Retrato: Representação e Interpretação
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Pedro Costa Santos www.pedrosantos.eu [email protected] 23 de Junho de 2010
RETRATO: REPRESENTAÇÃO E INTERPRETAÇÃO Com este trabalho, pretende-se analisar todo o contexto de produção e recepção de um retrato fotográfico. É claro que este conteúdo é também válido para outras áreas da arte visual como é exemplo a pintura, o cinema ou a televisão. Pretendo também que este documento seja uma reflexão sobre a relação entre fotógrafo e sujeito fotografado bem como a questão sobre a posse da imagem.
Pedro Alexandre Costa Santos Retrato: Representação e Interpretação
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Índice
Introdução ..................................................................................................................................... 3
A imagem ...................................................................................................................................... 4
Noção de imagem ..................................................................................................................... 4
Utilização da palavra imagem ................................................................................................... 4
Representação, sentido e cultura ................................................................................................. 6
Processo de interpretação ............................................................................................................ 7
Leitura cultural ............................................................................................................................ 10
Conclusão .................................................................................................................................... 12
Bibliografia .................................................................................................................................. 13
Pedro Alexandre Costa Santos Retrato: Representação e Interpretação
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Introdução
O retrato pouco mais é do que a captura de uma imagem de um dado sujeito. No
entanto, existem certos elementos semióticos, antropológicos, imagéticos e sociais que sem os
quais seria impossível analisar um retrato.
Assim, o principal objectivo deste trabalho não é propriamente ser um manual técnico
de fotografia nem muito menos ser um meio orientador de fazer retratos. Trata-se antes de
uma análise sobre a forma de representar um sujeito e como é que essa mesma representação
pode ser interpretada.
Sobre essa dupla (representação / interpretação), temos de ter em atenção a relação
entre o sujeito fotografado e a objectiva devido a uma possível falta de autenticidade do
sujeito fotografado. Tal como nos diz Roland Barthes, “não paro de me imitar a mim próprio e
é por isso que sempre que me fotografam (…) sou invariavelmente assaltado por uma sensação
de inautenticidade, por vezes de impostura (como alguns pesadelos podem provocar)”. Essa
transformação devido à presença de um elemento não-natural – a máquina fotográfica – faz
com que “perante a objectiva, eu sou simultaneamente aquele que eu julgo ser, aquele que eu
gostaria que os outros julgassem que eu fosse, aquele que o fotógrafo julga que sou e aquele
de quem ele se serve para exibir a sua arte”.
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A imagem
“Todas as imagens devem mais a outras imagens do que à natureza.”
Wölfflin
Noção de imagem A imagem é um importante elemento de comunicação mas que no entanto não é tão
explícito como a escrita. Na verdade, a escrita tem um estatuto muito mais predominante do
que a imagem devido ao seu elevado rigor na sua interpretação – uma dada palavra tem (regra
geral) um só significado ao passo que a imagem é bastante polissémica. A mesma imagem em
contextos sociais diferentes pode adquirir diferentes significados, levando o leitor a
apreensões subjectivas em função da sua cultura, do seu saber, dos seus gostos pessoais, da
sua experiência, etc. A título de exemplo, no meio académico, as imagens são utilizadas como
mera ilustração do saber do orador no seu discurso retórico.
Segundo Roman Gubern, a definição antropológica de imagem icónica, remete-nos
para o facto de ser “uma modalidade da comunicação visual que representa de uma forma
plástico-simbólica, sobre um suporte físico, um fragmento do meio óptico (percepção), ou
reproduz uma representação mental visualizável, ou uma combinação de ambos, e que é
susceptível de conservar-se no espaço e/ou no tempo; isto é, um suporte de comunicação entre
épocas, lugares e/ou sujeitos distintos, em que o próprio autor da representação está incluído”,
ou seja, uma imagem depende sempre da produção ou do reconhecimentos de um sujeito,
podendo ser imaginária ou concreta.
Para que a leitura da imagem seja feita de uma forma adequada, José Ribeiro
considera que é necessário existir uma dada distanciação do leitor e da imagem, não de forma
espacial (organização do espaço), mas sim de uma forma psíquica para que o leitor seja capaz
de saber o que está a fazer no momento em que o faz, que tenha capacidade de si mesmo
(self) e que tenha uma capacidade crítica para levantar dúvidas e resistências sobre a imagem
em análise.
Desta forma, para a alfabetização visual e a respectiva distanciação em relação à
imagem, torna-se necessário um processo que nos conduza à própria semiótica da imagem, à
natureza e funcionamento da imagem e dos seus códigos de leitura (signos, sistema e cultura).
Utilização da palavra imagem A imagem rodeia a nossa vida e apresenta-se de diferentes modos. Consoante é o
modo de representação, assim a nossa percepção se altera ou pelo menos se condiciona. A
palavra imagem é utilizada nos seguintes contextos:
1. Imagem mediática
É aquela imagem que está omnipresente e que faz parte da nossa vida quotidiana.
A imagem mediática (aquela imagem que é veiculada através dos media) surge
muito ligada à televisão e publicidade. Contudo, a publicidade encontra-se na
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televisão, mas também nos jornais, nas revistas e nos outdoors. E não é apenas
visual, também é sonora (radiofónica).
Por vezes imagem, televisão e publicidade são considerados o mesmo, porém,
estes conceitos são distintos uns dos outros. Tudo isto advém da confusão entre
suporte e conteúdo. Entende-se por suporte o veículo que transmite a informação
e possibilita a comunicação, exemplo disso: a televisão, a rádio, os jornais, as
revistas, etc.; e por conteúdo a mensagem a ser transmitida, por exemplo:
publicidade, jornalismo, arte, ciência, etc.
2. Imagem psíquica
O termo é empregue nas imagens mentais, nas representações mentais, nos
sonhos, na linguagem metafórica. A imagem mental tem uma dupla função:
visualização e semelhança com a realidade. Nesta categoria estão inseridas as
imagens sonoras desenvolvidas por musicólogos como Sandra Trehub que defende
que existem sons que podem substituir imagens e vice-versa.
É necessário que este termo não seja confundido com Esquema Mental, pois este
opera através da evocação partindo de alguns traços visuais, ou seja, o modelo
perceptivo.
3. Imagem científica
É o tipo de imagem utilizada no domínio científico:
• Astronomia, física, biologia, medicina, meteorologia, mecânica, informática,
por exemplo, raio-X, ressonâncias magnéticas, ecografias, ou seja ondas
sonoras traduzidas visualmente;
• História, psicologia, sociologia, comunicação, antropologia (antropologia
visual), etc.
Com o desenvolvimento tecnológico, as imagens científicas podem ir até ao
inobservável (simulações – a evolução de uma tempestade, a evolução de um
vírus, a resistência de materiais, entre outros).
4. Imagem virtual
São imagens digitais que não têm a necessidade de existência de um referente,
diferindo assim das categorias apresentadas anteriormente.
São imagens que são mais susceptíveis de sofrerem processos de trucagem e de
morphing, ou seja, processos de manipulação digital das imagens.
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Representação, sentido e cultura
Associado à noção de imagem surge sempre o conceito de representação. Uma
imagem é uma representação. Segundo Dan Sperber, “as interpretações e as descrições são
representações, bem como as reproduções, esquemas, citações, traduções, explicações, teorias
e recordações. Uma representação é um objecto físico ou mental que, para certos efeitos, é
suposto substituir a coisa que representa.”
Igualmente associado à noção de imagem surge a noção de sentido. Uma imagem tem
sempre um significado a ela associada. O carácter irreflexivo das sociedades pós-industriais
remete-nos para a ideia da imagem ser algo de natural, no entanto, todas as imagens são
culturalmente codificadas.
Para produzir sentido, a imagem trabalha a sua capacidade semiótica. Na maioria das
vezes uma imagem não se constrói a partir de regras, mas sim de estratégias essencialmente
metafóricas e metonímicas.
Uma imagem para o ser teve que
eliminar. Houve uma escolha, que não passou
simplesmente pelo que ficou visível, mas
também por aquilo que ficou escondido. Esse
tipo de selecção é um acto cultural.
Figura 1- O enquadramento e o fora-de-campo
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Processo de interpretação
Para tentar explicar este conceito, penso que a
melhor forma é através de um caso prático. Assim, através
da figura 2 vamos iniciar o processo de interpretação que
não é mais do que um conjunto de hipóteses
interpretativas:
Começando pelo conteúdo desta imagem, podemo-
nos questionar se é a representação de um índio
americano. Podemo-nos questionar também em relação ao
contexto e assim, será uma fotografia de uma reportagem
sobre uma determinada população vítima de uma
catástrofe? Outro ponto importante para este processo é a
atitude do fotógrafo, ou seja, neste caso sabemos que se
pôde aproximar do sujeito fotografado devido ao facto da
personagem estar sob um plano aproximado (figura 3). No
entanto, não podemos adivinhar se essa aproximação
resulta de uma cumplicidade com o personagem, ou se
é o resultado de uma situação de sorte ou perícia do
fotógrafo. De qualquer das formas, a escolha deste
enquadramento retira ao leitor a noção de fora-de-
campo mas, por outro lado, dá-nos a informação de que
o fotógrafo concentrou toda a sua atenção no sujeito
fotografado.
Perante uma imagem que não conhecemos
surge a necessidade de situá-la, ou seja, de encontrar
um contexto, dentro do qual ela fará sentido e para
que possamos transportar para a sua leitura os nossos
conhecimentos, a nossa experiência, com o objectivo
de conferir sentido à imagem. Assim, a interpretação
de uma imagem depende sempre da relação que a
imagem tem com o seu contexto de produção e da
relação que o leitor tem com a própria imagem, do
olhar que ele transporta para a leitura da imagem.
De forma a dar uma pista sobre o contexto,
direi que esta imagem pertence a um conjunto de
retratos, dos quais seleccionei alguns retratos (figura
4). Como podemos observar, todos estes retratos têm
elementos em comum que nos dão mais algumas
pistas mas que ainda assim não chegam para tirar uma
conclusão definitiva. No entanto, existem alguns elementos diferentes de fotografia para
Figura 2 – Ponto de partida para o processo de interpretação
Figura 3 - Plano aproximado (aproximação da câmara ao sujeito fotografado)
Figura 4 - Contexto da primeira imagem
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fotografia, como é o caso das expressões faciais dos sujeitos fotografados. Na fotografia n.º 1
da figura 4, o olhar da mulher parece estar voltado para os seus próprios pensamentos,
parecendo não manter (e manter ao mesmo tempo), um contacto visual directo com o
fotógrafo.
Através da figura 5, podemos levantar questões em relação ao olhar do sujeito e da
sua expressão labial, chegando à conclusão de que o olhar do sujeito reflecte tristeza e a sua
boca algum sofrimento físico.
Já na fotografia n.º 2, podemos verificar que a mulher olha directamente a objectiva da
câmara e, através desta, os futuros leitores da imagem. O seu olhar, é um olhar de fúria e
carregado de tristeza. Trata-se então de um retrato de sentimentos.
Quanto à fotografia n.º 3 e n.º 4, podemos observar uma postura um pouco diferente.
A mulher da fotografia n.º 3, olha-nos da mesma forma que a anterior, mas trata-se de um
olhar mais incerto. Quanto à n.º 4, constitui aquilo que pode ser considerado um “retrato
clássico” em que a mulher coopera com o fotógrafo, havendo um sorriso quase cúmplice e
alguma confiança no olhar (figura 7).
Figura 5 - O olhar e a forma de olhar e a expressão labial
Figura 6 - Fotografia n.º 2 – Reflexos de fúria e tristeza
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Contexto das fotografias: Estas fotografias fazem parte de uma série intitulada “Mulheres
Argelinas” realizadas por Marc Garanger, em 1960. Nessa época Garanger (francês) cumpria o
serviço militar na Argélia, território sob o domínio colonial francês. O governo francês decidiu
que as populações locais deveriam possuir um documento de identificação, pelo que a
Garanger foi-lhe atribuída a tarefa de realizar essas fotografias para os respectivos
documentos de identificação.
A utilização da fotografia num contexto de guerra colonial, surge em consequência do
uso da fotografia nos finais do séc. XIX com o retrato, o conceito de identidade. Este mesmo
conceito passa primeiro pela burguesia (visibilidade) e tendo em conta a natureza icónico-
indicial da fotografia, o conceito de identidade altera-se, assumindo-se enquanto controlo.
No contexto desta imagem, a utilização do retrato assume o papel de controlo da
população árabe, por parte do governo francês. Assim, esta imagem surge num contexto
específico, a guerra na Argélia e o controlo colonial da população árabe.
Estas quatro fotografias revelam diferentes relações entre fotógrafo e sujeito
fotografado, dentro de um contexto específico:
A guerra colonial na Argélia;
A vontade do governo francês em controlar colonialmente uma população;
O estatuto militar do fotógrafo Marc Garanger;
A necessidade das mulheres retirarem o véu face a um homem.
De forma geral, estas fotografias que revelam uma relação de opressão entre
franceses e a população argelina.
Figura 7 - Fotografias n.º 3 e 4
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Leitura cultural
O aspecto cultural é um ponto de extrema importância na medida em que oferece
uma formatação e um certo condicionalismo da leitura das imagens. Sobre a mesma imagem,
podemos tomar diferentes pontos de vista, resultando assim em diferentes leituras.
Em relação às imagens que analisei anteriormente, poderemos ter diferentes olhares:
1. Olhar Político
S
O nosso olhar é condicionado devido à presença de
sentimentos nos rostos das mulheres como a fúria, a
oposição, a tristeza ou o sofrimento, onde se sente
que são testemunhos da opressão colonial.
2. Olhar Etnográfico
Existe um condicionalismo devido à forma de vestir
dos sujeitos fotografados. Os costumes ou vestuário
são factores que podem determinar uma época ou
mesmo uma dada cultura.
3. Olhar Político-militar
Sabendo que se trata de um registo do povo opressor
sobre o povo oprimido, o nosso olhar é condicionado
através de uma perspectiva autoritária ou identitária.
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4. Olhar Artístico
Poderemos ainda olhá-las enquanto fotografias, ou
seja, olhar enquanto objecto de arte, apreciando o
talento do fotógrafo Marc Garanger.
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Conclusão
O sentido de uma imagem resulta de um encontro constante entre um quadro de
representação (construção/produção) e um quadro de interpretação (leitura/recepção).
Segundo Roland Barthes, “a Fotografia (…) representa esse momento deveras subtil em
que, a bem dizer, não sou nem um sujeito nem um objecto, mas essencialmente um sujeito que
sente que se transforma em objecto: vivo então uma micro-experiência da morte (do
parêntese), torno-me verdadeiramente espectro”. Com esta afirmação, Barthes explica o
momento em que tudo pára na fotografia, o momento em que o mortal passa a imortal e se
torna conteúdo num suporte físico.
O retrato, tal como a fotografia no geral, levantam também uma discussão sobre a
pertença: de quem é a fotografia? Do fotógrafo ou do sujeito fotografado? A própria paisagem
não é apenas uma espécie de empréstimo feito pelo proprietário do terreno? De qualquer das
formas, o importante a reter é que a fotografia é definida através de um momento singular
pois não existem duas fotografias exactamente iguais devido a um afastamento temporal, por
mais breve que seja. Confere assim um grande significado à fotografia – a fotografia é um
“certificado de presença”.
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Bibliografia
BARTHES, Roland (1981), A Câmara Clara, Lisboa, Edições 70
FREUND, Gisèle (1989), Fotografia e Sociedade, Lisboa, Vega.
PAULINO, Fernando Faria (2006), Manual de Semiótica do Texto e da Imagem Estática, ISMAI
RIBEIRO, José da Silva (2004), Antropologia Visual. Da minúcia do olhar ao olhar distanciado,
Porto, Edições Afrontamento