Revista de Filosofia FAPAS
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Vol. 08 | N. 14 | 2014 ISSN 1984-0519
Revista Frontistés – Faculdade Palotina
www.fapas.edu.br/revistas/frontistes
O ESTUDO DA NATUREZA (PHYSIOLOGIA) E DA NATUREZA HUMANA COMO
CONDIÇÃO PARA UMA VIDA EM ATARAXIA SEGUNDO EPICURO E O
EPICURISMO
Rogério Lopes dos Santos*
Resumo: Apostando em uma instrução filosófica voltada para a garantia da ‘vida boa’,
Epicuro afirmava a necessidade do (re)conhecimento da Natureza (fosse ela enquanto φύσις,
fosse enquanto natureza humana). Nesse sentido, postulou como fim (τέλος) da ação humana
a conquista da ataraxia (ἀταραξία) – entendida como a completa ausência de dor (física ou
psíquica). Para Epicuro, a necessidade desse (re)conhecimento da natureza humana (sempre
pensada de forma subjetiva; ‘sem mestre’) surgia na medida em que, somente após tal
reflexão sobre si mesmo – sobre a sua condição humana – é que os indivíduos seriam capazes
de discernir de forma correta acerca de qual e de quanto prazer seria naturalmente viável
almejar. O mesmo pode-se dizer acerca da investigação teórica da Natureza enquanto physis
(physiologia). Segundo Epicuro, tal estudo só adquire algum sentido se ela se transforma em
sabedoria prática: investiga-se a Natureza no intuito de dissolver mitos e, dessa forma,
alcançar o estado de ataraxia. A presente análise tem, portanto, o objetivo de esclarecer de
que modo Epicuro guiou sua Filosofia com vistas à ataraxia a partir das considerações acima
mencionadas.
Palavras-chave: Epicuro. Physiologia; Ataraxia; Prazer.
The investigation of Nature (physiology) and nature human while condition for a
life in ataraxia according Epicurus and epicureanism
Abstract: Epicurus thought the philosophical education as a guarantee of a “good life” and
therefore Epicurus asserted the need for a recognition of Nature (as well φύσις, as human
nature). Therefore Epicurus asserted that the purpose (τέλος) of human life was to achieve the
ataraxia (ἀταραξία) – understood as the complete absence of pain (physical or psychological).
For Epicurus the need for recognition of human nature (always thought subjectively; “without
master”) became possible after a reflection on yourself – about the human condition – the
* Graduado em Filosofia (Licenciatura - 2009/2012) pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Acadêmico
do Programa em Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail:
2 Revista Frontistés – Faculdade Palotina | Vol.08 | N.14 | 2014 | ISSN 1984-0519
O estudo da natureza (physiologia) e da natureza humana como condição para uma vida em
ataraxia segundo Epicuro e o epicurismo
Rgério Lopes dos Santos
individuals to discern which and how much pleasure it would naturally viable crave. The
same thing can be said about the theoretical investigation of Nature while physis (physiology).
For Epicurus the study of Nature only has any meaning if it is transformed into practical
knowledge: Nature investigated in order to dissolve myths and, therefore, achieve the
ataraxia. Thus, our analysis has the intention to clarify that Epicurus so directed its
Philosophy in order to ataraxia from the above considerations.
Keywords: Epicurus. Physiology. Ataraxia. Pleasure.
Considerações iniciais
O objetivo da presente análise é apresentar de que modo a ataraxia (ἀταραξία) surge
como fim (τέλος) da ação humana no raciocínio empregado por Epicuro. O percurso a partir
do qual esse objetivo será alcançado é a investigação, tanto do que diz respeito ao estudo
teórico de Epicuro acerca da Natureza (physiologia) quanto da natureza humana. Em um
segundo momento, a partir de alguns esclarecimentos sobre o conceito ataraxia, também nos
propomos a relacioná-lo com outro conceito chave na Filosofia epicurista. A saber: o conceito
de ‘prazer’ (ἡδονή - hêdoné), pois, ao que nos parece, na medida em que a própria palavra
ἀταραξία exprime uma ideia de privação daquilo que perturba a mente humana, ela se mostra
necessariamente relacionada com as considerações acerca do ‘prazer’, visto que o prazer
consta entre as inclinações humanas que, tanto em seu excesso quanto na sua falta, impede os
homens de vir a atingir a ataraxia.
1 Physiologia em Epicuro
A Física de Epicuro (sob os termos de uma physiologia, ou seja, enquanto estudo
teórico da Natureza; φύσις – physis) tinha por base as considerações filosóficas de Demócrito
(460 a.C. – 370 a.C.), pois, para ambos os filósofos, tanto o átomo (ἄτομος) quanto o vazio
(κενός) seriam os princípios geradores de todas as coisas. Isso não significa, entretanto, que
Epicuro apenas “reproduziu” a concepção filosófica de Demócrito (e Leucipo)1, mas sim,
significa apenas que Epicuro partiu dos mesmos pressupostos teóricos, os quais, como
veremos, definitivamente tomaram novos rumos. Dito isso, passamos então às considerações
1 Embora seja com as concepções físicas de Demócrito que aqui iremos trabalhar, é digno de menção que a
teoria dos átomos, segundo Diógenes Laércio, foi apresentada primeiramente na história da Filosofia por
Leucipo: “Leucipo foi o primeiro a afirmar que os átomos são os primeiros princípios das coisas” LAÉRCIO
(2008).
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O estudo da natureza (physiologia) e da natureza humana como condição para uma vida em
ataraxia segundo Epicuro e o epicurismo
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de Epicuro acerca de sua Física na tentativa de, não apenas deixar em evidência as
divergências e convergências entre ele e Demócrito, mas também apontar para os caminhos a
partir dos quais Epicuro se serviu para pensar o estudo da Natureza (φύσις) como garantia da
conquista da ataraxia.
Analisando as considerações de Epicuro temos o raciocínio segundo o qual “nada pode
vir do nada” (oudèn gínetai ek tou mè óntos), visto que do nada, nada pode surgir. Nesse
sentido, Epicuro atribui aos átomos as características de ‘eternidade’, ‘indivisibilidade’ e
‘imutabilidade’, buscando demonstrar que são os compostos atômicos que se dissolvem,
nunca os átomos (ou σῶμα) eles mesmos2. O raciocínio epicureu seria o seguinte: “Se aquilo
que desaparece perecesse e se resolvesse no não-ser, todas as coisas estariam mortas, pois não
existiria aquilo em que deveriam resolver-se” (LAÉRCIO, 2008, X, 39). Aqui está implícito,
portanto, que o princípio de todas as coisas é de natureza corpórea, uma vez que todos os
corpos compostos seriam constituídos de átomos e se dissolveriam em átomos.
Os átomos seriam infinitos, assim como o ‘vazio’ (kenón) e o ‘todo’ (tó pan). Aliás,
Epicuro concebe tanto os átomos quanto o vazio como os princípios a partir dos quais tudo se
forma
Além dos corpos e do vazio nada pode ser apreendido pela mente e nem concebido
por si mesmo ou por analogia, já que os corpos e o vazio são considerados essências
inteiras e seus nomes significam, por isso, essências realmente existentes e não
propriedades ou acidentes das coisas (LAÉRCIO, 2008, X, 40).
Somente os átomos e o vazio teriam uma realidade em si mesma, ou seja,
independentes de qualquer outra coisa. Eles são as condições da possibilidade do surgir dos
fenômenos. É nesse sentido que Tito Lucrécio (99 a.C. – 55 a.C.) afirmará que: ‘Tudo aquilo
que tem um nome, encontrá-lo-ás ou inerente a uma destas coisas [o átomo e o vazio] ou
como acidental’ (LUCRÉCIO, 1973, 1, vv. 450). Quer dizer: a) ou, os fenômenos participam
de tal forma dos átomos e do vazio que, ao se retirarem (os átomos e/ou o vazio), os
fenômenos deixam de ser o que são, como, por exemplo, o peso dos corpos e o calor do fogo;
b) ou, os fenômenos participam dos átomos e do vazio de modo meramente acidental, de tal
forma que, ao se retirarem (os átomos e o vazio) eles não são alterados em suas propriedades.
Desse modo, o epicurismo visa mostrar que tudo o que existe provêm dos átomos e do vazio.
2 Epicuro deixa claro essa distinção entre átomo (ἄτομος) e ‘composto atômico’ ao fazer a seguinte afirmação:
“σωμάτων τὰ μέν ἐστι συγκρίσεις, τὰ δ᾽ ἐξ ὧν αἱ συγκρίσεις πεποίηνται” (dos corpos (σωμάτων) alguns são
compostos, outros são os elementos dos quais esses corpos compostos são feitos) LAERTIUS (1925).
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Sobre esse conceito de vazio (kenón) do qual fala Epicuro, Malcom Schofield (1994)
na obra Os Filósofos Pré-socráticos faz as seguintes considerações a partir da tradição
atomista: apesar do ‘vazio’ ser identificado como aquilo que não é, Demócrito lhe concedia
existência, tal como faz Epicuro. Na tentativa de compreender esse paradoxo, Schofield
arrisca uma interpretação
Talvez a sua ideia fosse a de que, quando um lugar não está ocupado por o que quer
que seja, então, na medida em que o ocupante – “o vazio” – é nada, não existe, mas
na medida em que ocupa um lugar, existe (SCHOFIELD, 1994, p. 438-439).
Aparentemente, tal interpretação não está longe do que Epicuro afirmava, visto que
seu raciocínio empregado para justificar a existência do vazio é a de que, caso ‘o vazio não
tivesse uma existência real, nada haveria em que os corpos pudessem estar, e nada através de
que eles pudessem mover-se, como parece que se movem’ (LAÉRCIO, 2008, X, 40). Quer
dizer, inferimos a realidade do vazio na medida em que ele é a explicação do motivo pelo qual
os corpos podem se mover. Se os corpos não se movem, é porque não há vazio que permita tal
ação.
Com relação ao ‘todo’ (tó pan), Epicuro afirma que ele deve ser entendido como
infinito, uma vez que não se vê em confronto com outra coisa, como é a característica de tudo
aquilo que é finito. Por não haver esse confronto e, portanto, extremidades, o ‘todo’ não tem
limites. Pelo contrário. O ‘todo’ é ilimitado. Nesse sentido, Epicuro continua: ‘Mas, o todo é
infinito também pelo número enorme de corpos e pela grandeza do vazio’ (LAÉRCIO, 2008,
X, 42). De fato, uma vez que concebeu o vazio e os átomos como infinitos, Epicuro não
poderia colocá-los em um ‘todo’ finito. Quanto à infinidade do vazio, segundo Epicuro, ela é
necessária na medida em que os átomos também são infinitos, pois se o vazio fosse infinito e
os átomos finitos, os átomos se moveriam continuamente dispersos pelo vazio infinito sem a
possibilidade de agrupamentos e formação de massas (LAÉRCIO, 2008, X, 42). E se o vazio
fosse finito e os átomos infinitos, o movimento seria impossível, visto que os átomos não
teriam lugar onde estar.
No que diz respeito aos átomos, Epicuro sustentava que eles possuíam três qualidades
para além daquelas citadas anteriormente (eternidade, indivisibilidade e imutabilidade).
Seriam elas: forma (schématos), tamanho (megéthous) e peso (bárhous), que, ao contrário do
que ocorre com os corpos compostos, não são passíveis de alterações, visto que os átomos são
imutáveis. Deve-se ressaltar, porém, que embora todos os átomos tenham essas três
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qualidades, nem todos eles possuiriam a mesma forma, tamanho e peso: “cada um possui sua
própria massa e configuração próprias” (schematismous idíous), diz Epicuro (LAÉRCIO,
2008, X, 54), de modo a explicar a variedade dos fenômenos. Entretanto, para Plutarco (45
d.C. – 120 d.C.), em sua obra intitulada Contra Colotes, da afirmação de que os átomos
seriam imutáveis, cuja origem remonta a Demócrito, qualquer possibilidade de se pensar algo
fora daquilo que lhe é atribuído como parte de sua natureza seria aniquilada.
A crítica de Plutarco a Epicuro tem como fundamento uma indisposição ainda com os
princípios teóricos elaborados por Demócrito, e são apresentadas com a seguinte lógica:
Demócrito, assim como Epicuro, considerou os átomos como elementos imutáveis,
inviabilizando qualquer defesa acerca de uma possível geração das qualidades (cores, por
exemplo). Como algo que é imutável, e, portanto, inalterável, impossível de ser modificado,
poderia vir a gerar coisas dotadas de características as quais não pertencem à sua natureza?
(PLUTARCO, 2004, 1111b, p. 61). Plutarco negaria qualquer tipo de defesa que siga a linha
de raciocínio apresentada por Bailey3, ou seja, de que seria o modo como os átomos estariam
dispostos (arranjados) o motivo pelo qual as coisas da Natureza existem de forma diferente
daquilo que o átomo – considerado em si mesmo – é. Contudo, esse é o raciocínio que impera
dentro do ‘sistema’ da Filosofia de Epicuro. Na verdade, para além do ‘modo’ a partir do qual
os átomos se arranjam está o ‘motivo’ pelo qual eles se arranjam.
Epicuro postula que seria impossível que a variedade ilimitada dos fenômenos
derivasse de um número limitado das mesmas figuras4, de modo que certamente haveria entre
os átomos uma variedade de formas (ou ‘figuras’)5 que possibilitam o seu arranjo, fazendo
então surgir os diversos fenômenos. Dentre essas diversas formas, o numero de átomos cujas
formas são semelhantes devem ser tomados como infinito, visto que, do contrário, a
‘variedade ilimitada dos fenômenos’ seria impossível, contradizendo assim a experiência.
Para Epicuro e o epicurismo vale sempre o pressuposto segundo o qual a realidade pede por
explicações que não contradigam essa mesma realidade. É com base nesse pressuposto que,
para Epicuro, a variação na forma dos átomos ocorre encerrada dentro de certos limites,
3 Na verdade, a discussão realizada por Bailey a qual fazemos referência aqui diz respeito ao modo como
poderíamos pensar a possibilidade da sensação a partir da relação entre o organismo humano e a ψυχή (psychê)
segundo os preceitos de Epicuro. Citamos Bailey devido ao fato de que ambas as discussões giram em torno da
possibilidade dos átomos produzirem, tanto ‘nos’ compostos atômicos, quanto ‘os’ próprios compostos
atômicos, características das quais os átomos, eles mesmos, não são dotados naturalmente. BAILEY (1964). 4 Seguimos aqui Mário da Gama Kury que traduz squemáton por figura. R. D. Hicks traduziu a mesma palavra
por shapes. LAÉRCIO (2008). 5 Entretanto, a diversidade das formas não se estende ao infinito “apesar de serem ilimitadas diante da
capacidade de nossa mente” LAÉRCIO (2008).
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levando-o a admitir uma infinidade de átomos semelhantes para que se possa pensar o surgir
dos fenômenos6.
Seguindo os passos de Epicuro quanto à afirmação da possibilidade finita de junção
dos átomos, ou, dizendo de outro modo, da possibilidade restrita de junção dos átomos,
Lucrécio busca colocar em crise aquele pensamento mítico-religioso que fantasiava criaturas
como sereias e centauros e que tanto aterrorizava os homens de pouca ou nenhuma instrução.
Uma vez que a possibilidade de junção dos átomos se restringe à sua semelhança, os átomos
que constituiriam um cavalo (no caso, por exemplo, de um centauro) não poderiam jamais se
unir com átomos que compõem os seres humanos7. O motivo dessa preocupação de Lucrécio
para com o imaginário dos homens de pouca instrução é fruto de uma preocupação
tipicamente epicurista, a saber, apresentar meios puramente racionais (que exigem, entretanto,
um nível de esforço intelectual humanamente possível a qualquer um que deseja, de fato, se
dedicar ao filosofar) para a explicação do que pode e do que não pode vir a existir. Nessa
preocupação se expressava o intuito de fornecer aos homens um conforto, um ‘bem estar
mental’ para que, dessa forma, fosse possível o gozo de paz e ‘felicidade’ (εὐδαιμονία).
Toda reflexão realizada pelos epicureus deveria ser voltada a esse ‘bem estar mental’.
Em uma palavra, toda a Filosofia de Epicuro teria como objetivo a ataraxia (ἀταραξία), a qual
é entendida aqui, como a condição primordial para se atingir o que chamamos de ‘bom
ânimo’. A partir desse ponto, passamos então à análise do conceito ataraxia com o objetivo
de apontar para alguns problemas que sua tradução implica. Das considerações retiradas dessa
análise passaremos, enfim, à demonstração do modo segundo o qual podemos pensar a
relação entre a ataraxia – enquanto fim (τέλος) da ação humana – e a busca pelo ‘prazer’
enquanto hedonê (ἡδονή).
2 Ataraxia e ‘prazer’ (ἡδονή) em Epicuro
6 Nesse ponto, Lucrécio faz a seguinte afirmação: “[...] assim como todas as coisas, por sua natureza, diferem
entre si, assim também se deve compor cada uma de elementos diversos, não porque sejam poucas a terem as
mesmas formas, mas porque em geral os conjuntos não são iguais. Como os germes são distintos, têm também
de ser diferentes os intervalos, as trajetórias, as ligações, os pesos, os choques, os movimentos, os encontros, que
não só diferenciam os seres vivos mas também distinguem as terras e o total do mar e separam das terras todo o
céu”. LUCRÉCIO (1973). 7 “Mas não houve centauros nem podem em tempo algum existir conjuntos de dupla natureza e de dois corpos,
formados de membros díspares, nem haver forças desiguais. E qualquer o pode reconhecer pelas razões
seguintes, mesmo que seja de espírito obtuso. Primeiro, ao fim de cerca de três anos, está o cavalo em pleno
vigor, mas não o está uma criança; mesmo nesta idade, procurará em sonhos a ponta do seio que o amamentou.
Depois, quando o cavalo começa a não ter já as mesmas forças vigorosas por causa da idade e lhe falham os
membros e o deserta a fatigada vida, então floresce para o menino o tempo da sua juventude e lhe veste as faces
uma branda penugem” LUCRÉCIO (1973).
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Que a finalidade de toda e qualquer investigação era justamente a ataraxia não resta
dúvida, pois o próprio Epicuro assim postulou em sua Carta a Pítocles ao dizer que
Em primeiro lugar lembra-te de que, como tudo mais, o conhecimento dos
fenômenos celestes, quer os consideremos em suas relações recíprocas, quer
isoladamente, não têm outra finalidade além de assegurar a paz de espírito
[ἀταραξία] e a convicção firme, à semelhança das outras investigações (LAÉRCIO,
X, 85).
Porém, o uso da expressão ‘paz de espírito’ para representar o conceito de ataraxia
não é de todo viável. Pelo menos não no que diz respeito ao pensamento de Epicuro. Ao que
nos parece, na tradução de ataraxia por ‘paz de espirito’ transparece, de maneira muito forte,
a ideia de que a tranquilidade a que esse conceito grego se refere é uma tranquilidade
adquirida por meditação, por vias religiosas, ou qualquer coisa do tipo; e isso, absolutamente,
não é o caso. Um exemplo de traduções do conceito ataraxia a que nos referimos está, tanto
na tradução de Mário da Gama Kury (2008) da obra de Diógenes Laércio (Vidas e Doutrinas
dos Filósofos Ilustres), quanto na tradução da Carta a Meneceu feita por Álvaro Lorencini e
Enzo Del Carratore (2002). Tal apontamento, deve-se ter claro, de modo algum tem como
objetivo a desqualificação desses trabalhos, mas sim, o enriquecimento dos estudos da
Filosofia de Epicuro através de uma discussão a partir dos conceitos próprios dessa corrente
filosófica.
Kury, Lorencini e Carratore traduzem o conceito ἀταραξία por ‘paz de espírito’ e
‘serenidade do espírito’ respectivamente8, assim como, por exemplo, Hicks (1925) o traduz
por ‘peace of mind’. Na verdade, expressões do tipo ‘paz de espírito’, ou, ‘serenidade da
alma’ para designar determinados conceitos gregos não são novidades na tradução de Kury. Já
no Livro IX, quando Diógenes Laércio expõe qual seria o ‘fim supremo’ (τέλος, ou, sumo
bem, no caso de Lactâncio) para Demócrito, Kury traduz “τέλος δ᾽ εἶναι τὴν εὐθυμίαν” como:
“O fim supremo é a serenidade da alma” (LAÉRCIO, 2008, IX, 45). Por algum motivo, Kury
traduziu εὐθυμίαν por ‘serenidade da alma’, e nisso, a tradução de Hicks se afasta de Kury.
Em Hicks temos a mesma frase traduzida da seguinte forma: “O fim da ação é a
tranquilidade” (The end of action is tranquillity). De fato, εὐθυμίαν, que, como entendemos,
significa um bom ânimo; alegria, ou, simplesmente, um estado psicológico de
‘contentamento’, está muito mais próximo de ‘tranquillity’, do que para ‘serenidade da alma’.
8 Algumas passagens às quais nos referimos: LAÉRCIO (2008), EPICURO (2002).
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Também optamos pela tradução de Hicks no que diz respeito ao conceito ἀταραξία,
embora não estejamos completamente de acordo com ela, e, de certo modo, a ajustamos ao
nosso modo de pensar esse conceito no epicurismo. Como dissemos acima, enquanto Kury
traduz o conceito ἀταραξία por ‘paz de espírito’, Hicks o traduz por ‘peace of mind’,
expressão idiomática essa que, em português, significa exatamente ‘paz de espírito’, tal como
foi traduzido por Kury. Entretanto, a palavra ‘mind’ contida na expressão inglesa, nos remete
também ao conceito de ‘juízo’, “mente’, ou mesmo ao conceito de ‘razão’, motivo pelo qual
optamos por ela e não pela tradução que consta na edição brasileira. Segundo nos parece, a
expressão inglesa usada por Hicks, de certa forma, traduz melhor (em relação à tradução de
Kury) o conceito ἀταραξία em Epicuro, pelo fato de que nela transparece com maior clareza a
ideia de um estado psicológico de ‘imperturbabilidade da mente’; de serenidade, ou
tranquilidade, de um sujeito racional, que, a partir de seus próprios esforços, alcança tal
estado mental e, consequentemente, a possibilidade de viver bem. Com efeito, fica claro,
desde já, que o conceito ataraxia em Epicuro está diretamente ligado a ideia de uma ‘bom
ânimo’: se se atinge a ataraxia, então, se atinge uma condição que possibilita uma ‘boa vida’.
A tranquilidade a que o conceito ataraxia se remete só é alcançada com a investigação
filosófica e não através de mecanismos religiosos (meditação, oração, etc.), tal como uma
tradução do tipo ‘paz de espírito’ deixa subentendida. É somente através do exercício de
investigação da Natureza – seja ela a Natureza entendida como physis (φύσις), ou, a natureza
humana – com a finalidade de desvelá-la, e, dessa forma, conhecer os fenômenos do mundo e
a si próprio no intuito de desmistificar opiniões mal formuladas, que, para Epicuro, seria
possível alcançar a ataraxia. A palavra ἀταραξία, enquanto uma negação de ταραχή
(perturbação, desordem), visto que nela há o prefixo grego privativo alfa (α), tem como
objetivo central exprimir a ideia de privação daquilo que perturba a mente humana, o que, em
Epicuro, corresponderia, tanto aos temores infundados (medo dos deuses e da morte), quanto
às inclinações (paixões) dos homens em seu excesso. É no processo de investigar o mundo e a
própria condição humana que o homem se torna consciente do que é possível e do que não é;
do que se deve privar e do quanto se deve privar. Como nosso objetivo é analisar essa relação
entre ataraxia e hedonê, deixaremos por ora de lado as considerações de Epicuro acerca da
conquista da ataraxia frente ao medo dos deuses da morte – embora optamos por deixar claro,
desde já, que Epicuro nunca se apresentou como um ‘ateu’, como pretendia Plutarco
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(PLUTARCO, 2004, 1125a, p. 117)9; nem negou a imortalidade da ‘alma’ para assegurar a
impunidade de seus ‘pecados’, como insinuou Lactâncio (LACTÂNCIO, 1990, III, §35, p.
302).
Como foi dito acima, a relação entre a ataraxia e o ‘prazer’ acontece na medida em
que a própria palavra ἀταραξία exprime uma ideia de privação daquilo que perturba a mente
humana. Dentre essas perturbações está o prazer, visto que ele consta entre as inclinações
humanas que, tanto em seu excesso quanto na sua falta, impede os homens de alcançar uma
‘vida boa’. É importante ter claro que não é o prazer em si mesmo (ἡδονή) que impossibilita
os homens de atingir a ataraxia; no sentido de que os homens devessem evitar ao máximo a
busca por sensações prazerosas. Na verdade, Epicuro chega mesmo a postular que o prazer é o
início e o fim de uma vida feliz por entender que as coisas, ora são escolhidas, ora rejeitadas,
devido o prazer que os homens podem retirar delas (LAÉRCIO, 1925, X, 128). Isso coloca em
crise raciocínios feitos por críticos de Epicuro, como, por exemplo, Lactâncio, para quem
Epicuro seria um ‘defensor dos mais baixos prazeres para cuja consecução pensava que havia
nascido o homem’ (LACTÂNCIO, 1990, III, §35, p. 303).
Se Epicuro coloca como τέλος da ação humana a ataraxia, que também significa o
privar-se das inclinações humanas em demasia com o objetivo de atingir um ‘bom ânimo’, de
que forma esse mesmo filósofo poderia propor, como insinuaram seus críticos, a busca pelos
prazeres mais repulsivos (fuit enim turpissimae voluptatis assertor)? O prazer em Epicuro
nunca foi o prazer do intemperante10
. Pelo contrário. Epicuro afirmava que o prazer em
excesso torna-se vício, e, portanto, prejudicial aos homens. Não se pode encontrar prazer em
seu excesso (bem como em sua falta, evidentemente). O prazer, segundo Epicuro, se encontra
em uma justa medida individual. Conhecer essa justa medida cabe àquele que reflete sobre si
mesmo e sua condição. Isso lhe permite retirar o máximo de prazer necessário das coisas com
o intuito de extirpar qualquer dor física ou mental. É dessa forma que é possível aos homens
atingir a ataraxia, que, nesse caso, significa justamente um estado mental no qual os homens
não encontram necessidade alguma de mais, ou menos, prazer (ἡδονή).
9 Aliás, o “ateísmo” do qual Plutarco acusa Epicuro certamente não procede, pelo menos não como Plutarco
pretende. Se Epicuro se apresenta como um ἄθεος, isso só pode ocorrer na medida em que entendemos seu
“ateísmo” como a negação da existência de deuses tal como a crença do homem simples a concebia, ou seja,
eivada de mitos e superstições. Em Epicuro, tal postura equivocada frente ao divino se expressa pelo conceito de
δεισιδαιμονία. 10
E isso ele deixa claro em sua Carta a Meneceu ao afirmar que o prazer, enquanto τέλος, não é o prazer
referente à ἡδονή, mas sim ao prazer resultante da ausência de perturbações físicas e psíquicas. “Quando então
dizemos que o fim último é o prazer, não nos referimos aos prazeres dos intemperantes ou aos que consistem no
gozo dos sentidos [...], mas ao prazer que é ausência de sofrimentos físicos e de perturbações mentais”
EPICURO (2002).
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É em sua Carta a Meneceu que Epicuro irá se deter com maior afinco sobre a questão
do prazer. Sua argumentação inicia-se em uma apresentação daquilo que é – e o que deveria
ser – comumente desejado (ἐπιθυμία) pelos homens. Em sua divisão consta que há desejos
que são naturais (φυσικός) e desejos que são “inúteis” (κενός – frívolos, vãos, vazios). Os
desejos naturais se dividem em duas classes: a) os necessários, em cuja categoria se
encontram também os desejos fundamentais para o bem-estar corporal e a própria vida; b) os
desejos ‘apenas naturais’ (φυσικαὶ μόνον)11
. O objetivo de Epicuro nessa análise é mostrar
àquele que se dedica à Filosofia que o que deve ser buscado, a fim de alcançar uma vida
saudável e tranquila (ataraxia), é a finalidade da ‘vida boa’ (EPICURO, 2002, p. 35). Como
já dissemos, é com vistas ao alcance deum estado como o de ‘bom ânimo’, tranquilidade,
prazer, e, consequentemente, se afastar de toda dor e perturbação, que os homens voltam suas
ações e suas escolhas. E isso exige uma educação filosófica na medida em que é essa
educação que irá tornar possível um discernimento acerca de qual, e de quanto prazer é
necessário para se atingir uma vida saudável.
Há uma espécie de “critério” para se chegar ao prazer, tal como Epicuro o concebe. A
saber: ‘Chega-se ao prazer escolhendo todo o bem de acordo com a distinção entre prazer e
dor’ (EPICURO, 2002, p. 37). De certa forma, embora haja essa distinção entre prazer e dor,
ela não exclui o prazer da dor por completo. Quer dizer: a escolha nunca é feita entre prazer
ou dor, mas sim entre um dos dois meios para se obter prazer. O prazer, enquanto um ‘bem
primeiro e inato’ (πρῶτον ἀγαθὸν τοῦτο καὶ σύμφυτον)12
, deve ser buscado sempre, mesmo
que, para alcançá-lo, seja necessário optar por algo que venha a causar dor. É medindo suas
ações com vistas ao que é adequado para se atingir a ataraxia em oposição ao que é
prejudicial (ἀσυμφόρων), que os homens devem pautar suas escolhas13
. Essa ‘medida’ é
necessária, visto que há ocasiões em que se usa o bem como se fosse um mal, e vice-versa.
Em Lucrécio há uma passagem que expressa esse ensinamento de Epicuro de forma muito
significativa. Lucrécio diz que
[...] assim como os médicos, quando tentam dar às crianças o repugnante absinto,
primeiro põem, no bordo da taça, loiro, fluido e doce mel, de modo que, pela idade
11
Nas máximas XXIX e XXX Epicuro irá afirmar que esses desejos “apenas naturais” (ou seja, que não são
necessários para a conquista da ‘vida boa’) são produtos de uma “opinião vazia” (κενὴν δόξαν) daqueles que a
possui (ἀνθρώπου κενοδοξίαν). EPICURO (2006). 12
Lorencini e Carratore traduzem σύμφυτον por inato (2002, p. 37); Kury o traduz por congênito (2008, X, 129). 13
τῇ μέντοι συμμετρήσει καὶ συμφερόντων καὶ ἀσυμφόρων βλέψει ταῦτα πάντα κρίνειν καθήκει LAÉRCIO
(1925). Lorencini e Carratore traduzem essa passagem da seguinte forma: “Convém, portanto, avaliar todos os
prazeres e sofrimentos de acordo com o critério dos benefícios e dos danos” EPICURO (2002).
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O estudo da natureza (physiologia) e da natureza humana como condição para uma vida em
ataraxia segundo Epicuro e o epicurismo
Rgério Lopes dos Santos
imprevidente e pelo engano dos lábios, tomem a amarga infusão do absinto e, não
significando este engano prejuízo, possam deste modo readquirir saúde [...]
(LUCRÉCIO, 1973, 1, vv. 935).
Encontramos também em Machado de Assis, mais especificamente na obra intitulada
Memórias Póstumas de Brás Cubas, uma tentativa de ilustrar esse conceito de prazer entre os
epicureus. Machado de Assis coloca no discurso de seu personagem Brás Cubas a ideia de
que o simples ato de livrar os pés das botas que, ao longo do dia, se tornaram desconfortáveis,
pode proporcionar um sentimento de ‘felicidade barata, ao sabor dos sapateiros e de Epicuro’
(ASSIS, 2008, p. 113). Com o adjetivo “barato”, certamente Machado de Assis se referia a
uma felicidade que corresponderia a algo “simples”, fácil de conseguir quando deixamos de
lado os desejos por tudo o que não é necessário para se alcançar uma ‘vida boa’. O prazer
proporcionado no estado de ataraxia, ou seja, o prazer que se dá na ausência de sofrimentos
físicos e mentais, é um prazer que sempre se refere ao simples, visto que não exige, daquele
que o persegue para sua satisfação, um grande esforço, ou, pelo menos, um esforço para além
de seus limites e possibilidades enquanto ser humano. Um bom exemplo para ilustrar o que
dissemos se refere ao esforço empregado para suprimir nossas necessidades básicas. Para
além do simples prazer (ἡδονή) em comer e beber está o fato de retirar de tais alimentos a
saúde que eles proporcionam, o que já inclui a autarquia (αὐτάρκεια) proposta por Epicuro,
segundo a qual não é necessário um banquete para se sentir bem
Os alimentos mais simples proporcionam o mesmo prazer que as iguarias mais
requintadas, desde que se remova a dor provocada pela falta: pão e água produzem o
prazer mais profundo quando ingeridos por quem deles necessita (EPICURO, 2002,
p. 41).
Considerações Finais
É dessa forma, portanto, que Epicuro buscou demonstrar de que modo a ataraxia
poderia ser compreendida como o fim (τέλος) da ação humana. Apostando em uma instrução
filosófica que buscasse a garantia da ‘vida boa’, Epicuro afirmava a necessidade do
(re)conhecimento da Natureza (fosse ela enquanto φύσις, fosse enquanto natureza humana).
Entretanto, deve-se salientar, pensando a partir de uma ‘lógica’ da Filosofia de Epicuro, o
(re)conhecimento da natureza humana antecederia as investigações da Natureza enquanto
φύσις. O motivo seria porque a investigação da natureza humana (sempre pensada de forma
subjetiva; ‘sem mestre’) implica em uma investigação dos ‘critérios de verdade’ (expostos no
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chamado ‘Cânon epicureu’), o qual constitui os modos a partir dos quais os homens se
relacionam com a Natureza (φύσις)14
. A investigação da Natureza só começa depois desse
(re)conhecimento da natureza humana – condição necessária para um correto discernimento
acerca de qual e de quanto prazer se deve retirar das coisas. A physiologia, como buscamos
deixar claro, enquanto estudo teórico da Natureza, só adquire algum sentido para Epicuro, se
ela se transforma em sabedoria prática: investiga-se a Natureza no intuito de dissolver mitos e,
dessa forma, alcançar o estado de ataraxia.
Dito isso, podemos afirmar com grande convicção que muitas das críticas feitas contra
a Filosofia de Epicuro são frutos de uma má interpretação (propositais ou não). Vimos isso,
por exemplo, quando analisamos os argumentos de Epicuro referentes à natureza das coisas.
Epicuro não tinha como objetivo instaurar verdades15
, e, com isso, extirpar qualquer outra
tentativa de explicação, como, por exemplo, as provenientes da religião. Sua preocupação
estava voltada ao modo como seria possível fornecer um meio plausível pelo qual os homens
poderiam começar a investigar, por si próprios, os fenômenos da Natureza, e, com isso,
aprimorar-se enquanto seres humanos. Pois, para Epicuro, somente dessa forma seria possível
alcançar a ataraxia no que dizia respeito aos fenômenos naturais. O atomismo legado por
Leucipo e Demócrito foi esse meio pelo qual Epicuro viu a possibilidade de explicar a
Natureza (φύσις) e, dessa forma, extirpar o terror presente no íntimo dos homens de pouca ou
nenhuma instrução. Aliás, sobre esse modo de proceder frente à religião, John Rist assinala
que desde a Antiguidade houve quem considerasse a conduta de Epicuro, ou como incoerente
com suas ideias, ou como uma ‘hipócrita precaução de segurança destinada a proteger os
epicureus da impopularidade e do possível perigo causado por sua suposta irreligião’ (RIST,
apud GUAL, 2002, p. 180).
Quanto à segunda acusação, tanto Rist quanto Carlos García Gual (2002) não deixam
de fazer suas devidas restrições, visto que, para ambos comentadores, essa ‘submissão’ aos
costumes locais, para além de um gesto útil para se evitar perseguições e processos de
impiedade, ou seja, para além de um “conformismo hipócrita”, e enquanto mero formalismo
exigido pela lei, não era motivo suficiente para Epicuro proibir seus discípulos do culto
religioso.
14
Sobre o Cânon, em Epicuro, LAÉRCIO (2008). 15
Fazemos tal afirmação com base no que diz a Carta a Pítocles, segundo a qual, no que diz respeito aos
fenômenos celestes devemos admitir múltiplas causas. LAÉRCIO (2008).
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Visto que o importante é a piedade interior, a disposição anímica. Provavelmente
Epicuro considerava que as manifestações exteriores do culto eram atos secundários
dotados de um valor simbólico (GUAL, 2002, p. 180).
Gual busca ser preciso ao demarcar os limites entre aquilo que Festugière (1997) vai
chamar de ‘religião cívica e religião individual’. Enquanto mero formalismo, não haveria
impedimento algum no ato de celebrar a divindade local segundo seus ritos, mesmo porque,
como afirma Festugière, religião e cidade estavam de tal modo ligadas, que o culto rendido
aos deuses ‘envolvia toda a vida do cidadão, do nascimento à morte’ (FESTUGIÈRE, 1997, p.
3). Contudo, dirá Gual, o sábio epicureu, ao contrário dos demais homens, cultuaria os deuses
sem esperar deles outra coisa senão a satisfação pessoal, subjetiva, de tais celebrações
(GUAL, 2002, p. 180), uma vez que sua “religião individual”, por assim dizer, não se baseia
em uma mera relação de troca de favores. Sobre esse ponto, encontramos também em James
Warren (2009) a tese de que a participação dos epicureus em rituais religiosos não era uma
ação hipócrita ou contraditória, como pretendiam seus adversários. Pelo contrário, segundo
Warren, ao tomarem parte dos rituais religiosos, os epicuristas tinham por finalidade reforçar
a tese de uma visão verdadeira e benéfica da divindade a qual, não só seria livre da ansiedade
que induz os aspectos da concepção comum, mas também que oferece uma imagem clara de
uma boa vida para a qual todo epicurista pode aspirar (WARREN, p. 241, 2009). Ou seja,
uma vida em ataraxia.
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