Revista en03

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#03 abril 2014 ano III | gratuita expediç o (tentativa de ascens o) bhrikuti e trekking mustang Nepal > Abril | Maio 2013 revista online Agulha Charlanon escalada alpes Pe a Prado escalada via Lago de la Luna Curavacas, Pe a Prieta e Espiguete ascens o Mizarela via monitor uma escalada f cil Pirenéus ascens o Aneto, Pico de Alba, Salvaguardia e Pico Mulleres Agulha do Tour e Petite Fourche ascens o passada > Ascens o Espor o Migot na Chardonnet Alpes > Ascens o Vignemale e Monte Perdido Pirenéus

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Revista de Alpinismo, Montanhismo e Escalada

Transcript of Revista en03

Page 1: Revista en03

#03abril 2014

ano III | gratuita

expedição (tentativa de ascensão)

bhrikuti e trekking

mustang Nepal > Abril | Maio 2013

revistaonline

Agulha Charlanon escalada alpes

Peña Prado escalada via Lago de la Luna

Curavacas, Peña Prieta e Espigueteascensão

Mizarela via monitor uma escalada fácil

Pirenéusascensão Aneto, Pico de Alba,Salvaguardia e Pico Mulleres

Agulha do Tour e Petite Fourche ascensão passada

> Ascensão

Esporão Migot na Chardonnet

Alpes

> Ascensão

Vignemale e Monte Perdido

Pirenéus

Page 2: Revista en03

Pedro Guedes director

ficha técnica

Propriedade

ALPINE CLIMBERS, LDA

Rua do Amparo, nº 42 B

4350 - 031 Porto

Director/Editor

Pedro Guedes

Revisão Editorial

Maria João Leite

Design e Paginação

Pedro Vieira da Silva

Fotografia

Carlos Araújo

César Silva

Edgar Barbosa

Oldemiro Lima

Paulo Roxo

Pedro Guedes

Edição Fotográfica

Oldemiro Lima

Colaboram neste número:

Álvaro Reis

José Nunes

Maria Carronda

Pedro Guedes

Raquel Carvalho

Sandra Reis

Distribuição

Online / Gratuita

Periodicidade

Quadrimestral

Registo ISSN

2182-7885

04-20 >> expedição

Bhrikuti > Ascensão

22-27 >> alpinismo

Esporão Migot > Ascensão

28-31 >> escalada

Agulha Charlanon > Escalada

32-39 >> ascensão

Vignemale e Monte Perdido > Ascensão

40-54 >> ascensão

Pico Salvaguardia, Alba, Mulleres e Aneto > Estágio

56-61 >> ascensão

Curavacas, Peña Prieta e Espiguete > Ascensão

62-65 >> escalada

Peña Prado > Escalada

66-69 >> escalada

Mizarela > Escalada

70-76>> ascensão passada

Agulha do Tour, Tete Blanche e Petit Fourche

78 >> agenda

Próximas Actividades

Actualmente, e desde a última edição, estou envolvido em tantos projectos, que por vezes algo tão “apaixonante” como este “contar de histórias” vai ficando num plano diferente de trabalho.

Foram diversas montanhas, cumes, arestas, vias, glaciares, em diversos ambientes fascinantes e envolventes!

Não tenho tido muito tempo, a não ser para pensar nas pessoas que estão comigo, na realização das ativida-

des, na gestão da equipa, na capacidade de condução do grupo, na gestão do risco, na psicologia e, acima de

tudo, nas decisões e nos seus momentos. Presumo que compreendem, tendo em conta a dimensão destas

montanhas e toda a técnica associada quando somos os responsáveis pelos outros. Aliás, de cada vez que

estou responsável e a liderar, estas montanhas parecem maiores, parece que crescem a cada dia.

Tem sido realmente algo tão absorvente e apaixonante que gostava de vos poder contar mais, de poder dar

voz aos participantes das imensas actividades que fizemos e que não estão aqui nesta revista. Falta muita

gente, muitos locais ainda, muitas montanhas, muita história. Existe sempre tanto para recordar!

Expedição do Bhrikuti é a tentativa de um cume, no desenvolvimento do termo e classificação do que significa

realmente ter “sucesso”. Alpinismo no Migot é o culminar de um projecto de uma formação de alpinismo, com

diversas sessões teóricas e práticas, e algumas dessas vivências são também aqui partilhadas, como a

Agulha da Charlanon nos Alpes e Peña del Prado na zona da Ubina.

Esta revista “passa” ainda por diversas ascensões nos Pirenéus e ainda na zona das Fuentes Carrionas. Esta

última nos mais recentes programas da Alpine Climbers. Um novo projecto e mais dedicado a ascensões em

alta montanha.

Leva-nos também de volta ao passado, a recordar a ascensão de um estágio de alpinismo que organizámos

em Chamonix, onde subimos, entre muitas outras, à Agulha do Tour, à Tete Blanche e à Petite Fourche.

Espero que gostem, essencialmente que seja algo que vos toque e que sintam que, mesmo não estanto lá,

todos os que nos seguem fazem parte deste nosso projecto.

Dedico também esta revista a alguém que desapareceu no fim do ano passado, o José Silva, com quem

partilhei algumas actividades nos Alpes e que me marcou com a sua amizade, a sua forma de estar, o seu

riso contagiante e a forma inspiradora de viver a vida. Obrigado por me teres dado a aportunidade de viver

esses momentos contigo nessas actividades. Estás presente nesta revista…

Um grande beijinho à Beatriz e Patrícia!!!

Espero poder um dia dedicar muito mais desta revista apenas ao “Zé”.

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#03

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Paulo Roxo

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Oldemiro Lima

Colaboram neste número:

Álvaro Reis

José Nunes

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Sandra Reis

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Periodicidade

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04-20 >> expedição

Bhrikuti > Ascensão

22-27 >> alpinismo

Esporão Migot > Ascensão

28-31 >> escalada

Agulha Charlanon > Escalada

32-39 >> ascensão

Vignemale e Monte Perdido > Ascensão

40-54 >> ascensão

Pico Salvaguardia, Alba, Mulleres e Aneto > Estágio

56-61 >> ascensão

Curavacas, Peña Prieta e Espiguete > Ascensão

62-65 >> escalada

Peña Prado > Escalada

66-69 >> escalada

Mizarela > Escalada

70-76>> ascensão passada

Agulha do Tour, Tete Blanche e Petit Fourche

78 >> agenda

Próximas Actividades

Actualmente, e desde a última edição, estou envolvido em tantos projectos, que por vezes algo tão “apaixonante” como este “contar de histórias” vai ficando num plano diferente de trabalho.

Foram diversas montanhas, cumes, arestas, vias, glaciares, em diversos ambientes fascinantes e envolventes!

Não tenho tido muito tempo, a não ser para pensar nas pessoas que estão comigo, na realização das ativida-

des, na gestão da equipa, na capacidade de condução do grupo, na gestão do risco, na psicologia e, acima de

tudo, nas decisões e nos seus momentos. Presumo que compreendem, tendo em conta a dimensão destas

montanhas e toda a técnica associada quando somos os responsáveis pelos outros. Aliás, de cada vez que

estou responsável e a liderar, estas montanhas parecem maiores, parece que crescem a cada dia.

Tem sido realmente algo tão absorvente e apaixonante que gostava de vos poder contar mais, de poder dar

voz aos participantes das imensas actividades que fizemos e que não estão aqui nesta revista. Falta muita

gente, muitos locais ainda, muitas montanhas, muita história. Existe sempre tanto para recordar!

Expedição do Bhrikuti é a tentativa de um cume, no desenvolvimento do termo e classificação do que significa

realmente ter “sucesso”. Alpinismo no Migot é o culminar de um projecto de uma formação de alpinismo, com

diversas sessões teóricas e práticas, e algumas dessas vivências são também aqui partilhadas, como a

Agulha da Charlanon nos Alpes e Peña del Prado na zona da Ubina.

Esta revista “passa” ainda por diversas ascensões nos Pirenéus e ainda na zona das Fuentes Carrionas. Esta

última nos mais recentes programas da Alpine Climbers. Um novo projecto e mais dedicado a ascensões em

alta montanha.

Leva-nos também de volta ao passado, a recordar a ascensão de um estágio de alpinismo que organizámos

em Chamonix, onde subimos, entre muitas outras, à Agulha do Tour, à Tete Blanche e à Petite Fourche.

Espero que gostem, essencialmente que seja algo que vos toque e que sintam que, mesmo não estanto lá,

todos os que nos seguem fazem parte deste nosso projecto.

Dedico também esta revista a alguém que desapareceu no fim do ano passado, o José Silva, com quem

partilhei algumas actividades nos Alpes e que me marcou com a sua amizade, a sua forma de estar, o seu

riso contagiante e a forma inspiradora de viver a vida. Obrigado por me teres dado a aportunidade de viver

esses momentos contigo nessas actividades. Estás presente nesta revista…

Um grande beijinho à Beatriz e Patrícia!!!

Espero poder um dia dedicar muito mais desta revista apenas ao “Zé”.

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62-65 >> escalada

Peña Prado > Escalada

66-69 >> escalada

Mizarela > Escalada

70-76>> ascensão passada

Agulha do Tour, Tete Blanche e Petit Fourche

78 >> agenda

Próximas Actividades

Actualmente, e desde a última edição, estou envolvido em tantos projectos, que por vezes algo tão “apaixonante” como este “contar de histórias” vai ficando num plano diferente de trabalho.

Foram diversas montanhas, cumes, arestas, vias, glaciares, em diversos ambientes fascinantes e envolventes!

Não tenho tido muito tempo, a não ser para pensar nas pessoas que estão comigo, na realização das ativida-

des, na gestão da equipa, na capacidade de condução do grupo, na gestão do risco, na psicologia e, acima de

tudo, nas decisões e nos seus momentos. Presumo que compreendem, tendo em conta a dimensão destas

montanhas e toda a técnica associada quando somos os responsáveis pelos outros. Aliás, de cada vez que

estou responsável e a liderar, estas montanhas parecem maiores, parece que crescem a cada dia.

Tem sido realmente algo tão absorvente e apaixonante que gostava de vos poder contar mais, de poder dar

voz aos participantes das imensas actividades que fizemos e que não estão aqui nesta revista. Falta muita

gente, muitos locais ainda, muitas montanhas, muita história. Existe sempre tanto para recordar!

Expedição do Bhrikuti é a tentativa de um cume, no desenvolvimento do termo e classificação do que significa

realmente ter “sucesso”. Alpinismo no Migot é o culminar de um projecto de uma formação de alpinismo, com

diversas sessões teóricas e práticas, e algumas dessas vivências são também aqui partilhadas, como a

Agulha da Charlanon nos Alpes e Peña del Prado na zona da Ubina.

Esta revista “passa” ainda por diversas ascensões nos Pirenéus e ainda na zona das Fuentes Carrionas. Esta

última nos mais recentes programas da Alpine Climbers. Um novo projecto e mais dedicado a ascensões em

alta montanha.

Leva-nos também de volta ao passado, a recordar a ascensão de um estágio de alpinismo que organizámos

em Chamonix, onde subimos, entre muitas outras, à Agulha do Tour, à Tete Blanche e à Petite Fourche.

Espero que gostem, essencialmente que seja algo que vos toque e que sintam que, mesmo não estanto lá,

todos os que nos seguem fazem parte deste nosso projecto.

Dedico também esta revista a alguém que desapareceu no fim do ano passado, o José Silva, com quem

partilhei algumas actividades nos Alpes e que me marcou com a sua amizade, a sua forma de estar, o seu

riso contagiante e a forma inspiradora de viver a vida. Obrigado por me teres dado a aportunidade de viver

esses momentos contigo nessas actividades. Estás presente nesta revista…

Um grande beijinho à Beatriz e Patrícia!!!

Espero poder um dia dedicar muito mais desta revista apenas ao “Zé”.

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32-39 >> ascensão

Vignemale e Monte Perdido > Ascensão

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Pico Salvaguardia, Alba, Mulleres e Aneto > Estágio

56-61 >> ascensão

Curavacas, Peña Prieta e Espiguete > Ascensão

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Peña Prado > Escalada

66-69 >> escalada

Mizarela > Escalada

70-76>> ascensão passada

Agulha do Tour, Tete Blanche e Petit Fourche

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Próximas Actividades

Actualmente, e desde a última edição, estou envolvido em tantos projectos, que por vezes algo tão “apaixonante” como este “contar de histórias” vai ficando num plano diferente de trabalho.

Foram diversas montanhas, cumes, arestas, vias, glaciares, em diversos ambientes fascinantes e envolventes!

Não tenho tido muito tempo, a não ser para pensar nas pessoas que estão comigo, na realização das ativida-

des, na gestão da equipa, na capacidade de condução do grupo, na gestão do risco, na psicologia e, acima de

tudo, nas decisões e nos seus momentos. Presumo que compreendem, tendo em conta a dimensão destas

montanhas e toda a técnica associada quando somos os responsáveis pelos outros. Aliás, de cada vez que

estou responsável e a liderar, estas montanhas parecem maiores, parece que crescem a cada dia.

Tem sido realmente algo tão absorvente e apaixonante que gostava de vos poder contar mais, de poder dar

voz aos participantes das imensas actividades que fizemos e que não estão aqui nesta revista. Falta muita

gente, muitos locais ainda, muitas montanhas, muita história. Existe sempre tanto para recordar!

Expedição do Bhrikuti é a tentativa de um cume, no desenvolvimento do termo e classificação do que significa

realmente ter “sucesso”. Alpinismo no Migot é o culminar de um projecto de uma formação de alpinismo, com

diversas sessões teóricas e práticas, e algumas dessas vivências são também aqui partilhadas, como a

Agulha da Charlanon nos Alpes e Peña del Prado na zona da Ubina.

Esta revista “passa” ainda por diversas ascensões nos Pirenéus e ainda na zona das Fuentes Carrionas. Esta

última nos mais recentes programas da Alpine Climbers. Um novo projecto e mais dedicado a ascensões em

alta montanha.

Leva-nos também de volta ao passado, a recordar a ascensão de um estágio de alpinismo que organizámos

em Chamonix, onde subimos, entre muitas outras, à Agulha do Tour, à Tete Blanche e à Petite Fourche.

Espero que gostem, essencialmente que seja algo que vos toque e que sintam que, mesmo não estanto lá,

todos os que nos seguem fazem parte deste nosso projecto.

Dedico também esta revista a alguém que desapareceu no fim do ano passado, o José Silva, com quem

partilhei algumas actividades nos Alpes e que me marcou com a sua amizade, a sua forma de estar, o seu

riso contagiante e a forma inspiradora de viver a vida. Obrigado por me teres dado a aportunidade de viver

esses momentos contigo nessas actividades. Estás presente nesta revista…

Um grande beijinho à Beatriz e Patrícia!!!

Espero poder um dia dedicar muito mais desta revista apenas ao “Zé”.

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#03

índice

Page 4: Revista en03

trekking

mustang expedição (tentativa de ascensão)

bhrikutiNepal > Maio 2013

“Seguindo os passos do sagrado para encontrar Bhrikuti. Quando o budismo, lendas, história e geopolítica se misturam”

“Paulo Grobel”

texto: Pedro Guedesfotografia: Edgar Barbosa

Esta frase faz-me parar e leva-me de

volta ao Nepal. Estamos no antes, no pré,

no planeamento, na selecção, na junção

de ideias, na definição, nos primeiros

passos e onde se juntam objectivos.

04

#03

Page 5: Revista en03

05

#03

expedição

Page 6: Revista en03

Toda uma ideia antes de partir

Vou liderar mais uma expedição e as perguntas que se me

colocam são sempre as mesmas: qual o projecto ideal? Qual

o plano assertivo para responder de forma correcta a uma

emergência? Qual o cume ao alcance de todos os partici-

pantes? Qual o melhor plano de aclimatação tendo em con-

ta cada um dos participantes? O quê, quem, quando, onde,

como?

Uma série de considerações diversas e de logística, onde

tudo isto faz sentido, e não quero deixar de responder a

nenhuma questão que se coloca no meu “eu interior”.

Tinha chegado da Argentina, do Aconcágua, mas o meu

pensamento regressava diariamente e numa constante ao

Nepal. Em cada leitura das montanhas do Damodar sei que

esta é a expedição que quero fazer. Não consigo pensar

em mais opções e o dia-a-dia leva-me sempre ao Bhrikuti.

É o Nepal, é o Bhrikuti que me vai na cabeça mesmo entre

os diferentes trabalhos, da loja e cursos. A expectativa é

grande! Quero “embarcar” numa nova viagem, numa expe-

dição, num projecto, na procura de algo diferente do mais

comum do Nepal.

As referências da zona do Mustang e do Damodar definem

como algo mais isolado, rodeado de montanhas inexplora-

das, numa mistura de montanha com o sagrado.

Paulo Grobel: a referência e a inspiração

Procuro informação das montanhas do Nepal, de algo que

seja fora do comum, e essa referência e inspiração têm o

nome de Paulo Grobel. Para além de ter uma página web e

livros muito bem documentados, é ao mesmo tempo uma

aventura a leitura dos relatos das suas expedições.

Paulo Grobel é um guia de alta montanha francês e um dos

mais dinâmicos e assíduos alpinistas em zonas remotas do

Nepal. Nas palavras relata as suas expedições pelo Nepal

quase como um convite onde “contaminando” qualquer alpi-

nista. Descubro com ele o Bhrikuti, uma montanha de 6.460

metros.

Bhrikuti situa-se no Nepal, na zona do Mustang e dos lagos

sagrados do Damodar. Paulo Grobel afirma com convicção

que ali encontramos um desejo de nos envolvermos num

ambiente desconhecido e de exploração. Descreve-o ainda

como um lugar nas montanhas dos Himalaias muito inespe-

rado, onde o céu se funde com os desertos das imensidões

tibetanas. Refere talvez até profundamente: “É acima de

tudo uma aventura humana, original e especial!”

Estava tudo decidido. Só faltava “contaminar” os alunos da

Espaços Naturais para participarem neste projecto! Pas-

sar a mesma referência e inspiração aos que me seguem;

aqueles que eu ensino e faço acompanhamento técnico pe-

las diferentes montanhas.

06

#03

Page 7: Revista en03

Quero subir o Bhrikuti!

Sei de antemão que não estamos a falar de uma montanha

comercial, onde praticamente chegar ao cume está mais

garantido, ou tem maior possibilidade de sucesso.

Não é fácil convencer e reunir “equipa” para uma expedição

com estas características. O mais normal é afirmar, qua-

se como uma garantia, que o cume está ali, que todos vão

fazer cume. Algo que não existe mas que todos querem

ouvir-nos dizer. Na verdade é um efeito social forte, todos

querem atingir o alto, o cume. É a metáfora diária da nossa

sociedade, o que interessa é chegar ao alto, esquecendo

por vezes o caminho.

O Bhrikuti não é uma expedição comercial, vamos estar em

terreno desconhecido, em altitude, isolados e sem grandes

apoios ou comunicações. Deixarmo-nos envolver, desco-

brir, fazer parte, viver uma história, explorar… Processos

que fazem parte de todo um puzzle nesta expedição de al-

pinismo.

Não tem grande dificuldade e desta vez também não procu-

ro nada muito técnico.

Alpinismo e altitude são prioridade, se possível fazer a tra-

vessia integral do Bhrikuti.

A indicação que vem do Nepal é que possivelmente somos

a primeira expedição portuguesa no Bhrikuti e a percorrer

esta zona do Khumjungar. Entre 1982 e 2002 esta mon-

tanha teve 14 expedições pelas diferentes vias e apenas

dez pessoas chegaram ao cume, apenas cerca de quatro

pela via que pretendemos fazer. Ainda sem conhecimento

objectivo, mas nenhuma até ao momento a fez em travessia

do Bhrikuti. São apenas estatísticas até 2002, nada disto

atormenta a ideia, não temos de convencer patrocinadores

com chavões estatísticos. No entanto, saber que possivel-

mente ninguém a atravessou traz algo de fascinante, mas

ao mesmo tempo maior incerteza.

Quero subir o Bhrikuti, queremos! Somos já uma “Team

Expedition” de seis pessoas e vou liderar mais uma equipa

de alunos no Nepal. >>

07

#03

expedição

Page 8: Revista en03

Fragmentos da partida

Ora estou aqui, ali ou acolá. O Nepal está para breve e mais

uma vez antes da partida estou por Marrocos, a guiar um

programa de alpinismo em cinco montanhas de 4.000 me-

tros, incluindo o Toubkal a montanha mais alta do Norte de

África. No refúgio do Toubkal, o meu pensamento deambula

com um “ainda aqui estou e já é tempo de partir de novo”.

Varrem-me a mente estes primeiros meses do ano que fo-

ram uma “loucura” de preparações, partidas e chegadas:

Argentina, várias idas de alpinismo na Ubina, Serra da Es-

trela, Fuentes Carrionas, agora Marrocos. Ainda tenho de

dar mais uma formação de montanhismo e já sigo para o

Nepal.

Nada de diferente do que tem sido nestes últimos anos, fal-

tando só juntar a tudo isto a logística de todos os outros

monitores que fazem equipa comigo nos mais diversos

cursos, a loja, a revista online e a família, que embora apa-

reça aqui no fim é sem dúvida o que me move. O Nepal es-

tava a chegar a passos rápidos, tudo muito próximo e todo

o tempo de preparação passou muito rápido. Os últimos

pormenores: as reuniões finais em equipa, os materiais

que ainda aguardo dos fornecedores, as tendas e fogões

específicos adquiridos para esta expedição, os mais de 100

liofilizados, as manapolas de expedição de alguns partici-

pantes, tenho ainda de colocar os percursos no GPS, com-

prar mais um conjunto de medicamentos úteis, preparar os

sacos de expedição, deixar os próximos cursos organiza-

dos, responder aos mais diversos pedidos de informação

e solicitações…

Nada diferente de todos os que se envolvem comigo nesta

expedição. Cada um procura deixar a sua vida o mais or-

ganizada possível para seguir esta expedição de 23 dias.

Parecem muitos dias mas na realidade são curtos, todas

as expedições seguem para este tipo de projectos com 30

dias, mas nós vamos encurtar o número de dias. Não por

querer, mas porque a vida de cada um não permite tanto

tempo.

Todos estes momentos finais, são como uma série de frag-

mentos, tudo passa tão rápido que fechamos os olhos e já

nos vemos no avião, já nos ouvimos uns aos outros e já

estamos em Kathmandu.

Kathmandu, a realidade

Chegámos a Kathmandu, capital do Nepal, já de noite e não

chegaram as nossas bagagens. Referem que estão em Lis-

boa, que não foram colocadas no avião, mas que não têm a

certeza pois foram avistadas em Dublin. Não vamos ter em

conta o valor envolvido em todo o equipamento que está

em cada saco, apenas nos preocupa a expedição, quere-

mos ir para a montanha e não temos nada de equipamento.

A incógnita é tão grande que vamos ter de seguir sem ba-

gagens e esperar que tudo vá ao nosso encontro. De avião,

de carro ou com carregadores, as bagagens vão chegar

até onde nós estivermos, seja em Pokhara, Jomoson ou

no campo-base. Nem que andemos todo o percurso com

a mesma roupa, queremos sim é o material no campo-ba-

se para o Bhrikuti. Afinal estamos no Nepal e sabemos que

com os “passos” certos tudo vai correr bem.

Seguimos do aeroporto para o hotel, em Thamel, bem no

centro turístico de Kathmandu, para alguns referido como

o “gueto”, mas por aqui passam todas as expedições e via-

gens dentro do Nepal. Ponto obrigatório no meio caótico de

Kathmandu.

Para alguns de nós não é novidade, mas para outros é a

primeira vez em Kathmandu e deixo que absorvam bem

todo esse impacto. É mais que uma viagem para o hotel.

Acima de tudo é uma pequena abordagem cultural ao Nepal.

Chegamos e estamos no ponto de partida!

08

#03

Page 9: Revista en03

Conversa com o assessor de Elizabeth Hawley

Elizabeth Hawley é norte-americana e cronista das expe-

dições e escaladas no Nepal. É uma das figuras mais im-

portantes nas escaladas dos Himalaias e, mesmo sem nun-

ca ter escalado nada, é das pessoas mais respeitadas no

mundo do alpinismo. Tem um estilo de entrevista rigoroso

e uma grande parte dos alpinistas tem medo do que possa

escrever. Isto porque por vezes desmente alpinistas que

dizem ter subido a determinados cumes em grandes mon-

tanhas de 8.000 metros.

Ocupa-se também do “Himalayan Database” onde regista

todas as expedições que escalem no Himalaia nepalês. Os

dados abrangem as expedições para os cumes mais sig-

nificativos do Nepal. Esses dados são publicados pelo Clube

Alpino Americano.

Chego ao hotel e ouço o meu nome na recepção. Têm um

recado para eu ligar para o assessor da Elizabeth Hawley.

Penso de imediato que deve de haver engano ou “porque

quererá alguém tão importante falar comigo?”. Nem me dão

espaço para pensar ou reflectir, a recepção do hotel já fez

a chamada e passa-me de imediato o telefone. Entendi logo

que não posso fazer esperar.

Marquei para o dia seguinte pelo início da manhã, mas sem-

pre a pensar no que haveriam de querer de mim, falar do

quê em concreto. Penso que não tenha nada para relatar,

primeiro vou ainda de expedição e, se tudo correr bem, aí

sim talvez tenha algo para contar.

Depois de uma viagem entre diferentes escalas, de não

chegarem os sacos de expedição, adormeço a pensar na

“entrevista” para o database dos Himalaias.

O dia começa cedo. Temos os últimos pormenores logísti-

cos em Kathmandu, uma ida para um briefing no Ministério

do Turismo e a “entrevista”. Não consigo escapar e, depois

do pequeno-almoço, lá está sentado, no hall da recepção, o

assessor de Elizabeth Hawley. Segue na minha direcção e

chama por mim, tanta gente passa na recepção e deixa-me

a pensar como sabe que sou eu.

Explica-me quem é Elizabeth Hawley (como se eu não sou-

besse), que o Bhrikuti é importante, porque é significativo, e

quer informações no início e no fim da expedição.

Já me sinto com a pressão de que vou ter de fazer cume

para não ficar mal na fotografia.

Começo mesmo por aí e vou directo ao assunto, não quero

rodeios e explico que expedição é esta. Tento libertar toda

a pressão do sucesso de um cume, não quero deixar dú-

vidas e esclarecer que seguimos com humildade perante o

imenso Bhrikuti.

Escreve, escreve e não deixa de escrever… Observo, ana-

liso, tento interpretar os comportamentos, as reacções, os

gestos, acompanho todos os movimentos e não quero que

nada me passe ao lado. Explico que são alunos das forma-

ções em montanha da Espaços Naturais, qual o intuito da >>

09

#03

expedição

Page 10: Revista en03

expedição e rápido surgem perguntas e mais perguntas.

Suscitei um feedback claro quando abordei o assunto de

trazer alunos para o Nepal. É um database e querem saber

tudo, nomes, idades, experiência, profissões, um sem nú-

mero de características e estatísticas. Por fim acabou por

ser uma conversa animadora e de grande aprendizagem.

Desespero de sair

Seguimos de Thamel para o Ministério do Turismo. É hora

do briefing e de levantar os permits da expedição. Senta-

dos no terraço do ministério vemos o rodopio à nossa vol-

ta, mas não sabemos porque estamos ali há tanto tempo.

Pergunto qual o problema, sabendo, e já estou habituado,

que existe sempre algo a ultrapassar. Foi-me garantido

que estava tudo tratado ainda estava eu em Portugal, mas

afinal enganaram-se no cume. Longas horas no terraço e já

sentíamos que íamos perder o avião com destino a Pokhra.

Pressão das bagagens e agora mais um dilema, ou pro-

blema. Acabam por me contar que não temos autorização

para aceder ao Bhrikuti pela zona do Mustang. Pretendem

que atravessemos pelos Anapurnas até Naar e daí para o

Bhrikuti Shail. Óptimo! Não é o cume que queremos fazer e

tento vislumbrar como vamos atravessar este problema.

O ministro tem de dar “palpite”, seguem ofícios e demais

procedimentos.

Chega a autorização para seguirmos ao longo do trekking

do Mustang e daí para o cume. Briefing final com o repre-

sentante do ministro, onde nos explica o código de conduta,

e desespero em sair rápido das burocracias para a mon-

tanha.

Trekking do Mustang

Chegados a Pokhara de avião desde Kathmandu, a única

preocupação continua a ser a incógnita das bagagens, dos

nossos sacos de expedição. As últimas informações indi-

cavam que já estavam a caminho e que chegariam de ma-

drugada, o que se confirmou horas depois.

10

#03

Page 11: Revista en03

Estamos de partida para Jomoson em mais uma viagem dos

pequenos e famosos voos nepaleses. Sempre com chum-

bo da segurança aeronáutica internacional.

Nada que nos preocupe, pois aqui estamos centrados em

fazer passar 30 quilos por bagagem onde só podemos

levar 15 quilos. Há que fazer passar, estamos no Nepal e

quem por aqui anda sabe qual é o procedimento.

Tempo de respirar e apreciar o voo entre montanhas, ao

encontro dos carregadores em Jomoson e dividir os sa-

cos. O trekking do Mustang é parte integrante do plano de

aclimatação. Por um lado, é um percurso para conhecer

novos locais, mas tem também passagens entre diversas

altitudes superiores a 4.000 metros. Acima de tudo é um

percurso que nos permite aclimatar melhor para o Bhrikuti.

Estava no plano desde o início e trekking faz parte de qual-

quer expedição em altitude no Nepal.

O percurso desta primeira etapa leva-nos rápido a Kagbeni.

Aqui já se começa a sentir o tal ambiente do Mustang, onde

a paisagem já é mais característica e similar às leituras que

tínhamos efectuado sobre esta zona.

Aqui chega-se de jipe mas nós viemos a pé, tem boas con-

dições, boa alimentação e água quente que permite tomar

banho. Temos de aproveitar pois pode ser o último banho

de água quente destes dias na montanha.

Tenho reunião com o líder dos carregadores. São cerca de

30 quilos por saco de expedição e temos de aligeirar os sa-

cos. Não me parece bem carregarem às costas estes ma-

teriais, pelo menos desta forma, mas por outro lado sei que

é importante para eles este trabalho. Eles precisam disto,

eles querem ser carregadores, é daqui que tiram um bom

rendimento. Há que aligeirar os sacos para proporcionar

melhores condições: material técnico para um lado, outros

materiais para outro. Não quero pensar muito nisto, entre

nós resolvemos rápido o problema. Há que contratar mais

carregadores e isto passa a ser funcional.

Passámos um final de dia extraordinário com um pôr-do-

-sol entre montanhas. Foi parar, sentar e vislumbrar. Enfim,

montanha. Estamos bem melhor aqui. >>

11

#03

expedição

Page 12: Revista en03

Kagbeni para Chele

Estamos nos 2.810 metros de altitude e vamos para Chele

aos 3.050 metros. Vamos dormir aí em lodge e com jantar.

O plano é sempre dormir e fazer refeições em lodge, pelo

menos até Tangge. Poupar na carga, na logística das refei-

ções, estar o mais confortável possível. Queremos guardar

as energias para depois de Tangge.

O percurso é feito por um estradão que está a ser cons-

truído e a desfigurar a zona. Claro que a paisagem que a

rodeia é fascinante, deslumbrante, mas ficaria bem melhor

se o caminho fosse o que estava, o ancestral. O estradão

desilude, mas nada que nos faça sentir mal. É tanto para

absorver naquelas montanhas. A cor é impressionante, as

montanhas são um contraste de cor entre o laranja, o cinza,

o verde e o branco da neve na alta montanha. Depois há

o azul do céu que se funde na linha entre a terra e o céu.

Talvez exista mesmo fundamento quando falam da terapia

da cor na vida.

Paragem em Chhusang para almoço, para conhecer mais

uma aldeia e contactar com a cultura local. Vamos tão fo-

cados na alta montanha, que só entendemos verdadeira-

mente que esta parte nos marca com o decorrer do tempo.

Aqueles momentos em que fazemos uma retrospectiva e

nos vêm as imagens das pessoas, as vozes, os risos e toda

a alegria daquelas pessoas. Daqui partimos por um caminho

entre o vale, que dá lugar a uma subida até Chele. Estes fi-

nais do dia são de aproveitar. Cada um tem o seu tempo, o

seu momento. Uns aproveitam para ler, outros para ouvir

música, conversar, passear pela aldeia, jogar cartas, entre

as muitas diversas tarefas de logística à volta dos sacos

de expedição.

Chele para Gheling

Este dia previa-se grande e longo. Vamos passar aos

4.000 metros de altitude e será importante no nosso pro-

cesso de aclimatação. Saímos cedo na direcção do colo

de Taklam e de Dajori. Esta primeira parte do percurso é

simplesmente fabulosa, num trilho escavado numa escarpa

sobre Ghyakar e, mesmo não podendo ficar muito tempo,

apetece parar, ficar e contemplar. Na verdade, o dia deve-

ria terminar aí nesse sítio para termos a oportunidade de

desfrutar mais.

Todos seguem bem e não quero deixar de filmar este local.

Quero fazer um relato da história da expedição, mas acima

de tudo quero que fiquem registadas as imagens do Mus-

tang. Estamos ali, estou a filmar, algo que antes de 1985 era

proibido... Andar e registar imagens destes locais.

Paragem em Samar para um chá e daqui para Syanboche,

passando em algumas passagens já quase aos 3.900 me-

tros. Abdicámos de passar no percurso alternativo da gru-

ta de Chungsi. Seria mais interessante de certeza visitar a

gruta sagrada, mas iríamos abdicar de passar aos 4.000

metros. Decisões que são constantes e que fazem parte

de uma expedição.

12

#03

Page 13: Revista en03

Syanboche não me deixa muitas saudades, confesso! Tento

seguir uma alimentação equilibrada e saudável, fugindo aos

habituais temperos nepaleses. Um problema hepático (sem

razão aparente) que tive em 2002 não me permite abusar

muito nestes países. Em Syanboche levo no meu plano de

alimentação arroz e atum. Foi aquilo que pedi para me faze-

rem no lodge, ponto de paragem, mas entendi que algo não

estava bem de imediato. A refeição estava mesmo muito

má, pese embora o meu esforço para me alimentar. Pedi

para ver a lata do atum e lá tomei consciência de que aquilo

estava ali aberto, numa lata de um quilo há cerca de um ano.

A história vem realmente a seguir...

Bem, no momento nada interferiu e assim se seguiu para

Ghiling aos 3.570 metros de altitude. Levávamos três dias

de trekking em terras do Mustang.

Esta noite ia ficar marcada para mim pois tive uma intoxica-

ção alimentar, entendi que tudo estava mal. Vómitos, dores

de cabeça, dores musculares, tudo me levava a acreditar

que podia ter de voltar a Kathmandu. Estava a liderar uma

expedição e sabia que tinha de continuar. Restava era sa-

ber se conseguia…

Fiz um diagnóstico rápido e aquilo que me vinha ao pensa-

mento era que estava com botulismo. Sabia claramente os

sintomas, conhecia perfeitamente o que me podia aconte-

cer, restava agora dar tempo e tentar que não fosse tarde

de mais.

Ghiling para Tsarang

Pese embora estivesse em más condições, sabia que ti-

nha de seguir... A expedição não podia parar. Adaptação à

logística e assim fomos de jipe até Tsarang. Não me recor-

do de nada a não ser de chegarmos a Tsarang. O Plano B

já estava definido e estava garantido que todos poderiam

continuar até cume com um dos sherpas que liderava os

nossos carregadores.

Benditos electrólitos que levei de Portugal... Passei mais um

dia aqui em Tsarang a beber constantemente electrólitos.

Sabia que a incubação poderia demorar horas a dias, mas

sou profissional e uma expedição não pode parar. Temos

de continuar. Entendo que as pessoas que estão comigo já

têm no pensamento a possibilidade de voltar para trás. O

olhar deles falava constantemente dessa possibilidade. Te-

nho um plano B mas eu não estou ali para desiludir ninguém.

Preocupa-me apenas a confirmação de incubação da bac-

téria de botulismo, os danos respiratórios e para onde isso

pode levar. Mas temos de seguir...

Tsarang para Yara

Saímos de Tsarang na direcção de Tangee para poupar

tempo e fomos por um atalho, liderado pelo sherpa e mal

direccionado. Confesso que quando se está com dores ab-

dominais fortes, doente, o que menos se tem vontade é de

andar a controlar um sherpa. Seguia atrás dele e só lhe

dizia que ele não estava bem, mostrava o mapa, mas não

valia a pena. Digamos que estava a 200 metros do caminho

certo mas o sherpa levou-nos para um dia desse desvio.

Óptimo! Sem dúvida o percurso foi fantástico e agora, pen-

sando bem, ainda bem que fomos a Yara. Mas na altura não

foi bem assim, doente não apeteceu assim tanto desviar um

dia.

Yara é um local a visitar, entendo agora que não se pode

deixar de lá ir.

Podemos dizer que fomos ali ver o pôr-do-sol em conjunto.

Foi assim que terminámos o dia.

Yara para Tangee

Acordei já com vontade de ver Yara, bom sinal! Voltei à ex-

pedição...

Que lindo que é Yara e as grutas sagradas escavadas nas

montanhas.

Tempo de desfrutar de um percurso excelente que nos

leva até Dhechyang Khola.

Daí seguimos, sempre a subir, até ao colo de Sertang Danda

aos 4.015 metros, para entramos no caminho de Tangee.

Aqui estamos no final do que podemos chamar de “primeira

fase da expedição”.

Começa agora o acesso ao campo-base do Khumjungar.

Aqui a dormida já é em tenda e aproveitámos o tempo para

instalar acampamento, tomar banho num pequeno riacho e

para conhecer Tangee.

Este sítio é mesmo especial!

>>

13

#03

expedição

Page 14: Revista en03

Entre montanhas no meio do nada

Tangee para Makar

Vamos entrar, segundo dizem as estatísticas, em locais

sem grande acesso a muitos ocidentais, que não andaram

muito por aqui. Sempre a subir. É assim que se sai de Tan-

gee, escolher o melhor percurso numa encosta não muito

definida de caminhos. Vamos para os 4.260 metros e são

1.000 metros de desnível. A envolvência é de grandes pla-

nos, qualquer vista tem uma grande imagem. Seja na alta

montanha, ao longe os vales, ou na imensidão do tal deserto

tão comentado. Daqui para a frente, embora seja Nepal, já

teve habitantes tibetanos.

Descida ao vale de Tangge Khola para instalar acampamen-

to aos 4.100 metros de altitude.

A água aqui é do degelo e obriga a uma tarde entretida en-

tre filtragem.

Makar fica entre montanhas. Ali mesmo do outro lado está

Bhrikuti, Khumjungar Himal, Jomonson Himal, tantas outras

e todas tão perto.

Estamos no meio do nada mas entre montanhas. Nunca en-

tendi bem a afirmação “estamos no meio do nada”, já que se

estamos entre montanhas afinal não estamos no meio do

nada... Estamos no meio daquilo que gostamos e não está

cheio de nada, mas sim o contrário.

Makar para campo-base

O plano de aclimatação segue bem e todos estão bem. Dei-

xa-me apenas intrigado o silêncio, mas de uma forma ou

de outra todos acabam por usar estes períodos de tempo

para reflexões mais pessoais. A introspecção está pre-

sente em todos, mesmo por vezes naqueles que não são

muito dados a esses momentos. A noção do espaço, a pai-

sagem, o silêncio, a própria actividade, talvez sejam ímanes

nesse sentido.

Passámos por ruínas de uma aldeia, que nos fazem imagi-

nar como seria lá viver há muitos anos. Uma linha de água

cristalina corre algures do alto, vem dar a este espaço en-

tre o verde e o árido. Penso de imediato que deveria ter

instalado o acampamento aqui. Estamos nos 4.200 metros

de altitude, aqui teria sido um bom local.

O percurso segue para o colo do Sherlang Danda aos 5.020

metros. Temos de subir ao colo e baixar para o outro lado,

procurando o melhor local para o campo-base. Só tenho

consciência deste local por imagens do Google Earth. Li-

dero uma expedição totalmente no desconhecido. Este é o

compromisso e todos os que participam têm essa cons-

ciência. Aceitam e sabem que estou também ali pela primei-

ra vez.

A subida é lenta, pois estamos a fazer aproximadamente

1.000 metros de desnível. As paragens são as suficientes

para hidratar o mais possível e para repor energias. Apro-

14

#03

Page 15: Revista en03

veitamos também para assistir às brincadeiras normais

dos carregadores e até mesmo às chatices entre eles. Não

consigo decifrar bem a idade deles. Se por um lado imagino

que é mais do que 30 anos, por outro é tão pura a brin-

cadeira que me fazem lembrar um qualquer miúdo. Quan-

do estão carregados estão em silêncio. Imagino claro que

não dá para deixarem de estar concentrados na respira-

ção, mas quando param é tempo de rir e de se divertirem.

Tenho um enorme respeito por eles, principalmente porque

imagino que quem ganha com isto é a agência local.

A subida mesmo ao colo dos 5.020 metros parece feita em

areias movediças e o solo está cheio de sal. No princípio

achei que seria enxofre, ou magnésio, mas o líder dos sher-

pas diz-me que estamos em terra de sal. Sim realmente

já tinha lido que aqui nesta zona era rico quem tinha sal. Li

apenas e não explorei o sentido destas palavras.

Paragem neste colo para descansar, fotografar, contem-

plar todos os diferentes cumes que nos rodeiam e ver a via

de subida do nosso projecto.

Aqui tudo dá a impressão de estar próximo, todos os cumes

aparentemente iludem, de tão perto, a zona do campo-base

vê-se ali bem junto, vemos o vale, as moreias, os glaciares

lá no alto, o Bhrikuti ali mesmo.

É tempo de escolher um bom campo-base, que seja um

local protegido pelo vento, plano para as tendas e enfim

limpeza e instalação das tendas. É um bom local aos 4.600

metros de altitude. Trabalho de campo, pois é tempo de

preparar tudo. O objectivo é estarmos o mais confortá-

vel possível, embora com tendas minúsculas. A estratégia

para poupança de peso e volume foi trazer umas tendas de

alta montanha de um só tecido e a pesar 1.300 gramas. Ab-

dicar de umas coisas: ganhar numas, mas perder noutras.

Não sobra realmente muito espaço para estar no campo--

base nestas tendas, mas são também as tendas que vamos

levar para cima.

Passámos a tarde a bombar e a fazer músculo no filtro de

água. Precisamos de nos hidratar e temos de filtrar muitos

litros de água, pelo menos três litros para cada um, mais

ainda para as refeições liofilizadas. Não temos logística ne-

nhuma de campo-base e somos nós que fazemos todos os

trabalhos de campo e “domésticos”. Para as refeições foi

mesmo à base de pastilha para purificar a água em bidão de

cinco litros. Depois, deixar ferver no jetboil.

Campo-base: dia de aclimatação

O plano era subir já neste novo dia, depois de uma noite em

campo-base, e daqui sairmos para os 5.400 metros. Na re-

alidade, não era o plano original, o que estava pensado em

Portugal. O ideal era não nos precipitarmos embora todos

estivessem a sentir-se bem. Preparámos tudo com calma,

porque quando começarmos a subir não descemos mais.

Por outro lado, o Edgar fazia anos neste dia e queríamos ficar

ali. A festa não tem a mesma dimensão da que se estivesse

em Portugal, mas pôde falar com as filhas através de tele-

fone de satélite. Eu tenho um filho pequeno e sei que não é

>>

15

#03

expedição

Page 16: Revista en03

fácil estar tantos dias em expedição. No entanto, o meu filho

habituou-se a ver o pai assim... A chegar e a partir cons-

tantemente. Não que seja bom mas é isto que faço na vida.

Vejo a preocupação constante do Edgar com as filhas, sem-

pre a ligar pelo telefone de satélite para saber se foram às

aulas, às explicações, se estão na avó. É um pai que está ali

distante mas sempre em contacto e que não quer perder

nada do que se passa no dia-a-dia das filhas. Ainda mais

neste dia, celebra o seu aniversário e nota-se as saudades

que tem das filhas! Como um pequeno SMS de uma delas o

faz mudar e estar mais sorridente… Por vezes estamos tão

preocupados com o que vem a seguir e a liderar todos es-

tes projectos, que estas pequenas coisas acabam por nos

chamar a atenção e focar mais nestes pormenores. Nem

só de cumes se vive numa expedição.

Assim se escutava os “Parabéns” no campo-base. Um dia

diferente para o Edgar!

O telefone de satélite traz as notícias enviadas pelo Car-

los Araújo desde Portugal. O Carlos é monitor de alpinismo

na Espaços Naturais. Pese embora não esteja connosco no

Nepal, faz parte do projecto e eu dependo das notícias que

me envia com a meteorologia. As previsões são de mu-

dança na meteorologia e não tenho “aberta” para grandes

projectos de travessia. Primeira alteração na via que que-

ríamos fazer. Vamos ter de apenas subir ao cume e baixar

pela mesma via. Um “apenas” que não é um simples apenas,

pois temos de subir ao campo 1 que está aos 5.400 metros,

ao campo 2 que está aos 6.000 metros e por fim ao cume

aos 6.470 metros e baixar para campo 1 se der. Precisa-

mos só para isto de uns bons quatro dias.

O Nepal é isto: andámos tanto para chegar aqui num trekking

em que se aproveita para aclimatar e depois temos apenas

uns dias para alpinismo, apenas uns dias para tentar cume.

Se a expedição fosse com mais de 30 dias certamente tudo

seria diferente. A vida não é assim para todos e as pessoas

que aqui estão não são alpinistas de profissão.

Campo-base para campo 1

O dia começou cedo para ultimarmos a desmontagem de

acampamento e colocarmos todo o material na mochila. Va-

mos subir a campo 1 e dormir aí aos 5.400 metros.

O percurso promete uma subida ao longo de toda a moreia

glaciar.

Saímos do campo-base com a calma de fazermos e de des-

frutarmos de todo o percurso. Foram cerca de quatro ho-

ras até campo 1. Estamos na base do glaciar, o lago glaciar dá

lugar a uma linha de água ao longo do vale, que desce a toda

a velocidade. Vamos instalar o campo-base numa zona mais

plana da moreia, nunca conseguindo limpar a grande quan-

tidade de pedras que aqui está. Não há outro local, por isso

tem de ser aqui mesmo.

As pequenas tendas já contrastam com a paisagem.

Depois de toda a instalação de acampamento, é tempo de

liofilizados, de repor as energias, de hidratar. Também de

parar um pouco, que aqui instalar um acampamento des-

gasta muito.

Tudo arrumado dentro das tendas, o que pode ser lá colo-

cado porque é minúscula, e o material técnico fica todo fora.

Alguns aproveitam para ouvir música, outros para conver-

sar. Cada um procura estar bem e sentir-se bem.

No meu caso é tempo de ir até ao glaciar e procurar a en-

trada para campo 2. Visto de campo 1 não parece fácil, vou

ter de instalar uma corda fixa e uma travessia. Lá mais per-

to acabo por verificar que é possível todos fazerem pro-

gressão em movimento e que não tem assim tanta inclina-

ção. Até tem, mas a passagem não estava visível. Lá no alto

vejo uma linha de possível abertura de uma via que gostaria

muito de fazer. Está no Sano Kailash, aos 6.425 metros. É

mais técnico do que o que procuro fazer aqui e no máximo

teria de ser para uma cordada de três. Requer progres-

são por largos, tem uns 800 metros de via e talvez uns 65

graus de inclinação sempre em neve. Chego-me mais perto

da via para a conhecer melhor.

Já estou aqui há algum tempo e talvez seja melhor descer

ao campo 1.

Baixar, baixar, e sem hesitar...

Já em campo 1 ainda faço umas pequenas filmagens, e che-

ga a hora de fazermos um controlo da saturação arterial,

da tensão arterial, do batimento cardíaco e de sintomas

que possam existir. Todos os dias, sem excepção, fazemos

esse registo, duas vezes: ao início do dia e mais ao fim da

tarde. Dá-nos alguns indicadores importantes para saber-

mos se tudo está a correr bem. Algumas pequenas altera-

ções mas estão todos bem, com excepção do Miguel. Assim

que entro na tenda nem foi preciso fazer muito controlo:

comunicava bem, tinha boa coordenação, mas não con-

seguia parar de tremer e tinha as pontas dos dedos com

cianose. Indicava falta de oxigénio. Coloquei o oxímetro e

estava com 50 por cento de saturação. Tinha de baixar de

imediato e não podia arriscar que ele permanecesse aqui

mais tempo. Fiz apenas um compasso para rectificações e

procurei auscultar à procura de um edema pulmonar. Me-

diquei-o com Adalat para edema pulmonar e Diamox. Con-

fesso que ainda hesitei se deveria dar já uma injecção com

dexametasona. A decisão foi aguardar e se realmente me

desse a indicação de um possível edema cerebral assim o faria.

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#03

Page 17: Revista en03

Teria de desmontar a tenda, pois não tinha tendas em cam-

po-base, preparar todo o material para que ele não tivesse

que carregar e daí baixar.

Momento de explicar a todos o que estava a acontecer e

que teria de baixar com ele. Não é fácil para ninguém eu ter

de baixar, é também o risco de se ter um só monitor numa

actividade de alta montanha, mas todos sabem antecipada-

mente como tem de ser e assumem este método. Também

é explicado que podem ter mais um monitor mas tudo será

mais dispendioso. Preferem sempre desta forma. A deci-

são passava por descer com o Miguel até ao campo-base e

voltar no dia seguinte a subir. Ficariam todos os outros em

campo 1, menos a Sandra que decidiu baixar, pois poderia

ajudar também.

Foi mesmo um grande dia, subir a campo 1 e baixar de novo

a campo-base. A chegada foi já ao cair da noite e foi tempo

de tenda e liofilizado. Entendo que com a rapidez deixei os

rádios e o telefone de satélite em campo 1. Queria comu-

nicar para saber se estaria tudo bem com os que lá esta-

vam. Ficou a ideia de que se algo corresse mal eles baixa-

riam de imediato, mas gostava no entanto de falar com eles.

Não vou dizer que tenha dormido bem nesta noite, acor-

dava constantemente a observar a moreia até ao campo

1. Via-se perfeitamente com a noite, e procurava alguma

luz. Como não via a luz acalmava e relaxava. Foi mesmo um

estado de vigilância.

Campo-base para campo 1e desce de novo a campo-base

O dia parece bom. Já estamos com algum atraso na subida

e vamos ter de ficar mais uma noite em campo 1. O Miguel

fica em campo-base e subimos para campo 1 em mais uma

“volta” pela moreia. A Sandra vem lenta e está com algumas

dificuldades. É normal depois de tanto esforço no dia ante-

rior. A culpa também pode ter sido minha, pois não ia pro-

priamente devagar. Tento evitar estar a elevar o ritmo e

de alguma forma estar a influenciar o ritmo dela. Vamos

seguindo na subida.

Estamos quase em campo 1 de novo, fomos mais rápidos

do que no dia anterior e dá para entender que a meteoro-

logia está a mudar.

À chegada a campo 1 contámos uns aos outros as histórias

do dia anterior: uns do campo 1 e nós da descida. Vamos

ficar em campo 1 para no dia seguinte subir a campo 2. Va-

mos ficar muito com timings curtos, mas queremos tentar

cume.

Tudo está muito cinzento e chegou um SMS a comunicar

que as previsões seriam de mudança. Fazemos novo con-

trolo de saturação para verificações. O Edgar está com a

saturação um pouco mais baixa, mas nada de preocupante.

A decisão era de se ter em atenção a ver se melhorava, ou

se pelo menos não baixava mais. Depois, se tudo estivesse

bem, subiríamos para campo 2 sem problemas. A satura-

ção é um indicador, mas o Edgar não tinha grandes sinto-

mas de mal agudo de montanha.

Entretanto a Sandra estava com os lábios e as pontas dos

dedos com cianose, não necessitaria de grande verificação

de saturação. Realmente estava baixa, mas por outro lado

chegou um novo SMS anunciando que ia haver tempestade

de neve depois das 12 horas. Lembro-me de olhar para

o relógio e de num instante essa neve começar a cair a

grande velocidade. Pensei bem. O Carlos não falhou no en-

vio das previsões e foi assertivo. Só restava descer, pois

com este mau tempo tudo iria ficar muito penoso. Fazer um

cume a 6.000 metros com neve pelo joelho ia ser de muita

dificuldade, e com o mau tempo piorava. Restava mesmo

descer e levar o material para campo-base. Precisávamos

das tendas, dos fogões, do saco-cama, das colchonetes,

entre outros. >>

17

#03

expedição

Page 18: Revista en03

O silêncio demonstrava o quanto estávamos desiludidos,

mas o mau tempo fazia-nos descer e no íntimo todos sa-

bíamos que era a melhor decisão. Sempre queremos mais,

queremos chegar lá ao alto, mas sabemos que uma boa ex-

pedição não depende unicamente de um cume.

Chegámos ao campo-base num grande manto branco, res-

tava dormir para acordar no dia seguinte. Quando se tem

que descer assim tudo custa mais, esta noite e fim do dia

custaram mais.

Hora de desmontar tudo e partir de campo-base para o regresso

Organizar carregadores para novamente subirmos aos

5.000 metros, descer todo o vale, voltar a subir aos 4.260

metros e daí pela encosta até Tangge.

Um dia longo e que ao olhar para trás deixa saudades. Fe-

lizmente não se avista o Bhrikuti porque o mau tempo está

lá. Ainda bem, pois assim temos interiormente a “desculpa”

de estar lá o mau tempo. Não dava mesmo... Não que isto in-

teresse, porque existem coisas que não dependem de nós.

Chegados a Tangge é tempo de relaxar, alimentar, dormir.

Esta aldeia é incrivelmente bonita, acho que não prestei a

devida atenção na subida. Estou num pequeno paraíso. As-

sim passo um fim do dia a observar tudo na aldeia, as pes-

soas, as casas, os traços religiosos, o que cultivam, os sis-

temas de rega dos campos, procuro estar atento a tudo o

que consigo absorver.

Sinto que é tempo de descompressão, não fizemos cume,

mas procurei que fosse uma boa expedição para todos,

sendo que estarem todos bem é o que pretendo no fim.

Kali Ghandaki Nadi

O dia nasce e surge a ideia de descermos ao logo do rio...

Sinto que os carregadores não gostaram muito do plano

mas também não nos tentaram mudar.

Se sobem jipes e tractores ao longo do rio, então vamos

descer até Chhusang por aqui. Assim desta forma poupa--

se um dia de trekking e sempre conhecemos o rio. Aventu-

ras é aquilo que trazemos de miúdos e queremos mesmo é

explorar ao máximo.

Saímos de Tangge na direcção de Nanja Docan, procurando

ir ao encontro do Kali Ghandaki onde se juntam as linhas de

água. A saída diz-nos que não vai ser difícil, isto é largo e dá

para ir ao lado da linha de água. Isto é uma praia de pedras.

Salta a linha de água, e volta a saltar, volta a saltar, isto é um

labirinto de linhas de água. Ninguém quer molhar o calçado,

descalça, volta a descalçar. Está visto que não vamos ter

monotonia e se descemos apenas um quilómetro resta sa-

ber como vão ser os outros cerca de 20 quilómetros.

Até aqui o rio é baixo, por vezes alarga, mas estar sempre a

tirar calçado e com água fria não está a resultar bem. Rapi-

damente passamos para a parte em que calçados estamos

bem. Mais água e mais água, depressa passamos a água

pela cintura. Penso que já não voltamos para trás, estamos

com compromisso de envolvência nesta expedição aquá-

tica. Os carregadores parecem não gostar, mas sentem o

espírito e estão mesmo a divertir-se bastante. Não sabem

nadar mas com a nossa ajuda ultrapassam cada obstácu-

lo que surge. Não é só água, já estamos a falar de algum

caudal e temos que procurar as curvas onde a água perde

velocidade. Temos mesmo de agarrar os carregadores e

temos um ou outro susto com alguns a caírem literalmente

na água. Para eles está a ser uma aventura e esta é mesmo

a expedição deles. Desta vez quem está ali para auxiliar so-

mos nós mas esta é uma aventura deles. Nós é que quere-

mos descer este rio, mas eles querem muito mais que nós.

Vejo as horas a passar e sinto que descemos ao longo do

rio muito tempo, mas também sinto que não saímos nada do

sítio, vamos ter de acampar a meio. Lá vem um dos trac-

tores ao longe e resta negociar a descida para não ter de

ficar a meio caminho. Bom negócio e experiência extraor-

dinária, apelidada por nós de “tractor-raft”. A palavra não

está mal escolhida por ter sido aquilo que sucedeu na des-

cida ao longo do rio. Muito boa experiência e recomendável.

Em cima do atrelado do tractor percorremos na base de

falésias, onde pela largura apenas seguia o rio e o trac-

tor... Parecia feito à medida numa grande parte das vezes.

Bastava olhar para cima para vermos paredes nas laterais

com uns 300 a 600 metros. É conglomerado, e penso quan-

do irá cair lá do alto uma pequena pedra... Foram duas horas

assim até Chhusang.

Fizemos bem em descer de tractor. Muito rio, muito cau-

dal, isto ainda era longo para fazer com os carregadores.

Já estamos em Chhusang com grandes conhecedores da

área, aliás, pessoas que estudam a área em teses de dou-

toramento. Entendemos que fizemos uma descida em trac-

tor ao longo do rio não muito acessível a qualquer turista.

Por exemplo, a pessoa em questão nunca o tinha consegui-

do fazer. Valeu muita a pena!

Regresso ao caos...

Estas partes finais de regresso nunca têm muita história.

Na verdade têm, porque conhecer e passear pelas aldeias,

por Kathmandu, faz tudo parte de um mundo cultural e de

experiência. O problema é sempre o mesmo, pois como es-

18

#03

Page 19: Revista en03

tamos empenhados numa expedição há mais de 20 dias,

queremos regressar rápido e acabamos por esquecer

esta parte cultural.

De Chhusang fomos de jipe até ao Jomoson. Ainda tivemos

uns episódios de trocas de jipes, de nos colocarem literal-

mente fora de um jipe pois venderam lugares em duplicado,

de um furo no pneu, de discussões entre locais, de muita

história em tão pequena viagem.

Passámos o dia em Jomoson nos 300 metros da “avenida

central” da aldeia, entre passagens de um lado para o outro,

entre visitas aos cafés, pelas lojas.

Já no dia seguinte regressámos a Pokhara no pequeno

avião das companhias aéreas nepalesas. Entendo sempre

porque não dão garantias de segurança a nível internacio-

nal, na Europa certamente estariam proibidos de voar. Con-

fesso que gosto muito de voar aqui, mais pela paisagem do

que pela questão da segurança, claro.

Mais um dia por Pokhara e mais um dia épico de viagem de

sete horas de carro até Kathmandu. Só pensava nesta via-

gem e só me perguntava porque não gastei os benditos 75

dólares do avião. Tinha demorado 20 minutos e já estava

em Kathmandu. Ninguém me tente convencer que faz parte

da experiência desta viagem. Só penso mesmo é que seria

uma experiência melhor e o tempo mais bem ocupado. A

estrada não tem nada que me faça querer estar ali.

Enfim no caos de Kathmandu, é tempo de passear. Ainda

agora cheguei e o assessor de Elizabeth Hawley já sabe que

já cá estou. Super profissionais. Ainda nem me instalei e já

marcam o questionário final. Assim foi. Explico ao porme-

nor tudo o que fizemos, e claro tudo o que não subimos, até

que altitude fomos, um sem número de pormenores para

estatística. Gostei muito da conversa e foi muito bom, pois

falaram-me de outros locais.

Fim de visita ao caos de Kathmandu e regresso às longas

horas de avião para chegar a casa. >>

19

#03

expedição

Page 20: Revista en03

Sem cume, mas com mais uma boa experiência de montanha com o Miguel, a Melita, a Sandra, o Edgar e o Nóia. Foi muito bom estar ali e espero voltar muito em breve para o Bhrikuti ou para outra qualquer montanha do Nepal. <>Pedro Guedes

20

#03

Page 21: Revista en03

BREVEMENTE em Junho de 2014...

6 dias em Travessia BTT no Atlas em Marrocos[ de Aguergour, Ljoukak, DiLjoukak, Tinguezou, Igli, Imlil a Timzilite. ]

Page 22: Revista en03

ascensão

esporão migot na chardonnet Alpes > Julho 2013

22

#03

Page 23: Revista en03

“Falar da ascensão à Agulha de Chardonnet pelo esporão Migot é, mais do que falar de uma ascensão isolada, falar de uma actividade que concluiu um processo de aprendizagem iniciado cerca de cinco meses antes, naquilo a que se chamou estágio dos seis meses.”texto: José Nunesfotografia: César Silva / Paulo Roxo

Esta actividade, que se iniciou em

Fevereiro, não obstante as normais

vicissitudes decorrentes de um Inverno

demasiado rigoroso, tinha-me permitido

apreender de forma mais estruturada

um conjunto de técnicas das quais só

tinha tido pequenos vislumbres em

actividades passadas, como a escalada

em gelo, em corredores de neve,

ascensões em primeira cordada com

montagem de pontos de segurança,

entre outras.

23

#03

alpinismo

Page 24: Revista en03

“...uma excelente ideia.”

Chegado a Chamonix para uma actividade que seria o cul-

minar deste estágio sentia um misto de expectativa e apre-

ensão, a que já me havia habituado noutras idas aos Alpes.

Na verdade, era natural que o estágio nos Alpes servisse

para podermos pôr em prática estas novas técnicas em

vias mais longas e difíceis e como tal mais exigentes para

mim enquanto praticante.

Assim, quando nos reunimos com o Paulo e o Pedro, os

nossos monitores, para falarmos das actividades a realizar,

Chardonnet foi a primeira das hipóteses, porque segundo o

Paulo tinha todas as características para um final em gran-

de, já que para além da sua beleza natural tinha lances de

neve, gelo e misto, o que nos permitia pôr em prática os

novos conhecimentos adquiridos. Claro que esta via tinha

a desvantagem de implicar dois dias, um para aproximação,

outro para a ascensão propriamente dita, pelo que ficámos

de ver a evolução da actividade para uma decisão final.

Vicissitudes diversas acabaram por nos tirar dois dias de

actividade, pelo que quase naturalmente acabámos por de-

cidir, de forma consensual, apostar na ascensão da agulha

de Chardonnet, o que, pela sua espetacularidade, compen-

saria a falta de outras actividades.

E assim foi… Claro que inicialmente a ideia era subir a aresta

Forbes, a via mais clássica. Contudo, sem que eu perce-

besse bem como, começou-se a falar no esporão Migot, o

que para mim era indiferente já que não conhecia nenhuma

delas. Penso que, no fundo, a ideia dos monitores era fa-

zer uma ascensão de grande beleza e suficiente dificuldade

que nos testasse em novos ambientes… Pode dizer-se que

foi uma excelente ideia.

Assim, na quinta-feira, fizemos a aproximação à via median-

te subida ao refúgio Albert I (com a ajuda do teleférico até

meio do caminho). A aproximação permitiu perceber que

existia uma quantidade de neve anormal para altura do ano,

mas isso era algo a que esta época de neve já nos vinha

habituando.

24

#03

Page 25: Revista en03

“...a vista era soberba.”

A chegada ao refúgio permitiu também observar demora-

damente o nosso objectivo, com a mais-valia de se conse-

guir observar a quase totalidade da via. Devo dizer que, ao

ouvir o Paulo apontar o percurso, o meu primeiro senti-

mento foi pensar que aquilo não era uma via, mas depois de

pensar melhor simplesmente apercebi-me que estávamos

a falar de um nível de exigência técnica claramente acima

de todas as outras coisas que havia já feito, daí não con-

seguir ver nada enquanto os outros viam uma forma de

chegar ao cume.

Naturalmente, como acontece quando saímos da nossa

zona de conforto, o sentimento de apreensão começou

a rondar, mas como nestas coisas pensar muito não faz

muito bem, dei por mim com o pensamento habitual, como

quando na escola faltavam dois dias para o teste e ainda

não tinha estudado nada: quando chegasse a hora, e não sei

bem como, estaria certamente preparado.

Após um jantar altamente calórico marcámos os desperta-

dores para a uma hora para sairmos às duas. Esperava-se

que fosse suficiente para apanharmos o último autocarro

em Tour que sairia às 18h15.

Tomado o pequeno-almoço e devidamente equipados, era

hora de sair. O tempo estava bom, embora bastante menos

frio do que seria expectável… Um prenúncio para o que nos

esperava.

A aproximação iniciou-se à hora marcada. Após cerca de

meia hora de marcha, o primeiro revés. Um problema na

bota de um elemento da outra cordada obrigou-os a voltar

para trás. Para além da enorme sensação de frustração

pelo desalento sentido nos colegas, a repentina solidão de

uma cordada de três para tão magnífica montanha deixou-

-me a matutar. Felizmente tivemos de começar a andar e

assim a cabeça esvaziou-se, dando lugar à concentração

exigível para uma travessia em glaciar.

A aproximação demorou cerca de três horas e, ao con-

trário de outras vias que já havia feito nos Alpes, esta foi

bastante solitária, já que os outros três grupos que nesse

dia empreenderam esta ascensão atravessaram directa-

mente o glaciar. Enquanto isso, utilizando parte da via para

a Agulha do Tour, nós fizemos um percurso um pouco mais

longo mas com um desnível menos acentuado, pelo que só

voltámos a ver outros alpinistas no preciso momento em

que atingíamos o início da via.

A chegada à base da via coincidiu com o início do amanhecer

e devo dizer que a vista era soberba. Um pouco à nossa

frente uma cordada de alpinistas espanhóis ocupou o início

da via, uma parede de neve dura partindo de uma rimaya

e que desembocava num esporão de rocha. Como não

queríamos esperar, a hipótese foi encontrar outro ponto

de entrada o que implicava mais extensão de parede e mais

inclinada (e uma zona onde a abertura da rimaya era maior).

Com distância entre cordadas bastante longas, iniciou-se

aquele período de espera normalmente apreensivo em que

vemos os outros subirem e receamos não sermos capa-

zes de repetir aqueles gestos. Contudo, todos esses re-

ceios, esses medos de falhar desvaneceram-se na altu-

ra em que os meus dois companheiros subiam já longe a

parede de gelo, a corda esticou e tive de meter o piolet na

neve para passar o obstáculo que marcava o início da via,

a referida rimaya.

Esta primeira parte da subida, feita com neve em excelen-

tes condições foi, curiosamente também, o último troço que

apanhámos em condições para o resto da subida. Ao che-

gar à zona de terreno misto na entrada de um esporão de

rocha a que se seguia um pequeno corredor de neve, co-

mecei a notar a neve anormalmente mole para a hora, isto

numa altura em que o sol mal se via, o que augurava uma

subida menos fácil.

Ao mesmo tempo o corpo começava a pagar alguma falta

de cuidado no ritmo imposto neste primeiro lanço. E é nes-

sa altura que se percebe a importância daqueles que, corda

acima, têm a nossa vida nas suas mãos. Sem dúvida que o

constante apoio e encorajamento dos meus companheiros

de cordada foi essencial para ir subindo devagar mas com

um ritmo o mais estável possível.

Como último na cordada, cruzei-me nesta altura com o pri-

meiro elemento da cordada espanhola que tínhamos entre-

tanto ultrapassado ao fazer o já referido atalho no primeiro

lanço. A partir daqui fomos sempre subindo mais ou menos

juntos, sendo de realçar o excelente comportamento des-

tes alpinistas, sempre a respeitar o nosso espaço (e nós o

deles, naturalmente).

Esta segunda parte foi alternando entre neve e esporões

de rocha que fomos contornando até chegarmos ao pri-

meiro ponto mais complexo, um corredor de gelo com cer-

ca de 30 metros.

Ver o Paulo (e depois o César) a subi-lo deu-me esperança

que não fosse assim tão difícil, embora a apreensão de uma

formação em gelo pouco conseguida tenha começado a vir

ao de cima. Contudo, assim que iniciei o lanço percebi que

o gelo estava em excelentes condições e, com pequenos e

seguros passos e anestesiado pela adrenalina, tudo se foi

fazendo até lá acima sem dificuldades de maior. >>

25

#03

alpinismo

Page 26: Revista en03

“Chegados ao cume, a alegria...”

Assim chegámos ao ponto mais bonito e ao mesmo tempo

mais delicado da subida, uma aresta de neve bastante ex-

posta, com cerca de150 metros de comprimento, que se

desenvolve até um colo rochoso que antecede o cume.

Nesta altura, e após umas três horas de subida, o calor

fazia-se sentir bastante e a neve, em consequência, apre-

sentava-se bastante empapada.

Tornou-se assim necessário fazer a primeira parte des-

ta travessia em ensemble, já que a neve não oferecia as

mínimas condições para a colocação de pontos fixos (tí-

nhamos apenas uma possibilidade de meter um ponto fixo

numa zona de rocha, mas que ficava a cerca de 80 metros

da zona onde estávamos). E como sempre acontece nes-

tas situações, com o medo a favorecer uma extrema con-

centração, passo a passo (com a neve cada vez em piores

condições) e com calma chegámos lá acima.

Quase no cume podíamos observar o outro lado da mon-

tanha, o glaciar de Argentiére e tudo o que o rodeava, uma

imagem de uma beleza estonteante. Nesta altura ainda não

víamos o cume mas já o pressentíamos e, embora a traves-

sia até ao dito se tenha revelado algo exposta num ponto ou

outro, já nada nos fazia parar.

E foi assim que após alguns minutos pude observar o Pau-

lo no pequeno cume de neve e o César a chegar ao cimo.

Poucos minutos depois também eu lá estava. Chegados ao

cume, a alegria, o sentido de auto-superação e a recorda-

ção longínqua do momento em que, horas atrás, o primeiro

pé tocou na neve foram fontes daquela alegria inexplicável

de simplesmente chegar lá acima.

Ao contrário de outros que já tinha feito, este é um cume

pequeno e bastante exposto, pelo que, após a foto da praxe

e com os colegas espanhóis a chegar, foi preciso começar

a pensar na descida. E que descida…

“...desencordados a meio da pendente”

Após uma saída algo delicada do cume, em que tivemos de

fazer uma pequena travessia em neve bastante mole até

uma plataforma abaixo do cume, tínhamos para descer uma

pendente bastante inclinada, pelo menos até ao primeiro

rapel (sim, nesta fase a hipótese de descer a pé já estava

claramente fora das nossas cogitações). Demos então iní-

cio a um conjunto de seis rapéis.

Para mim foi uma experiência nova, pois embora já tivesse

feito rapel em neve e gelo nunca tinha feito tantos seguidos.

Nesta fase sentiu-se a utilidade dos rapéis feitos em rocha

nos últimos meses, o que permitiu uma descida automatiza-

da, rápida e segura, com um pequeno percalço quando não

encontrámos uma das reuniões (percebemos depois que

era mesmo assim, da terceira para a quarta reuniões era

preciso fazer uma pequena travessia) e tivemos que fazer

uma passagem desencordoados a meio da pendente.

26

#03

Page 27: Revista en03

Chegados ao fim do rapel, desembocámos numa zona plana

ainda longe do glaciar mas que já permitia uma descida a pé

sem dificuldades de maior. Aproveitámos para um pequeno

reforço alimentar e iniciámos uma tortuosa e longa descida

até ao glaciar, já que a neve estava muito mole e as pernas

começavam a acusar o cansaço.

Após mais de uma hora lá atingimos o glaciar que também

já tinha visto melhores dias… Mas a partir daqui, com o na-

tural cuidado com as crevasses que já se viam debaixo dos

pés, lá fomos progredindo o mais rápido que podíamos, até

que cerca das 16 horas atingimos o piso firme do refúgio

Albert I.

Após um pequeno descanso, vimos as nossas opções: tí-

nhamos um último teleférico às 17 horas (que já não con-

seguíamos apanhar) e o último autocarro em Tour pelas

18h15. Tínhamos portanto que fazer a descida toda a pé (e

rápido, pese embora os pés e os joelhos já se queixassem

bastante). E assim foi. Depois da primeira fase da descida

ainda com alguns cuidados (face à grande acumulação de

neve) lá seguimos à velocidade possível até lá abaixo apro-

veitando o sol e o lindíssimo vale.

E tal foi a velocidade na descida que ainda tivemos de esperar 15 minutos pelo último autocarro antes de voltarmos a Chamonix para o merecido descanso (e banho).

No fim, apenas uma palavra:

inesquecível.

<>27

#03

alpinismo

Page 28: Revista en03

escalada

agulha charlanon

Alpes > Julho 2013

“Estou novamente nos Alpes, mais concretamente em Chamonix. Esperam-me cinco dias de actividade mas a primeira de todas é um dia de escalada em rocha nas Agulhas Vermelhas, mais concretamente a escalada à Agulha de Charlanon.”texto: Raquel Carvalhofotografia: César Silva / Paulo Roxo

28

#03

Page 29: Revista en03

“let the adventure begin!”

A actividade e as cordadas foram parcialmente definidas à

mesa, já que todas as boas decisões são tomadas em fren-

te a uma mesa, de preferência em boa companhia e comida.

Após uma breve passagem pela casa dos guias de monta-

nha de Chamonix ficam-se a saber as condições da via e

do acesso. Uma vez que este ano caiu água sob a forma de

flocos de gelo como se não houvesse amanhã, o início da

via e parte do caminho até à mesma encontram-se debaixo

de um manto de neve. Há que fazer uns ajustes ao plano ini-

cial e, em vez de poder ir com os confortáveis ténis (este

texto não foi escrito ao abrigo dos regionalismos do Norte),

tenho de levar nos pés as botas de montanha, para além de

a mochila ir com o peso extra dos crampons e do piolet.

No dia da actividade, o despertador toca cedo (a ideia é ten-

tar ir no primeiro teleférico do dia e voltar antes do último,

teoria que se revelou completamente falhada na prática)

e no apartamento há no ar um misto de ansiedade e ex-

pectativa. Afinal de contas, é a primeira actividade destes

cinco dias. Felizmente o dia amanheceu soalheiro, havendo

apenas uma ou outra nuvem de algodão no céu, fazendo-

-me esquecer o dia chuvoso e frio com que Chamonix me

presenteou aquando da minha chegada. Após um bom pe-

queno-almoço (que incluía pelo menos dois tipos de queijo

diferentes, pão fresco e café) é altura de deixar o aparta-

mento, colocar a mochila e, consequentemente, o peso nas

costas. É neste exacto momento que digo a mim mesma:

“let the adventure begin!”.

Estamos todos animados e quase tenho a certeza que al-

guém expressa os seus sentimentos sob a forma de can-

ção. Enquanto espero pela abertura do teleférico há mais

que tempo para admirar as montanhas que nos rodeiam. O

contraste das mesmas é igual em todo o lado, mas ali as

montanhas transmitem um “je ne sais quoi” e as bases ver-

dejantes que a certa altitude deixam de o ser, para dar lugar

a cumes de rocha nua ou de neve, têm um encanto especial.

À saída do teleférico sinto o sol a bater na cara de um modo

muito agradável como se estivesse a dar-me os “bons

dias”. Vou percorrendo o caminho que nos leva até à Agu-

lha de Charlanon e mais uma vez questiono-me porque é

que todos os acessos às vias têm de incluir subidas. Os

famosos neveiros de que nos tinham avisado que havia até

à base da via finalmente deram o “ar da sua graça. É altura

de tirar peso da mochila, os crampons vão para os pés, o

piolet para a mão e como é óbvio, ou não estivesse a es-

crever este texto do meu ponto de vista, é altura de co-

mer e beber qualquer coisa. As Agulhas Vermelhas encon-

tram-se do nosso lado esquerdo e agora é só encontrar

a agulha correcta, tarefa que se torna fácil devido à folha

propositadamente arrancada de um livro e ao croqui que

o Paulo desenhou. Vamos andando pelo meio da neve até

chegarmos perto da Agulha de Charlanon. Encontrar a via

certa revelou-se uma tarefa mais difícil, que rapidamente

se transformou numa verdadeira caça ao tesouro. O início

da via encontrava-se soterrado de neve e apenas se vis-

lumbrava uma plaquete a reluzir no meio da rocha. Como

não se encontrou mais nenhuma, decidiu-se que seria essa

a via que iríamos fazer, apesar de ser a mais difícil das que

estavam no croqui. Agora era altura de subir pela neve até

junto da plaquete.

A plataforma de rocha do início da via era tão enormemente

gigante que preparar o material, vestir o arnês e calçar os

pés de gato foram tarefas “interessantes”, para além de

conterem um elevado nível de contorcionismo e malabaris-

mo. Por este mesmo motivo ficou decidido que só teríamos

acesso à mesma à medida que fôssemos escalando. Claro

que como sou afortunada tive o prazer de passar um bom

tempo em equilíbrio numa saliência rochosa ao mesmo tem-

po que segurava os crampons pelas fitas numa das mãos e

verificava se o piolet se mantinha bem espetado na neve.

O meu consciente alertava-me para o facto de não poder

deixar cair nada (nem mesmo o meu próprio corpo) sob

pena de aterrar algures mais abaixo entre a rocha e a neve.

A melhor maneira de me abstrair desta situação era mes-

mo observar a magnífica paisagem que me rodeava. Assim

que primeira cordada deixou a plataforma vazia era tempo

de a segunda cordada poder aceder à mesma. >>

29

#03

escalada

Page 30: Revista en03

Claro que agora o espaço ainda era mais exíguo, uma vez

que no início da via ficavam, em modo de acampamento ci-

gano, mochilas, botas, crampons e piolets. Só se iria subir

com o material mesmo essencial – roupa de aquecimento,

água e obviamente comida. Calhou-me ir em último e por

isso, antes de começar a escalar, verifiquei o estado do

acampamento cigano, coloquei magnésio nas mãos e siga –

o caminho é para cima!

“O impossível fez jus ao seu significado...”

O primeiro largo era pequeno, ou não tivéssemos nós co-

meçado a escalada a meio do mesmo, mas ainda deu para

aquecer, uma vez que existiam diedros engraçados a ultra-

passar. No largo seguinte houve a necessidade de passar-

mos da via onde estávamos para a via ao lado. A ideia era

boa, mas como entre a teoria e a prática vai uma grande

diferença acabámos por andar no meio de rocha solta. Ha-

via o cuidado redobrado de ver onde se colocavam os pés

e as mãos, de modo a não soltar nada sob pena de lesionar

alguém. Fui subindo ao meu ritmo e sem nunca descurar

este facto; apesar de ser a última do nosso grupo não sabia

se havia mais alguém a aventurar-se naquela via. Pelo ca-

minho ainda tive que encetar a missão impossível de retirar

um friend da parede. O impossível fez jus ao seu significado

e portanto a missão não teve sucesso, ficando um “amigo”

vermelho na parede só e abandonado à espera do nosso

regresso e de alguém que o conseguisse resgatar.

O dia foi decorrendo e fui subindo os diversos largos de

maior ou menor dificuldade. À medida que a altitude ia au-

mentando, o horizonte alargava-se e o vento frio ia aumen-

tando a sua intensidade, chegando por momentos a abafar

os efeitos fantásticos que o sol me proporcionava. De re-

pente, estava no último largo e como não era de grande

dificuldade sugeriram-me que fosse eu em primeiro lugar.

Abrir um largo nos Alpes tem outro sabor, outro encanto,

nem que seja pela altitude, pela paisagem ou mesmo pelo

ambiente em si. A via encontrava-se equipada, mas pelo

sim pelo não coloco uns friends e uns entaladores no ar-

nês. Olho para a via e realmente não me parece ser as-

sim tão difícil, mas as plaquetes estão bem distantes umas

das outras. Vou escalando e sei que algures há um passo

mais chato de fazer (o Paulo avisou-me disso). Assim que

lá chego identifico-o imediatamente. A protecção seguinte

ainda se encontra longe e a anterior idem aspas aspas. À

minha frente há uma fissura fantástica onde decido colocar

um friend. O Paulo já se encontra a fazer o rapel de descida

e pára para me dar umas palavras de incentivo e “sacar”

umas fotos. Há que continuar a subir e uma vez que o re-

ceio vem todo ao de cima coloca-se outro friend, e é nes-

te exacto momento que se escreve a história da “fissura

mais protegida por metro de rocha”. A reunião encontra-

-se perto. Sei disso porque já ouço a voz dos meus colegas

que iam na cordada anterior. Subo mais um pouco e lá es-

tão eles. Agora tenho de me auto-segurar e dar segurança

aos meus colegas de cordada. Passados alguns momentos

eles também chegam ao fim da via. É altura de tirar a foto da

praxe e começar a longa série de rapéis que nos esperam.

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#03

Page 31: Revista en03

Um, dois, três, quatro… Já não me recordo de quantos fo-

ram, mas ainda foram bastantes, e alguns deles feitos com

cuidados a redobrar devido à elevada possibilidade de que-

da de blocos de rocha. Pelo caminho ainda se realiza a se-

quela da “missão impossível”, mas mais uma vez verificou-

-se que aqui o impossível é mesmo impossível e que na via

vai ficar um friend.

“Os efeitos da inclinação da descidacomeçam a surgir...”

Finalmente chego à base do acampamento cigano e final-

mente posso trocar os já desconfortáveis pés de gatos

pelas botas. Mais um ou outro exercício de malabarismo

para a colocação dos crampons e eis que estou pronta para

o último rapel. No fim deste, parámos num aglomerado de

rochas e já que perdemos o teleférico de descida temos

tempo para ingerir calorias e repor os líquidos perdidos

com alguma calma.

No início, a descida até Chamonix não parece ser muito dura

e até vou por um caminho ladeado por árvores onde a incli-

nação não é muito acentuada. Mas… ao fim de algum tempo

já não posso ver o caminho, as árvores que o ladeiam e as

curvas que o mesmo faz. Os efeitos da inclinação da desci-

da começam a surgir: doem-me as pernas, os joelhos e os

dedos dos pés. É nesta altura que começo a questionar-me

se não será menos doloroso tirar as botas e continuar de

pés de gato ou mesmo descalça. Quando finalmente chego

ao plano horizontal o meu corpo já nem sabe o que é andar

correctamente e passo por um período ridículo e hilariante

de adaptação, mas ao menos já estou em Chamonix.

E foi assim que decorreu a primeira actividade dos cinco

dias que passei nos Alpes. Desta actividade ficam regis-

tadas em mim, nem que seja no meu subconsciente, uma

série de emoções e uma fantástica frase que nunca mais

irei esquecer:

“Aiguilles Rouges? Trés jolie!” <>

31

#03

escalada

Page 32: Revista en03

ascensão

vignemale e monte perdido

Pirenéus > Agosto 2013

32

#03

Page 33: Revista en03

“Por vales e montanhas encantadas”texto: Sandra Reisfotografia: Pedro Guedes

Foram cinco dias de montanhismo nos

Pirenéus em travessia e autonomia total,

com toda a carga para uma semana:

tenda, fogão, comida e equipamento

técnico de alpinismo. O peso, mais do

que os quilómetros e do que o desnível

previsto, foi definitivamente o desafio!

33

#03

ascensão

Page 34: Revista en03

“Encantei-me pelos Pirenéus.”

Foi uma grande rota com início em Bujaruelo. Depois, subida

pelo Puerto de Bernatuara, acampamento nos arredores da

gruta Bellevue, ascensão do Pic Longue Vignemale (3.298

metros), passando pelo glaciar, descida pelo Vale D’Ossoue,

passagem por Gavarnie, descida a Bujuarelo, passagem e

subida pela Pradera de Ordesa e Vale de Ordesa, subida a

Goriz e daí a ascensão do Monte Perdido (3.355 metros),

com descida e regresso a Torla pelo percurso do GR11.

Estava algo ansiosa, pelo desafio do peso, mas extrema-

mente expectante. Há dois anos que queria fazer este per-

curso e as expectativas eram muitas. A beleza dos Pire-

néus entrou-me pelos olhos e pelos ouvidos nas inúmeras

fotos e relatos que vi e ouvi.

Encantei-me pelos Pirenéus. Têm uma magia qualquer que

não sei bem explicar… É curioso que em muitas partes do

percurso dei por mim a pensar no “Senhor dos Anéis”, na

descrição das paisagens das terras dos Elfos. Se calhar é

isso, há algo de conto de fadas nas paisagens, talvez pela

água abundante, pelo murmurar constante dos rios, pelas

lagoas e cascatas, pelas aves de rapina nos altos, abutres,

gaviões, grifos e uns bandos de corvos em gritos estri-

dentes que batem nas altíssimas paredes e ecoam pelos

vales, a sinalizar a nossa passagem. Verde, verde e verde

e muitas flores e árvores nos vales, num contraste abrup-

to mas harmonioso com a aridez rochosa, neveiros e gla-

ciares das quotas mais elevadas.

Animais por todo o lado, as manadas de vacas pirenaicas

às centenas a fazerem-se ouvir ainda antes de conseguir

vê--las, o tilintar dos badalos em música de fundo a acom-

panhar os nossos passos. Marmotas aos saltos por todos

os lados, na brincadeira, de pé nas patas de trás, com as

orelhas espetadas à escuta, à espreita nas suas covas,

deitadas, não, esparramadas ao sol nas rochas, que nem

lontras ou lagartos ao sol! Boa vida, a destas marmotas!

Ovelhas deitadas nos neveiros e a fazer esqui no gelo! Des-

ta não sabia, ovelha sabe esquiar! Fiquei estupefacta. Mas

bom, têm um casaco de peles cinco estrelas e com o ca-

lor que estava era deitadas na neve que se deviam sentir

bem! Rebanhos imensos de ovelhas e cabras em constante

movimento, cabras em alturas e terrenos surpreendentes,

todos os dias a saírem e a regressarem aos currais, con-

duzidas pela perícia e pelo incrível trabalho de equipa dos

cães pastores... Lindo, lindo demais... Que melhor se pode

querer para uma semana de actividade em montanha?

Fizemos duas ascensões e a primeira foi ao Pic Longue

Vignemale (3.298 metros): talvez mais dura e mais técnica,

mas foi a que gostei mais, pelo tipo de terreno, pela passa-

gem em glaciar e depois pela trepada fantástica na parte

final, em zona de blocos de rocha vermelha com um declive

interessante.

Tínhamos ficado a acampar na noite anterior perto de uma

cascata nos arredores da gruta Bellevue, noite de lua qua-

se cheia a jogar às escondidas com umas nuvens no hori-

zonte, que deram um contraste fotográfico ao pôr-do-sol

34

#03

Page 35: Revista en03

registado para a eternidade pelas nossas três máquinas

fotográficas. Bons momentos a apreciar o entardecer, a

admirar e a identificar os picos circundantes, acompanha-

dos por um belo esparguete à bolonhesa liofilizado. Estou fã

desta bolonhesa!

E depois de uma noite bem dormida, com a suave cascata

como som de fundo, saímos de manhã cedo com a alvorada

e a ascensão foi muito boa e muito rápida. Diria, aliás, diver-

tida porque este é o tipo de terreno que mais gosto: trepe e

destrepe e glaciar. Adorei a subida, adorei a descida!

Descemos novamente ao sítio onde tínhamos montado

acampamento, já lá iam algumas horas, e comemos qual-

quer coisa, descansámos um pouco, desmontámos e ar-

rumámos tudo. Mochilas novamente às costas e lá fomos

nós por ali abaixo. O mais difícil acabou por ser esta descida

quase até Gavarnie logo de seguida. O joelho queixou-se e

foi ao fim dessas dez horas que as bolhas apareceram…

Quase 14 quilos às costas, para 53 quilos de peso, a faze-

rem mossa nos joelhos e nos tornozelos. E nem das bolhas

escapei desta vez. Com tantos quilómetros de montanha

nas solas das botas e tal ainda não me tinha acontecido!

Mas também quem me mandou esquecer das palmilhas em

casa?! Erro de principiante, quase parece. Mas as palmilhas

sempre estiveram nas botas (ainda estou para saber o que

lhes fiz, onde foram parar!) Como é possível algo tão pe-

queno ser tão incómodo e doloroso? As dores começaram

de facto a apertar e ao fim de dez horas de actividade an-

dava muito lentamente. E Gavarnie ainda estava a um par de

horas de caminho… O fim de dia aproximava-se e algumas

nuvens apareceram ameaçadoras no horizonte. O meu âni-

mo estava em baixo, cerrei os dentes, contive as lágrimas

de dor que irritavam os olhos e pensei: “se os peregrinos a

Santiago aguentam as bolhas eu também aguento!”

Mas felizmente despontou no horizonte uma cabana de

pastor miraculosamente... vazia. Que cansaço! E que bem

soube ter um tecto nessa noite. Porque a chuva resolveu

dar o ar de sua graça… Deu para descansar os pés e, ape-

sar da noite mal dormida, com os músculos cansados a não

darem descanso ao corpo, no dia seguinte acordei toda en-

tusiasmada. E só não digo fresca que nem uma alface, por-

que as bolhas não tinham miraculosamente desaparecido,

ainda lá estavam a fazer mossa. >>

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#03

ascensão

Page 36: Revista en03

Mas enfim, ao fim de duas horas de percurso chegámos fi-

nalmente a Gavarnie. E um “pequeno” desvio a uma farmácia,

uns Compeeds, 35 euros numas palmilhas super especiais

de corrida e outra mezinhas resolveram todos os males,

que foram de pouca duração e curta memória. E com as

palmilhas e os compits já foi possível continuar!

Pequenos “luxos, grandes prazeres!

A outra ascensão já foi no lado espanhol, mas só depois

de uma passagem em Gavarnie e pelo grandioso circo de

Gavarnie, com a sua imponente cascata e não menos bru-

tais e gigantes paredes, vias épicas da escalada em gelo.

Para além das palmilhas salvadoras, Gavarnie foi sinónimo

de esplanada na manhã soalheira, a deliciar-me com uma

tarte de maçã e um cappuccino, de conversa descontraída

e de decisão dos planos seguintes. Uma pausa de conforto

para estes montanheiros. Talvez por isso, por ser rara e

inusitada numa semana de montanha, tenha sabido tão bem.

Pequenos “luxos”, grandes prazeres! Mas não foram os

únicos…

Regressámos a Bujaruelo, depois de mais umas horas de

caminhada por prados cada vez mais verdejantes à me-

dida que íamos perdendo altitude, sob um sol tórrido e um

calor asfixiante, só atenuado pelas últimas horas de passa-

gem no bosque. Chegámos enfim ao parque de campismo. E

aí corri, corremos para o rio – lá tem uma pequena praia

fluvial maravilhosa – para mergulharmos as pernas e os

pés na água fria. Miúdos e graúdos a chapinhar na água e

alguns mais afoitos e menos friorentos atreviam-se a dar

uns mergulhos na zona mais funda! Fico sempre impres-

sionada com a quantidade de turistas de montanha e mon-

tanheiros que existe em Espanha e França. Tantas crianças,

pequenas, algumas de sete anitos, ou por aí, a fazerem es-

tes trilhos, alguns bem exigentes, vários quilómetros, aci-

dentados, com desnível! Famílias inteiras em férias de mon-

tanha, pais com bebés nas cadeirinhas às costas, crianças

pelas mãos, uns mais afoitos, outros ficam pelos parques e

por alguns passeios mais curtos, aldeias cheias de gente,

animação e flores vermelhas nas varandas. Que diferença

em relação a Portugal... Será que algum dia verei tanta gen-

te a fazer férias nas montanhas e a alegrar e a encher as

nossas aldeias?

Bom, mas voltando aos “luxos”... De facto, tenho de agra-

decer às bolhas e ao pé torcido que determinaram uma al-

teração do trajecto inicial e uma descida extra à civilização.

Além da tarte de maçã e do cappuccino, dos banhos re-

frescantes na praia fluvial, salivo só de recordar o frango

assado em forno de lenha ao almoço em Broto e o chuletón

extra no parque de campismo. Desta vez pedimos um quilo

de carne para os três, para dividir, mas como não tinham

uma peça única de um quilo deram-nos três de 400 gramas

pelo preço de um quilo… E comemos tudo!

E bem precisávamos de todas estas proteínas e calorias

nos restantes dias. A ascensão ao Monte Perdido... Outros

dois dias de actividade intensa!

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#03

Page 37: Revista en03

“... começou o trilho a sério...”

O primeiro dia, mais suave, com a passagem pelo belíssi-

mo e inigualável Vale de Ordesa. Os adjectivos são insufi-

cientes para o descrever. Como disse, de conto de fadas!

Aconselho todas as pessoas a visitarem esta maravilha da

natureza. E ter filhos e crianças pequenas não é desculpa,

pois vi dezenas e dezenas, se não centenas, de pais com

crianças pequenas, a passear, a fazer piqueniques, a meter

os pés nas águas... Camionetas saem de Torla de 15 em 15

minutos, cheias de gente, para as deixar à entrada do par-

que. E têm a mesma frequência no regresso a Torla, com a

última camioneta a regressar às dez da noite. Um exemplo

de parque natural de facto (mesmo com tantos visitantes

consegue ter taxas muito bem sucedidas de aumento de

população em muitas das espécies protegidas!) e que nós

em Portugal deveríamos seguir…

Passado o Vale de Ordesa, terminou o passeio e começou o

trilho a sério, por assim dizer, com a subida até Goriz, mui-

to agradável, com as vistas do Vale de Ordesa aos nossos

pés, distanciando-se aos poucos e escondendo-se final-

mente por trás das montanhas.

Montámos acampamento perto do refúgio de Goriz, com uma

vista deslumbrante para os vales aos nossos pés e cumes

nas nossas costas. Lembro-me com prazer de estar numa

sonolência agradável ao fim do dia, meia sentada, meia dei-

tada à porta da minha tenda a apreciar o movimento do re-

banho, enorme, que descia da montanha em frente, para um

sopé no vale mais abaixo. Mal as víamos, eram pontinhos

brancos ao longe, mas ouvíamos bem o cadenciar tranquilo

dos badalos, tal qual o som dos espanta-espíritos, que em-

balavam num agradável “deixar ir” e relaxavam os múscu-

los. Uma boa meia hora presa nesta magia ao pôr-do-sol, eu

e muitos outros que por ali acampavam, todos nós com o

olhar perdido no mesmo horizonte, em merecida indolência.

E a provar que na montanha tudo muda a qualquer instante

e muito rapidamente, o plácido fim de dia terminou, pouco

antes do sol se pôr completamente, quando estávamos nós

a terminar o nosso belo jantar de liofilizados, com a chegada

de uns grossos pingos de chuvas que, num ápice, se trans-

formaram em chuva contínua acompanhada de relâmpagos

e trovões! Medo… Isto de estar numa tenda super reduzi-

da, com uma mera colchonete de meio corpo a isolar-me

do chão tem que se lhe diga… Havia sempre a possibilidade

de correr para o refúgio com as tralhas atrás (ideia nada

agradável), mas a tormenta, apesar de sonora, passou ao

largo, os trovões estavam relativamente afastados e em

menos de uma hora, tal como veio, voou para longe! E as

estrelas foram despontando no céu.

Que sorte! Tínhamos conseguido “driblar” o mau tempo que

já estava previsto para o dia seguinte e que podia pôr em

perigo a nossa ascensão do Monte Perdido! Mas passou

sem danos. E no dia seguinte de madrugada, ao sair para

a ascensão, tínhamos céu limpo e condições perfeitas!

>>

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#03

ascensão

Page 38: Revista en03

“... a vista no fim desta rampa de pedra solta e cascalho é soberba.”

Por volta das 6h30 já estávamos de mochila às costas, com

o material necessário para a ascensão e comida para o dia.

Decidimos começar cedo porque ia ser outro dia muito

comprido e porque as previsões eram de mau tempo para

a parte da tarde. Não queríamos ser apanhados por mau

tempo na ascensão, nem na descida do Monte Perdido.

Aqui não havia passagem de glaciar. O desafio maior foi a

passagem de “La Escupidera”, uma pendente de cascalhei-

ra, de uns 300 metros a 45 graus... Tivemos sorte. Não ha-

via gelo nem neve e não foram precisos crampons, mas de

qualquer forma é uma última subida “agressiva” a requerer

bom trabalho de pés e muito cuidado! Fizemos bem e rápido

e a vista no fim desta rampa de pedra solta e cascalho é

soberba. Conseguimos ver ao longe o Vignemale, que tínha-

mos subido há dois dias, e a Lagoa de Marmores. Mais uns

metros e atingimos o cume, onde já estavam dois atletas de

ultra trail que fizeram o percurso todo desde a entrada do

parque em... 3h40! “Uau!”, é o que se me apraz dizer! Acho

que estes ultra trail runners são seres do outro mundo,

definitivamente!

A descida foi a correr, ou passo de semi corrida, pela cas-

calheira abaixo, porque acaba por ser mais fácil deslizar

assim pelas pedras rolantes! Difícil é quando não dá para

deslizar e o esforço de travar começa a fazer pressão so-

bre as articulações. E assim descemos e regressámos a

Goriz, directos para umas apetecidas coca-colas e batatas

fritas no refúgio, ao fim de 6h10 de actividade. Muito bom

para nós. Outro campeonato, diferente das marcas daque-

les super atletas!

E assim se estava a aproximar o fim de uma semana

fantástica. Faltava ainda descer tudo, de regresso pelo

belíssimo Vale de Ordesa, com toda a tralha às costas, mas

a perspectiva de um bom banho e de uma boa refeição

alimentaram as forças para os últimos quilómetros e as

últimas horas deste último longo dia. Foi mais uma descida

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#03

Page 39: Revista en03

intensa e só relaxei quando cheguei ao vale. Aí entrei em

passo de passeio, mais descontraído, a apreciar a paisa-

gem, mais umas fotos aqui e ali. Não há como resistir, por

muitas fotos que já tenha tirado de todos os ângulos, des-

te lugar encantado! Foi literalmente a arrastar os pés que

cheguei ao fim do percurso, dez horas depois, à entrada do

parque, para apanhar o autocarro para Torla, mas com a

satisfação de uma grande semana de actividade!

Foi uma semana intensa, uma actividade brutal, numa das mais belas paisagens de montanha que conheço. Superou em muito as minhas grandes expectativas e ficou a vontade de regressar!

<>

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Page 40: Revista en03

estágio picoSalvaguardia,pico de Alba,Mulleres e

Aneto Pirenéus > Setembro 2013

“Não há duas sem três...”texto: Sandra Reisfotografia: Pedro Guedes

Lá diz o ditado e com razão… Duas

actividades nos Pirenéus no espaço de

poucas semanas: a primeira na zona

de Torla/Ordesa e desta vez rumo a

Benasque, Pirineo Aragonés, no Parque

Natural Posets-Maladeta. Uma terceira

vez é agora obrigatória para confirmar

o ditado! E está no plano futuro, mais

próximo que distante, assim o pretendo.

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Page 41: Revista en03

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Page 42: Revista en03

que requerem, nessas circunstâncias, alguma segurança

adicional com cordas. Estávamos prevenidos para essa

possibilidade, mas não foi preciso. O dia estava maravilhoso,

seco e com muito sol.

O percurso começou perto do parque de campismo do

hotel “Hospital de Benasque”, no Vall de Benás, vale típico

dos Pirenéus, um bálsamo para a vista e para a alma, ver-

de, aberto, com quedas de água de vários metros de altura,

riachos que acompanham os passos enquanto vamos no

vale em aproximação à via, paredes e picos imponentes em

volta a prender o olhar, os mais elevados com neveiros e

glaciares.

Vamos ziguezagueando na pendente, com o vale sempre

em vista, ganhando altitude tranquilamente, entre pinhei-

ros e verde, e admirando alguns dos cumes sobranceiros

e as vias de acesso ao cume. Vários caminheiros fazem o

percurso, vamo-nos cruzando várias vezes e alternando

posições, umas vezes nós à frente outras vezes outros,

com um ritmo determinado muito pelas paragens para tirar

“Tuca de Salvaguardia, uma ascensão de aquecimento.”

A vida dá voltas, os planos mudam e esta semana pirenaica

esteve para ser alpina. Mas constrangimentos vários de

última hora impossibilitaram a travessia prevista, nada que

tenha sido um grande problema de acomodar. Com um gru-

po pequeno foi fácil reajustar os planos e concordar com

um programa alternativo de cinco ascensões na zona de

Benasque, que preenchia os objectivos e as expectativas

de todos.

O Parque Natural Posets-Maladeta, assim declarado em

Junho de 1994, alberga 13 glaciares, todos considerados

Monumentos Naturais, sendo o de Aneto-Maladeta um dos

mais bem conservados e o de maior extensão dos Pire-

néus. A passagem por este glaciar na subida ao Aneto é um

dos pontos atractivos. Esta é uma área que alberga o maior

número de cumes de 3.000 metros dos Pirenéus e ainda

95 lagos, o que faz desta zona uma das mais concorridas e

visitadas por montanhistas, alpinistas e amantes de esqui.

Estabelecemos “campo-base” no Camping Aneto, mesmo à

saída de Benasque pela A139 rumo a Norte, nas margens

do rio Esera, e daí saímos todos os dias para os cumes pre-

vistos, regressando ao final do dia para um bom descan-

so. É uma óptima solução, em conta e bastante confortável

– duche reconfortante todos os dias, tempo para relaxar

depois das actividades, refeições em Benasque, quentes

e bem mais saborosas que liofilizados, massa Koka e atum,

não ter que montar e desmontar acampamentos todos os

dias. Principalmente permite aligeirar consideravelmente o

peso nas ascensões. Naturalmente aumenta um pouco os

quilómetros e desníveis a fazer todos os dias e as horas

de marcha, mas há que optar e desta vez o objectivo era ir

mais ágil, mais leve, mais rápido na progressão.

Tínhamos cinco cumes no plano, alguns emblemáticos da

zona de Benasque, todos com diferentes características:

Salvaguardia (2.738 metros), Posets (3.371 metros), Alba

(3.108 metros), Mulleres (3.010 metros) e Aneto (3.404

metros).

Na realidade, o Mulleres não estava previsto no plano inicial.

Mas ao aperceber-me que nas redondezas havia um pico

“feminino”, digamos que persuadi os meus companheiros de

que não poderia passar-lhe ao lado. Eles foram bastante

compreensivos com esta homenagem ao género!

Começámos pelo Tuca de Salvaguardia, uma ascensão de

aquecimento. É definitivamente um pico fácil e muito agra-

dável de se fazer, tem somente um ou dois pontos de pas-

sagem mais traiçoeiros pouco antes de chegar ao cume,

com lajes mais escorregadias com tempo húmido e chuva,

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Page 43: Revista en03

fotos ou para apreciar uma ou outra perspectiva do vale e

das montanhas em redor, nomeadamente do Pico de Alba,

do glaciar e Pico de La Maladeta.

Assim pelo Canal de la Pena Blanca, trilho do GR-T-46, su-

bimos até ao Puerto de Benás onde invertemos para a es-

querda, saindo em direcção ao Tuca de Salvaguardia num

trilho que corre quase em cima da linha de fronteira, um

passo em Espanha, um passo em França. E aqui nos cru-

zámos com um grande grupo de franceses, que vinham do

lado francês, a fazer a ascensão.

O trilho aqui é mais estreito e exposto, paralelo ao vale em

baixo, mas que fazemos com facilidade e rapidamente, pas-

sando com tranquilidade os tais pontos mais expostos onde

a ajuda de uma corrente na parede confere alguma segu-

rança.

Chegámos ao cume na “hora H”... Ainda não estava ninguém

e por alguns momentos pudemos apreciar o silêncio e ob-

servar tudo em redor. Daqui conseguimos ver também o

lado francês, e os grandes lagos no sopé e no vale mar-

cam a paisagem e prendem o olhar... Lac de la Montagnette,

Lac do Maille, Borns du Port. O Refuge de Venasque está

estrategicamente posicionado nas margens de um dos

lagos. Imaginámos que seria uma boa opção de estadia e

conseguimos identificar alguns dos bonitos trilhos que dali

se podem fazer. Chegaram alguns espanhóis e finalmente o

grande grupo de franceses. A tranquilidade foi-se e quase

não há espaço no cume para todos. Hora de regressar!

Depois de comer alguma coisa e hidratar, retomámos ca-

minho, regressando pelo mesmo trilho e fomos seguindo as

voltas, idas e vindas de um helicóptero que parecia fazer

passeios panorâmicos, passando /aterrando no Refúgio de

La Renclusa, donde se pode aceder ao Mulleres, ao Alba, ao

La Maladeta e ao Aneto. Tentámos descobrir onde andava

o helicóptero pelo som, num jogo de esconde-esconde com

os cumes e vales. Assim distraídos e na conversa, não tar-

dou nada estávamos novamente no vale e no parque. Cedo

terminou este primeiro dia, umas cinco horas de actividade,

coisa soft. Depois de uma passagem rápida no parque de

campismo para um duche e muda de roupa, seguimos para >>

43

#03

ascensão

Page 44: Revista en03

a vila de Benasque, onde, para além da incontornável visita

e do tour pelas lojas de montanha, acabámos por terminar o

dia a aproveitar o pôr-do-sol e a temperatura amena numa

esplanada, a ver a banda a passar e a comer umas tapas.

Ou não estivéssemos nós em Espanha. Jantámos cedo e

cedo regressámos ao parque, porque no dia seguinte a al-

vorada era cedo e o dia ia ser longo. Acabou o aquecimento,

a partir de agora é a sério!

“Posets (3.371 metros)...”

Dia 2: Alvorada ainda de noite, hora de saída marcada para

as cinco da manhã e nos planos está um dos clássicos dos

Pirenéus – Posets (3.371 metros), o segundo pico mais

elevado dos Pirenéus, a seguir ao Aneto.

Saímos à hora combinada do parque de campismo e ainda

tínhamos algum percurso de carro até ao parque de es-

tacionamento, na zona da queda de água Espigantosa, já a

alguma altitude, para início do trilho.

Até lá é um trilho de montanha algo difícil, para o carro… É

um pouco exposto e estreito, com algumas subidas a po-

rem o carro à prova e eu só agradeço por ser noite e assim

não ver a pendente. Andar a pé em trilhos expostos é uma

coisa, de carro assusta-me muito mais!

Enfim chegámos, ainda era noite como breu e só havia um

ou dois carros por ali, mas que mal se viam. Tirando a luz

do frontal, a noite é total, nem a lua se mostra e só vemos

mesmo os poucos metros que os focos iluminam. O céu

parecia ter nuvens, a previsão era de chuva para a tarde,

mas parecia que poderia surpreender-nos mais cedo. Es-

perávamos que não atrapalhasse os nossos planos. O dia

era longo, com muitos metros de desnível e muitos quiló-

metros, e a chuva não seria uma boa companheira!

Começámos o trilho com o som da água, de resto o silêncio

era total e íamos sozinhos na escuridão. Pressenti a queda

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#03

Page 45: Revista en03

de água à nossa esquerda, o som ribombava e o rio acom-

panhava-nos. Parecia muito perto, à nossa direita em baixo.

O trilho ia sempre em subida contínua pelo meio das árvo-

res e sabia-me bem esta caminhada nocturna pela fresca

da aurora. Comecei imediatamente a aquecer, o ritmo car-

díaco aumentou rapidamente e tive de tirar logo algum aga-

salho, mesmo com as temperaturas baixas que estavam.

Entrei no meu ritmo, o torpor da sonolência matutina desa-

pareceu completamente, os sentidos estavam aguçados, a

mente clareou. Sabe mesmo muito bem este esforço físico

num quase isolamento de tudo. A escuridão mostrava-me

só os poucos metros à minha frente iluminados pela luz té-

nue do frontal, a luz perdia-se nos ramos das árvores e

na noite, o som da água e o cheiro do bosque dominavam

a consciência. Os meus companheiros iam só uns metros

à frente, mas entre as curvas do caminho e os vultos das

árvores mal os via, aqui e ali via um foco branco que asse-

gurava que os seguia no trilho correcto. Não que houvesse

mais... ou não os via!

A luz do dia começava a despontar e a clarear a paisagem

ao nosso redor. À medida que subíamos, saíamos do bos-

que para espaço mais aberto e foi com a luz da aurora e

acompanhados pela sinfonia dos balidos e os “muuuus” das

vacas que chegámos ao Refúgio Angel Orús, aos 2.095 me-

tros, para uma pequena paragem: comer e hidratar. O refú-

gio ainda dormia, não havia muitas pessoas visíveis, um ca-

sal que se equipava, um francês que procurava a carteira…

Voltámos ao nosso percurso, já com luz de dia, os frontais

foram guardados, mas já havia muitas nuvens no céu a es-

preitarem por trás dos cumes à nossa volta. O percurso é

muito cénico e o trilho fácil. Subimos uma encosta de pen-

dente suave e verde, fomos cruzando ou acompanhando

um riacho e comecei a ver já não muito longe o canal gela-

do (Canal Fonda) por cima do rio e cascalheira, o acesso a

uma moreia glaciar, por onde íamos progredir. Já íamos a

mais de metade do nosso percurso quando as nuvens se

aproximaram definitivamente. O dia tornou-se cinzento, os

contrastes diminuíram e a paisagem ficou mais agressiva:

o castanho avermelhado da cascalheira e o branco mate da

neve num fundo de nevoeiro e neblina.

Tivemos muito cuidado ao passar a pendente de gelo por

cima do rio, pois estávamos sem crampons, e uma queda

ou resvalo seria perigoso, uma queda directa ao buraco na

água gelada do rio que passava furioso por baixo da gros-

sa camada de gelo que atravessámos para apanhar o trilho

colado à esquerda do canal. Trilho instável, de cascalheira,

e agora húmido da chuva que começava a cair. A progres-

são tornou-se mais difícil, mas admito que gostei! Havia um

certo nervoso miudinho, tive de me focar, pôr os sentidos

mais alerta e redobrar a atenção, que eu que sou dada a

quedas e a torcer pés.

Mas era uma chuva miudinha, estávamos confiantes e con-

tinuámos. Se continuar assim, se não piorar, devia dar para

fazer. A preocupação maior era a passagem da aresta final,

já a chegar ao cume, depois de subir a Moreira glaciar e

passar o Collado del Diente e a Espalda do Posets. >>

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#03

ascensão

Page 46: Revista en03

E assim, passo atrás de passo, cuidadosamente, fomos su-

bindo e quando olhei para trás o manto gelado sobre o rio já

tinha ficado bem para trás. Vejo uns pontinhos pequenos a

iniciar o mesmo trilho, mais alpinistas confiantes que a me-

teorologia não lhes vá dar a volta aos planos.

Chegámos aos 3.100 metros na Espalda do Posets e deci-

dimos parar uns minutos, comer alguma coisa e descansar

antes do assalto final ao cume. Faltavam agora ainda 370

metros, sensivelmente, e uma passagem muito exposta.

Observámos as condições para cima. O nevoeiro era for-

te e não havia visibilidade, o que nos deixou algo pensati-

vos. Aumentou o vento e estava mais frio, estávamos ago-

ra com os agasalhos todos, enquanto estávamos parados,

se bem que abrigados pelas rochas onde nos encostámos.

Mas a chuva continuou ligeira, embora persistente, e de-

cidimos que íamos continuar. Passou por nós um trekker

solitário, em grande ritmo. Trocámos algumas palavras e

ele também estava um pouco preocupado com as condi-

ções, mas disse que ia subir e ver como estava um pouco

mais acima…

Acabámos de comer, estávamos a arrumar as coisas nas

mochilas e a prepararmo-nos para sair quando a chuva

aumenta substancialmente, passando daquela chuva de

“molha-tolos” para chuva forte e contínua! Estávamos a

discutir as nossas hipóteses e qual seria a melhor decisão,

quando passa por nós a descer o espanhol a dizer que ia

descer, porque estava tudo muito escorregadio e que não

havia condições para fazer a aresta final. Não valia a pena

continuar.

Retornar era a decisão que se impunha, não sem frustra-

ção e desânimo, mas o bom senso e a segurança prevale-

ciam. Estávamos próximos, na recta final, mas havia uma

passagem perigosa e ainda tínhamos de fazer toda a des-

cida da moreia, no regresso. O Posets ainda vai cá estar!

Não foi desta e fica para uma próxima! Quiçá a justificar a tal

terceira vinda aos Pirenéus!

Iniciámos a descida debaixo de chuva e com muito cuidado

descemos o canal, que exigia ainda mais atenção e cuidado

que na subida. Com segurança, mas chegámos rapidamen-

te à base do canal e ao manto gelado sobre o rio, que tínha-

mos de atravessar novamente, agora já mais marcado pe-

los passos de quem vinha atrás de nós, mas nem por isso

menos perigoso. Os passos e a chuva derreteram o gelo e

a camada não era estável…

Passando o canal e descendo de altitude, a temperatura

aumentou e a chuva parecia menos ameaçadora. Neste

terreno a progressão era novamente tranquila. Fizemos

uma pausa no refúgio, esperando algum tempo para a chu-

va abrandar. Não havia necessidade de fazer as horas se-

guintes debaixo de chuva contínua! E tivemos alguma sorte,

pois a chuva abrandou, embora continuasse a ver as nu-

vens negras a cobrir os cumes. Descemos, agora de dia, a

apreciar a paisagem onde havíamos passado na escuridão,

e foi engraçado ver como a realidade era algo diferente

do que imaginei… O bosque era muito menos denso e o rio

estava bem mais abaixo e longe do que soava aos meus

ouvidos! A cascata era ainda maior do que a imaginei, com

46

#03

Page 47: Revista en03

muitos metros de altura e a exigir uma foto para a

posteridade. E assim chegámos ao início, ao parque de

estacionamento. E nem pelo facto de não termos feito cume,

esta deixou de ser uma óptima actividade!

“... rumo ao Pico Alba...”

Dia 3: Alvorada madrugadora novamente. Nos planos esta-

va o grande Aneto, jornada Alpina, o prato-forte da semana.

Saímos muito cedo para estarmos no parque do Plan de

Senarta a tempo da camioneta das seis da manhã que nos

levaria montanha acima até ao Refúgio do Pescador ou Re-

fugio Coronas, num percurso acidentado e exposto. Uma

aventura de camioneta nas montanhas, um “autobus de las

nuvens!”

Chegámos a tempo ao parque de estacionamento, a noite

ainda estava escura, faltavam ainda algumas horas para os

primeiros raios de sol. Estava ainda em fase de sonambu-

lismo e em modo automático. Não se via nada. Havia dois ou

três carros parados, mas sem vivalma aparentemente! Uma

porta abriu-se e vimos uma luz de frontal a uns metros de

distância. Saiu um vulto de um dos carros e encaminhou-se

para junto do refúgio, fechado, sem vida. Eramos só nós e o

vulto, uma rapariga sozinha, apercebemo-nos quando nos

aproximámos. Também ia fazer o Aneto. Sozinha! Coragem

ou loucura? Muito normal entre os espanhóis, sem dúvida,

mas uma mulher sozinha não deixa de ser surpreendente.

Desde pequena que “vive” nas montanhas, disse, e pelos

vistos está muito habituada e à vontade nestas andanças!

Não deixei de a admirar em silêncio, mas perguntei-me se

ousaria fazer sozinha algo como isto, mesmo conhecendo

já o percurso… Exerce um certo fascínio, mas não me con-

sigo imaginar. Sou medrosa.

Bem, esperámos, esperámos, esperámos… e nada de ca-

mioneta. Começámos a ficar impacientes, nós e ela, e es-

tava um frio gélido. Decidimos aguardar no carro, não valia

>>

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#03

ascensão

Page 48: Revista en03

a pena continuar ali de pé ao frio, a camioneta estava bas-

tante atrasada e não sabíamos quanto tempo ainda poderia

demorar. Cochilámos no carro e passou-se mais meia hora.

Já estava atrasado uma hora… O dia começou a nascer e

uma hora e meia depois decidimos que o melhor era alterar

os planos. Fazia-se tarde para cumprir o horário ideal para

a actividade.

E assim, do Aneto decidimos ir rumo ao pico Alba, a 3.108

metros, que estava previsto para o fim da semana, a fazer

a partir do Refugio de la Renclusa. Fomos novamente de

carro até ao parque do Hospital de Benasque, onde estivé-

ramos no primeiro dia para fazer o Salvaguardia. No parque

apanhámos a camioneta que percorre o vale ao longo do rio

Esera até ao parque de La Besurta, uns cento e tal metros

mais acima, aos 1.896 metros, ponto de partida do nosso

trilho para chegar ao Refugio de La Renclusa e daí iniciar o

percurso em direcção ao Pico Alba. Eram 1.300 metros a

subir e retornaríamos por um percurso muito variado em

termos de terreno e paisagens! Gostei muito deste percur-

so, variado e exigente, embora me tenha custado em algu-

mas partes. Os joelhos chatearam um pouco, acusaram o

acumular de desnível dos dois dias anteriores.

Chegámos rapidamente ao refúgio por um trilho muito bem

marcado, em ziguezague suave até aos 2.140 metros. Só

parámos para beber alguma coisa e continuámos. Perto do

refúgio, havia um portão lindíssimo de uma capela incrusta-

da na montanha edificada à Virgen de Las Nieves, que apre-

ciámos ao passar. Merecia uma visita, havendo tempo no

regresso.

O refúgio estava muito bem enquadrado num Collado, no fim

de dois vales por onde descem dois rios, de Sul o Torren-

te de La Maladeta, vindo do glaciar com o mesmo nome, e

de Sul/Oeste o Torrente del Diente, alimentado certamente

pelo mesmo glaciar e pelo de Alba. Foi em direcção a Oeste

e seguindo em paralelo ao curso deste último rio que reto-

mámos a subida, mais pronunciada nos primeiros 150 me-

tros de desnível nas margens do rio, até chegarmos a um

colo largo dominado por um lindo lago, o Ibon de La Renclusa,

entre picos de 2.300 metros à nossa direita e a vista dos

glaciares La Maladeta e Alba à nossa esquerda.

Havia alguma neblina, talvez da evaporação da água do lago

e dos muitos rios que cavam estes vales, processo acen-

tuado com o avançar da manhã e o aumento da temperatura.

Era uma névoa pouco densa, parecia que víamos fotogra-

fias desfocadas, que esvoaçava e se deslocava com a brisa.

Íamos vendo e deixando de ver os pormenores à distância

e a luz rasgava espaço entre a neblina numa visão quase

surreal da paisagem. O vale, fechado pelas encostas altas,

era todo ele um espelho de água lindíssimo e irresistível. E

foi devagar que fiz o trilho suave que circunda o lago, antes

de começar uma nova subida em direcção a uma parede

de grandes blocos esverdeados, que fomos saltando em

trepada suave, encontrando um caminho natural entre os

monólitos. Cruzámos o rio, virando à direita em direcção a

Oeste a uma quota de cerca de 2.550 metros, e passámos

a subir uma cumeada, subida constante em caminho quase

recto na direcção Sul/Sudoeste em ziguezagues curtos. A

neblina esvaiu-se e de repente descobriu-se o céu azul.

48

#03

Page 49: Revista en03

Vemos de cima o vale e quase em frente as paredes cin-

zentas do Maladeta e as cores alvas do Alba. Já tínhamos

subimos bastante, devíamos estar nos 2.800 metros quan-

do decidimos enfim parar para descansar e comer, apro-

veitar o sol e o calorzinho súbito que se fazia sentir e que

não esperávamos! Como o sol faz a diferença! Tudo era ain-

da melhor com um céu azul, contrastes, horizontes aber-

tos e luz... Fiquei ainda mais animada, estava a gostar muito

do percurso, mas a vista dos vales glaciares e dos cumes

aumentava a expectativa e a pura alegria de estar ali e em

mais nenhum lugar.

Tínhamos de ultrapassar novamente uma área de pedras e

grandes blocos caídos em derrocada milenar e eram mui-

tas as opções de trilho. Havia várias mariolas a indicar as

opções de percurso. Neste tipo de terreno temos de nos

manter orientados, porque rapidamente podemos seguir

um trilho um pouco mais ao lado e progressivamente, sem

nos darmos conta, afastarmo-nos do percurso e do objec-

tivo e irmos dar a outro lado qualquer.

Ia mais atrás que os meus companheiros e nem sempre os

via, entre “esses” e “erres” do percurso e o sobe e desce

dos blocos, mas estava atenta para os vislumbrar entre um

bloco e outro e ter a certeza que seguia na direcção certa,

mesmo que não fizesse exactamente o mesmo percurso.

Procurava seguir o trilho que me parecia mais natural e

fácil entre os blocos, a não obrigar a demasiados saltos.

Chegámos finalmente à base da parede final do Alba e pro-

curámos a melhor forma de acesso ao cume, não muito >>

49

#03

ascensão

Page 50: Revista en03

evidente mas a exigir certamente alguns passos de esca-

lada que, não sendo complicados, iam requerer a máxima

atenção e cuidado porque estávamos sem cordas. Mas de-

pois de avaliarmos algumas possibilidades, lá decidimos por

uma zona que nos parecia mais segura para transpormos

esses 20 metros de altura, passo que me deu muito prazer

fazer. Depois apanhámos um trilho evidente na pendente

final de acesso ao cume, na face virada a Oeste, e minu-

tos depois chegámos finalmente ao cume do Alba, com um

céu azul, sol resplandecente e vistas brutais 360 graus em

volta! O espaço no cume era pequeno e algo exposto, com

pendentes abruptas de ambos os lados. Sentámo-nos um

pouco para apreciar a vista soberba e tirar fotos, evitando

andar a deambular para trás e para a frente, não fosse o

diabo piscar o olho! Foi uma subida e um percurso longos

e cansativos mas que me deu um grande prazer fazer! E

como tudo o que sobe desce: regressámos pelo mesmo

caminho, parámos no refúgio para um merecido descanso

e um chocolate quente antes da descida final até ao parque

e dar por finalizado mais um longo dia de boa actividade, an-

tevendo uma boa refeição e descanso para depois refazer-

mos os planos e decidir quando ir a Aneto!

“Assim, o dia foi de Mulleres.”

Dia 4. Decidimo-nos por um dia mais soft, para acordarmos

um pouco mais tarde, descansarmos do esforço dos dias

anteriores e nos resguardarmos para o Aneto, que deci-

dimos deixar para o fim, depois de validar no Turismo em

Benasque que a camioneta estava a funcionar e que não

se iria atrasar de novo! Assim, o dia foi de Mulleres. Ou Tuc

de Molières, na versão francesa – provavelmente o nome

oficial, já que o cume fica do lado francês. Mas eu fico-me

pela forma discriminatória. E a atestar que a fama vem de

longe foi sem dúvida o facto de ter sido o percurso onde

vi mais mulheres, em grupos ou “standing alone”! Uma fran-

cesa, que vinha já há muitos dias sozinha e em autonomia

total a fazer uma das rotas pirenaicas, cruzou-se connos-

co quando já vínhamos a descer. Ela estava a subir tranqui-

lamente e como se nada fosse, com a sua pesada mochila…

Uma inspiração!

50

#03

Page 51: Revista en03

“Sexismos” à parte, este foi sem dúvida mais um belo per-

curso, a iniciar também no nosso já conhecido parque de La

Besurta, e seguindo vale fora ao longo do Rio Esera. Tudo

muito tranquilo e plácido àquela hora da manhã, mas esta-

ria cheio de gente, a caminhar ou estendida nas margens

do rio a apreciar o calor, quando regressássemos ao fim

do dia. Mais uma vale-paraíso dos Pirenéus a convidar à

contemplação e à languidez. Mas não para nós… Fomos du-

rante algum tempo no vale, sempre à mesma quota ou em

subida progressiva e suave, até chegarmos perto da Cas-

cata d’Aiguallut, onde o terreno empina muito e temos uns

passos de trepada íngreme. Ganhámos altitude rapidamen-

te, passando aos 2.050 metros. Continuámos ao longo da

Valleta da Escaleta, quase sempre paralelos ao rio Aigueta

de l’Escaleta que corre no vale em baixo, em subida suave e

paulatina até chegarmos a uma linda zona de lagos, os Ibons

de L’Escaleta – água omnipresente nos Pirenéus a estas

quotas! Devíamos andar pelos 2.500 metros. Fomos pas-

sando uma sucessão de lagos à medida que subíamos, nes-

ta altura de forma mais rápida e pronunciada. Chegámos ao

Ibon Alto de lá Escaleta e o terreno passou totalmente a

rocha, grandes lajes claras que devem ser manteiga quan-

do chove, mas de fácil e prazerosa progressão neste dia.

As vistas eram desafogadas e amplas e tínhamos uma óp-

tima perspectiva do Pico de Tempestades, do Pico Russel e

da Espalda do Aneto, no horizonte à nossa direita à medida

que íamos subindo. Do cume, onde chegámos sem grandes

histórias, tínhamos ainda melhor vista. Apreciámos ainda

melhor as encostas glaciares desse lado e os lagos e vales

do lado francês.

Foi um percurso muito agradável, menos exigente que os

dois dias anteriores, o que foi perfeito para recuperarmos

algumas forças para o dia seguinte, a sobremesa da sema-

na: o Aneto, o maior dos Pirenéus, no alto dos seus 3.404

metros, a exigir uma passagem em glaciar e um passo fa-

moso, algo assustador! Havia muita expectativa…

O último dia fechava com “chave de ouro” uma óptima se-

mana, muito intensa e variada. Acordámos novamente mui-

to antes do galo cantar, devia ainda estar no terceiro sono!

Saímos das tendas prontos para este último dia, com mui-

ta expectativa. As previsões meteorológicas eram muito

boas: um dia de sol, o que nos animou ainda mais.

Lá fomos, mais uma vez esta semana, rumo ao parque do

Plan de Cenarta para apanharmos, esperávamos, o “auto-

bus de las nuvens” e fazer os primeiros quilómetros e me-

tros de desnível em cima de grandes rodas. Mais uma vez

fiquei contente por ser noite e não conseguir ver bem as

rodas da camioneta a rasar o precipício nas curvas… Não

teria a mesma sorte no regresso, umas longas horas de-

pois, já que tive o “azar” de me sentar à janela, no lado es-

querdo do autocarro. Houve momentos em que pura e sim-

plesmente fechei os olhos…

O “bus das nuvens”, assim chamado, percorre o Vall de Va-

libierna, parte do percurso do GR11. Deixou-nos no Refugio

>>

51

#03

ascensão

Page 52: Revista en03

do Pescador, um pequeno refúgio/cabana onde se inicia

o percurso, na ponte Puen de Corones onde confluem o

Rio de Valibierna e o Barranco de Corones. A água sempre

presente!

Estávamos ainda completamente imersos na noite quando

iniciámos o trilho, mais uma vez colados ao rio, ao Barranco

de Corones, no meio do bosque, com os frontais a ilumina-

rem parcamente o percurso. Saímos acompanhados de um

alpinista solitário, com quem nos fomos cruzando, no início

do percurso e, depois de o termos “perdido”, lá o encontrá-

mos de novo na descida… Afinal não se tinha perdido!

Prosseguimos no bosque ainda por um bom tempo, sem-

pre a subir, e finalmente saímos do meio das árvores para

uma encosta, pendente acima, ao longo do Vall de Coronas.

O dia nasceu suavemente, dando contornos e distância ao

horizonte, e assim além dos frontais já conseguimos ver

os vultos um dos outros e encontrar com mais facilidade

o percurso, agora já não tão óbvio pendente acima. Fez-se

dia e desligámos os frontais, continuando sempre a subir,

o terreno deixou progressivamente de ser campo verde-

jante e passou a ser um terreno mais inóspito de pedras e

cascalho, numa subida mais cansativa.

Estamos em subida constante há horas até que atingimos a

zona dos lagos, o primeiro a ser o Ibonet de Corones, ainda

parcialmente deitado à sombra. O sol começou a lamber as

cumeadas a Oeste num tom laranja, um cenário lindíssimo,

um circo grandioso de rocha a bloquear a vista mais além.

Subimos muitas centenas de metros, continuamente. O ter-

reno aumentava em exigência e dificuldade de progressão,

mas isso foi amplamente compensando pelas paisagens e

pelo dia luminoso, límpido e de cores fortes com que fomos

brindados neste último dia. Estávamos nos 2.650 metros e

ainda faltavam uns 750 metros de desnível. Íamos mais ou

menos a meio.

A subida suavizava aos 2.750 metros quando passámos

nos Ibons de Corones, um planalto de lagos a convidar a

uma pausa mais do que necessária e merecida. Era o local

52

#03

Page 53: Revista en03

ideal para parar e sem dúvida uma óptima opção de pernoi-

te e bivaque. Grandes lajes deitadas e planas, um bálsamo

para as pernas, que descansavam neste progresso macio

e plano. Um pequeno interregno bem-vindo para preparar

as pernas a voltar à carga da subida agressiva em cas-

calheira, na moreia glaciar, que se seguiu por mais algum

tempo!

E foi com enorme alívio e satisfação que vi a neve. Atra-

vessámos os primeiros neveiros, a princípio sem crampons,

depois calçámo-los e fomos progredindo em terreno misto

de rocha e neve por mais umas centenas de metros, sem-

pre a subir. Que bom voltar à neve, a este tipo de progres-

são! Já estava com saudades e este é o ambiente que mais

gosto. Que bom ouvir o som da neve debaixo dos nossos

passos, num andar suave e amortecido! O terreno estava

gelado, mas não demasiado, a progressão era fácil e des-

contraída, os crampons fixavam-se bem e facilmente, sem

grande exigência física ou difícil trabalho de pés…

Aproximámo-nos da parede. A pendente era pronunciada,

bastante vertical e obrigava a encordoamento e progres-

são em ensemble, trepando bastante até ao pequeno Colla-

do de Coronas, aos 3.292 metros. Chegados a este pon-

to tínhamos vista para os dois lados da Espalda do Aneto

e, atravessando para o outro lado da vertente, entrámos

finalmente no glaciar. Dia soberbo, vistas deslumbrantes!

Céu azul, neve branca brilhante e pontinhos de cor na neve,

cordadas de alpinistas que se aproximavam pela rota que

vem do Refugio da Renclusa. E destes sobressaía um gru-

po diferente: uma equipa de filmagem (não sabemos com

que propósito nem quem eram) aparentemente a acompa-

nhar e a filmar uns quantos guias profissionais, um grande

aparato! Passaram por nós, quando estávamos no Collado a

comer qualquer coisa, a passar para encordoamento para

glaciar, e foram-se mantendo à nossa frente até ao cume.

Fomos acompanhando as suas andanças e filmagens.

Entrámos no glaciar e subimos com entusiasmo pela espalda

do Aneto, uma boa subida, algumas rochas e blocos na par-

te superior. Saindo do glaciar, novamente terreno misto, >>

53

#03

ascensão

Page 54: Revista en03

divertido. Não deixo de me surpreender contudo pela quan-

tidade de trekkers que, chegados a este ponto, abandona-

vam os crampons e subiam só em botas. A neve estava

mais gelada em alguns pontos, a pendente continuava a

subir e uma queda (bastava um pé mal colocado, um dese-

quilíbrio) poderia ser aparatosa e vertente abaixo, para o

glaciar. Seria o excesso de prática e de confiança? Ou não

haveria risco? Como acho que os crampons ajudam e não

me incomodam nem é opção que me venha à cabeça.

Chegámos ao pré-cume, uma plataforma larga que ante-

cede o Passo de Mahoma. Havia muita gente no cume, para

além do grupo de filmagem. Há umas quantas duplas a pas-

sar o passo para regressar do cume. Aproveitámos para

fazer uma pausa, para apreciar o momento, o sol a aque-

cer o corpo e a alma, e para comer e beber. Agora sim, os

crampons eram totalmente desnecessários! Ver as vistas,

tirar fotos e simplesmente estar, depois de tantas horas –

umas seis horas a subir –, soube muito bem!

O grupo de filmagem regressou, as duplas transpuseram

o passo, e agora era a nossa vez. Deixámos crampons e

mochilas, vamos encordoados, claro, pois este é um passo

bastante aéreo e exposto. Uma espécie de ponte natural

com um passo curto no vazio e uma trepada ligeira, não

difícil tecnicamente, mas exposto ao abismo de um lado e

do outro. Uma passagem psicológica por assim dizer… E de

facto senti umas borboletas no estômago, tanto de excita-

ção quanto de medo!

Passámos sem dificuldades e chegámos finalmente ao

cume mais alto dos Pirenéus, encimado por uma cruz gi-

gante, toda engalanada de cor, bandeirinhas e laços. Estava

muito satisfeita! Que bem me soube esta ascensão e que

grande final para uma semana de actividade fantástica. Cla-

ro que ainda tivemos que descer tudo, mais umas horas

de actividade, mas para baixo todos os santos ajudaram e

chegámos mais do que a tempo de apanhar o “bus das nu-

vens” montanha abaixo!

Foi uma semana muito intensa, bastante variada, com chuva, com sol, com percursos longos mas de beleza imensa, como já me estou a habituar nos Pirenéus.

Anseio por uma próxima actividade nestes maciços! Faça chuva, neve ou sol!

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#03

Page 55: Revista en03
Page 56: Revista en03

ascensão

curavacas peña prieta

e espiguete Fuentes Carrionas > Outubro 2013

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#03

Page 57: Revista en03

“A Montanha Palentina constitui a vertente meridional da Cordilheira Cantábrica, ocupando uma área de quase 1.000 quilómetros quadrados.” texto: Álvaro Reisfotografia: Pedro Guedes

Aqui situam-se alguns dos picos mais

altos de toda esta cordilheira. Os 2.536

metros da Peña Prieta e os 2.525

metros do Curavacas superam mesmo a

maioria dos cumes dos Picos de Europa.

É uma das zonas de alta montanha mais

bem conservadas e menos conhecidas

da Península Ibérica, cheia de contrastes,

com lagos, circos glaciares, vales e

cumes incríveis. Sempre achei que

percorrê-los seria uma jornada

inesquecível. E foi!

57

#03

ascensão

Page 58: Revista en03

“...Curavacas, pelo Callejo Grande”

O nosso projecto inicial era o de fazer a Integral de Fuentes

Carrionas. Esta consistia em percorrer uma linha imaginá-

ria que une todo o maciço montanhoso, começando por es-

calar o Curavacas, seguindo pela Curruquilla, Hoya Contínua

e atingindo o cume de Três Províncias pelo Alto de Ves. Da-

qui, seguir até ao cume da Peña Prieta, baixando depois até

às Agujas de Cardaño. Depois continuar até ao Pico Lomas,

Pico Cuartas, Peñas Malas, Zahurdias, Pico Múrcia e final-

mente até ao Espiguete. São 35 quilómetros de itinerário

e um desnível de 3.500 metros, sem baixar praticamente

dos 2.000 metros de altitude, tendo como ponto mais alto

a Peña Prieta.

Era um desafio de grande dureza e muito ambicioso. Deci-

dimos fazê-lo em três dias, com dois bivaques pelo meio e

todo o material às costas. Contudo, para ter sucesso, ne-

cessitávamos de bom tempo, muitos líquidos (quase não

há pontos de água no percurso) e ir ligeiros. As previsões

meteorológicas para o primeiro dia eram desanimadoras:

céu nublado e alguma chuva. Tendo que carregar sacos-

-cama, colchonete, fogão, gás, comida para três dias e ma-

terial de escalada, tornou-se rapidamente evidente que po-

deríamos ter que alterar os planos. O plano B seria fazer os

três cumes mais emblemáticos deste maciço (Curavacas,

Peña Prieta e Espiguete), nos três dias disponíveis, pelas

suas vias normais.

A ascensão do Curavacas, pelo Callejo Grande, é uma as-

censão dura, sobretudo pelo desnível que é preciso vencer

(2.408 metros de acumulado). São cerca de dez quilóme-

tros de percurso (ida e volta) e quase sete horas de acti-

vidade. Deixámos o carro na bonita povoação de Vidrieros,

numa pequena praça e seguimos por um trilho, bem evi-

dente, na direcção NO. Pouco depois, mudámos para outro

trilho, na direcção N, rumo à base da montanha, cruzando

algumas linhas de água. É uma aproximação lindíssima e a

visão da face Sul do Curavacas, à medida que nos apro-

ximamos, impressiona bastante. Parece inacessível, quase

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#03

Page 59: Revista en03

vertical. Tem um tom esverdeado, “patine”, como diz a San-

dra, com um tipo de rocha a que chamamos de conglome-

rado, igual à dos Picos de Europa. São 9 horas e surgem as

primeiras nuvens no céu, tal como indicavam as previsões

meteorológicas. Olhando para o canal Sul, imaginei como

seria escalar aquela via de Inverno, com neve e gelo, de

crampons e piolets. Deve ser brutal! Lentamente, começá-

mos a ganhar altura, até desembocar no Prado de Cabriles.

Mais à frente, uma suave pendente cheia de pequenos blo-

cos escorregadios retarda um pouco a nossa progressão.

A visão do Curavacas, aos poucos, parecia menos ameaça-

dora. Senti-me mais confiante. Agora, era bem evidente a

via do Callejo Grande, que nos levaria ao cume. Percorre-

mos uma pedreira que parecia não ter fim e que era algo

difícil de ascender, com pequenas rochas brancas de vá-

rios tamanhos. Quando por fim ultrapassámos a pedreira,

encontrávamo-nos já no meio da face Sul, abrigados entre

imponentes escarpas rochosas e fomos trepando até ao

ponto onde começa o Callejo Grande. Aqui o terreno é mais

cómodo, com degraus de rocha, terra e erva, embora mais

empinado. A via continua em direcção a um enorme monó-

lito conhecido como o “Dente del Oso” que já vi em fotogra-

fias.

Apenas uns 200 metros nos separavam do passo mais

complicado desta ascensão, que nos conduziria à face Nor-

te. Fizemos um último esforço, uma trepada pequena, com

muita cautela e concentração. Depois deste passo estreito,

pudemos contemplar a face Norte da montanha e toda a

paisagem de Fuentes Carrionas que se estendia aos nos-

sos pés. Continuando, destrepámos alguns metros para

logo depois continuarmos a nossa ascensão, por um cor-

redor de cerca de 30 metros. Nesta fase, as nuvens que

ameaçavam a nossa jornada há um par de horas, começa-

vam a ficar mais escuras. Senti algumas gotas de chuva a

cair no corta-vento e uma brisa desagradável. Esta pas-

sagem era um ponto-chave da nossa ascensão e a nossa

única escapatória, em caso de mau tempo. Convinha por

isso memorizá-la muito bem. Já só nos restava percorrer

um trilho muito empinado, chamado “La Llana”, até ao cume.

Pouco depois, atingimos os 2.525 metros do Curavacas.

Nessa altura, o clima não era muito favorável aos nossos

planos. Para o lado Sul, apenas nevoeiro. Para Norte, nu-

vens e algum sol.

A passagem para a Curruquilla parecia muito complicada de

se fazer, com mau tempo a ameaçar, aquela visibilidade e

com as mochilas carregadas. Depois das fotos habituais e

de alguma vontade para percorrer a aresta, decidimos bai-

xar novamente a Vidrieros, pela mesma via da subida, aban-

donando em definitivo a ideia de uma Integral de Fuentes

Carrionas. Ao chegar à parte mais baixa do Callejo Grande,

a pedreira que tanto nos custou a subir transformou-se

em puro divertimento. Demorámos menos de 30 minutos

a descê-la. Pouco depois estávamos em Vidrieros, no café

da aldeia. Nessa mesma tarde, decidimos viajar para Car-

daño de Arriba, pensando já na ascensão da Peña Prieta,

planeada para o dia seguinte.

A ascensão da Peña Prieta não apresenta qualquer

dificuldade técnica mas é um percurso de longa duração

e exige por isso um grande esforço físico. São quase

20 quilómetros de marcha, oito horas de atividade e um

desnível acumulado de 1.710 metros. Deixámos o carro em

Cardaño de Arriba pelas 16 horas e iniciámos a subida, por

um trilho bem sinalizado, a Senda de Lomas. Passámos pelo

Refúgio de Montanha Espiguete e pouco depois cruzámos

uma ponte, iniciando uma longa marcha, em contínua

ascensão, mas com vistas maravilhosas sobre um vale

bem vincado e agreste, com o Espiguete nas nossas

costas a receber as últimas carícias de um magnífico sol

alaranjado. Não se via viva alma. Apenas nós nos movíamos.

Nós e as sombras destas montanhas que nos rodeavam.

Aos poucos, as Agujas de Cardaño iam-se tornando mais

definidas e percebi então a sua imponência. São quase 20

horas quando decidimos fazer bivaque junto a uma fonte,

na base do Pico Lomas, num local abrigado do vento. A

fadiga era muita e as falas poucas. Depois da sopa e dos

liofilizados, aterrámos literalmente nos nossos sacos-

-cama para um desligar quase automático. Dormi mal. Devia

ter enchido melhor a colchonete. Por várias vezes acordei

nessa noite, comtemplando um dos mais belos céus que já

vi na vida. Sinto pena de não perceber nada de astronomia.

Poderia nessa noite ver todas as constelações da Via

Láctea e maravilhar-me ainda mais com o que via. >>

59

#03

ascensão

Page 60: Revista en03

Aquele bivaque foi um hotel de mil e uma estrelas.

Peña Prieta

Despertámos pelas 6 horas e com os primeiros raios de

sol, começámos a percorrer um trilho bem empinado, ser-

penteando em direcção a um colo que nos iria permitir mais

tarde a passagem para trás das Agujas de Cardaño. A uma

boa centena de metros de nós vimos dois veados. Estavam

imóveis e pareciam não compreender a dificuldade que

sentimos em progredir. Para eles, esta ascensão é uma

simples brincadeira. O Pedro tirou uma série de fotogra-

fias para gravar este momento único. Nesse colo deixámos

as mochilas e lançámo-nos numa penosa descida, por uma

pedreira (mais uma), com o máximo de cuidado, para logo

depois fazer mais uma longa subida em direcção ao cume

de Três Províncias (2.499 metros), a divisória natural en-

tre Palência, Léon e Cantábria. Daqui já se avistavam os dois

cumes da Peña Prieta, também conhecida como Pico de los

Infiernos. Já estávamos bem perto! Meia hora mais tarde,

estávamos no cume da mais alta montanha deste Parque

Natural. A panorâmica é impressionante. Parecemos dis-

tantes de tudo. Havia um silêncio no ar fora do normal, ape-

nas quebrado pelo correr de um fio de água que partia de

uma pequena lagoa lá em baixo e desaparecia no horizon-

te, junto à face Norte do Curavacas. Talvez o rio Carrión,

penso eu. Estávamos os três mudos e quietos, pasmados

perante tamanha beleza. Esta montanha é única e vale mes-

mo todo o esforço realizado. Ao longe vêem-se os Picos

de Europa, o inconfundível Naranjo, a Peña Vieja, Torre de

Cerredo e muitos outros. Era hora de descer e regressar

a Cardaño de Arriba, pelo mesmo trilho. Ainda tínhamos al-

gumas horas de marcha até ao carro.

O dia seguinte era dia de Espiguete. Já tinha escalado esta

montanha em 2012, no Inverno, com muita neve, pela Ares-

ta Este (1.000 metros) e tinha sido magnífico. Desta vez, ía-

mos seguir a Via Normal ou Via Sul ou Via da Pedreira, des-

de Cardaño de Abajo. São 12 quilómetros (ida e volta), 2.430

metros de desnível acumulado e cerca de seis horas de

atividade. É um itinerário de uma dureza considerável, pelo

desnível, mas sobretudo por apresentar vários troços de

pedras soltas que dificultam muito a ascensão e tornam a

descida algo complicada. Levámos uma corda, arnês, ca-

pacete e uns mosquetões para termos mais segurança

na aresta final. Saímos de madrugada de Camporredondo

de Alba, onde dormimos, e deixámos o carro em Cardaño

de Abajo. Fizemos a primeira hora da nossa aproximação à

base do Espiguete por uma estrada de terra batida, a Nor-

te da povoação, deixando-a a dormir tranquilamente. Esta

estrada liga uma pequena localidade chamada Valverde de

la Sierra. Depois de cerca de uma hora de marcha, noite

cerrada, frontal ligado, caminhando por um denso bosque,

saímos para um pequeno prado que nos conduziu ao início

da pedreira Sul, onde assistimos a um magnífico nascer do

sol que revelou toda a beleza da face Sul desta montanha

piramidal. É preciso prestar muita atenção às mariolas, nem

sempre bem visíveis, para ganhar altura mais rapidamente.

60

#03

Page 61: Revista en03

A pedreira é um verdadeiro desafio. São toneladas de pe-

dras soltas, dois passos para cima, uma escorregadela e

assim sucessivamente. Estamos constantemente à pro-

cura de solo firme evitando resvalar pela pendente. É uma

ascensão penosa. Era inevitável pensar na descida e na di-

ficuldade que nos esperava. Aos poucos iam-se definindo

melhor o cume principal e o cume secundário. Já tinham

passado quase três horas desde que saímos de Cardaño

de Abajo. Parámos para descansar e hidratar à sombra

de uma enorme parede de rocha de pedra branca. Fomos

trepando por um canal com rocha mais firme e finalmen-

te chegámos ao colo que separa os dois cumes. Daqui a

vista da face Norte do Espiguete é impressionante. Mais ao

fundo via-se bem o Pico Múrcia, a Peña Prieta e finalmente

o Curavacas. Foi a visão mais bela da Integral de Fuentes

Carrionas que eu poderia imaginar. Decidimos encordoar

neste colo, junto a uma gigantesca mariola, para fazer a

aresta final em segurança. São cerca de 200 metros de

uma aresta muito aérea, com pendentes vertiginosas de

ambos os lados mas que fizemos sem dificuldade, até ao

cume.

O Espiguete é diferente de todos os cumes de Fuentes Carrionas. É um pico isolado de todos os outros e por isso parece ter algo de especial, exercendo sobre os montanhistas uma atracção e um fascínio difíceis de explicar. Já na descida, ao percorrer o prado na base da montanha, um enorme bando de águias veio despedir-se de nós, desenhando no ar voltas e mais voltas, num adeus que nunca esquecerei. A natureza é sempre bela e infinita e para mim, deixá- la intacta e pura, depois da nossa passagem, é o que mais importa. Serei assim digno de voltar um dia e de sentir de novo todas estas emoções.

Até breve, Montanha Palentina! <>

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ascensão

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escalada

peña prado via lago de la luna

Barrios de Luna > Junho 2013

“No sábado, dia 2 de Março de 2013, preparávamo-nos para mais um fim-de-semana de aperfeiçoamento técnico de Alpinismo.”

texto: Maria Carrondafotografia: Carlos Araújo

Desta vez, o objectivo era a escalada do Esporão Oes-

te da Peña Ubiña. Reunimo-nos como já era habitual

no Porto e fomos rumo a Espanha. Como sempre eu

estava radiante, eufórica, pois ia poder estar no meio

das montanhas e pôr em prática todo conhecimento

adquirido num ambiente belíssimo e com companheiros

fantásticos, cuja amizade se ia desenvolvendo com o

decorrer do tempo.

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#03

escalada

Page 64: Revista en03

“...sentia-me feliz, sentia que a montanha estava a aprovar...”

Chegando a Peña Ubiña fomos de imediato ver como estava

o esporão, se apresentava condições para uma escalada

em segurança. Não apresentava condições, conferenciá-

mos e resolvemos ir para as Peñas Del Prado treinar téc-

nicas de escalada de aderência, mas não sem antes passar

pelo parque de campismo para fazermos o check-in.

No domingo de manhã levantámo-nos bem cedo e fomos

até Peñas del Prado. O nosso objectivo era fazer o Via Lago

de Luna, uma parede com cerca de 240 a 250 metros, um

desafio que, confesso, nunca imaginei alguma vez fazer. Pa-

rámos o carro, carregámos as nossas mochilas, o Carlos e

o Pedro – os nossos instrutores – tiveram todo o cuidado

em dividir o material todo entre nós e lá fomos até ao colo

de Arralla. Chegando ao colo, lá estava a via à nossa direita.

Eu sentia-me feliz, sentia que a montanha estava a aprovar

os meus passos. Não me perguntem porquê, só sei que sin-

to quando ela me quer por lá… Equipámo-nos e começámos

a nossa escalada. Eu ia na cordada do Carlos Araújo e do

Zé Nunes, observava atentamente todos os passos dados

pelo meu instrutor, memorizava cada movimento, cada sa-

liência na parede, cada fissura, na tentativa de repetir logo

cada passo, pois a seguir ao monitor era a minha vez.

Passei o primeiro lanço. Correu muito bem, a minha con-

fiança ia aumentando, pensava eu que se tinha conseguido

até ao momento também conseguia o resto. A cada reu-

nião aproveitava para apreciar a paisagem, o vale que se

revelava à nossa frente era de uma beleza incalculável e

revelava-se cada vez mais encantador a cada lanço que

nos conquistávamos. Numa das reuniões apercebemo-nos

do porquê do nome daquela via: “Via Lago de Luna”. É que

daquela parede se avistava o Lago de Luna que ia apare-

cendo conforme íamos ganhando altitude, quase como se

de um jogo de sedução se tratasse. Ora, uma vez que esta-

va virada para a parede a escalar só a cada reunião se dava

o reencontro de olhares entre mim e o lago. Não resisti a

nenhum momento e deixei-me seduzir, encantar, apaixo-

nar por aquelas montanhas de cada vez que parava. Mas

nem sempre foi sedução e, como qualquer ser apaixonado,

também eu senti respeito quase no limiar do receio. Mas os

meus colegas estavam por perto e a força que me deram

ainda hoje a recordo, as palavras de coragem foram ines-

quecíveis. Recordo que num dos lanços em que a parede

ficava cada vez mais na vertical e lisa, mesmo a meio, a mi-

nha perna começou a tremer de forma incontrolável. Nunca

tinha sentido isso. E gritei: “Carlos não me consigo contro-

lar…”. Calmamente, ele respondeu: “Calma, pára, respira fun-

do, acredita em ti, faz força na perna, tu consegues…”. E as-

sim fiz, respirei bem fundo, fiz força na perna e, meu Deus,

consegui. Passei… Cheguei à reunião. Não queria acreditar…

Enquanto via os meus colegas a escalar ficava cada vez

mais encantada, eu estava a conseguir! Recordo também

de numa das passagem perguntar à minha colega Raquel:

“Mas como é que vou passar aqui? Não tenho onde pôr os

pés!”. E ela respondeu: “Olha, podes pôr aqui, aqui e aqui”.

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Page 65: Revista en03

“Só falta dizeres que a parede é toda ela um apoio!!!”, respon-

di eu, ao que ela diz: “E é!”. Era mais uma pequena dificulda-

de, mas passei. Estava fora de mim. A partir dali os lanços

já eram mais fáceis, mais um pouquinho e chegávamos ao

cume.

Maravilha, fantástica a paisagem vista dali, parecia que as

montanhas se erguiam à nossa frente para celebrarem

connosco o cume. Chegaram um a um e a alegria e satisfa-

ção invadiam os nossos corações, as nossas almas. Eter-

nizámos o momento com algumas fotografias, abraços e

sorrisos e depois toca a preparar para a descida.

A descida… Mais uma aventura se deparava à nossa frente,

mais um desafio, já que desta vez era um rapel pendular de

cerca de 60 metros. Confesso que senti um nervosinho

no fundo da barriga, mas uma vontade enorme de descer…

Embora sentisse o respeito pela montanha, sabia que ela

me entendia e que sabia da paixão que lhe tenho. De algu-

ma forma sabia, sentia a sua proteção e aprovação. Talvez

seja uma forma muito sonhadora de ver a montanha mas é

assim que a sinto. Durante a descida ainda quis parar e ficar

um pouco ali, mas seria pouco sensato e agi como o previs-

to, aplicando todas as técnicas de segurança que os meus

instrutores me ensinaram. Chegando ao solo fui descendo

lentamente enquanto os meus colegas iam descendo tam-

bém. Aproveitei para tirar algumas fotografias, eternizando

a paisagens e os momentos. Vinha feliz da vida, tinha feito

algo que nunca tinha imaginado algum dia fazer e, melhor

ainda, adorei. Na minha descida para os carros e no meu si-

lêncio, declarei à montanha a paixão que lhe tenho, o prazer

e alegria que sinto quando lá vou e prometi um dia lá voltar…

Regressámos ao parque de campismo, recolhemos as nossas tendas e voltámos para Portugal. O sorriso e satisfação estampados nos nossos rostos eram flagrantes, reflexo de um fim-de-semana fantástico com os objetivos alcançados.

Foi inesquecível. <>

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#03

escalada

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Page 67: Revista en03

escalada frecha da

mizarela via do monitor

Serra da Freita > Junho 2013

“O montanhismo com corda, a progressão em arestas e a escalada clássica são algumas das actividades mais fascinantes que se podem viver na montanha.”

texto: Álvaro Reisfotografia: Pedro Guedes

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#03

escalada

Page 68: Revista en03

“Aqui, a escalada clássica ganha o seu verdadeiro significado.”

De todas, a escalada clássica é a minha favorita. Para esca-

lar em desportiva basta uma corda simples, uns expresses,

um aparelho de segurança, dois ou três mosquetões com

fecho de segurança e uma fita. Na clássica, carrega-se ain-

da toda uma panóplia de entaladores, friends, fitas, cordas

e cordinos. A verdade é que todo este material torna-nos

mais pesados e lentos. Em geral, o grau de dificuldade téc-

nica atingido é mais baixo do que nas vias desportivas, mas

há a dificuldade de carregar todo o material e estar longas

horas na parede, por vezes sem escapatória. A escalada

clássica é a que se mantém mais fiel às origens da escalada

e a sua pureza exerce em mim uma atracção profunda, há

largos anos. Grandes vias desequipadas, ambientes natu-

rais fantásticos, cordadas em movimento, proteger a via,

colocar pontos de segurança, sentir a dificuldade da pro-

gressão, o desafio psicológico nos momentos mais arrisca-

dos e viver cada minuto como um momento irrepetível: uma

dádiva imensa da natureza.

Na Freita, vários picos ultrapassam os 1.000 metros de al-

titude e para os escaladores, a Mizarela exerce uma atrac-

ção irresistível. A sua dimensão não é descomunal, mas im-

pressiona qualquer um. As vias de escaladas são das mais

bonitas e acessíveis da região, têm uma dificuldade máxi-

ma de 6a e decorrem ao lado de uma das mais imponentes

quedas de água da Europa. Para mim, a grandiosidade deste

espaço natural é brutal. Aqui, a escalada clássica ganha o

seu verdadeiro significado.

O trilho que nos leva ao início da Via do Monitor é das aproxi-

mações mais bonitas que já fiz. Vamos sempre a descer, no

meio de densa vegetação, emaranhados por entre um caó-

tico arvoredo nas encostas da serra e, por fim, deparamo-

-nos com aquela que é uma das paredes mais emblemáticas

do nosso país. A via que vamos escalar tem aproximada-

mente 100 metros, uma dificuldade máxima de V grau e pode

ser escalada em dois ou três largos. Nós fizemo-la em dois.

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#03

Page 69: Revista en03

O primeiro largo começa à direita da cascata, numa plata-

forma onde cada um de nós espera pela sua vez e vai ob-

servando as dificuldades da via. A cerca de 15 metros do

sítio onde me encontro, vejo logo uma grande laje incrusta-

da na parede. Parece que se vai tornar a “crux” da via para

toda a gente... O Pedro escala à frente, colocando vários

pontos de segurança e rapidamente deixo de o ver. Vou

comunicando com ele via rádio e ouço por fim a mensagem

que esperava: “reunião!”. Começam então as duas corda-

das a escalar e vou relatando as dificuldades sentidas por

todos, via rádio. Depois dessa passagem mais difícil, uns

metros mais acima, encontra-se a primeira reunião, numa

pequena plataforma. Como sou o último dos escaladores,

vou retirando o material fixado pelo Pedro e, claro, já sei

que vou chegar ao final da via carregadinho como um pi-

nheirinho de Natal. Já todos estão de pé numa estreita pla-

taforma junto à reunião, onde cabem mesmo à justa, quando

chego ansioso por dar aquele pulo final que me coloca junto

aos meus companheiros de cordada e dar finalmente des-

canso aos meus pezinhos. Naquela hora, amaldiçoo aqueles

que me disseram para comprar pés-de-gato dois números

abaixo do que eu calço habitualmente!

São 11 horas e já está muito calor. Felizmente, sentem-se

na cara os salpicos gelados da magnífica queda de água.

Descalço, sentado na plataforma, procuro o meu cantil para

beber água e observar a paisagem incrível que nos rodeia.

Deve ser esta a magia que fascina toda a gente na Miza-

rela, penso eu. É chegar a uma reunião, entalados naquele

desfiladeiro escarpado, tão minúsculos ao lado da imponen-

te cascata que assume todo o protagonismo desta serra e

sentir um arrepio ao ver a força das águas que se preci-

pitam violentamente em direcção ao vazio lá em baixo… E ali,

pendurado na parede, tenho a melhor panorâmica da região

que se pode imaginar. Daqui vejo a serra como ninguém vê,

com os seus enormes blocos de granito, as várias linhas de

água a correr para o rio Vouga, trilhos antigos de pastores,

rodeados de pinheiros, carvalhos e medronheiros e um

manto de plantas e arbustos rasteiros, urze, giestas, car-

queja, um intenso colorido que transforma estas encostas

numa paisagem de sonho. Foi a procura destas sensações,

que não consigo traduzir neste texto, a procura deste des-

lumbramento que me trouxe aqui…

O segundo largo é bem agradável. São muitos metros de

escalada, mas sem grande dificuldade técnica. Uma série

de lajes, blocos, alguma pedra solta e suja, uma série de de-

graus com muita terra e ervas cheias de picos. A queda de

água é uma presença constante e a altura começa a sentir-

-se, bem como o abismo nas nossas costas e a força da

gravidade que parece querer empurrar-nos para um ter-

rível mergulho. Embora a comunicação da cordada fosse

bastante difícil, pelo barulho da água, o vento e a distância,

lá nos entendemos e chegámos por fim a uma reunião mon-

tada num pinheiro e em friends, no fim da via. Juntaram-se

nessa altura a fome e a fadiga e por isso foi só tempo de

dobrar as cordas e procurar uma sombra para a merenda.

A Via do Monitor na Mizarela é sem dúvida uma via obrigatória. Foi para mim uma via de grande aprendizagem. Muitas outras se seguirão. Quem alinha? <>

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#03

escalada

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ascensão agulha do tour, tete blanche e petit fourche Alpes > Junho 2010

“Escrever um texto sobre uma actividade que ocorreu há já bastante tempo tem o seu quê de piada.” texto: Raquel Carvalhofotografia: Oldemiro Lima

Esta em concreto passou-se há

cerca de três anos e é giro verificar

que a minha memória guardou mais

informação do que eu estava à espera.

Regresso agora a 2010.

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#03

ascensão passada

Page 72: Revista en03

“... e agora não há volta a dar...”

É a minha primeira actividade nos Alpes. Após ter feito o

curso de alpinismo nunca pensaria em embarcar numa

aventura destas assim tão cedo. Mas aconteceu e agora

não há volta a dar… É a primeira actividade nos Alpes e há

muita (mas mesmo muita) ansiedade; é a primeira activida-

de nos Alpes e surgem mil e uma questões que teimam em

colocar os meus neurónios em actividade extrema; é a pri-

meira actividade nos Alpes e não sei o que hei-de levar; é

a primeira actividade nos Alpes e não sei o que pensar; é a

primeira actividade nos Alpes e esperam-me três dias num

refúgio; enfim, é a primeira actividade nos Alpes e há toda

uma panóplia de emoções à flor da pele.

Dormi mal e questiono-me se terei sido a única a tocar ao

de leve no mundo dos sonhos. Mas agora é tempo de me

despachar de modo a estar pronta à hora marcada. O ponto

de encontro é na porta do prédio, de modo a podermo-nos

dirigir para a paragem do autocarro que nos ia conduzir a

Le Tour. A primeira “aventura” seria a subida até ao refúgio

Alberto I. Claro que o Homem inventou uma coisa fantástica

que dá pelo nome de teleférico, mas para nosso azar está

fechado e não há mesmo outra alternativa para subir a não

ser ir na carrinha do Armando: um pouco a pé, um pouco

andando. Está calor, o peso da mochila parece puxar-me no

sentido oposto ao da marcha e estou pela primeira vez na

vida com botas de alta montanha nos pés e ainda me estou

a habituar a andar com elas. Por tudo isto vou indo devagar,

devagarinho. Temos tempo e o objectivo é chegar lá aci-

ma e não ser o primeiro a fazê-lo. Vou fazendo paragens

pelo caminho para descansar, observar a paisagem, comer

e beber qualquer coisa. O trilho que inicialmente não des-

pertara qualquer interesse sobre a minha pessoa começa

a agradar-me à medida que a altitude sobe e o ar se torna

mais fresco. O horizonte começa a alargar-se e a vista das

montanhas é fantástica. Há campos verdejantes, há nevei-

ros, há montanhas, há neve, há uma moreira glaciar, há um

rio a correr lá em baixo, enfim, observo tudo o que uma

pessoa pode imaginar que existe nos Alpes. Passado um

bom bocado de tempo (que de distância percorrida até nem

deve ser muita) vislumbro o refúgio. Ainda está muito lon-

ge e está rodeado de neve. Estou cansada, penso que ain-

da falta muito para lá chegar. Apetece-me descansar por

um bom período de tempo mas não tenho outra alternativa

se não continuar a caminhar e a fazer pequenas paragens

para descansar, comer e beber. Finalmente chego ao re-

fúgio e no meio daquela gente toda, da confusão para ir ar-

ranjar um caixote onde tenho de deixar as minhas coisas e

de encontrar um par de chinelos que me sirva para trocar

pelas minhas botas, sinto-me completamente perdida. Ago-

ra a prioridade é descansar e hidratar até à hora de jantar,

pelo que uns se vão deitar enquanto outros aproveitam as

mesas da “esplanada” do refúgio. Talvez por estar ali pela

primeira vez há uma série de coisas que hoje me recordo

bem. Uma delas foi mesmo o que comi ao jantar: sopa de

cogumelos de pacote (há quem diga que era caseira mas os

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Page 73: Revista en03

grumos de pó que encontrei na mesma não me deixam

partilhar dessa opinião) e um empadão de carne (que es-

tava mais frio que quente). Outro pormenor interessante e

que ficou retido na minha memória é o facto do padrão dos

edredões ser igual às fronhas das almofadas (e ainda hoje

é). Deixo a mochila arrumada de véspera: o que é para levar

vai na mochila; o restante fica dentro do “tal” caixote no re-

fúgio e deito-me cedo. Aqui o provérbio “deitar cedo e cedo

erguer” é levado à séria! Dormir numa camarata tem sem-

pre o seu “quê” de interessante: há sempre um concerto

de “ressonares” (uns são quase imperceptíveis e outros

vêm directamente do inferno, sendo capazes de provocar

avalanches); há sempre quem esteja a falar e há quem leia.

Assim sendo, para se dormir nada mais fácil do que possuir

uma capacidade de abstracção fora do normal (e uns bons

tampões para os ouvidos).

“A subida até ao

Col Superieur du Tour...”

Já não me recordo das horas a que me levantei mas uma

coisa é certa: ainda era de noite. Quando saio do refúgio

não consigo perceber se vai estar frio ou não. Decido que o

melhor é ir agasalhada e caso seja necessário tiro ou visto,

consoante o caso, camadas de roupa. Vou caminhando

pela neve e devido à matinal hora ainda me encontro um

tanto ou quanto adormecida. Está escuro mas consigo ter

a percepção de que do meu lado esquerdo estão várias

montanhas e que do meu lado direito está o glaciar do Tour.

Ao longe vêem-se as luzes de vários frontais das pessoas

que andam por ali. Caminham umas atrás das outras e ainda

são umas quantas; poderia dizer-se que é hora de ponta

naquele local. O caminho que inicialmente era pouco inclinado

passa a ter uma inclinação mais significativa (ou então

sempre foi assim e agora estou mais desperta e apercebo-

me melhor da realidade). Vamos fazendo pequenas paragens

onde aproveito para beber água pelo tubo do camelback e

comer as barras que inteligentemente coloquei nos bolsos

antes de sair do refúgio. O dia vai amanhecendo e como não

há nuvens nem nevoeiro consigo observar a paisagem que

me envolve. Estou rodeada por uma imensidão de neve e

as montanhas que se encontram mais ou menos longe são

imponentes; no meio daquilo tudo sinto-me uma formiga.

A subida até ao Col Superieur du Tour é mais acentuada

e é altura de mudar os encordoamentos. Vamos subindo

a um ritmo mais lento. Quando acaba a subida é tempo de

descansar e comer algo mais substancial. Fazemos uma

paragem mais prolongada, o sol da manhã já se encontra

mais alto dando à paisagem uma tonalidade completamente

diferente, tornando-a ainda mais apelativa. Neste exacto

momento estamos algures entre a fronteira francesa e a

fronteira suíça. A Agulha do Tour não se encontra já ali ao

virar da esquina e portanto há que meter mãos (neste caso

pés) ao caminho e continuar. Seguimos por um trilho entre

as pendentes de neve e o glaciar do Trient até chegarmos

a um maciço rochoso. Agora é necessário subir por ali

para se chegar ao cume. Na altura tinha medo de escalar

e observar o aglomerado de rocha que se encontrava à

minha frente causou em mim algum receio. Pensei que

era algures ali no meio que iria ter um ataque de pânico

e que as lágrimas me iriam cair. Respirei fundo e avancei;

o caminho era para cima. Há quem diga que o que custa

é começar e talvez seja mesmo isso. À medida que ia

progredindo na rocha e me ia sentindo mais confiante fui

esquecendo os receios que me assombravam ainda há

uns momentos. Fomos subindo e finalmente chegámos ao

cume. Era o primeiro feito nos Alpes e encontrava-me à

maior altitude que alguma vez tinha estado. A sensação de

ser uma formiga persistia em mim mas agora sentia-me

uma formiga a 3.544 metros de altitude. O horizonte era

bem largo e conseguia observar uma série de cumes; uns

mais perto, outros mais longe. Encontrava-me por cima de

algumas nuvens e havia um manto branco de neve lá em

baixo. Conseguia observar o glaciar do Tour de um lado e

o glaciar do Trient do outro. Tiram-se várias fotografias e

até eu, que odeio andar com máquinas atrás e carregar no

botão de modo a captar certos e determinados momentos,

resisto ao meu instinto natural e registo em modo digital a

paisagem que me rodeia. Temos de esperar pelas outras

cordadas e enquanto o fazemos aproveito para comer e

beber mais qualquer coisinha. Quando chega toda a gente

é altura de se tirar a fotografia da praxe para depois se

começar a descer. Fui das primeiras a chegar e vou ser

das últimas a sair; e para sair vou ter de destrepar tudo

o que subi até ali. Penso para mim que se consegui subir

sem “panicar” também vou conseguir descer. Dito e feito.

Passado um tempo encontro-me novamente na neve e

não houve lágrimas a saltarem-me pelos canais lacrimais.

Agora é descer sempre pela neve até ao refúgio. Graças a

uma aposta sobre as horas a que chegaríamos ao mesmo,

a descida foi realizada a um ritmo deveras interessante.

Sei que vencemos a aposta mas a única coisa que me

recordo de ter ganho foi mesmo cansaço, umas bolhas nos

calcanhares e – a parte mais importante – a felicidade de

ter superado a minha primeira ascensão nos Alpes. Agora

é tempo de arrumar material e descansar, já que no dia

seguinte há mais um cume para fazer. >>

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#03

ascensão passada

Page 74: Revista en03

“Já estamos perto do cume...”

Na segunda noite devido ao cansaço acumulado e à

adaptação ao ressonar dos outros acabei por dormir

muito melhor. Mais uma vez acordo cedo e constato

que ainda é de noite. O ritual do dia anterior repete-se: a

mochila já estava preparada de véspera, tomo o peque-

no-almoço, lavo a cara e os dentes. Hoje o objectivo é

o cume da Tete Blanche e da Petite Fourche. O caminho

inicial é igual ao do dia anterior. O dia começa a clarear

e quando as nuvens o permitem é possível observar

o cume que iremos fazer e o glaciar que teremos de

atravessar. As crevasses encontram-se cobertas pela

neve e seguimos pelo trilho já marcado. Ao mesmo que

me desloco sobre o glaciar, vou olhando para o cume

e traço uma linha recta até ele, dando-me a sensação

que talvez não esteja assim tão longe. No entanto, como

há obstáculos a contornar (nem que seja uma pendente

de neve mais inclinada), o caminho torna-se muito mais

longo e a linha recta traçada ingenuamente transfor-

ma-se num trilho de curvas e contracurvas. O cansaço

acumulado dos dias anteriores começa a fazer efeitos

e vou caminhando ao ritmo que o meu corpo me per-

mite. Mais uma vez as pequenas paragens fazem com

que consiga descansar um pouco, beber água e, lá está,

comer. Já estamos perto do cume e falta “apenas” ul-

trapassar uma pendente de neve e uns blocos de rocha.

Vou subindo e ao mesmo tempo que me vou aproximan-

do vou interiorizando que “se consegui ontem, também

vou conseguir hoje”. Já me encontro junto aos mesmos

e sem hesitar começo a subir. Há uma passagem de

maior dificuldade e, por muito que coloque os pés nos

sítios que desejo, escalar de crampons também não é

tarefa fácil. No entanto, e graças à minha persistência,

consigo vencer o obstáculo e chegar ao cume. É nes-

te preciso momento que os meus sensores olfactivos

detectam um cheiro familiar – cheira, e muito, a cerveja.

Parecia que tinha acabado de terminar ali mais uma noi-

te da Queima. Ultrapassado este impacto inicial é tempo

para apreciar a paisagem que me rodeia. Infelizmente

neste dia o sol encontrava-se atrás de um manto de

nuvens e só de vez em quando é que consigo dar uma

espreitadela por entre as mesmas. Quando isso acon-

tece observo por breves momentos a paisagem que

se encontra mais distante. Mais uma vez sinto-me uma

pequena formiga; estou naquele cume mas há outros

mais ou menos imponentes à nossa volta. Após toda a

gente chegar lá em cima, repete-se mais uma vez a foto

da praxe antes de regressarmos ao refúgio. Durante a

descida, o sol já ia alto e a neve encontrava-se fofa. Os

meus pés enterram-se na neve a uma maior profundi-

dade do que o expectável e há um glaciar para atraves-

sar. Talvez por inconsciência ou por estar a absorver

tudo o que me rodeava e todas as sensações novas

que estava a viver naquele momento, a passagem pelo

mesmo não me causou grande preocupação. A descida

foi feita com a celeridade que era possível, mas antes

ainda subimos ao cume da fácil Tete Blanche. Quando

finalmente coloco os pés no já conhecido trilho que nos

leva até ao refúgio sinto-me aliviada. A actividade esta-

va a terminar e poderia finalmente descansar nem que

fosse por breves momentos.

Chegamos ao refúgio e, antes de arrumar tudo na mo-

chila e preparar-me para a descida até Le Tour, bebo

uma coca-cola de modo a ganhar energia. A mochila

agora pesa um pouco menos pelo facto de ter ingeri-

do a comida que levava para os três dias de actividade.

Vou descendo pela neve ao mesmo tempo que pensava

que agora ia custar menos. Mas os meus pensamentos

revelaram-se completamente falhados: enquanto des-

ço pela neve tudo bem, mas assim que coloco os pés

em solo firme começo a sentir as bolhas que tenho nos

calcanhares e que entretanto já rebentaram. Cada vez

que dou um passo sinto dor e a prova de que me cus-

ta a andar é que a determinado momento escorrego e

não me consigo equilibrar, pelo que caio. Pronto, tenho

dores nos pés e ainda há muito para andar (e um auto-

carro para apanhar), ameaça chover e já tenho o imper-

meável vestido, e agora a cereja no topo do bolo é ter

caído em cima de água e sentir o rabo e as pernas mo-

lhadas – que bom! Vou andando ao mesmo tempo que

tento abstrair-me da dor que sinto. Para tal, vou obser-

vando a paisagem que me rodeia e penso na panóplia

de sensações e superações pessoais por que passei

durante estes dias.

Continuo a descer, mas agora também já me começam

a doer os joelhos pelo que ando cada vez mais devagar.

Faço uma pequena paragem junto ao teleférico (que ob-

viamente e para meu azar continua fechado) antes da

última descida e só me apetece continuar eternamen-

te sentada e dizer: “Desisto! Venham-me buscar”. Para

ajudar à festa começa a chover. Como sei que não pos-

so ficar ali e não me surgem outras alternativas, levan-

to-me e sigo caminho. Perante as condições adversas,

a minha força anímica cai drasticamente e começo a

questionar o que é que estou ali a fazer, que o alpinismo

afinal não é coisa para mim, que não precisava de estar

ali a sofrer, que podia estar mais confortável e passar

esta semana de férias de modo diferente. Mas não… Fui

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Page 75: Revista en03

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Page 76: Revista en03

de livre arbítrio para ali e agora tinha que arcar com as

consequências, sejam elas quais forem. Assim que vislum-

bro o fim da descida, foi como se tivesse visto a luz ao fun-

do do túnel (e não, não era um camião que vinha na minha

direcção) e ganho novamente ânimo. Começo a interiorizar

tudo o que se tinha passado durante aqueles três dias. Ti-

nha feito duas ascensões: as minhas primeiras nos Alpes.

Durante as mesmas tinha sentido cansaço, receios e algu-

ma adrenalina, tinha superado obstáculos que nunca pen-

saria que iria superar e sentia-me muito contente por isso.

Finalmente estou de regresso ao apartamento, estou encharcada, estou cansada, tenho uma fome do tamanho do mundo e preciso de um banho relaxante. Tenho os calcanhares em carne viva devido às bolhas que rebentaram e que me irão incomodar nos restantes dias chegando mesmo a dar-me um andar à Robocop. Mas, por muito incrível que pareça, estou feliz.

O bichinho do alpinismo já tinha sido despertado em mim aquando do Curso de Iniciação, mas depois destes três dias de actividade acordou mais um pouco. As sensações que tenho durante estas actividades são indescritíveis e só quem passa por elas é que sabe do que estou a falar. Custa sair da nossa zona de conforto mas assim que o fazemos não queremos outra coisa. Assim sendo, venham mais dias de actividades como esta!

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Page 77: Revista en03

Programas exclusivos:

> Uma vez por mês uma actividade diferente (workshop, apresentação, sessão, actividade em montanha...)

> Expedições exclusivas

> Um encontro anual para convívio e partilha de ideias entre alunos

> Benefício de descontos em venda especial na nossa loja

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> Dicas para as tuas actividades

Inscrições:Inscreve-te numa formação da Espaços Naturais e passas a fazer parte do Clube de Alunos. Aproveita as Vantagens!

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