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RETRATO E AUTORRETRATO: ENTRE O SER ARTISTA E O SER PROFESSOR
Adriano de Souza Bueno – UEL
Ronaldo Alexandre de Oliveira – UEL Resumo Trata-se de um recorte oriundo dos resultados de uma pesquisa para um Trabalho de Conclusão de Curso de Licenciatura em Artes Visuais pela Universidade Estadual de Londrina, no ano de 2010, que traz em seu contexto, questões referentes à representação e à autorrepresentação, concebidas através de diversas linguagens artísticas. O objetivo desta pesquisa foi entrelaçar as experiências de artista com as de educador em arte, por meio do mesmo tema, e através dessas experiências destacar e ressaltar as relações de identidade e suas possíveis facetas na contemporaneidade: a do artista e as suas reflexões em torno de sua produção, o professor que produz junto ao aluno que recebe voz e vez em função do seu fazer. São identidades conectadas pela produção de arte, desvelada e ampliada.
Palavras-chave: retrato; autorretrato; produção artística; arte-educação; identidade. Abstract This is a clip coming from the results of a search for a Work Completion of Course Degree in Visual Arts from State University of Londrina, in 2010, that brings in its context, issues of representation and self-representation, designed through various art forms. The objective of this research is to interweave the experiences of the artist and educator in art through the same issue, and through these experiences to highlight and emphasize the relationship of identity and its possible facets in the contemporary world: the artist and his reflections on of its production, the teacher who produces with the student receiving voice and time depending on your doing. Identities are connected by producing art, discovered and expanded. Key words: portrait; self-portrait; artistic production; art education; identity.
1. Introdução
O presente trabalho apresenta resultados de uma pesquisa que estabelece
conexões entre as experiências com a produção poética e a atuação como professor
de arte, priorizando questões vinculadas a construção do retrato e do autorretrato,
tanto na produção pessoal quanto daqueles que ensino, portanto, questões sobre
identidade se fazem presentes na pesquisa.
Dividido em três partes, o trabalho traz primeiramente em seu corpo uma
contextualização do tema retrato e o autorretrato, em que destaca uma reflexão da
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sua importância em relação à história da arte; em seguida faz um recorte da
pesquisa poética, que consiste nas experiências com trabalhos de desenho e pintura
em torno da representação do outro e da autorrepresentação; e por fim dados
referentes a uma oficina voltada ao ensino de arte, na qual são abordadas questões
referentes ao autorretrato e à identidade.
2. Representação e identidade
O retrato pode ser considerado o gênero mais popular da pintura. Potencializa-se no
período do Renascimento e do Humanismo, momento da história em que o homem
passou a ser o centro de todas as questões que envolviam o pensamento humano,
motivo para tornar-se o mais presente e influente gênero na história da arte e
simultaneamente o mais mutante.
Teixeira Coelho (2008) destaca que: “Na história da arte, o retrato é talvez o gênero
no qual mais fortemente se coloca a questão da verossimilhança. De que serve um
retrato se ele não se parece com o representado?”, esse tipo de questão põe em
discussão aspectos referentes a uma representação rígida, repleta de cânones e
regras, frente a qualquer tipo de expressão por parte do artista. Esta discussão se
deu com os artistas modernos que expuseram seu ponto de vista em sua produção,
onde o artista conquista a sua autonomia, como também destaca Coelho (2008):
E a resposta do artista moderno foi: quando um retrato não se parece com o retratado, ele serve para fornecer o retrato do retratante, pelo menos seu retrato intelectual, conceitual, estético – e também seu retrato espiritual (COELHO, 2008, p.17).
O artista moderno apresenta um trabalho com seu próprio gesto e modo de pintar
expondo assim a sua identidade de artista. Essas mudanças no mundo da arte
foram reflexos de uma sociedade que também se modernizou. Conceitos, costumes,
modos de vida, filosofias que por tanto tempo deram condições estáveis ao mundo
social estão dando lugar às novas tendências que, fragmentam o indivíduo moderno,
unificado. Stuart Hall (2006) apresenta relações entre identidades que se sobrepõe,
e que, há um modo distinto de mudança estrutural que transformou as sociedades
modernas do século XX:
Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Estas transformações estão também mudando as nossas identidades pessoais,
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abalando a idéia que temos de nós próprios como sujeitos integrados (HALL, 2006, p.9).
O sujeito global, resultado e reflexo de transformações que ocorreram e ocorrem no
mundo social, possui uma identidade cada vez mais fragmentada, descentralizada,
de caráter extremamente amplo, aberto e, sobretudo dinâmico e vivo, o que torna
problemática a questão das relações de convívio social tendo em vista a
multiplicidade dessas identidades conflitantes, como apresenta Hall:
A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos
temporariamente (HALL, 2006, p.13).
Essa “crise da identidade” se refere à fragmentação e reflete também no indivíduo
social que consiste num duplo deslocamento por parte do sujeito que é a sua
descentralização, tanto de um determinado espaço social, como também de si
mesmo.
Ao analisar as imagens dos retratos nos livros de história e ao estabelecer entre elas
uma ordem cronológica, não seria difícil apontar algumas evidências relacionadas às
transformações pelas quais o retrato também perpassou. São transformações que
ultrapassam os aspectos relacionados aos modos de vida do passado como,
vestimentas, mobiliários, utensílios e a forma como as pessoas eram retratadas ou
até mesmo do caráter plástico formal relacionado aos materiais utilizados pelos
artistas, os suportes, os pigmentos, enfim dentre essas variações de caráter técnico
e de aspecto formal, destacam-se às decorrentes alterações no que diz respeito à
atitude dos artistas em relação aos seus motivos.
Pode se dizer que esse tipo de atitude é a conseqüência de um posicionamento
mais crítico por parte dos artistas da época em relação ao seu próprio tempo. Tais
produções questionavam o sentido no qual esse projeto de sociedade poderia levar
o mundo social e que posteriormente desencadeou no período entre guerras, com
os movimentos dadaísta e surrealista. Esses aspectos se desdobraram e obtiveram
ressonância na obra de muitos artistas do século XX e contemporâneos, e que
trabalham com o retrato como destaca Coelho (2008):
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As personagens de Francis Bacon estão francamente desesperadas e as de Lucian Freud, em decadência física (portanto, em desconstrução espiritual). Olhá-las é uma provação, beirando o insuportável. É difícil aceitar a advertência e a premonição que esses artistas nos fazem. (COELHO, 2008, p.174-175)
O caráter multifacetário, conseqüência das freqüentes mudanças, é um dos
principais aspectos do mundo social contemporâneo e favorece o artista em relação
à espontaneidade das suas expressões, afinal de contas a sua arte não está mais
submissa a nenhuma regra. O artista contemporâneo possui total liberdade para
transitar por todas as linguagens, técnicas, conceitos e ideais, e os resultados
advindos desse universo, que é versátil, rico e, sobretudo diversificado.
3. O universo da produção e seus possíveis diálogos
A produção pessoal que discuto neste artigo está relacionada a uma perspectiva
figurativa naturalista, e aborda assuntos que remetem a um imediatismo, que
apresentam por meio das imagens dados referentes aos retratados. Não a considero
como meros registros, apesar de tratar-se de uma produção retratística, eu prefiro
tratá-la como observações de um instante, que se desdobra em produção.
Deste modo a reflexão que teço permeia o recorte de um trajeto processual, na qual
exponho idéias relacionadas ao fazer e ao produzir sentido por meio do processo de
criação, somado ao diálogo que estabeleço a partir da poética de outros artistas ao
meu fazer, dentre os quais destaco desde Rembrandt até referenciais mais recentes
como Edward Hopper e Rodrigo Cunha. Todos esses artistas seguem a mesma
linha de produção: o retrato e o auto-retrato de uma forma figurativa realista, no
entanto exploram o tema de acordo as suas particularidades, aproprio-me dessas
referências quando direciono o meu olhar para elas, e a produção advêm delas, é no
desdobramento processual que observo as influências estampadas nos resultados.
O aspecto plástico formal da obra de Rembrandt foi o impacto primeiro e o fator
culminante na origem do meu apreço pela questão técnica no fazer. Ultrapassar o
rigor e a qualidade técnica também foi uma das características da obra de
Rembrandt, não se trata apenas de um modo muito peculiar de pintar, mas também
da maneira como o artista se relacionou com essa pintura, ao deixar transparecer
por meio dos seus autorretratos não apenas seu lado físico, mas também emocional
e transitório. Descobrir isso me foi útil na prática, pois pude “encontrar” a minha
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pintura, e através dela percebi que o rigor técnico pelo rigor técnico é de certo modo
algo vazio, e produzir sentido se faz necessário quando a técnica oferece resultados
satisfatórios.
Anteriormente ao pensar em autorretrato, mais especificamente em sua
configuração formal, a imagem que me vinha à cabeça é a de um rosto. A palavra
autorretrato me remete a essa imagem, assim como todo substantivo provido de
uma carga simbólica contribui para que imagens sejam projetadas na mente das
pessoas, no entanto, essas imagens são inevitavelmente distintas de uma pessoa
para a outra, mesmo quando se trata da mesma palavra. É perceptível que a relação
verbal e imagética dependa diretamente de uma cultura visual individual. Quando
cito o trabalho de Rembrandt como meu primeiro referencial neste recorte, destaco a
questão da fisionomia, pois a maioria das suas auto-imagens evidencia o rosto como
aspecto portador da questão comunicativa da obra, os aspectos fisionômicos
enfatizados pelo artista em seus autorretratos denotam grande preocupação em
transmitir questões emocionais via expressões faciais, e a minha produção desta
fase se inicia nessa perspectiva.
AUTO-RETRATO. Acrílica sobre tela; 70x60cm, 2010.
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A atual produção tem início em uma continuidade ao processo que se destacou na
primeira experiência, entretanto comecei somar novos itens à composição, como o
corpo que agora se apresenta forma mais completa e o entorno ou cenário em que
esse corpo se insere. No que se refere à autorrepresentação em meu trabalho
penso que não se trata apenas de uma simples ação humana que se configura em
linguagem plástica, mas também das relações de um processo que perpassa
simultaneamente o universo do artista que é referência ou modelo e que
posteriormente se transforma em objeto resultante, a obra.
Tratar as figuras que compõe o trabalho, os objetos em cena, o fundo e até mesmo
os dados em primeiro plano, com o cuidado e atenção equivalentes e considerá-los
como parte relevante da composição, denota questões de identidade. Assim como o
acalmar para estudar a técnica me fez ver com maior clareza o universo que me
cerca, também me fez entender o que esses objetos podem representar como
autorretratos e que contam algo e o olhar calmo que vem do rigor técnico me
possibilita tal. Considero a questão do acalmar como algo conceitual em meu
trabalho, ter um olhar calmo para resolver os problemas plásticos.
AUTO-RETRATO. Grafite sobre papel; 18x21cm, 2010
Deste modo penso na produção de Hopper, a ambientação nos seus quadros é de
tão grande relevância que, em muitos deles o assunto é o próprio cenário,
dispensando a figura humana, e mesmo quando esta se faz presente, o cenário atua
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como outro personagem. Essa investigação do espaço em sua totalidade, que
transita desde a elaboração da composição até a importância de cada elemento que
compõe a cena, é o aspecto da obra do artista com o qual dialogo com a minha
produção.
O PALHAÇO. Acrílica sobre tela 110x75cm, 2010
A relação que estabeleço entre a minha produção e o trabalho de Rodrigo Cunha é o
enfrentamento de se optar trabalhar com uma linguagem tradicional como a pintura
figurativa naturalista no intuito de ressignificá-la a um contexto contemporâneo, o
artista é do meu trabalho a referência mais próxima por ser um artista mais jovem,
mais imediato e por estabelecer uma relação mais tranqüila com o próprio trabalho.
O recorte do processo que apresentei se pautou na questão identitária ao apresentar
trabalhos referentes à figura humana, tanto no que diz respeito aos autorretratos
quanto aos retratos, mas principalmente por trazer tais elementos que também
contam sobre esses personagens.
4. A docência e os procedimentos artísticos
Não há dúvidas de que à sociedade atual está sujeita a transformações e o
ambiente escolar se insere nesse processo. São fatores e aspectos de várias ordens
que corrobora nesta transformação, históricos, culturais, socioeconômicos, somados
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às questões tecnológicas, às novas mídias. Esses fatores implicam em distintos
modos de se encarar a escola e a sala de aula, pois solicitam da docência maneiras
outras de se pensar educação.
Essa fase de transição requer também atitudes de caráter inovador, sobretudo no
que diz respeito à formação e às práticas docentes. Gablik (2005) nos alerta a
respeito de uma idéia de arte como algo distante da realidade dos alunos, e acaba
sendo entendida como algo inacessível:
(...) Os modos de pensamento dominantes na nossa sociedade têm nos condicionado a caracterizar basicamente a arte como objetos especializados, criados não por razões morais, práticas ou sociais, mas, ao contrário, para serem contemplados e apreciados (GABLIK, 2005, p.601).
Esta é uma entre as razões pelas quais a arte tanto como objeto quanto como
processo se distancia cada vez mais das pessoas. Tal situação pode ser
considerada como um enorme desperdício no que diz respeito à infinita capacidade
de criação por parte do homem, em outras palavras à sua forte inclinação para com
o processo artístico, que Pareyson (1989) sublinha com determinada relevância no
prazer do artista em contato íntimo com o mesmo:
(...) E é justamente esta a condição do processo artístico, guiado por uma espécie de antecipação e pressentimento do êxito, pelo qual a própria obra age antes ainda de existir: se é verdade que a forma existe somente quando o processo está acabado, como resultado de uma atividade que a inventa no próprio ato que a executa, é também verdade que a forma age como formante, antes ainda de existir como formada, oferecendo-se à adivinhação do artista, e, por isso, solicitando seus eficazes presságios e dirigindo as suas operações (PAREYSON,1989, p.142).
O processo artístico é o contato mais direto do sujeito com a arte, em função das
inúmeras possibilidades de experimentação, e cabe a nós futuros e atuais
educadores, uma reflexão mais profunda em relação ao modo como se dá o
processo de aprendizagem de arte nas escolas, calcado nesses fazeres, voltado em
propiciar o contato entre o aluno e o seu fazer criador.
Experiências de artista se entrelaçam com as de arte-educador. Foi através das
vivências como estagiário na Rede Municipal de Ensino durante a graduação e
como ministrante no Curso de Desenho Artístico preparatório para o vestibular da
Universidade Estadual de Londrina, que percebi a possibilidade de estabelecer, por
intermédio do ensino de arte, uma conexão entre a pesquisa docente e o processo
poético.
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O trabalho que me refiro neste item é uma pesquisa a qual chamo de “docência
artista”, pois consiste na análise dos resultados da intervenção artístico/pedagógica,
em formato de oficina, que desenvolvi com os alunos da 8ª série do Ensino
Fundamental, na Escola Estadual Benjamin Constant, situada na Vila Portuguesa,
região central da cidade de Londrina, Paraná.
A oficina ocorreu durante o período de maio a novembro do ano de 2010, as quintas-
feiras, no turno vespertino, portanto no contra-turno dos alunos, com três horas de
duração por encontro, e a turma foi composta no início por sete alunos e chegamos
ao final com cinco deles, os quais apresento nesta pesquisa por meio de meio de
nomes fictícios. O objetivo da mesma foi desvelar as questões identitárias dos
alunos por meio da autorrepresentação, tendo inicialmente o desenho como
linguagem.
Deste modo minha pretensão foi justamente somar as minhas experiências como
artista num projeto que conseguisse dar voz aos alunos, e que essa voz obtivesse
ressonância nas produções, trazendo questões relativas das nossas identidades:
minha enquanto professor que produz e a dos alunos, quando analiso o modo como
os procedimentos artísticos podem ajudá-los a pensar sua identidade.
A oficina se pautou nas respostas dos alunos na medida em que as mesmas foram
acontecendo. Trata-se de uma pesquisa/ação, em que os rumos são tomados em
função do desenvolvimento resultante da observação, das respostas trazidas pelos
alunos.
Em uma das conversas com os alunos foram abordados assuntos atuais referentes
ao tema proposto pela oficina (representação e auto-representação), tais como: a
fotografia digital, os sites de relacionamento, orkut, msn, face book, enfim falamos
desses veículos pelos quais os adolescentes além de produzir, manipular e postar
imagens, as quais são em sua maioria fotografias deles mesmos, também se
manifestam por meio da comunicação escrita, evidenciando uma necessidade de se
mostrar, de falar de si, de expor sua personalidade, em suma são aspectos que
dizem respeito a identidade desses jovens, o modo como eles se auto-constroem.
Após a conversa os alunos se deram conta de que pelo menos uma vez na vida já
haviam produzido uma auto-imagem através da fotografia, o segundo passo,
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portanto foi mostrá-los outros modos de produzi-la. Levei alguns livros com imagens
de auto-retratos de Rembrandt, Van Gogh, Dürer, e expliquei a importância dessas
obras para a história da arte, mostrei também alguns dos meus desenhos e falei
sobre o meu processo de criação.
Foi proposto aos alunos a elaboração de um texto que o identificasse contendo o
nome, a idade e os seus afazeres prediletos, seguido da realização de auto-retratos
com a utilização de pequenos espelhos para os exercícios de observação da
imagem refletida.
Autorretrato de um dos alunos. Nanquin sobre papel Paraná (20x12,5cm)
Nas conversas com os alunos após término das atividades acima mencionadas,
pude perceber certa insatisfação por parte deles em relação aos resultados.
Depoimentos como, “nossa que feio” ou até “não se parece nada comigo” foram
freqüentes, além das gozações entre eles próprios ao ter acesso ao trabalho do
colega. Segundo Edwards (2000) há um anseio por parte do aluno nessa faixa etária
de conseguir resultados hiper-realistas, parecidos com o real:
(...) Aparentemente o início da adolescência marca o fim abrupto do desenvolvimento artístico em termos de aptidão para o desenho na maioria dos adultos. Quando crianças, viram-se diante de uma crise artística, um conflito entre suas percepções do mundo, cada vez mais complexas, e seu
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nível de aptidão artística. (...) Tornam-se duramente críticas em relação aos desenhos que faziam quando pequenas e passam a desenhar certos temas favoritos - repetidamente numa tentativa de aperfeiçoar a imagem. Quando não conseguem atingir o realismo perfeito, sentem-se frustradas (EDWARDS, 2000, p.89).
Em contrapartida as questões referentes à identidade dos alunos vieram à tona por
meio dos primeiros textos escritos por eles, que mostrou um pouco do universo
desse aluno ao apresentar aspectos como preferências, preocupações em relação
ao cotidiano, vivências, questões de relacionamento, enfim, a partir dessas
respostas foi possível conhecê-los um pouco mais, o que possibilitou o
desenvolvimento de um trabalho somado às questões de identidade, o próximo
passo, portanto foi resgatar esses textos. Encontrei itens em comum na maioria dos
escritos, grande parte das respostas analisadas trazia aspectos voltados à questão
dos jogos eletrônicos, computadores e filmes. Transcrevo a seguir trechos de
algumas das falas que os alunos escreveram inicialmente, que destacam os
seguintes aspectos:
(...) “Passo o tempo de vez em quando jogando vídeo game, assistindo TV, dormindo, trabalhando. Me da prazer em jogar vídeo game, desenhar e praticar esportes”. (...) “eu gosto de rimar, desenhar e jogar bola, play station, assistir filme de tudo que é jeito comedia, ação, terror, etc...”. (...) “Eu gosto de jogar vídeo game, fazer desenhos, eu gosto de ir no centro social urbano, no cinema e nos mercados...” (...) “Gosto de jogar vídeo game e ir ao cinema com meus amigos gosto de viajar sou fã de seriados e coleciono series também sou fã de futebol...”. (...) “Eu ocupo meu tempo fazendo as coisas que mais gosto como: jogando bola, play station, mexendo no computador...”.
É importante lembrar que se trata de uma pesquisa/ação, como tal, se desenvolve a
partir das respostas dos alunos, por essa razão mudar a direção das intervenções,
propor outras metas não significaram perdas, ao contrário, às mudanças ocorridas
em relação aos procedimentos, desencadearam no aspecto processual da mesma.
Nessa perspectiva preparei para os encontros seguintes atividades que consistiram
na criação por meio de um desenho de um personagem de jogo, por meio do
desenho, o qual deveria possuir as características dos próprios alunos, ou seja, a
idéia foi fazer com que eles falassem de si próprios ao se imaginarem como heróis
ou personagens desses jogos.
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Se antes aconteciam como atividade os desenhos de observação da figura humana,
especificamente o rosto, por meio do reflexo de um espelho pequeno, em que a
tentativa de buscar a verossimilhança em relação à imagem ofuscava a
preocupação com as questões identitárias, agora a proposta é utilizar o desenho,
mas como veículo para proporcionar ao aluno a realização de um processo criativo e
simultaneamente refletir a respeito das relações de identidade e de alteridade.
Após essa atividade iniciou-se processo de construção visual tridimensional desse
personagem, com a proposta de estabelecer ao mesmo aspectos e referências da
personalidade do próprio aluno, foi o modo que encontrei de propor a eles a
possibilidade de falar um pouco a respeito deles, mesmo que de forma indireta,
projetada na imagem do personagem de uma suposta história ou jogo.
Um dos alunos sugeriu que esses trabalhos poderiam ser realizados a partir do lixo
eletrônico, pois conhecia uma empresa que trabalha com esse material. A proposta
já havia surgido deste lugar, do universo eletrônico dos jogos e computadores, mas
o mais interessante foi o fato da idéia da construção desses personagens a partir do
lixo eletrônico, ter surgido dos próprios alunos, isso denota uma sensibilidade por
parte deles em relação ao próprio material a ser utilizado no processo de criação e a
natureza da proposta.
Alunos em contato com os materiais.
Começamos a trabalhar com o novo material, o lixo eletrônico. O processo teve
início com a montagem desses personagens, que antes foram pensados e
idealizados por meio do texto no qual o aluno se identifica, projetando a sua imagem
e personalidade a um personagem. Deste modo, o aluno pôde fazer relações entre a
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importância da construção da imagem e o quanto esta interfere na identidade de seu
personagem, como escolher objetos de determinadas cores porque estas refletem a
virilidade da figura a ser criada ou da necessidade de peças maiores na construção
do objeto para que o resultado dê a sensação de poder. Os primeiros resultados
começaram a surgir. O contato inicial por parte dos alunos com o novo material
começa se concretizar em objetos muito interessantes, cada qual com as suas
particularidades.
Trabalho de um dos alunos.
Pude perceber ao longo da oficina o quanto a questão da identidade se fez presente.
Aproprio-me de uma das idéias de Stuart Hall, autor que usei ao longo deste
trabalho, que diz que as identidades têm haver não tanto com a as questões: Quem
sou eu? De onde vim? Mas muito mais com as questões: Quem eu posso me
tornar? Como eu tenho sido representado e como essa representação afeta a forma
como posso representar-me?
Minha identidade seja ela de artista, docente ou aluno, não é ser fixa, imutável.
Percebo também que as identidades desses alunos vão se alterando e a arte tem
um papel fundamental nesse processo de construção e transformação, pois lidamos
o tempo todo com o brincar de ser outro, e nesse jogo de fazer de conta eu me
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projeto e idealizo, me encontro e reencontro com outras identidades, talvez mais
poderosas, mais potentes, mais coloridas, mais altivas talvez e é nesse jogo entre
ser e projetar que a arte cumpre um dos seus mais fundamentais papéis no campo
da educação, que é o poder de imaginar.
Considerações finais
Ao construir a pesquisa que configurou o meu trabalho de conclusão de curso, tive a
oportunidade de aliar as três dimensões que balizam o próprio currículo da
graduação em que me formei. O trabalho pautou-se em uma investigação
multifacetária que abarcou as dimensões da história da arte, o processo poético e as
questões que envolvem o ser docente em relação ao ensino e aprendizagem de
arte. Deste modo, pude perceber a relevância em relação a imbricar tais campos no
que se refere à formação docente, que este curso de licenciatura em arte propõe.
Questões muito recorrentes vinculadas à representação, como o aspecto identitário,
que se faz presente em todo o percurso histórico. Refletir sobre as relações de
identidade em uma produção poética resulta num processo de amadurecimento da
mesma por desenvolver um posicionamento mais crítico em relação às escolhas de
determinados elementos. Elencar esses aspectos significa interferir no resultado,
que reflete nas relações identitárias, o modo como esses elementos são
organizados dão sentido e identificam não somente as imagens, mas também quem
as criou.
Nessa perspectiva, tais conceitos perpassam também a questão da docência. A
importância de conhecer a cultura visual dos alunos, e os referenciais que trazem,
implica no nosso modo de ser docente. Ao ignorar a oferta de um espaço para o
aluno, em que ele possa mostrar o que traz das suas visualidades culturais e
artísticas, podemos tornar os encontros/aulas desinteressantes, enfadonhos, um
lugar em que o processo de construção de conhecimento fica demarcado somente
pela transmissão daquilo que achamos importante. Estar em sintonia com universo
do aluno e simultaneamente levantar questões pertinentes ao ensino de arte
significa para o professor apropriar-se de uma ferramenta que o possibilita não
perder o vínculo com o discente e ao mesmo tempo fazer a mediação de
conhecimento. Pude perceber também a importância do fazer artístico para o arte-
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educador, compreender os meandros da criação possibilita fazer proposições mais
assertivas com relação à formação do aluno.
Referências
EDWARDS, Betty. Desenhando com o lado direito do cérebro. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000.
GABLIK, Suzi. “Estética Conectiva: A Arte Depois do Individualismo”. In: O Pós-Modernismo J. Guinsburg e Ana Mae Barbosa Organização. São Paulo: Perspectiva, 2005; p.601-610.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: PD&A, 2006.
LOPONTE, Luciana G. Docência artista: arte, estética de si e subjetividades femininas. Porto Alegre: UFRGS, 2005. Tese, Doutorado em Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005.
Olhar e ser visto / [textos Teixeira Coelho, Denis Donizetti Bruza Molino; curador Teixeira Coelho; versão para o inglês Ana Goldberger]. – São Paulo: Comunique, 2008; Coleção Masp.
PAREYSON, Luigi. Os problemas da estética. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
Adriano de Souza Bueno Graduado e licenciado em Educação Artística pela Universidade Estadual de Londrina no ano de 2010 e Pós-graduando do Curso de Especialização em Metodologia de Ação Docente (CEMAD) pela mesma instituição. Ronaldo Alexandre de Oliveira Graduado em Educação Artística (Santa Marcelina – 1987); Especialização em Arte Educação pela ECA/USP (1991); Mestrado em Educação, Arte e História da Cultura (2000) e Doutorado em Educação (Currículo) pela PUC/SP (2004). Professor Adjunto do Departamento de Artes Visuais da Universidade Estadual de Londrina.