”
Dia 2: Alvorada ainda de noite, hora de saída marcada para
as cinco da manhã e nos planos está um dos clássicos dos
Pirenéus – Posets (3.371 metros), o segundo pico mais
elevado dos Pirenéus, a seguir ao Aneto.
Saímos à hora combinada do parque de campismo e ainda
tínhamos algum percurso de carro até ao parque de es-
tacionamento, na zona da queda de água Espigantosa, já a
alguma altitude, para início do trilho.
Até lá é um trilho de montanha algo difícil, para o carro… É
um pouco exposto e estreito, com algumas subidas a po-
rem o carro à prova e eu só agradeço por ser noite e assim
não ver a pendente. Andar a pé em trilhos expostos é uma
coisa, de carro assusta-me muito mais!
Enfim chegámos, ainda era noite como breu e só havia um
ou dois carros por ali, mas que mal se viam. Tirando a luz
do frontal, a noite é total, nem a lua se mostra e só vemos
mesmo os poucos metros que os focos iluminam. O céu
parecia ter nuvens, a previsão era de chuva para a tarde,
mas parecia que poderia surpreender-nos mais cedo. Es-
perávamos que não atrapalhasse os nossos planos. O dia
era longo, com muitos metros de desnível e muitos quiló-
metros, e a chuva não seria uma boa companheira!
Começámos o trilho com o som da água, de resto o silêncio
era total e íamos sozinhos na escuridão. Pressenti a queda
44
#03
de água à nossa esquerda, o som ribombava e o rio acom-
panhava-nos. Parecia muito perto, à nossa direita em baixo.
O trilho ia sempre em subida contínua pelo meio das árvo-
res e sabia-me bem esta caminhada nocturna pela fresca
da aurora. Comecei imediatamente a aquecer, o ritmo car-
díaco aumentou rapidamente e tive de tirar logo algum aga-
salho, mesmo com as temperaturas baixas que estavam.
Entrei no meu ritmo, o torpor da sonolência matutina desa-
pareceu completamente, os sentidos estavam aguçados, a
mente clareou. Sabe mesmo muito bem este esforço físico
num quase isolamento de tudo. A escuridão mostrava-me
só os poucos metros à minha frente iluminados pela luz té-
nue do frontal, a luz perdia-se nos ramos das árvores e
na noite, o som da água e o cheiro do bosque dominavam
a consciência. Os meus companheiros iam só uns metros
à frente, mas entre as curvas do caminho e os vultos das
árvores mal os via, aqui e ali via um foco branco que asse-
gurava que os seguia no trilho correcto. Não que houvesse
mais... ou não os via!
A luz do dia começava a despontar e a clarear a paisagem
ao nosso redor. À medida que subíamos, saíamos do bos-
que para espaço mais aberto e foi com a luz da aurora e
acompanhados pela sinfonia dos balidos e os “muuuus” das
vacas que chegámos ao Refúgio Angel Orús, aos 2.095 me-
tros, para uma pequena paragem: comer e hidratar. O refú-
gio ainda dormia, não havia muitas pessoas visíveis, um ca-
sal que se equipava, um francês que procurava a carteira…
Voltámos ao nosso percurso, já com luz de dia, os frontais
foram guardados, mas já havia muitas nuvens no céu a es-
preitarem por trás dos cumes à nossa volta. O percurso é
muito cénico e o trilho fácil. Subimos uma encosta de pen-
dente suave e verde, fomos cruzando ou acompanhando
um riacho e comecei a ver já não muito longe o canal gela-
do (Canal Fonda) por cima do rio e cascalheira, o acesso a
uma moreia glaciar, por onde íamos progredir. Já íamos a
mais de metade do nosso percurso quando as nuvens se
aproximaram definitivamente. O dia tornou-se cinzento, os
contrastes diminuíram e a paisagem ficou mais agressiva:
o castanho avermelhado da cascalheira e o branco mate da
neve num fundo de nevoeiro e neblina.
Tivemos muito cuidado ao passar a pendente de gelo por
cima do rio, pois estávamos sem crampons, e uma queda
ou resvalo seria perigoso, uma queda directa ao buraco na
água gelada do rio que passava furioso por baixo da gros-
sa camada de gelo que atravessámos para apanhar o trilho
colado à esquerda do canal. Trilho instável, de cascalheira,
e agora húmido da chuva que começava a cair. A progres-
são tornou-se mais difícil, mas admito que gostei! Havia um
certo nervoso miudinho, tive de me focar, pôr os sentidos
mais alerta e redobrar a atenção, que eu que sou dada a
quedas e a torcer pés.
Mas era uma chuva miudinha, estávamos confiantes e con-
tinuámos. Se continuar assim, se não piorar, devia dar para
fazer. A preocupação maior era a passagem da aresta final,
já a chegar ao cume, depois de subir a Moreira glaciar e
passar o Collado del Diente e a Espalda do Posets. >>
45
#03
ascensão
E assim, passo atrás de passo, cuidadosamente, fomos su-
bindo e quando olhei para trás o manto gelado sobre o rio já
tinha ficado bem para trás. Vejo uns pontinhos pequenos a
iniciar o mesmo trilho, mais alpinistas confiantes que a me-
teorologia não lhes vá dar a volta aos planos.
Chegámos aos 3.100 metros na Espalda do Posets e deci-
dimos parar uns minutos, comer alguma coisa e descansar
antes do assalto final ao cume. Faltavam agora ainda 370
metros, sensivelmente, e uma passagem muito exposta.
Observámos as condições para cima. O nevoeiro era for-
te e não havia visibilidade, o que nos deixou algo pensati-
vos. Aumentou o vento e estava mais frio, estávamos ago-
ra com os agasalhos todos, enquanto estávamos parados,
se bem que abrigados pelas rochas onde nos encostámos.
Mas a chuva continuou ligeira, embora persistente, e de-
cidimos que íamos continuar. Passou por nós um trekker
solitário, em grande ritmo. Trocámos algumas palavras e
ele também estava um pouco preocupado com as condi-
ções, mas disse que ia subir e ver como estava um pouco
mais acima…
Acabámos de comer, estávamos a arrumar as coisas nas
mochilas e a prepararmo-nos para sair quando a chuva
aumenta substancialmente, passando daquela chuva de
“molha-tolos” para chuva forte e contínua! Estávamos a
discutir as nossas hipóteses e qual seria a melhor decisão,
quando passa por nós a descer o espanhol a dizer que ia
descer, porque estava tudo muito escorregadio e que não
havia condições para fazer a aresta final. Não valia a pena
continuar.
Retornar era a decisão que se impunha, não sem frustra-
ção e desânimo, mas o bom senso e a segurança prevale-
ciam. Estávamos próximos, na recta final, mas havia uma
passagem perigosa e ainda tínhamos de fazer toda a des-
cida da moreia, no regresso. O Posets ainda vai cá estar!
Não foi desta e fica para uma próxima! Quiçá a justificar a tal
terceira vinda aos Pirenéus!
Iniciámos a descida debaixo de chuva e com muito cuidado
descemos o canal, que exigia ainda mais atenção e cuidado
que na subida. Com segurança, mas chegámos rapidamen-
te à base do canal e ao manto gelado sobre o rio, que tínha-
mos de atravessar novamente, agora já mais marcado pe-
los passos de quem vinha atrás de nós, mas nem por isso
menos perigoso. Os passos e a chuva derreteram o gelo e
a camada não era estável…
Passando o canal e descendo de altitude, a temperatura
aumentou e a chuva parecia menos ameaçadora. Neste
terreno a progressão era novamente tranquila. Fizemos
uma pausa no refúgio, esperando algum tempo para a chu-
va abrandar. Não havia necessidade de fazer as horas se-
guintes debaixo de chuva contínua! E tivemos alguma sorte,
pois a chuva abrandou, embora continuasse a ver as nu-
vens negras a cobrir os cumes. Descemos, agora de dia, a
apreciar a paisagem onde havíamos passado na escuridão,
e foi engraçado ver como a realidade era algo diferente
do que imaginei… O bosque era muito menos denso e o rio
estava bem mais abaixo e longe do que soava aos meus
ouvidos! A cascata era ainda maior do que a imaginei, com
46
#03
muitos metros de altura e a exigir uma foto para a
posteridade. E assim chegámos ao início, ao parque de
estacionamento. E nem pelo facto de não termos feito cume,
esta deixou de ser uma óptima actividade!
“... rumo ao Pico Alba...”
Dia 3: Alvorada madrugadora novamente. Nos planos esta-
va o grande Aneto, jornada Alpina, o prato-forte da semana.
Saímos muito cedo para estarmos no parque do Plan de
Senarta a tempo da camioneta das seis da manhã que nos
levaria montanha acima até ao Refúgio do Pescador ou Re-
fugio Coronas, num percurso acidentado e exposto. Uma
aventura de camioneta nas montanhas, um “autobus de las
nuvens!”
Chegámos a tempo ao parque de estacionamento, a noite
ainda estava escura, faltavam ainda algumas horas para os
primeiros raios de sol. Estava ainda em fase de sonambu-
lismo e em modo automático. Não se via nada. Havia dois ou
três carros parados, mas sem vivalma aparentemente! Uma
porta abriu-se e vimos uma luz de frontal a uns metros de
distância. Saiu um vulto de um dos carros e encaminhou-se
para junto do refúgio, fechado, sem vida. Eramos só nós e o
vulto, uma rapariga sozinha, apercebemo-nos quando nos
aproximámos. Também ia fazer o Aneto. Sozinha! Coragem
ou loucura? Muito normal entre os espanhóis, sem dúvida,
mas uma mulher sozinha não deixa de ser surpreendente.
Desde pequena que “vive” nas montanhas, disse, e pelos
vistos está muito habituada e à vontade nestas andanças!
Não deixei de a admirar em silêncio, mas perguntei-me se
ousaria fazer sozinha algo como isto, mesmo conhecendo
já o percurso… Exerce um certo fascínio, mas não me con-
sigo imaginar. Sou medrosa.
Bem, esperámos, esperámos, esperámos… e nada de ca-
mioneta. Começámos a ficar impacientes, nós e ela, e es-
tava um frio gélido. Decidimos aguardar no carro, não valia
>>
47
#03
ascensão
a pena continuar ali de pé ao frio, a camioneta estava bas-
tante atrasada e não sabíamos quanto tempo ainda poderia
demorar. Cochilámos no carro e passou-se mais meia hora.
Já estava atrasado uma hora… O dia começou a nascer e
uma hora e meia depois decidimos que o melhor era alterar
os planos. Fazia-se tarde para cumprir o horário ideal para
a actividade.
E assim, do Aneto decidimos ir rumo ao pico Alba, a 3.108
metros, que estava previsto para o fim da semana, a fazer
a partir do Refugio de la Renclusa. Fomos novamente de
carro até ao parque do Hospital de Benasque, onde estivé-
ramos no primeiro dia para fazer o Salvaguardia. No parque
apanhámos a camioneta que percorre o vale ao longo do rio
Esera até ao parque de La Besurta, uns cento e tal metros
mais acima, aos 1.896 metros, ponto de partida do nosso
trilho para chegar ao Refugio de La Renclusa e daí iniciar o
percurso em direcção ao Pico Alba. Eram 1.300 metros a
subir e retornaríamos por um percurso muito variado em
termos de terreno e paisagens! Gostei muito deste percur-
so, variado e exigente, embora me tenha custado em algu-
mas partes. Os joelhos chatearam um pouco, acusaram o
acumular de desnível dos dois dias anteriores.
Chegámos rapidamente ao refúgio por um trilho muito bem
marcado, em ziguezague suave até aos 2.140 metros. Só
parámos para beber alguma coisa e continuámos. Perto do
refúgio, havia um portão lindíssimo de uma capela incrusta-
da na montanha edificada à Virgen de Las Nieves, que apre-
ciámos ao passar. Merecia uma visita, havendo tempo no
regresso.
O refúgio estava muito bem enquadrado num Collado, no fim
de dois vales por onde descem dois rios, de Sul o Torren-
te de La Maladeta, vindo do glaciar com o mesmo nome, e
de Sul/Oeste o Torrente del Diente, alimentado certamente
pelo mesmo glaciar e pelo de Alba. Foi em direcção a Oeste
e seguindo em paralelo ao curso deste último rio que reto-
mámos a subida, mais pronunciada nos primeiros 150 me-
tros de desnível nas margens do rio, até chegarmos a um
colo largo dominado por um lindo lago, o Ibon de La Renclusa,
entre picos de 2.300 metros à nossa direita e a vista dos
glaciares La Maladeta e Alba à nossa esquerda.
Havia alguma neblina, talvez da evaporação da água do lago
e dos muitos rios que cavam estes vales, processo acen-
tuado com o avançar da manhã e o aumento da temperatura.
Era uma névoa pouco densa, parecia que víamos fotogra-
fias desfocadas, que esvoaçava e se deslocava com a brisa.
Íamos vendo e deixando de ver os pormenores à distância
e a luz rasgava espaço entre a neblina numa visão quase
surreal da paisagem. O vale, fechado pelas encostas altas,
era todo ele um espelho de água lindíssimo e irresistível. E
foi devagar que fiz o trilho suave que circunda o lago, antes
de começar uma nova subida em direcção a uma parede
de grandes blocos esverdeados, que fomos saltando em
trepada suave, encontrando um caminho natural entre os
monólitos. Cruzámos o rio, virando à direita em direcção a
Oeste a uma quota de cerca de 2.550 metros, e passámos
a subir uma cumeada, subida constante em caminho quase
recto na direcção Sul/Sudoeste em ziguezagues curtos. A
neblina esvaiu-se e de repente descobriu-se o céu azul.
48
#03
Vemos de cima o vale e quase em frente as paredes cin-
zentas do Maladeta e as cores alvas do Alba. Já tínhamos
subimos bastante, devíamos estar nos 2.800 metros quan-
do decidimos enfim parar para descansar e comer, apro-
veitar o sol e o calorzinho súbito que se fazia sentir e que
não esperávamos! Como o sol faz a diferença! Tudo era ain-
da melhor com um céu azul, contrastes, horizontes aber-
tos e luz... Fiquei ainda mais animada, estava a gostar muito
do percurso, mas a vista dos vales glaciares e dos cumes
aumentava a expectativa e a pura alegria de estar ali e em
mais nenhum lugar.
Tínhamos de ultrapassar novamente uma área de pedras e
grandes blocos caídos em derrocada milenar e eram mui-
tas as opções de trilho. Havia várias mariolas a indicar as
opções de percurso. Neste tipo de terreno temos de nos
manter orientados, porque rapidamente podemos seguir
um trilho um pouco mais ao lado e progressivamente, sem
nos darmos conta, afastarmo-nos do percurso e do objec-
tivo e irmos dar a outro lado qualquer.
Ia mais atrás que os meus companheiros e nem sempre os
via, entre “esses” e “erres” do percurso e o sobe e desce
dos blocos, mas estava atenta para os vislumbrar entre um
bloco e outro e ter a certeza que seguia na direcção certa,
mesmo que não fizesse exactamente o mesmo percurso.
Procurava seguir o trilho que me parecia mais natural e
fácil entre os blocos, a não obrigar a demasiados saltos.
Chegámos finalmente à base da parede final do Alba e pro-
curámos a melhor forma de acesso ao cume, não muito >>
49
#03
ascensão
evidente mas a exigir certamente alguns passos de esca-
lada que, não sendo complicados, iam requerer a máxima
atenção e cuidado porque estávamos sem cordas. Mas de-
pois de avaliarmos algumas possibilidades, lá decidimos por
uma zona que nos parecia mais segura para transpormos
esses 20 metros de altura, passo que me deu muito prazer
fazer. Depois apanhámos um trilho evidente na pendente
final de acesso ao cume, na face virada a Oeste, e minu-
tos depois chegámos finalmente ao cume do Alba, com um
céu azul, sol resplandecente e vistas brutais 360 graus em
volta! O espaço no cume era pequeno e algo exposto, com
pendentes abruptas de ambos os lados. Sentámo-nos um
pouco para apreciar a vista soberba e tirar fotos, evitando
andar a deambular para trás e para a frente, não fosse o
diabo piscar o olho! Foi uma subida e um percurso longos
e cansativos mas que me deu um grande prazer fazer! E
como tudo o que sobe desce: regressámos pelo mesmo
caminho, parámos no refúgio para um merecido descanso
e um chocolate quente antes da descida final até ao parque
e dar por finalizado mais um longo dia de boa actividade, an-
tevendo uma boa refeição e descanso para depois refazer-
mos os planos e decidir quando ir a Aneto!
“Assim, o dia foi de Mulleres.”
Dia 4. Decidimo-nos por um dia mais soft, para acordarmos
um pouco mais tarde, descansarmos do esforço dos dias
anteriores e nos resguardarmos para o Aneto, que deci-
dimos deixar para o fim, depois de validar no Turismo em
Benasque que a camioneta estava a funcionar e que não
se iria atrasar de novo! Assim, o dia foi de Mulleres. Ou Tuc
de Molières, na versão francesa – provavelmente o nome
oficial, já que o cume fica do lado francês. Mas eu fico-me
pela forma discriminatória. E a atestar que a fama vem de
longe foi sem dúvida o facto de ter sido o percurso onde
vi mais mulheres, em grupos ou “standing alone”! Uma fran-
cesa, que vinha já há muitos dias sozinha e em autonomia
total a fazer uma das rotas pirenaicas, cruzou-se connos-
co quando já vínhamos a descer. Ela estava a subir tranqui-
lamente e como se nada fosse, com a sua pesada mochila…
Uma inspiração!
50
#03
“Sexismos” à parte, este foi sem dúvida mais um belo per-
curso, a iniciar também no nosso já conhecido parque de La
Besurta, e seguindo vale fora ao longo do Rio Esera. Tudo
muito tranquilo e plácido àquela hora da manhã, mas esta-
ria cheio de gente, a caminhar ou estendida nas margens
do rio a apreciar o calor, quando regressássemos ao fim
do dia. Mais uma vale-paraíso dos Pirenéus a convidar à
contemplação e à languidez. Mas não para nós… Fomos du-
rante algum tempo no vale, sempre à mesma quota ou em
subida progressiva e suave, até chegarmos perto da Cas-
cata d’Aiguallut, onde o terreno empina muito e temos uns
passos de trepada íngreme. Ganhámos altitude rapidamen-
te, passando aos 2.050 metros. Continuámos ao longo da
Valleta da Escaleta, quase sempre paralelos ao rio Aigueta
de l’Escaleta que corre no vale em baixo, em subida suave e
paulatina até chegarmos a uma linda zona de lagos, os Ibons
de L’Escaleta – água omnipresente nos Pirenéus a estas
quotas! Devíamos andar pelos 2.500 metros. Fomos pas-
sando uma sucessão de lagos à medida que subíamos, nes-
ta altura de forma mais rápida e pronunciada. Chegámos ao
Ibon Alto de lá Escaleta e o terreno passou totalmente a
rocha, grandes lajes claras que devem ser manteiga quan-
do chove, mas de fácil e prazerosa progressão neste dia.
As vistas eram desafogadas e amplas e tínhamos uma óp-
tima perspectiva do Pico de Tempestades, do Pico Russel e
da Espalda do Aneto, no horizonte à nossa direita à medida
que íamos subindo. Do cume, onde chegámos sem grandes
histórias, tínhamos ainda melhor vista. Apreciámos ainda
melhor as encostas glaciares desse lado e os lagos e vales
do lado francês.
Foi um percurso muito agradável, menos exigente que os
dois dias anteriores, o que foi perfeito para recuperarmos
algumas forças para o dia seguinte, a sobremesa da sema-
na: o Aneto, o maior dos Pirenéus, no alto dos seus 3.404
metros, a exigir uma passagem em glaciar e um passo fa-
moso, algo assustador! Havia muita expectativa…
O último dia fechava com “chave de ouro” uma óptima se-
mana, muito intensa e variada. Acordámos novamente mui-
to antes do galo cantar, devia ainda estar no terceiro sono!
Saímos das tendas prontos para este último dia, com mui-
ta expectativa. As previsões meteorológicas eram muito
boas: um dia de sol, o que nos animou ainda mais.
Lá fomos, mais uma vez esta semana, rumo ao parque do
Plan de Cenarta para apanharmos, esperávamos, o “auto-
bus de las nuvens” e fazer os primeiros quilómetros e me-
tros de desnível em cima de grandes rodas. Mais uma vez
fiquei contente por ser noite e não conseguir ver bem as
rodas da camioneta a rasar o precipício nas curvas… Não
teria a mesma sorte no regresso, umas longas horas de-
pois, já que tive o “azar” de me sentar à janela, no lado es-
querdo do autocarro. Houve momentos em que pura e sim-
plesmente fechei os olhos…
O “bus das nuvens”, assim chamado, percorre o Vall de Va-
libierna, parte do percurso do GR11. Deixou-nos no Refugio
>>
51
#03
ascensão
do Pescador, um pequeno refúgio/cabana onde se inicia
o percurso, na ponte Puen de Corones onde confluem o
Rio de Valibierna e o Barranco de Corones. A água sempre
presente!
Estávamos ainda completamente imersos na noite quando
iniciámos o trilho, mais uma vez colados ao rio, ao Barranco
de Corones, no meio do bosque, com os frontais a ilumina-
rem parcamente o percurso. Saímos acompanhados de um
alpinista solitário, com quem nos fomos cruzando, no início
do percurso e, depois de o termos “perdido”, lá o encontrá-
mos de novo na descida… Afinal não se tinha perdido!
Prosseguimos no bosque ainda por um bom tempo, sem-
pre a subir, e finalmente saímos do meio das árvores para
uma encosta, pendente acima, ao longo do Vall de Coronas.
O dia nasceu suavemente, dando contornos e distância ao
horizonte, e assim além dos frontais já conseguimos ver
os vultos um dos outros e encontrar com mais facilidade
o percurso, agora já não tão óbvio pendente acima. Fez-se
dia e desligámos os frontais, continuando sempre a subir,
o terreno deixou progressivamente de ser campo verde-
jante e passou a ser um terreno mais inóspito de pedras e
cascalho, numa subida mais cansativa.
Estamos em subida constante há horas até que atingimos a
zona dos lagos, o primeiro a ser o Ibonet de Corones, ainda
parcialmente deitado à sombra. O sol começou a lamber as
cumeadas a Oeste num tom laranja, um cenário lindíssimo,
um circo grandioso de rocha a bloquear a vista mais além.
Subimos muitas centenas de metros, continuamente. O ter-
reno aumentava em exigência e dificuldade de progressão,
mas isso foi amplamente compensando pelas paisagens e
pelo dia luminoso, límpido e de cores fortes com que fomos
brindados neste último dia. Estávamos nos 2.650 metros e
ainda faltavam uns 750 metros de desnível. Íamos mais ou
menos a meio.
A subida suavizava aos 2.750 metros quando passámos
nos Ibons de Corones, um planalto de lagos a convidar a
uma pausa mais do que necessária e merecida. Era o local
52
#03
ideal para parar e sem dúvida uma óptima opção de pernoi-
te e bivaque. Grandes lajes deitadas e planas, um bálsamo
para as pernas, que descansavam neste progresso macio
e plano. Um pequeno interregno bem-vindo para preparar
as pernas a voltar à carga da subida agressiva em cas-
calheira, na moreia glaciar, que se seguiu por mais algum
tempo!
E foi com enorme alívio e satisfação que vi a neve. Atra-
vessámos os primeiros neveiros, a princípio sem crampons,
depois calçámo-los e fomos progredindo em terreno misto
de rocha e neve por mais umas centenas de metros, sem-
pre a subir. Que bom voltar à neve, a este tipo de progres-
são! Já estava com saudades e este é o ambiente que mais
gosto. Que bom ouvir o som da neve debaixo dos nossos
passos, num andar suave e amortecido! O terreno estava
gelado, mas não demasiado, a progressão era fácil e des-
contraída, os crampons fixavam-se bem e facilmente, sem
grande exigência física ou difícil trabalho de pés…
Aproximámo-nos da parede. A pendente era pronunciada,
bastante vertical e obrigava a encordoamento e progres-
são em ensemble, trepando bastante até ao pequeno Colla-
do de Coronas, aos 3.292 metros. Chegados a este pon-
to tínhamos vista para os dois lados da Espalda do Aneto
e, atravessando para o outro lado da vertente, entrámos
finalmente no glaciar. Dia soberbo, vistas deslumbrantes!
Céu azul, neve branca brilhante e pontinhos de cor na neve,
cordadas de alpinistas que se aproximavam pela rota que
vem do Refugio da Renclusa. E destes sobressaía um gru-
po diferente: uma equipa de filmagem (não sabemos com
que propósito nem quem eram) aparentemente a acompa-
nhar e a filmar uns quantos guias profissionais, um grande
aparato! Passaram por nós, quando estávamos no Collado a
comer qualquer coisa, a passar para encordoamento para
glaciar, e foram-se mantendo à nossa frente até ao cume.
Fomos acompanhando as suas andanças e filmagens.
Entrámos no glaciar e subimos com entusiasmo pela espalda
do Aneto, uma boa subida, algumas rochas e blocos na par-
te superior. Saindo do glaciar, novamente terreno misto, >>
53
#03
ascensão
divertido. Não deixo de me surpreender contudo pela quan-
tidade de trekkers que, chegados a este ponto, abandona-
vam os crampons e subiam só em botas. A neve estava
mais gelada em alguns pontos, a pendente continuava a
subir e uma queda (bastava um pé mal colocado, um dese-
quilíbrio) poderia ser aparatosa e vertente abaixo, para o
glaciar. Seria o excesso de prática e de confiança? Ou não
haveria risco? Como acho que os crampons ajudam e não
me incomodam nem é opção que me venha à cabeça.
Chegámos ao pré-cume, uma plataforma larga que ante-
cede o Passo de Mahoma. Havia muita gente no cume, para
além do grupo de filmagem. Há umas quantas duplas a pas-
sar o passo para regressar do cume. Aproveitámos para
fazer uma pausa, para apreciar o momento, o sol a aque-
cer o corpo e a alma, e para comer e beber. Agora sim, os
crampons eram totalmente desnecessários! Ver as vistas,
tirar fotos e simplesmente estar, depois de tantas horas –
umas seis horas a subir –, soube muito bem!
O grupo de filmagem regressou, as duplas transpuseram
o passo, e agora era a nossa vez. Deixámos crampons e
mochilas, vamos encordoados, claro, pois este é um passo
bastante aéreo e exposto. Uma espécie de ponte natural
com um passo curto no vazio e uma trepada ligeira, não
difícil tecnicamente, mas exposto ao abismo de um lado e
do outro. Uma passagem psicológica por assim dizer… E de
facto senti umas borboletas no estômago, tanto de excita-
ção quanto de medo!
Passámos sem dificuldades e chegámos finalmente ao
cume mais alto dos Pirenéus, encimado por uma cruz gi-
gante, toda engalanada de cor, bandeirinhas e laços. Estava
muito satisfeita! Que bem me soube esta ascensão e que
grande final para uma semana de actividade fantástica. Cla-
ro que ainda tivemos que descer tudo, mais umas horas
de actividade, mas para baixo todos os santos ajudaram e
chegámos mais do que a tempo de apanhar o “bus das nu-
vens” montanha abaixo!
Foi uma semana muito intensa, bastante variada, com chuva, com sol, com percursos longos mas de beleza imensa, como já me estou a habituar nos Pirenéus.
Anseio por uma próxima actividade nestes maciços! Faça chuva, neve ou sol!
<>54
#03
ascensão
curavacas peña prieta
e espiguete Fuentes Carrionas > Outubro 2013
56
#03
“A Montanha Palentina constitui a vertente meridional da Cordilheira Cantábrica, ocupando uma área de quase 1.000 quilómetros quadrados.” texto: Álvaro Reisfotografia: Pedro Guedes
Aqui situam-se alguns dos picos mais
altos de toda esta cordilheira. Os 2.536
metros da Peña Prieta e os 2.525
metros do Curavacas superam mesmo a
maioria dos cumes dos Picos de Europa.
É uma das zonas de alta montanha mais
bem conservadas e menos conhecidas
da Península Ibérica, cheia de contrastes,
com lagos, circos glaciares, vales e
cumes incríveis. Sempre achei que
percorrê-los seria uma jornada
inesquecível. E foi!
57
#03
ascensão
“...Curavacas, pelo Callejo Grande”
O nosso projecto inicial era o de fazer a Integral de Fuentes
Carrionas. Esta consistia em percorrer uma linha imaginá-
ria que une todo o maciço montanhoso, começando por es-
calar o Curavacas, seguindo pela Curruquilla, Hoya Contínua
e atingindo o cume de Três Províncias pelo Alto de Ves. Da-
qui, seguir até ao cume da Peña Prieta, baixando depois até
às Agujas de Cardaño. Depois continuar até ao Pico Lomas,
Pico Cuartas, Peñas Malas, Zahurdias, Pico Múrcia e final-
mente até ao Espiguete. São 35 quilómetros de itinerário
e um desnível de 3.500 metros, sem baixar praticamente
dos 2.000 metros de altitude, tendo como ponto mais alto
a Peña Prieta.
Era um desafio de grande dureza e muito ambicioso. Deci-
dimos fazê-lo em três dias, com dois bivaques pelo meio e
todo o material às costas. Contudo, para ter sucesso, ne-
cessitávamos de bom tempo, muitos líquidos (quase não
há pontos de água no percurso) e ir ligeiros. As previsões
meteorológicas para o primeiro dia eram desanimadoras:
céu nublado e alguma chuva. Tendo que carregar sacos-
-cama, colchonete, fogão, gás, comida para três dias e ma-
terial de escalada, tornou-se rapidamente evidente que po-
deríamos ter que alterar os planos. O plano B seria fazer os
três cumes mais emblemáticos deste maciço (Curavacas,
Peña Prieta e Espiguete), nos três dias disponíveis, pelas
suas vias normais.
A ascensão do Curavacas, pelo Callejo Grande, é uma as-
censão dura, sobretudo pelo desnível que é preciso vencer
(2.408 metros de acumulado). São cerca de dez quilóme-
tros de percurso (ida e volta) e quase sete horas de acti-
vidade. Deixámos o carro na bonita povoação de Vidrieros,
numa pequena praça e seguimos por um trilho, bem evi-
dente, na direcção NO. Pouco depois, mudámos para outro
trilho, na direcção N, rumo à base da montanha, cruzando
algumas linhas de água. É uma aproximação lindíssima e a
visão da face Sul do Curavacas, à medida que nos apro-
ximamos, impressiona bastante. Parece inacessível, quase
58
#03
vertical. Tem um tom esverdeado, “patine”, como diz a San-
dra, com um tipo de rocha a que chamamos de conglome-
rado, igual à dos Picos de Europa. São 9 horas e surgem as
primeiras nuvens no céu, tal como indicavam as previsões
meteorológicas. Olhando para o canal Sul, imaginei como
seria escalar aquela via de Inverno, com neve e gelo, de
crampons e piolets. Deve ser brutal! Lentamente, começá-
mos a ganhar altura, até desembocar no Prado de Cabriles.
Mais à frente, uma suave pendente cheia de pequenos blo-
cos escorregadios retarda um pouco a nossa progressão.
A visão do Curavacas, aos poucos, parecia menos ameaça-
dora. Senti-me mais confiante. Agora, era bem evidente a
via do Callejo Grande, que nos levaria ao cume. Percorre-
mos uma pedreira que parecia não ter fim e que era algo
difícil de ascender, com pequenas rochas brancas de vá-
rios tamanhos. Quando por fim ultrapassámos a pedreira,
encontrávamo-nos já no meio da face Sul, abrigados entre
imponentes escarpas rochosas e fomos trepando até ao
ponto onde começa o Callejo Grande. Aqui o terreno é mais
cómodo, com degraus de rocha, terra e erva, embora mais
empinado. A via continua em direcção a um enorme monó-
lito conhecido como o “Dente del Oso” que já vi em fotogra-
fias.
Apenas uns 200 metros nos separavam do passo mais
complicado desta ascensão, que nos conduziria à face Nor-
te. Fizemos um último esforço, uma trepada pequena, com
muita cautela e concentração. Depois deste passo estreito,
pudemos contemplar a face Norte da montanha e toda a
paisagem de Fuentes Carrionas que se estendia aos nos-
sos pés. Continuando, destrepámos alguns metros para
logo depois continuarmos a nossa ascensão, por um cor-
redor de cerca de 30 metros. Nesta fase, as nuvens que
ameaçavam a nossa jornada há um par de horas, começa-
vam a ficar mais escuras. Senti algumas gotas de chuva a
cair no corta-vento e uma brisa desagradável. Esta pas-
sagem era um ponto-chave da nossa ascensão e a nossa
única escapatória, em caso de mau tempo. Convinha por
isso memorizá-la muito bem. Já só nos restava percorrer
um trilho muito empinado, chamado “La Llana”, até ao cume.
Pouco depois, atingimos os 2.525 metros do Curavacas.
Nessa altura, o clima não era muito favorável aos nossos
planos. Para o lado Sul, apenas nevoeiro. Para Norte, nu-
vens e algum sol.
A passagem para a Curruquilla parecia muito complicada de
se fazer, com mau tempo a ameaçar, aquela visibilidade e
com as mochilas carregadas. Depois das fotos habituais e
de alguma vontade para percorrer a aresta, decidimos bai-
xar novamente a Vidrieros, pela mesma via da subida, aban-
donando em definitivo a ideia de uma Integral de Fuentes
Carrionas. Ao chegar à parte mais baixa do Callejo Grande,
a pedreira que tanto nos custou a subir transformou-se
em puro divertimento. Demorámos menos de 30 minutos
a descê-la. Pouco depois estávamos em Vidrieros, no café
da aldeia. Nessa mesma tarde, decidimos viajar para Car-
daño de Arriba, pensando já na ascensão da Peña Prieta,
planeada para o dia seguinte.
A ascensão da Peña Prieta não apresenta qualquer
dificuldade técnica mas é um percurso de longa duração
e exige por isso um grande esforço físico. São quase
20 quilómetros de marcha, oito horas de atividade e um
desnível acumulado de 1.710 metros. Deixámos o carro em
Cardaño de Arriba pelas 16 horas e iniciámos a subida, por
um trilho bem sinalizado, a Senda de Lomas. Passámos pelo
Refúgio de Montanha Espiguete e pouco depois cruzámos
uma ponte, iniciando uma longa marcha, em contínua
ascensão, mas com vistas maravilhosas sobre um vale
bem vincado e agreste, com o Espiguete nas nossas
costas a receber as últimas carícias de um magnífico sol
alaranjado. Não se via viva alma. Apenas nós nos movíamos.
Nós e as sombras destas montanhas que nos rodeavam.
Aos poucos, as Agujas de Cardaño iam-se tornando mais
definidas e percebi então a sua imponência. São quase 20
horas quando decidimos fazer bivaque junto a uma fonte,
na base do Pico Lomas, num local abrigado do vento. A
fadiga era muita e as falas poucas. Depois da sopa e dos
liofilizados, aterrámos literalmente nos nossos sacos-
-cama para um desligar quase automático. Dormi mal. Devia
ter enchido melhor a colchonete. Por várias vezes acordei
nessa noite, comtemplando um dos mais belos céus que já
vi na vida. Sinto pena de não perceber nada de astronomia.
Poderia nessa noite ver todas as constelações da Via
Láctea e maravilhar-me ainda mais com o que via. >>
59
#03
ascensão
Aquele bivaque foi um hotel de mil e uma estrelas.
Peña Prieta
Despertámos pelas 6 horas e com os primeiros raios de
sol, começámos a percorrer um trilho bem empinado, ser-
penteando em direcção a um colo que nos iria permitir mais
tarde a passagem para trás das Agujas de Cardaño. A uma
boa centena de metros de nós vimos dois veados. Estavam
imóveis e pareciam não compreender a dificuldade que
sentimos em progredir. Para eles, esta ascensão é uma
simples brincadeira. O Pedro tirou uma série de fotogra-
fias para gravar este momento único. Nesse colo deixámos
as mochilas e lançámo-nos numa penosa descida, por uma
pedreira (mais uma), com o máximo de cuidado, para logo
depois fazer mais uma longa subida em direcção ao cume
de Três Províncias (2.499 metros), a divisória natural en-
tre Palência, Léon e Cantábria. Daqui já se avistavam os dois
cumes da Peña Prieta, também conhecida como Pico de los
Infiernos. Já estávamos bem perto! Meia hora mais tarde,
estávamos no cume da mais alta montanha deste Parque
Natural. A panorâmica é impressionante. Parecemos dis-
tantes de tudo. Havia um silêncio no ar fora do normal, ape-
nas quebrado pelo correr de um fio de água que partia de
uma pequena lagoa lá em baixo e desaparecia no horizon-
te, junto à face Norte do Curavacas. Talvez o rio Carrión,
penso eu. Estávamos os três mudos e quietos, pasmados
perante tamanha beleza. Esta montanha é única e vale mes-
mo todo o esforço realizado. Ao longe vêem-se os Picos
de Europa, o inconfundível Naranjo, a Peña Vieja, Torre de
Cerredo e muitos outros. Era hora de descer e regressar
a Cardaño de Arriba, pelo mesmo trilho. Ainda tínhamos al-
gumas horas de marcha até ao carro.
O dia seguinte era dia de Espiguete. Já tinha escalado esta
montanha em 2012, no Inverno, com muita neve, pela Ares-
ta Este (1.000 metros) e tinha sido magnífico. Desta vez, ía-
mos seguir a Via Normal ou Via Sul ou Via da Pedreira, des-
de Cardaño de Abajo. São 12 quilómetros (ida e volta), 2.430
metros de desnível acumulado e cerca de seis horas de
atividade. É um itinerário de uma dureza considerável, pelo
desnível, mas sobretudo por apresentar vários troços de
pedras soltas que dificultam muito a ascensão e tornam a
descida algo complicada. Levámos uma corda, arnês, ca-
pacete e uns mosquetões para termos mais segurança
na aresta final. Saímos de madrugada de Camporredondo
de Alba, onde dormimos, e deixámos o carro em Cardaño
de Abajo. Fizemos a primeira hora da nossa aproximação à
base do Espiguete por uma estrada de terra batida, a Nor-
te da povoação, deixando-a a dormir tranquilamente. Esta
estrada liga uma pequena localidade chamada Valverde de
la Sierra. Depois de cerca de uma hora de marcha, noite
cerrada, frontal ligado, caminhando por um denso bosque,
saímos para um pequeno prado que nos conduziu ao início
da pedreira Sul, onde assistimos a um magnífico nascer do
sol que revelou toda a beleza da face Sul desta montanha
piramidal. É preciso prestar muita atenção às mariolas, nem
sempre bem visíveis, para ganhar altura mais rapidamente.
60
#03
A pedreira é um verdadeiro desafio. São toneladas de pe-
dras soltas, dois passos para cima, uma escorregadela e
assim sucessivamente. Estamos constantemente à pro-
cura de solo firme evitando resvalar pela pendente. É uma
ascensão penosa. Era inevitável pensar na descida e na di-
ficuldade que nos esperava. Aos poucos iam-se definindo
melhor o cume principal e o cume secundário. Já tinham
passado quase três horas desde que saímos de Cardaño
de Abajo. Parámos para descansar e hidratar à sombra
de uma enorme parede de rocha de pedra branca. Fomos
trepando por um canal com rocha mais firme e finalmen-
te chegámos ao colo que separa os dois cumes. Daqui a
vista da face Norte do Espiguete é impressionante. Mais ao
fundo via-se bem o Pico Múrcia, a Peña Prieta e finalmente
o Curavacas. Foi a visão mais bela da Integral de Fuentes
Carrionas que eu poderia imaginar. Decidimos encordoar
neste colo, junto a uma gigantesca mariola, para fazer a
aresta final em segurança. São cerca de 200 metros de
uma aresta muito aérea, com pendentes vertiginosas de
ambos os lados mas que fizemos sem dificuldade, até ao
cume.
O Espiguete é diferente de todos os cumes de Fuentes Carrionas. É um pico isolado de todos os outros e por isso parece ter algo de especial, exercendo sobre os montanhistas uma atracção e um fascínio difíceis de explicar. Já na descida, ao percorrer o prado na base da montanha, um enorme bando de águias veio despedir-se de nós, desenhando no ar voltas e mais voltas, num adeus que nunca esquecerei. A natureza é sempre bela e infinita e para mim, deixá- la intacta e pura, depois da nossa passagem, é o que mais importa. Serei assim digno de voltar um dia e de sentir de novo todas estas emoções.
Até breve, Montanha Palentina! <>
61
#03
ascensão
62
#03
escalada
peña prado via lago de la luna
Barrios de Luna > Junho 2013
“No sábado, dia 2 de Março de 2013, preparávamo-nos para mais um fim-de-semana de aperfeiçoamento técnico de Alpinismo.”
texto: Maria Carrondafotografia: Carlos Araújo
Desta vez, o objectivo era a escalada do Esporão Oes-
te da Peña Ubiña. Reunimo-nos como já era habitual
no Porto e fomos rumo a Espanha. Como sempre eu
estava radiante, eufórica, pois ia poder estar no meio
das montanhas e pôr em prática todo conhecimento
adquirido num ambiente belíssimo e com companheiros
fantásticos, cuja amizade se ia desenvolvendo com o
decorrer do tempo.
63
#03
escalada
“...sentia-me feliz, sentia que a montanha estava a aprovar...”
Chegando a Peña Ubiña fomos de imediato ver como estava
o esporão, se apresentava condições para uma escalada
em segurança. Não apresentava condições, conferenciá-
mos e resolvemos ir para as Peñas Del Prado treinar téc-
nicas de escalada de aderência, mas não sem antes passar
pelo parque de campismo para fazermos o check-in.
No domingo de manhã levantámo-nos bem cedo e fomos
até Peñas del Prado. O nosso objectivo era fazer o Via Lago
de Luna, uma parede com cerca de 240 a 250 metros, um
desafio que, confesso, nunca imaginei alguma vez fazer. Pa-
rámos o carro, carregámos as nossas mochilas, o Carlos e
o Pedro – os nossos instrutores – tiveram todo o cuidado
em dividir o material todo entre nós e lá fomos até ao colo
de Arralla. Chegando ao colo, lá estava a via à nossa direita.
Eu sentia-me feliz, sentia que a montanha estava a aprovar
os meus passos. Não me perguntem porquê, só sei que sin-
to quando ela me quer por lá… Equipámo-nos e começámos
a nossa escalada. Eu ia na cordada do Carlos Araújo e do
Zé Nunes, observava atentamente todos os passos dados
pelo meu instrutor, memorizava cada movimento, cada sa-
liência na parede, cada fissura, na tentativa de repetir logo
cada passo, pois a seguir ao monitor era a minha vez.
Passei o primeiro lanço. Correu muito bem, a minha con-
fiança ia aumentando, pensava eu que se tinha conseguido
até ao momento também conseguia o resto. A cada reu-
nião aproveitava para apreciar a paisagem, o vale que se
revelava à nossa frente era de uma beleza incalculável e
revelava-se cada vez mais encantador a cada lanço que
nos conquistávamos. Numa das reuniões apercebemo-nos
do porquê do nome daquela via: “Via Lago de Luna”. É que
daquela parede se avistava o Lago de Luna que ia apare-
cendo conforme íamos ganhando altitude, quase como se
de um jogo de sedução se tratasse. Ora, uma vez que esta-
va virada para a parede a escalar só a cada reunião se dava
o reencontro de olhares entre mim e o lago. Não resisti a
nenhum momento e deixei-me seduzir, encantar, apaixo-
nar por aquelas montanhas de cada vez que parava. Mas
nem sempre foi sedução e, como qualquer ser apaixonado,
também eu senti respeito quase no limiar do receio. Mas os
meus colegas estavam por perto e a força que me deram
ainda hoje a recordo, as palavras de coragem foram ines-
quecíveis. Recordo que num dos lanços em que a parede
ficava cada vez mais na vertical e lisa, mesmo a meio, a mi-
nha perna começou a tremer de forma incontrolável. Nunca
tinha sentido isso. E gritei: “Carlos não me consigo contro-
lar…”. Calmamente, ele respondeu: “Calma, pára, respira fun-
do, acredita em ti, faz força na perna, tu consegues…”. E as-
sim fiz, respirei bem fundo, fiz força na perna e, meu Deus,
consegui. Passei… Cheguei à reunião. Não queria acreditar…
Enquanto via os meus colegas a escalar ficava cada vez
mais encantada, eu estava a conseguir! Recordo também
de numa das passagem perguntar à minha colega Raquel:
“Mas como é que vou passar aqui? Não tenho onde pôr os
pés!”. E ela respondeu: “Olha, podes pôr aqui, aqui e aqui”.
64
#03
“Só falta dizeres que a parede é toda ela um apoio!!!”, respon-
di eu, ao que ela diz: “E é!”. Era mais uma pequena dificulda-
de, mas passei. Estava fora de mim. A partir dali os lanços
já eram mais fáceis, mais um pouquinho e chegávamos ao
cume.
Maravilha, fantástica a paisagem vista dali, parecia que as
montanhas se erguiam à nossa frente para celebrarem
connosco o cume. Chegaram um a um e a alegria e satisfa-
ção invadiam os nossos corações, as nossas almas. Eter-
nizámos o momento com algumas fotografias, abraços e
sorrisos e depois toca a preparar para a descida.
A descida… Mais uma aventura se deparava à nossa frente,
mais um desafio, já que desta vez era um rapel pendular de
cerca de 60 metros. Confesso que senti um nervosinho
no fundo da barriga, mas uma vontade enorme de descer…
Embora sentisse o respeito pela montanha, sabia que ela
me entendia e que sabia da paixão que lhe tenho. De algu-
ma forma sabia, sentia a sua proteção e aprovação. Talvez
seja uma forma muito sonhadora de ver a montanha mas é
assim que a sinto. Durante a descida ainda quis parar e ficar
um pouco ali, mas seria pouco sensato e agi como o previs-
to, aplicando todas as técnicas de segurança que os meus
instrutores me ensinaram. Chegando ao solo fui descendo
lentamente enquanto os meus colegas iam descendo tam-
bém. Aproveitei para tirar algumas fotografias, eternizando
a paisagens e os momentos. Vinha feliz da vida, tinha feito
algo que nunca tinha imaginado algum dia fazer e, melhor
ainda, adorei. Na minha descida para os carros e no meu si-
lêncio, declarei à montanha a paixão que lhe tenho, o prazer
e alegria que sinto quando lá vou e prometi um dia lá voltar…
Regressámos ao parque de campismo, recolhemos as nossas tendas e voltámos para Portugal. O sorriso e satisfação estampados nos nossos rostos eram flagrantes, reflexo de um fim-de-semana fantástico com os objetivos alcançados.
Foi inesquecível. <>
65
#03
escalada
66
#03
escalada frecha da
mizarela via do monitor
Serra da Freita > Junho 2013
“O montanhismo com corda, a progressão em arestas e a escalada clássica são algumas das actividades mais fascinantes que se podem viver na montanha.”
texto: Álvaro Reisfotografia: Pedro Guedes
67
#03
escalada
“Aqui, a escalada clássica ganha o seu verdadeiro significado.”
De todas, a escalada clássica é a minha favorita. Para esca-
lar em desportiva basta uma corda simples, uns expresses,
um aparelho de segurança, dois ou três mosquetões com
fecho de segurança e uma fita. Na clássica, carrega-se ain-
da toda uma panóplia de entaladores, friends, fitas, cordas
e cordinos. A verdade é que todo este material torna-nos
mais pesados e lentos. Em geral, o grau de dificuldade téc-
nica atingido é mais baixo do que nas vias desportivas, mas
há a dificuldade de carregar todo o material e estar longas
horas na parede, por vezes sem escapatória. A escalada
clássica é a que se mantém mais fiel às origens da escalada
e a sua pureza exerce em mim uma atracção profunda, há
largos anos. Grandes vias desequipadas, ambientes natu-
rais fantásticos, cordadas em movimento, proteger a via,
colocar pontos de segurança, sentir a dificuldade da pro-
gressão, o desafio psicológico nos momentos mais arrisca-
dos e viver cada minuto como um momento irrepetível: uma
dádiva imensa da natureza.
Na Freita, vários picos ultrapassam os 1.000 metros de al-
titude e para os escaladores, a Mizarela exerce uma atrac-
ção irresistível. A sua dimensão não é descomunal, mas im-
pressiona qualquer um. As vias de escaladas são das mais
bonitas e acessíveis da região, têm uma dificuldade máxi-
ma de 6a e decorrem ao lado de uma das mais imponentes
quedas de água da Europa. Para mim, a grandiosidade deste
espaço natural é brutal. Aqui, a escalada clássica ganha o
seu verdadeiro significado.
O trilho que nos leva ao início da Via do Monitor é das aproxi-
mações mais bonitas que já fiz. Vamos sempre a descer, no
meio de densa vegetação, emaranhados por entre um caó-
tico arvoredo nas encostas da serra e, por fim, deparamo-
-nos com aquela que é uma das paredes mais emblemáticas
do nosso país. A via que vamos escalar tem aproximada-
mente 100 metros, uma dificuldade máxima de V grau e pode
ser escalada em dois ou três largos. Nós fizemo-la em dois.
68
#03
O primeiro largo começa à direita da cascata, numa plata-
forma onde cada um de nós espera pela sua vez e vai ob-
servando as dificuldades da via. A cerca de 15 metros do
sítio onde me encontro, vejo logo uma grande laje incrusta-
da na parede. Parece que se vai tornar a “crux” da via para
toda a gente... O Pedro escala à frente, colocando vários
pontos de segurança e rapidamente deixo de o ver. Vou
comunicando com ele via rádio e ouço por fim a mensagem
que esperava: “reunião!”. Começam então as duas corda-
das a escalar e vou relatando as dificuldades sentidas por
todos, via rádio. Depois dessa passagem mais difícil, uns
metros mais acima, encontra-se a primeira reunião, numa
pequena plataforma. Como sou o último dos escaladores,
vou retirando o material fixado pelo Pedro e, claro, já sei
que vou chegar ao final da via carregadinho como um pi-
nheirinho de Natal. Já todos estão de pé numa estreita pla-
taforma junto à reunião, onde cabem mesmo à justa, quando
chego ansioso por dar aquele pulo final que me coloca junto
aos meus companheiros de cordada e dar finalmente des-
canso aos meus pezinhos. Naquela hora, amaldiçoo aqueles
que me disseram para comprar pés-de-gato dois números
abaixo do que eu calço habitualmente!
São 11 horas e já está muito calor. Felizmente, sentem-se
na cara os salpicos gelados da magnífica queda de água.
Descalço, sentado na plataforma, procuro o meu cantil para
beber água e observar a paisagem incrível que nos rodeia.
Deve ser esta a magia que fascina toda a gente na Miza-
rela, penso eu. É chegar a uma reunião, entalados naquele
desfiladeiro escarpado, tão minúsculos ao lado da imponen-
te cascata que assume todo o protagonismo desta serra e
sentir um arrepio ao ver a força das águas que se preci-
pitam violentamente em direcção ao vazio lá em baixo… E ali,
pendurado na parede, tenho a melhor panorâmica da região
que se pode imaginar. Daqui vejo a serra como ninguém vê,
com os seus enormes blocos de granito, as várias linhas de
água a correr para o rio Vouga, trilhos antigos de pastores,
rodeados de pinheiros, carvalhos e medronheiros e um
manto de plantas e arbustos rasteiros, urze, giestas, car-
queja, um intenso colorido que transforma estas encostas
numa paisagem de sonho. Foi a procura destas sensações,
que não consigo traduzir neste texto, a procura deste des-
lumbramento que me trouxe aqui…
O segundo largo é bem agradável. São muitos metros de
escalada, mas sem grande dificuldade técnica. Uma série
de lajes, blocos, alguma pedra solta e suja, uma série de de-
graus com muita terra e ervas cheias de picos. A queda de
água é uma presença constante e a altura começa a sentir-
-se, bem como o abismo nas nossas costas e a força da
gravidade que parece querer empurrar-nos para um ter-
rível mergulho. Embora a comunicação da cordada fosse
bastante difícil, pelo barulho da água, o vento e a distância,
lá nos entendemos e chegámos por fim a uma reunião mon-
tada num pinheiro e em friends, no fim da via. Juntaram-se
nessa altura a fome e a fadiga e por isso foi só tempo de
dobrar as cordas e procurar uma sombra para a merenda.
A Via do Monitor na Mizarela é sem dúvida uma via obrigatória. Foi para mim uma via de grande aprendizagem. Muitas outras se seguirão. Quem alinha? <>
69
#03
escalada
70
#03
ascensão agulha do tour, tete blanche e petit fourche Alpes > Junho 2010
“Escrever um texto sobre uma actividade que ocorreu há já bastante tempo tem o seu quê de piada.” texto: Raquel Carvalhofotografia: Oldemiro Lima
Esta em concreto passou-se há
cerca de três anos e é giro verificar
que a minha memória guardou mais
informação do que eu estava à espera.
Regresso agora a 2010.
71
#03
ascensão passada
“... e agora não há volta a dar...”
É a minha primeira actividade nos Alpes. Após ter feito o
curso de alpinismo nunca pensaria em embarcar numa
aventura destas assim tão cedo. Mas aconteceu e agora
não há volta a dar… É a primeira actividade nos Alpes e há
muita (mas mesmo muita) ansiedade; é a primeira activida-
de nos Alpes e surgem mil e uma questões que teimam em
colocar os meus neurónios em actividade extrema; é a pri-
meira actividade nos Alpes e não sei o que hei-de levar; é
a primeira actividade nos Alpes e não sei o que pensar; é a
primeira actividade nos Alpes e esperam-me três dias num
refúgio; enfim, é a primeira actividade nos Alpes e há toda
uma panóplia de emoções à flor da pele.
Dormi mal e questiono-me se terei sido a única a tocar ao
de leve no mundo dos sonhos. Mas agora é tempo de me
despachar de modo a estar pronta à hora marcada. O ponto
de encontro é na porta do prédio, de modo a podermo-nos
dirigir para a paragem do autocarro que nos ia conduzir a
Le Tour. A primeira “aventura” seria a subida até ao refúgio
Alberto I. Claro que o Homem inventou uma coisa fantástica
que dá pelo nome de teleférico, mas para nosso azar está
fechado e não há mesmo outra alternativa para subir a não
ser ir na carrinha do Armando: um pouco a pé, um pouco
andando. Está calor, o peso da mochila parece puxar-me no
sentido oposto ao da marcha e estou pela primeira vez na
vida com botas de alta montanha nos pés e ainda me estou
a habituar a andar com elas. Por tudo isto vou indo devagar,
devagarinho. Temos tempo e o objectivo é chegar lá aci-
ma e não ser o primeiro a fazê-lo. Vou fazendo paragens
pelo caminho para descansar, observar a paisagem, comer
e beber qualquer coisa. O trilho que inicialmente não des-
pertara qualquer interesse sobre a minha pessoa começa
a agradar-me à medida que a altitude sobe e o ar se torna
mais fresco. O horizonte começa a alargar-se e a vista das
montanhas é fantástica. Há campos verdejantes, há nevei-
ros, há montanhas, há neve, há uma moreira glaciar, há um
rio a correr lá em baixo, enfim, observo tudo o que uma
pessoa pode imaginar que existe nos Alpes. Passado um
bom bocado de tempo (que de distância percorrida até nem
deve ser muita) vislumbro o refúgio. Ainda está muito lon-
ge e está rodeado de neve. Estou cansada, penso que ain-
da falta muito para lá chegar. Apetece-me descansar por
um bom período de tempo mas não tenho outra alternativa
se não continuar a caminhar e a fazer pequenas paragens
para descansar, comer e beber. Finalmente chego ao re-
fúgio e no meio daquela gente toda, da confusão para ir ar-
ranjar um caixote onde tenho de deixar as minhas coisas e
de encontrar um par de chinelos que me sirva para trocar
pelas minhas botas, sinto-me completamente perdida. Ago-
ra a prioridade é descansar e hidratar até à hora de jantar,
pelo que uns se vão deitar enquanto outros aproveitam as
mesas da “esplanada” do refúgio. Talvez por estar ali pela
primeira vez há uma série de coisas que hoje me recordo
bem. Uma delas foi mesmo o que comi ao jantar: sopa de
cogumelos de pacote (há quem diga que era caseira mas os
72
#03
grumos de pó que encontrei na mesma não me deixam
partilhar dessa opinião) e um empadão de carne (que es-
tava mais frio que quente). Outro pormenor interessante e
que ficou retido na minha memória é o facto do padrão dos
edredões ser igual às fronhas das almofadas (e ainda hoje
é). Deixo a mochila arrumada de véspera: o que é para levar
vai na mochila; o restante fica dentro do “tal” caixote no re-
fúgio e deito-me cedo. Aqui o provérbio “deitar cedo e cedo
erguer” é levado à séria! Dormir numa camarata tem sem-
pre o seu “quê” de interessante: há sempre um concerto
de “ressonares” (uns são quase imperceptíveis e outros
vêm directamente do inferno, sendo capazes de provocar
avalanches); há sempre quem esteja a falar e há quem leia.
Assim sendo, para se dormir nada mais fácil do que possuir
uma capacidade de abstracção fora do normal (e uns bons
tampões para os ouvidos).
“A subida até ao
Col Superieur du Tour...”
Já não me recordo das horas a que me levantei mas uma
coisa é certa: ainda era de noite. Quando saio do refúgio
não consigo perceber se vai estar frio ou não. Decido que o
melhor é ir agasalhada e caso seja necessário tiro ou visto,
consoante o caso, camadas de roupa. Vou caminhando
pela neve e devido à matinal hora ainda me encontro um
tanto ou quanto adormecida. Está escuro mas consigo ter
a percepção de que do meu lado esquerdo estão várias
montanhas e que do meu lado direito está o glaciar do Tour.
Ao longe vêem-se as luzes de vários frontais das pessoas
que andam por ali. Caminham umas atrás das outras e ainda
são umas quantas; poderia dizer-se que é hora de ponta
naquele local. O caminho que inicialmente era pouco inclinado
passa a ter uma inclinação mais significativa (ou então
sempre foi assim e agora estou mais desperta e apercebo-
me melhor da realidade). Vamos fazendo pequenas paragens
onde aproveito para beber água pelo tubo do camelback e
comer as barras que inteligentemente coloquei nos bolsos
antes de sair do refúgio. O dia vai amanhecendo e como não
há nuvens nem nevoeiro consigo observar a paisagem que
me envolve. Estou rodeada por uma imensidão de neve e
as montanhas que se encontram mais ou menos longe são
imponentes; no meio daquilo tudo sinto-me uma formiga.
A subida até ao Col Superieur du Tour é mais acentuada
e é altura de mudar os encordoamentos. Vamos subindo
a um ritmo mais lento. Quando acaba a subida é tempo de
descansar e comer algo mais substancial. Fazemos uma
paragem mais prolongada, o sol da manhã já se encontra
mais alto dando à paisagem uma tonalidade completamente
diferente, tornando-a ainda mais apelativa. Neste exacto
momento estamos algures entre a fronteira francesa e a
fronteira suíça. A Agulha do Tour não se encontra já ali ao
virar da esquina e portanto há que meter mãos (neste caso
pés) ao caminho e continuar. Seguimos por um trilho entre
as pendentes de neve e o glaciar do Trient até chegarmos
a um maciço rochoso. Agora é necessário subir por ali
para se chegar ao cume. Na altura tinha medo de escalar
e observar o aglomerado de rocha que se encontrava à
minha frente causou em mim algum receio. Pensei que
era algures ali no meio que iria ter um ataque de pânico
e que as lágrimas me iriam cair. Respirei fundo e avancei;
o caminho era para cima. Há quem diga que o que custa
é começar e talvez seja mesmo isso. À medida que ia
progredindo na rocha e me ia sentindo mais confiante fui
esquecendo os receios que me assombravam ainda há
uns momentos. Fomos subindo e finalmente chegámos ao
cume. Era o primeiro feito nos Alpes e encontrava-me à
maior altitude que alguma vez tinha estado. A sensação de
ser uma formiga persistia em mim mas agora sentia-me
uma formiga a 3.544 metros de altitude. O horizonte era
bem largo e conseguia observar uma série de cumes; uns
mais perto, outros mais longe. Encontrava-me por cima de
algumas nuvens e havia um manto branco de neve lá em
baixo. Conseguia observar o glaciar do Tour de um lado e
o glaciar do Trient do outro. Tiram-se várias fotografias e
até eu, que odeio andar com máquinas atrás e carregar no
botão de modo a captar certos e determinados momentos,
resisto ao meu instinto natural e registo em modo digital a
paisagem que me rodeia. Temos de esperar pelas outras
cordadas e enquanto o fazemos aproveito para comer e
beber mais qualquer coisinha. Quando chega toda a gente
é altura de se tirar a fotografia da praxe para depois se
começar a descer. Fui das primeiras a chegar e vou ser
das últimas a sair; e para sair vou ter de destrepar tudo
o que subi até ali. Penso para mim que se consegui subir
sem “panicar” também vou conseguir descer. Dito e feito.
Passado um tempo encontro-me novamente na neve e
não houve lágrimas a saltarem-me pelos canais lacrimais.
Agora é descer sempre pela neve até ao refúgio. Graças a
uma aposta sobre as horas a que chegaríamos ao mesmo,
a descida foi realizada a um ritmo deveras interessante.
Sei que vencemos a aposta mas a única coisa que me
recordo de ter ganho foi mesmo cansaço, umas bolhas nos
calcanhares e – a parte mais importante – a felicidade de
ter superado a minha primeira ascensão nos Alpes. Agora
é tempo de arrumar material e descansar, já que no dia
seguinte há mais um cume para fazer. >>
73
#03
ascensão passada
“Já estamos perto do cume...”
Na segunda noite devido ao cansaço acumulado e à
adaptação ao ressonar dos outros acabei por dormir
muito melhor. Mais uma vez acordo cedo e constato
que ainda é de noite. O ritual do dia anterior repete-se: a
mochila já estava preparada de véspera, tomo o peque-
no-almoço, lavo a cara e os dentes. Hoje o objectivo é
o cume da Tete Blanche e da Petite Fourche. O caminho
inicial é igual ao do dia anterior. O dia começa a clarear
e quando as nuvens o permitem é possível observar
o cume que iremos fazer e o glaciar que teremos de
atravessar. As crevasses encontram-se cobertas pela
neve e seguimos pelo trilho já marcado. Ao mesmo que
me desloco sobre o glaciar, vou olhando para o cume
e traço uma linha recta até ele, dando-me a sensação
que talvez não esteja assim tão longe. No entanto, como
há obstáculos a contornar (nem que seja uma pendente
de neve mais inclinada), o caminho torna-se muito mais
longo e a linha recta traçada ingenuamente transfor-
ma-se num trilho de curvas e contracurvas. O cansaço
acumulado dos dias anteriores começa a fazer efeitos
e vou caminhando ao ritmo que o meu corpo me per-
mite. Mais uma vez as pequenas paragens fazem com
que consiga descansar um pouco, beber água e, lá está,
comer. Já estamos perto do cume e falta “apenas” ul-
trapassar uma pendente de neve e uns blocos de rocha.
Vou subindo e ao mesmo tempo que me vou aproximan-
do vou interiorizando que “se consegui ontem, também
vou conseguir hoje”. Já me encontro junto aos mesmos
e sem hesitar começo a subir. Há uma passagem de
maior dificuldade e, por muito que coloque os pés nos
sítios que desejo, escalar de crampons também não é
tarefa fácil. No entanto, e graças à minha persistência,
consigo vencer o obstáculo e chegar ao cume. É nes-
te preciso momento que os meus sensores olfactivos
detectam um cheiro familiar – cheira, e muito, a cerveja.
Parecia que tinha acabado de terminar ali mais uma noi-
te da Queima. Ultrapassado este impacto inicial é tempo
para apreciar a paisagem que me rodeia. Infelizmente
neste dia o sol encontrava-se atrás de um manto de
nuvens e só de vez em quando é que consigo dar uma
espreitadela por entre as mesmas. Quando isso acon-
tece observo por breves momentos a paisagem que
se encontra mais distante. Mais uma vez sinto-me uma
pequena formiga; estou naquele cume mas há outros
mais ou menos imponentes à nossa volta. Após toda a
gente chegar lá em cima, repete-se mais uma vez a foto
da praxe antes de regressarmos ao refúgio. Durante a
descida, o sol já ia alto e a neve encontrava-se fofa. Os
meus pés enterram-se na neve a uma maior profundi-
dade do que o expectável e há um glaciar para atraves-
sar. Talvez por inconsciência ou por estar a absorver
tudo o que me rodeava e todas as sensações novas
que estava a viver naquele momento, a passagem pelo
mesmo não me causou grande preocupação. A descida
foi feita com a celeridade que era possível, mas antes
ainda subimos ao cume da fácil Tete Blanche. Quando
finalmente coloco os pés no já conhecido trilho que nos
leva até ao refúgio sinto-me aliviada. A actividade esta-
va a terminar e poderia finalmente descansar nem que
fosse por breves momentos.
Chegamos ao refúgio e, antes de arrumar tudo na mo-
chila e preparar-me para a descida até Le Tour, bebo
uma coca-cola de modo a ganhar energia. A mochila
agora pesa um pouco menos pelo facto de ter ingeri-
do a comida que levava para os três dias de actividade.
Vou descendo pela neve ao mesmo tempo que pensava
que agora ia custar menos. Mas os meus pensamentos
revelaram-se completamente falhados: enquanto des-
ço pela neve tudo bem, mas assim que coloco os pés
em solo firme começo a sentir as bolhas que tenho nos
calcanhares e que entretanto já rebentaram. Cada vez
que dou um passo sinto dor e a prova de que me cus-
ta a andar é que a determinado momento escorrego e
não me consigo equilibrar, pelo que caio. Pronto, tenho
dores nos pés e ainda há muito para andar (e um auto-
carro para apanhar), ameaça chover e já tenho o imper-
meável vestido, e agora a cereja no topo do bolo é ter
caído em cima de água e sentir o rabo e as pernas mo-
lhadas – que bom! Vou andando ao mesmo tempo que
tento abstrair-me da dor que sinto. Para tal, vou obser-
vando a paisagem que me rodeia e penso na panóplia
de sensações e superações pessoais por que passei
durante estes dias.
Continuo a descer, mas agora também já me começam
a doer os joelhos pelo que ando cada vez mais devagar.
Faço uma pequena paragem junto ao teleférico (que ob-
viamente e para meu azar continua fechado) antes da
última descida e só me apetece continuar eternamen-
te sentada e dizer: “Desisto! Venham-me buscar”. Para
ajudar à festa começa a chover. Como sei que não pos-
so ficar ali e não me surgem outras alternativas, levan-
to-me e sigo caminho. Perante as condições adversas,
a minha força anímica cai drasticamente e começo a
questionar o que é que estou ali a fazer, que o alpinismo
afinal não é coisa para mim, que não precisava de estar
ali a sofrer, que podia estar mais confortável e passar
esta semana de férias de modo diferente. Mas não… Fui
74
#03
75
#03
ascensão passada
de livre arbítrio para ali e agora tinha que arcar com as
consequências, sejam elas quais forem. Assim que vislum-
bro o fim da descida, foi como se tivesse visto a luz ao fun-
do do túnel (e não, não era um camião que vinha na minha
direcção) e ganho novamente ânimo. Começo a interiorizar
tudo o que se tinha passado durante aqueles três dias. Ti-
nha feito duas ascensões: as minhas primeiras nos Alpes.
Durante as mesmas tinha sentido cansaço, receios e algu-
ma adrenalina, tinha superado obstáculos que nunca pen-
saria que iria superar e sentia-me muito contente por isso.
Finalmente estou de regresso ao apartamento, estou encharcada, estou cansada, tenho uma fome do tamanho do mundo e preciso de um banho relaxante. Tenho os calcanhares em carne viva devido às bolhas que rebentaram e que me irão incomodar nos restantes dias chegando mesmo a dar-me um andar à Robocop. Mas, por muito incrível que pareça, estou feliz.
O bichinho do alpinismo já tinha sido despertado em mim aquando do Curso de Iniciação, mas depois destes três dias de actividade acordou mais um pouco. As sensações que tenho durante estas actividades são indescritíveis e só quem passa por elas é que sabe do que estou a falar. Custa sair da nossa zona de conforto mas assim que o fazemos não queremos outra coisa. Assim sendo, venham mais dias de actividades como esta!
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