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A dinâmica do mercado de propriedades rurais nas Minas Gerais setecentista:
agricultura e mineração no termo de Mariana, comarca de Vila Rica, 1711-1780.
Quelen Ingrid Lopes1
RESUMO: O século XVIII na América portuguesa foi marcado pela exploração das
jazidas minerais de ouro das Minas Gerais. A forte migração para as áreas mineradoras
fomentou o estabelecimento de redes de abastecimento com objetivo de prover tudo o
que ali era necessário, em troca do ouro produzido pelos mineradores. Paralelo a este
mercado abastecedor, o surgimento de um mercado de propriedades rurais local aponta
para uma produção agrária pulsante desde os anos iniciais da economia mineradora. Ao
longo do século XVIII, ao analisar o termo de Mariana, Comarca de Vila Rica,
verificamos a evolução do mercado de bens rurais assim como da paisagem agrária que
demonstram forte vinculação entre a atividade mineradora e a agrícola. Pretendemos
discutir alguns dos elementos que articulavam o funcionamento e dinâmica deste
mercado.
Palavras-Chaves: Mercado, Agricultura, Minas Gerais, Século XVIII.
Introdução
O ouro. Nenhum outro bem explorado na América portuguesa havia causado
tantas e tão profundas mudanças econômicas, fiscais e sociais quanto esse metal
precioso. Em finais do século XVII a descoberta do ouro nos sertões da América
portuguesa dava início à formação de uma sociedade que afirmaria sem dúvidas a
capacidade de articulação e desenvolvimento do mercado interno.
Segundo estimativas do padre Jesuíta André Antonil, ao longo dos primeiros
anos do século XVIII já havia em Minas Gerais uma população estimada em torno de
trinta mil almas: A sede insaciável do ouro estimulou a tantos a deixarem suas terras e a meterem-se por caminhos tão ásperos como são os das minas, que dificultosamente se poderá dar conta do número das pessoas que atualmente lá estão. Contudo, os que assistiram nelas nestes últimos anos por largo tempo, e as correram todas, dizem que mais de trinta mil almas se ocupam, umas em catar, e outras em mandar catar nos ribeiros do ouro, e outras em negociar, vendedor e comprando o que
1 Doutoranda em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora, bolsista Capes.
se há mister não só para a vida, mas para o regalo, mas que nos portos do mar2.
Entre brancos livres, vindos do reino ou de outros territórios da América
portuguesa, somavam-se os indígenas trazidos com “as gentes” paulistas, negros
trabalhadores da lavoura canavieira levados por seus donos interessados na nova
atividade que tanto atraía a cobiça, mas principalmente os escravos africanos que ano a
ano chegavam em grande quantidade para as Minas Gerais, suprir a necessidade de
braços necessários na cata direta ao ouro.
O abastecimento de tal contingente populacional é, sem dúvida, uma das
principais questões surgidas ao lado da produção aurífera, e por ela encetada. Os
primeiros anos da exploração do ouro foram marcados pela instabilidade em razão das
crises de fome (1698-1699 e 1700-1701) que tiveram lugar pela pouca atenção que os
mineiros deram, inicialmente, à produção de víveres, pela inflação que atingia o preço
de todos os gêneros, inclusive os mais básicos à sobrevivência como o milho, e pelas
disputas entre grupos de exploradores que culminaram na Guerra dos Emboabas.
Adriana Romeiro, analisando a influência que os surtos de fome tiveram sobre a
caracterização do espaço natural e simbólico das Minas, percebe um “padrão recorrente
nas situações de extrema penúria” praticada a princípio pelos paulistas e posteriormente
adotada pelos demais aventureiros que iam buscar a sorte na mineração. Quando das
correrias pelo sertão em busca do apresamento dos indígenas, os paulistas apreenderam
um “repertório de saberes sobre a natureza, que os capacitava a extrair dela todo o
necessário à vida, desde a subsistência até a farmacopéia”.3 Quando os paulistas se viam
em dificuldades buscavam logo o abrigo das matas, onde sabiam encontrar o que lhes
era necessário para subsistir até um momento propício para retornarem às suas regiões
de origem.
Aliada a essa “fuga para os matos”, um dos saberes que permitiu a penetração
das bandeiras no território que viria a se tornar a Capitania de Minas Gerais foi a técnica
do plantio de roças em determinados pontos ao longo do caminho, isto para que na volta
das expedições os exploradores pudessem se reabastecer com os víveres que haviam
2 ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brasil. Introdução e Vocabulário por A. P. Canabrava, 2a. ed., São Paulo: Ed. Nacional, s/d., (Roteiro do Brasil, 2), p. 263 3 ROMEIRO, Adriana. Os sertões da fome: A história trágica das minas de ouro em fins do século XVII. In: SAECULUM – Revista de História, João Pessoa, jul./dez. 2008, p.168.
plantado. Nos primeiros anos de povoamento de Minas Gerais manteve-se este tipo de
técnica: Assim que chegavam as Minas, todos tratavam primeiro de plantar suas roças nas imediações das datas minerais, instalando-se depois nos arraiais e povoados, para esperar até que os mantimentos pudessem ser colhidos. Só então é que se tinha início os trabalhos de mineração4.
Mas devido à fragilidade de equilíbrio entre o aumento populacional constante e
a produção realizada, as crises de fome sempre assombravam os mineiros.
O início do povoamento de Minas Gerais não foi simples, ao contrário,
exatamente por ter sido fruto de um boom populacional pouco ou nada controlado, com
a ausência da autoridade real configurada por uma administração local ainda inexistente,
e pelo precário abastecimento das zonas mineradoras- resultado de caminhos e rotas de
difícil acesso e passagem além de largo tempo de viagem- os primeiros anos da
exploração do ouro foram marcados por questões que exigiam soluções prementes e
precisas.
De tal sorte, o surgimento da forte demanda de bens de consumo de toda sorte
ensejou rapidamente a criação de um espaço amplo de atuação de comerciantes e
mercadores com vistas ao abastecimento das zonas mineradoras, que se facilitaria pela
abertura do Caminho Novo ligando as Minas Gerais ao Rio de Janeiro, principal porto
de entrada e saída de produtos importados e de exportação a partir de então. Inúmeros
comerciantes ligados às casas comerciais da Bahia, Rio de Janeiro e mesmo das mais
afastadas praças como a de Lisboa, rumavam para os sertões das Gerais em busca de
negócios, vendendo toda sorte de artigos, desde os supérfluos de luxo, comestíveis
importados e também os elementos indispensáveis à economia mineradora, como
escravos e ferramentas de mineração.
A existência de um setor abastecedor interno foi de suma importância para a
continuidade da reprodução da economia mineradora, mas a criação de um setor de
abastecimento local também teve seu espaço e devida importância. É ilógico pensar que
uma área onde a demanda de abastecimento crescia exponencialmente ao longo dos
anos- resultado do contínuo afluxo de brancos livres e escravos- não fizesse surgir em
seu encalço um setor local de produção de víveres básicos à sobrevivência. De tal modo,
a agricultura e a criação de animais de pequeno porte grassou em torno das áreas de
4 ROMEIRO, Adriana. Os sertões da fome: A história trágica das minas de ouro em fins do século XVII. In: SAECULUM – Revista de História, João Pessoa, jul./dez. 2008, p.168..
exploração aurífera concomitante ao descobrimento e expansão destas. Fruto de um
ritmo contínuo de mobilidade pela região (em virtude da própria característica da
produção aurífera) surge um mercado de terras rurais que pontilhavam os núcleos de
mineração, nas quais produtores rurais (muitas vezes, sendo eles próprios mineiros
concomitantemente) produziam e beneficiavam os gêneros alimentícios básicos da sua
dieta alimentar como o milho, a mandioca e suas farinhas, além da criação de porcos e a
produção de aguardente para o consumo dos seus escravos e/ou abastecimento do
mercado local.
Este mercado de propriedades rurais deve ser compreendido dentro dos
parâmetros de uma sociedade pré-capitalista, na qual toda a ação econômica está
socialmente enraizada. Para o entendimento deste tipo de sociedade temos em vista a
obra fundamental de Karl Polanyi que, ao analisar o surgimento da economia de
mercado entre fins do século XVIII e início do XIX, questiona o modelo de economia
formal, que não contemplava as diferenças entre as sociedades pré-capitalistas, onde a
atividade econômica está inserida nas suas relações sociais, e as capitalistas, onde a
busca pela maximização de ganhos se dá pelo comportamento competitivo.5
Buscamos apresentar dados iniciais de uma pesquisa em andamento lançando
atenção específica sobre os elementos mais incisivos a dar contorno à dinâmica de
funcionamento do mercado das propriedades rurais do termo de Mariana, que se
relacionava de modo intenso à atividade mineradora da região. A delimitação temporal
tem por marco inicial o começo da produção documental base da pesquisa (os Livros de
Notas) e por marco final o momento em que se inicia uma queda irreversível da
produção aurífera, segundo a historiografia pertinente.6 Sítios, roças, engenhos e
fazendas são alguns dos tipos de propriedades que compõem tal mercado, as quais
propriedades eram muitas vezes negociadas com escravos e serviços de mineração, bens
estes de suma importância para a reprodução da economia mineradora, ligados direta ou
indiretamente à produção agrícola e ao mercado de terras local.
O Movimento do mercado de propriedades rurais
5 POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. Rio de Janeiro: Ed. Campus, 1980. Para estudo acerca de mercado pré-capitalista ver: LEVI, Giovanni. A herança imaterial: Trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. 6 FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 15a Ed. São Paulo: Ed. Nacional, 1977; PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1977, entre outros.
O quadro geral do mercado de propriedades rurais ao longo do século XVIII
apresenta até a década de 1720 um período de grande movimento de compras e vendas
de propriedades rurais passando, a seguir, para uma tendência geral de declínio com
retomada de crescimento no número de propriedades negociadas a partir da década de
1770. Estes dois picos de alta- no início e no final do período- com intervalo de retração
do mercado se explicam por razões ligadas diretamente ao processo de mudança da base
econômica da mineração para a agricultura de subsistência, que já na década de 1770
pode ser observada através do mercado de propriedades rurais. A subdivisão do período
de análise em décadas nos permite apreender os movimentos conjunturais pelos quais a
economia local passava e fatores diversos que, direta ou indiretamente, tiveram papel
nas mudanças sofridas pelo mercado de propriedades rurais no século XVIII.
Esses fatores, na mesma medida em que compõe o quadro geral do movimento
de mercado expressam na somatória das suas informações o início de uma mudança
estrutural da base econômica. As atividades agropastoris marcam presença no termo de
Mariana desde o início do povoamento, fato que se comprova pela alta taxa de
negociações realizadas nos primeiros vinte anos de ocupação, as quais são flagradas
pelos dados apresentados no gráfico 1.
GRÁFICO 1 - Concentração de compras e vendas de propriedades rurais, 1711-1780.
Fonte: AHCSM, Livros de Notas 1o e 2o ofício, escrituras de compra e venda, 1711-1780.
A década de 1720 foi particularmente o período de maior movimentação de
negociações de bens rurais no termo de Mariana, mas mesmo anos anteriores já
apresentavam um mercado intenso, havendo mesmo a possibilidade desta década não ter
sido tão marcante em termos percentuais quanto a anterior- visto que negociações
realizadas a partir de contratos particulares foram freqüentes, sendo citadas tais
negociações em “escrito particular” em algumas das escrituras de compra e venda. Com
valor de “fé pública”, a escritura lançada nas Notas oferecia mais segurança
especialmente aos compradores que com elas garantiam o direito à posse da terra diante
de litígios futuros com vizinhos ou antigos moradores, mas também aos vendedores que
com ela podiam exigir a retomada dos bens ou penhora no caso do não cumprimento
das obrigações de pagamento. Não obstante, o reconhecimento social do valor da
escritura particular não era menor do que aquela lançada em Nota, sendo compreensível
que quem havia feito negociação por escrito particular lançasse-as “de novo” na Nota
em virtude de posteriores mudanças no ajuste da negociação como nos prazos de
pagamento, ajustes de uma anterior sociedade nos bens vendidos, ou mesmo pela falta
da assinatura de fiador. Esta última situação é exemplificada pela venda que o tenente
Domingos de Araújo Lanhozo fez de dois sítios com escravos ao mestre de campo
Carlos Pedroso da Silveira, mesmo estando este de posse a algum tempo dos bens por
escritura feita em particular, lançavam-na “de novo” porque o vendedor não queria “que
aquela valesse porque” nela “não assinava o fiador o coronel Salvador Fernandes
Furtado”, assim queria que “essa valesse como nova”7. Lembrando que a escrituração
das notas teve início apenas em 1711, sendo que o povoamento da área há muito já
havia se iniciado e, por conseguinte, o mercado de bens rurais também.
Retornando aos dados do gráfico 1 identificamos três fases nesse mercado: a
primeira, como dito, de alto índice de negociações marcada incisivamente na década de
1720, seguida de uma fase de constante queda nas negociações pelos próximos trinta
anos, tomando novamente a direção de crescimento a partir dos anos 70. Estas fases
refletem conjunturas específicas pelas quais passava a economia e a sociedade local as
quais se refletiram no movimento do mercado. É importante que investiguemos
elementos de importância fundamental para a evolução deste mercado.
7 AHCSM, Livro de Notas 4, 1o ofício, escritura de compra e venda, data 23/08/1715.
O fator da mineração
Para a análise que segue é importante indicar uma distinção que fazemos entre
propriedades com e sem atividades mineradoras. Em muitas das escrituras de compra e
venda de propriedades rurais eram vendidos conjuntamente outros bens, tais como,
escravos, serviços de mineração (águas e terras minerais, serviços mais complexos com
montagem de estruturas, represamentos e desvios de leitos de rios), moradas de casas
separadas da propriedade rural e até mesmo dívidas. Em raras ocasiões pudemos saber
os valores dos bens individualmente, pois o mais comum é que as escrituras tragam o
preço de todos os bens indistintamente num valor único. De todo modo, por
acreditarmos na relevância da mineração para o desenvolvimento não somente do
mercado como da própria atividade agrícola ao longo do século XVIII, fazemos
distinção entre propriedades com e sem bens de mineração: as propriedades rurais
negociadas com tais bens serão denominadas como propriedades mistas e aquelas que
não arrolavam bens de mineração propriedades agrícolas.
A mineração teve papel importante na constituição, desenvolvimento e posterior
redirecionamento do mercado em foco. Tomemos as primeiras três décadas do
setecentos com atenção: este período apresenta uma maior negociação de propriedades
sem serviços de mineração (em números absolutos, 510) que de propriedades mistas
(249), mas isso não significa que a mineração não tinha papel importante nesse
momento nesse mercado. Isso porque, além daquelas propriedades mistas, muitos
mineradores poderiam desenvolver as duas atividades em paragens ou mesmo
freguesias distintas ao mesmo tempo- o que veremos mais adiante. Além disso, estas
décadas são de grande produção aurífera com uma população crescente e que demanda
um abastecimento regular. Com a alta taxa populacional e o contínuo afluxo de pessoas
para as áreas mineradoras é compreensível que as propriedades agrícolas estivessem em
destaque, pois muitos recém-chegados buscavam uma porção de terra para produção de
gêneros básicos. Os mineradores, proprietários de escravos, buscavam sanar parte do
abastecimento necessário à sua empresa mineradora com o próprio trabalho dos seus
escravos em terras muitas vezes adjacentes à área em que se aplicava na busca pelo
ouro. Haja vista que a agricultura praticada na região não demandava grande inversão
de trabalho/hora, portanto, era útil e perfeitamente praticável que o proprietário
diminuísse os gastos da sua empresa ao plantar e beneficiar parte do que era consumido
em sua propriedade por sua família e escravos. As três primeiras décadas analisadas
(1711-1730) detêm o maior percentual de compras e vendas de propriedades rurais do
período de análise total (1711-1780), concentrando 64% das negociações.
Embora a atividade mineradora tenha dado sentido à economia de Minas Gerais
por um maior espaço de tempo, este período revela uma estreita ligação entre o
desenvolvimento do mercado de bens rurais e a atividade mineradora. É fato que a
mineração de aluvião rapidamente teve de ser substituída por formas de exploração bem
mais complexas, trabalhosas e dispendiosas que a da cata do ouro por meio da
separação daquele ao cascalho nas bateias. Tal complexificação do trabalho envolvido
na extração do ouro repercutiu diretamente nas negociações de propriedades rurais, por
serem essas ligadas direta ou indiretamente à atividade da mineração. Nessa
perspectiva, três fatores se sobressaem como reflexo da atividade de extração do ouro
sobre esse mercado: a mobilidade, ou circulação, dos indivíduos dentro das diversas
freguesias do termo de Mariana, que se liga diretamente à mobilidade da empresa
mineradora, em virtude da descoberta de novas zonas auríferas e à busca por outras
águas e terras minerais diante de uma provável redução da produção aurífera; a
aquisição de escravos através das compras e vendas de propriedades rurais
(indispensáveis na mineração e utilizados também na produção agrária) e dos próprios
bens de extração; e a formação de sociedades exploradoras por meio das compras e
vendas, resultado de uma consciência empreendedora que se baseava na divisão dos
riscos e investimentos necessários da atividade mineradora (sem se desconsiderar o
empreendimento em sociedade voltado para a produção da aguardente como também de
alimentos).
A Mobilidade dos mineiros e seu reflexo no mercado de terras
A agilidade com que as propriedades eram negociadas, não permanecendo
durante longo tempo em posse de um proprietário, indica um processo de circulação
dentro da região ocasionada, principalmente, pela própria flutuação da produção
aurífera- soma-se a isso o fato do ouro funcionar como moeda ocasionando um
dinamismo nesse mercado.
Dois exemplos nos informam sobre a mobilidade dos indivíduos no termo de
Mariana. O capitão Pedro de Almeida Dinis negociou propriedades rurais por quatro
vezes ao longo das duas primeiras décadas do setecentos. Sua primeira e única venda foi
a de uma roça, situada no Sumidouro, em 1713, com atividade mineradora exercida em
“um córrego em o Sumidouro e outro em o córrego do Padre Frei Jorge” e mais
quatorze escravos, localidade onde já declarava residir no momento da compra8. Entre
1722 e 1723 comprou várias capoeiras na paragem do Bacalhau, freguesia da Piranga, e
em 1726, declarando-se residente naquela localidade, faz mais uma compra. Dessa vez
foram três sítios no arrabalde da vila do Carmo, quarenta escravos. Dois dos sítios fazia
venda apenas da metade, por pertencer a outra metade a Antônio Ferreira Pacheco, com
quem tinha sociedade no
[...] serviço de água metido nas terras minerais [...] três rodas preparadas de todo o necessário quatro eixos dois ferrados [...] dois caixões preparados de tudo que pertence a sociedade como também um serviço de água que houvera por título de compra que dele fez a Antônio Ferreira Pacheco o qual possui por carta de data [...]9
Tudo dentro da metade destes sítios, tornando-se sócio do mesmo Antônio
Pacheco em parte dos bens. As lavras situadas no Bacalhau, que também comprava
nesta escritura, indicam que Pedro de Almeida Dinis manteria seus vínculos com esta
localidade ainda que passasse a residir nas redondezas da vila.
Declarando-se morador nos Gualaxos, o capitão Antônio de Siqueira Rondon
comprava um sítio no Ribeirão dos Monsus, junto da vila do Carmo em julho de 1714.
Com cem mãos de milho, várias ferramentas de roça e mineração, entre as quais oito
almocafres e oito bateias, roda, prensa e forno de cobre de fazer farinha de mandioca,
mais de 20 aves entre patos e galinhas e 21 escravos. Por preço de 10.000 oitavas de
ouro ((15:000$000) em dois pagamentos pelo tempo de dois anos. Quase quatro anos
depois, em maior de 1718, vendeu o sítio do Gualaxo (onde residia à época em que
comprou o primeiro sítio) com poucos e simples benfeitorias, nada além de uma morada
de casas e senzalas ambas cobertas de capim. Da produção de subsistência deste sítio
contava apenas um bananal e nove alqueires de milho que estava plantado no momento
da venda10.
O capitão Guilherme Mainard da Silva era quem comprava o sítio do Gualaxo e
o mesmo seria seu sócio numa empresa mineradora e agrícola na qual ambos
investiriam no ano de 1724. Esta era formada por um sítio e vários bens extrativos,
situados na Freguesia de São Sebastião. Serafim Pereira vendia a Guilherme Mainard e
Antônio da Siqueira Rondon apenas a metade dos bens, ficando a possuir a quarta parte
8 AHCSM, Livro de Notas 3, 1o ofício, escritura de compra e venda, data 27/05/1713. 9 AHCSM, Livro de Notas 3, 1o ofício, escritura de compra e venda, data 30/01/1726. 10 AHCSM, Livro de Notas 3, 1o ofício, escritura de compra e venda, data 05/07/1714; AHCSM, Livro de Notas 8, 1o ofício, escritura de compra e venda, data 16/05/1718.
cada um dos capitães. Do sítio não há muita referência sobre a estrutura (algo não
incomum), dos bens de mineração sabemos que vendia a metade de umas [...] cartas de datas que das ditas terras [minerais] e veios de água [...] bem assim um córrego de água que se [toma] nas capoeiras do engenho de Lourenço [Dias] [danificado] e deságua no engenho das terras de que se trata [do sítio] [...]11
Nesta operação de compra e venda todos se tornavam sócios, ficando
pertencendo ao vendedor, Serafim Pereira, a metade de todos os bens negociados,
enquanto que dividiam a outra metade o capitão Antônio de Siqueira Rondon e o
capitão Guilherme Mainard da Silva, ficando todos de acordo com os termos das
obrigações da sociedade de exploração a qual previa: a introdução de 100 escravos,
sendo 25 introduzidos por cada comprador e os 50 restantes pelo vendedor, bem como
“dar as ferramentas necessárias aos seus escravos”, além de estabelecer um caixa que
receber e escrituraria o ouro que se tirasse do serviço de mineração fazendo-se
“repartição dele todos os meses”12.
As pesadas obrigações aceitas podem ter tido fundamental importância sobre a
flagrante situação de endividamento do capitão Antônio de Siqueira Rondon, que
acabou por obrigá-lo a vender outra propriedade pouco menos de 10 anos depois, em
fevereiro de 1733. Com a anuência de sua esposa, Maria Pereira Leite, o capitão vendeu
um sítio de roça a João Pinto Fernandes um sítio de roça com datas minerais localizado
no arraial do Pinheiro, freguesia do Sumidouro, o qual se achava “penhorado a
requerimento de Luís Soares da Costa como procurador de Manoel Pereira Ramos por
uma dívida que ao dito Manoel Pereira Ramos” deviam os vendedores. Todo o valor da
propriedade e bens (4:800$000) serviria para pagar não somente a penhora como
também a outros indivíduos para quem o casal era devedor13.
Ao que nos interessa esse exemplo, vemos que o capitão Antônio de Siqueira
Rondon se move por diferentes localidades num curto espaço de tempo: sendo residente
nos Gualaxos adquire um sítio junto da vila, enquanto reside neste, compra uma
empresa mineradora e agrícola em São Sebastião. Posteriormente o flagramos, ainda, no
Sumidouro. O que devemos deter destes exemplos é o fator da mobilidade dos
indivíduos, especialmente no período de alta da produção aurífera. Este fator se torna
mais raro a partir da segunda metade do século XVIII. Essa mobilidade parece indicar
11 AHCSM, Livro de Notas 23, 1o ofício, escritura de compra e venda, data 16/09/1724. 12 AHCSM, Livro de Notas 23, 1o ofício, escritura de compra e venda, data 16/09/1724. 13 AHCSM, Livro de Notas 39, 1o ofício, escritura de compra e venda, data 18/02/1733.
que a compra de uma propriedade e a fixação na mesma não eram sinônimos,
especialmente por aqueles que aliavam atividades de mineração à produção agrária.
Tal mobilidade, refletida num processo de recorrente mudança de donos das
propriedades, na mesma medida que também caracteriza a mudança ou o trânsito dos
indivíduos por diferentes localidades, relaciona-se diretamente com a produção aurífera.
Tendo em vista que a extração do ouro numa determinada jazida se dará pelo tempo em
que for lucrativo, é natural que os mineradores, após algum tempo de exploração de um
córrego ou terras minerais, buscassem áreas novas ou ainda pouco exploradas. Da
mesma sorte, como prática natural e mais do que cotidiana a maioria dos habitantes das
Minas Gerais seguia-se a compra ou posse de uma porção de terras agriculturáveis.
Aquisição de serviços de mineração e escravos
Nesse mercado de propriedades rurais também eram movimentados outros bens
indispensáveis à atividade mineradora: as águas e terras minerais e os escravos.
Segundo o Regimento dos Superintendentes e Guardas-Mores, promulgado em 19 de
abril de 1702, a repartição dos descobrimentos minerais se daria pela concessão por
parte do guarda-mor das cartas de datas minerais, cujo tamanho seria definido de acordo
com o número de escravos do minerador14. Assim o que determinava o acesso legal aos
veios auríferos era a qualidade de dono de escravos. Mas isso não significava a
impossibilidade do acesso por aqueles que não estavam preparados para arcar sozinhos
e de imediato com os gastos da montagem de um plantel mínimo de escravos que lhes
permitisse pleitear parcela das zonas mineradoras. Através da compra de uma
propriedade rural era possível ter acesso a esses outros tipos de bens, podendo-se pagar
os mesmos em prazos que variavam para mais de dois ou três anos. Tempo suficiente
para conseguir efetuar os pagamentos dos bens adquiridos e ainda amealhar algum valor
para si. Já vimos- tomemos, por exemplo, o capitão Antônio de Siqueira Rondon- que a
atividade mineradora demandava investimentos. Quanto maior a fosse a intenção de
lucro maior deveria ser o investimento, especialmente em escravos.
A aquisição de escravos era essencial para a reprodução da economia
mineradora. Sendo o mercado de propriedades rurais também um mercado onde
14 Regimento dos superintendentes, guardas-mores e mais oficiais, deputados para as minas de ouro. In: Códice Costa Matoso, Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1999. Coordenação geral de Luciano de Almeida Figueiredo e Maria Verônica Campos, p. 311-330.
circulavam bens de mineração e escravos é plausível que a ele se dirigissem indivíduos
mais interessados na obtenção desses bens que propriamente nas propriedades rurais.
Fato é que uma negociação envolvendo todos os bens diretamente ligados à atividade
mineradora e agrícola acrescida, ainda, da mão-de-obra escrava representava a obtenção
de uma empresa completamente estruturada pelos principais elementos que compunham
a base da economia mineira, de modo geral da economia de base agrária e escravista da
América portuguesa.
A obtenção de uma carta de datas minerais ou a compra de parcelas de áreas de
mineração sob o domínio de outrem envolvia sempre o risco de que a produção aurífera
não correspondesse ao investimento que a montagem e procedimentos de produção de
um serviço de mineração exigiam. A imagem de uma atividade mineradora feita a céu
aberto sem quaisquer implementações tecnológicas para além do uso dos instrumentos
básicos (bateias, almocafres e cavadeiras, entre outros) deve ser repensada a partir da
percepção de que, muito embora o processo mineratório permaneça com base na
exploração da superfície da terra, a mineração do ouro aluvional sofreu muito cedo com
as implicações decorrentes de uma maior complexidade das formas de extração do ouro.
Foram poucas as inovações tecnológicas encetadas pelos mineradores no século
XVIII, mas as que se fizeram tiveram papel importante. Segundo Andréa Lisly
Gonçalves, a introdução das rodas de esvaziamento das catas e o sistema de tabuleiros
ocorreu muito cedo nas Minas Gerais, baseando-se no relato do paulista Bento
Fernandes Furtado, este sistema teria sido introduzido por volta de 1707 em Minas
Gerais. O funcionamento dos tabuleiros tinha por finalidade reproduzir “o
funcionamento da natureza”:
[...] quando na época das invernadas das chuvas os morros se desmoronavam nas partes altas e das terras acumuladas mais abaixo se retiravam, depois de escavadas, os cascalhos aos quais o ouro, se houvesse pinta, se encontraria misturado15.
A primeira menção a presença da roda de minerar em serviços de mineração
negociados junto com propriedades rurais data de 1721. Na ocasião, Lázaro Fernandes
vendia para Francisco Gomes da Rosa a terça parte de um sítio junto com o qual, além
de outros serviços de mineração, vendia também:
15 GONÇALVES, Andréa Lisly. Escravidão, herança Ibérica e africana e as técnicas de mineração em Minas Gerais no século XVIII. In: Anais do XI Seminário sobre a Economia Mineira: Economia, História, Demografia e Políticas Publicas, Diamantina, 2004. (Disponível em http://www.cedeplar.ufmg.br/diamantina2004/textos/D04A031.PDF
[...] uma parte do serviço do veio de água que tem uma roda com serviço aberto em terras que são de Francisco Carvalho em que é sócio este e o Padre Manoel Pires de Carvalho, Manoel Carvalho, João Batista Pereira e os herdeiros do Capitão Manoel Rodrigues de Souza16
No entanto, o sistema de tabuleiro foi mencionado bem antes, em 1713, na
venda que José da Fonseca Vimeiro fez de um sítio em Ribeirão Abaixo com “serviços
das minhas lavras que constam dos serviços de um córrego na dita lavra, duas catas
desmontadas junto a minha ponte mais duas catas desmontadas no tabuleiro da roça
mais duas catas desmontadas junto a dita venda17”. Mas essa venda foi singular, pois a
complexidade da atividade mineradora só se torna patente a partir da década de 1730,
momento em que se tornam mais comuns as declarações sobre as montagens complexas
e laborais dos serviços de mineração.
Como o próprio Bento Fernandes Furtado afirma, para que se introduzisse essa
inovação no processo da mineração era preciso que o minerador contasse com “grande
desvelo, despesa e trabalho” com quantidade de escravos suficiente para a realização de
todo o trabalho necessário para a montagem do sistema18. A mineração, que desde o
início da exploração do ouro nos sertões da América portuguesa era atividade que exigia
um alto custo de reprodução, com o passar dos anos exigiu cada vez mais preparo e
trabalho dos serviços de mineração. Isto, conseqüentemente, acarretava despesas e
investimentos que nem sempre se traduziam em grandes lucros- uma vez que a
capacidade produtiva de uma data mineral poderia surpreender desagradavelmente o
minerador com uma baixa produção inicial que o obrigava a investir ainda mais no
preparo da área a ser minerada. Todos esses são fatores pertinentes para uma solução
encontrada pelos mineradores para as cada vez maiores exigências da mineração: a
formação das sociedades de exploração.
A formação de sociedades exploradoras
A formação de uma sociedade contava com um tipo de registro notarial próprio,
as chamadas escrituras de sociedade, que informava, de modo geral, os bens nos quais
16 AHCSM, Livro de Notas 17, 1o ofício, escritura de compra e venda, data 20/11/1721. 17 AHCSM, Livro de Notas 2, 1o ofício, escritura de compra e venda, data 30/01/1713. Grifo nosso. 18 Notícias dos primeiros descobridores das primeiras minas do ouro pertencentes a estas Minas Gerais, pessoas mais assinaladas nestes empregos e dos mais memoráveis casos acontecidos desde os seus princípios. In: Códice Costa Matoso, Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1999. Coordenação geral de Luciano de Almeida Figueiredo e Maria Verônica Campos, p 192.
os indivíduos se tornavam sócios, com quantos escravos cada um entrava na sociedade,
quem se tornava caixa administrador, se haveria ou não registro dos lucros e das dívidas
e de quanto em quanto tempo haveria acerto de contas entre os sócios a respeito destes,
o tempo que a sociedade duraria, quais as condições colocadas para a saída de um dos
sócios e declarações específicas, quando as houvessem. Como exemplo, vejamos o caso
de duas sociedades realizadas no ano de 1713. Em setembro deste ano Domingos de
Barros e Miguel Domingues Ramos escrituraram uma sociedade em torno de uma roça,
“dois serviços de lavra de ouro” e escravos19. A roça e as lavras haviam-nas comprado
ambos a Pedro de Almeida Dinis poucos meses antes, ainda estando sujeitos aos seus
pagamentos, vencendo o primeiro pagamento desta compra no mês em que fizeram a
sociedade20. Declaravam, pois, que:
[...] tinham feito entre si sociedade na dita roça, lavras e escravos, assim dos lucros como das perdas, disseram que ele dito Domingos de Barros entrava com doze escravos e ele dito Miguel Domingues com outros doze nos quais entravam nos quais entravam os quatorze que haviam comprado e cada um com a metade da roça e serviços de lavras que haviam comprado, a cuja obrigação estavam ambos obrigados, para terem igualmente parte assim dos lucros que Deus for servido dar como nas perdas, e que dado caso que eles queiram desmanchar a dita sociedade, em qualquer tempo o poderão fazer ambos ou cada um fazendo conta aos ganhos e perdas igualmente, contanto que o dito Domingos de Barros Caldas sairá com 1460 oitavas de ouro de mais do [danificado] que o dito Miguel Domingues por ter entrado com elas [...]21
A administração era dividida por ambos, cabendo aos dois os cuidados com as
cobranças de dívidas devidas à sociedade e aquelas que esta, por ventura, alguém
devesse. Esta escritura de sociedade veio a firmar em documento próprio aquilo que já
havia se realizado através da escritura de compra e venda: uma sociedade em torno dos
bens comprados, definindo o que cabia a cada um investir na sociedade (como é o caso
dos escravos) e declarando valores específicos com que entravam- neste caso as 1460
oitavas de ouro que Domingos de Barros Caldas havia investido na sociedade.
Em julho de 1713, Fernando de Morais Madureira vendeu aos sócios Manoel
Lopes Vieira e Manoel Rodrigues de Souza um engenho com seis escravos. Estes
sócios, em novembro do mesmo ano, firmaram sociedade com o tenente Domingos
19 AHCSM, Livro de Notas 3, 1o ofício, escritura de sociedade, data 09/09/1713. 20 AHCSM, Livro de Notas 3, 1o ofício, escritura de compra e venda, data 27/05/1713. 21 AHCSM, Livro de Notas 3, 1o ofício, escritura de sociedade, data 09/09/1713.
Pinto de Magalhães e Bernardo Gonçalves Chaves nestes bens, sendo cada um deles
obrigados a introduzir 14 escravos22.
Após a compra da propriedade e, eventualmente, precisando de indivíduos
interessados em investir na exploração de um engenho, os sócios Manoel Lopes Vieira e
Manoel Rodrigues de Souza cederam parte dos bens da propriedade a outros. Todos os
sócios acederam à administração da sociedade a Manoel Lopes Vieira e Bernardo
Gonçalves Chaves “dispondo ambos ou cada um por si o que for de conveniência da
sociedade”, claramente selecionando um de cada parte dos sócios- embora todos
estivessem em sociedade, parece ser o caso de que os sócios que haviam adquirido a
propriedade no mercado elegeram entre si um representante, o mesmo se dando em
relação aos dois indivíduos que entraram na sociedade depois da compra. Aos
administradores cabia “tomar contas do rendimento da fazenda e cobrar as dívidas a ela
pertencentes, e dá-las (as contas) aos mais sócios quando lhe pedirem”.
Na formação de uma sociedade, portanto, se definia o que cabia a cada um
investir para o aumento da “fábrica”, quais as condições de funcionamento da mesma
desde os seus administradores até como e quando cada sócio poderia sair da sociedade.
Neste item é importante notar que a “real satisfação” de uma propriedade, ou seja, o
término do pagamento da propriedade adquirida era, em geral, o momento postulado
pelos sócios para o término da própria sociedade. As sociedades eram feitas com prazo
para acabar, o que no caso de sociedades que envolvessem propriedades rurais
significava o momento em que se finalizasse o pagamento da compra da propriedade
rural. Os quatro sócios envolvidos na exploração do engenho estipularam a repartição
do “avanço que Deus for servido dar” (os lucros) somente depois de pago o engenho.
Investir em sociedade era uma alternativa atraente, especialmente por se poder
investir com mais presteza do que singularmente se conseguiria e, conseqüentemente,
atingir os lucros “que Deus for servido dar” com maior rapidez. Era um modo eficiente
de investimento, pois se poderia adquirir e investir em mais de uma propriedade em
concomitância sem se preocupar na lide diária com a produção (desde que, obviamente
se houvesse condição para tal) nem com vultosos valores necessários para um empresa
que os exigisse, como é o caso das propriedades onde se praticava a mineração e nos
engenhos. Nos exemplos citados para discussão da mobilidade dos indivíduos dentro de
22 AHCSM, Livro de Notas 3, 1o ofício, escritura de sociedade, data [?]/11/1713.
termo de Mariana observamos a presença das sociedades, que auxiliavam na montagem
de uma nova exploração agrícola e mineradora.
Embora estes tipos de propriedades rurais garantissem bom retorno do
investimento, também eram feitas sociedades em pequenas propriedades agrícolas. O
fato é que investir em sociedade era mais seguro do que o investimento individual, pois
sempre havia “o risco de diminuição” dos bens e dos rendimentos, como mortes e fugas
de escravos, baixa capacidade de produção das lavras auríferas, perdas ou pouco retorno
da produção agrícola.
Dos exemplos citados tivemos acesso às escrituras de compra e venda das
propriedades e bens objetos da formação das sociedades. Mas isso não é uma regra. A
maior parte das sociedades era feita na própria escritura de compra e venda. Podemos
descrever a formação destas sociedades a partir de duas situações: uma envolve a venda
de uma parcela da propriedade rural por um ou mais indivíduos a um ou mais
compradores. A outra se dá quando dois ou mais indivíduos compram uma propriedade
“inteira” a um indivíduo (ou mais de um, caracterizando o término de uma sociedade
anterior envolvendo a propriedade). Ainda podemos falar em sociedade quando um
sócio vendia sua parte dos bens ao outro sócio, o que era comum e previsto na formação
da sociedade (cláusula de sempre oferecer primeiro ao sócio sua parte nos bens antes de
propor venda a terceiros).
Do total das escrituras analisadas quase a metade (45,58%) envolvia sociedades.
Os exemplos anteriores (a partir das escrituras de compra e venda e de escrituras de
sociedade) fornecem uma indicação do sentido da formação das sociedades: era
estratégia de prevenção diante da incerteza dos lucros a serem auferidos pelos bens, em
virtude de uma diminuição dos bens ou dos riscos existentes nas atividades econômicas
encetadas (produção agrícola de gêneros de subsistência, aguardente e aurífera para o
caso do termo de Mariana).
A entrada de um novo sócio, traduzida na compra de uma parte dos bens por
este, significava um novo agente capaz de trazer ânimo por meio de investimentos e
divisão dos custos arcados com produção na propriedade. Relevante nesse aspecto é
notar que ao longo do século XVIII as sociedades foram presentes em quase metade
(47,42%) das negociações de propriedades mistas (com mineração), enquanto nas
negociações de propriedades agrícolas as sociedades estiveram sete pontos percentuais
abaixo daquele, perfazendo o total de 40,40% das negociações deste tipo.
GRÁFICO 2 - Propriedades rurais agrícolas e mistas com e sem sociedade, por
números absolutos.
Fonte: AHCSM, Livros de Notas 1o e 2o ofício, escrituras de compra e venda, 1711-1780.
A associação com outros indivíduos em uma exploração significava auxílio
mútuo para o desenvolvimento da atividade mineradora, aumento da “fábrica” e divisão
de custos e riscos. Associar-se ampliava o número de investimentos em diferentes
serviços de mineração o que aumentava a margem de produção e rendimento,
conseqüentemente. Um exemplo disso é a grande quantidade de áreas em mineração das
quais era dono o Alferes José Pires Santiago na Passagem. De algumas delas era único
proprietário e em outras já minerava na companhia de outros sócios, quando vendeu 3/4
destes bens de mineração, um sítio com engenho de fazer farinha e mais quatro escravos
ao capitão Manoel da Cruz Pereira e ao licenciado Antônio de Souza Rego. Constavam
os bens de mineração das seguintes terras minerais e serviços:
[...] quatro datas de terras minerais com suas cartas (que partiam) com a dita roça [negociada] que lhe haviam concedido duas pelo [rego] da água [...] duas que se concederam a Agostinho da Costa Lopes que as trespassara a ele vendedor como também disse que era senhor [...] de um serviço de água que principia na roça do dito Luís Vieira e Francisco Antunes sócios pelo qual vinha um [córrego grande] que por termos de amigável composição feita no cartório [...] havia ajustado com o dito Luís Vieira e seu sócio a partir a dita água ao meio e servir-lhes aos ditos e a ele vendedor e que o mesmo se praticara em outro córrego pequeno que passa por debaixo de umas bicas repartindo pelo meio contanto que os ditos sócios Luís Vieira e Francisco Antunes o ajudarão a meter a ele [torná-lo produzível] [...] a sexta parte de uma água que saía do [Itaquês] da qual metade era do Capitão João Pinto de Carvalho e a outra dele vendedor (e) do Capitão
Francisco Ribeiro de Andrade e do Capitão Gonçalo da Costa Gomes da qual sexta parte [...] lhe servia de com ela minerar em três datas de terra [...]23.
Luís Vieira era dono de um sítio que se avizinhava da propriedade do alferes
José Pires Santiago e, como o trecho citado permite observar, as terras minerais dos
sítios de ambos também faziam divisão umas com as outras. As parcelas de águas e
terras minerais concedidas pelas cartas de datas determinavam o que cabia a cada
minerador, mas algumas situações podiam surgir, por exemplo, da necessidade de se
desviar o rio para melhor proveito das áreas mineradas. Neste caso específico, o córrego
em que mineravam os vizinhos foi divido, mas tal divisão parece dizer mais respeito ao
que cabia a cada um do que propriamente a um acordo de forma de utilização da água.
Resolvendo-se a divisão, que provavelmente satisfizera a ambas as partes, coube aos
sócios Luís Vieira e Francisco Antunes, vizinhos do alferes José Pires, a o auxiliarem
no trabalho de colocar em produção a parte que lhe coube pertencer após a amigável
composição das partes. Esses detalhes de acertos anteriores eram declarados pelos
compradores dos ¾ dos bens negociados sócios interessados em tudo e, portanto,
devendo tomar ciência de ajustes anteriores envolvendo os bens que adquiriam. Mas é
interessante notar que, ao contrário de disputas e rixas pela posse de áreas de
mineração- que existiam, de fato- a boa convivência e a procura por um ajuste
satisfatório partindo da máxima “uma mão lava a outra” também era comum nas áreas
de mineração: no caso, ajustada a divisão dos córregos, que pode ter beneficiado mais
aos sócios Luís Vieira e Francisco Antunes que ao alferes José Pires, comprometiam-se
os vizinhos a ajudarem na preparação do terreno que tocava ao alferes para o início da
mineração.
De todo modo, este exemplo demonstra que a sociedade foi um elemento
importante na atividade mineradora, tendo em vista os inúmeros serviços de mineração
e a sociedade de exploração da qual o vendedor já fazia parte com os capitães Francisco
Ribeiro de Andrade e Gonçalo da Costa Gomes. Pelo viés dos compradores, a
diversificação de áreas de atuação pode ser percebida pelo capitão Manoel da Cruz
Pereira, que ao residir em Antônio Dias, termo de Vila Rica, se tornava sócio num sítio
com bens de mineração no termo de Mariana.
23 AHCSM, Livro de Notas 10, 1o ofício, escritura de compra e venda, data 15/05/1719. Dos quais bens de mineração apresentou o Alferes José Pires Santiago cartas de datas de todos.
O tempo de preparo das terras e águas minerais podia ser consideravelmente
longo, o que acarretava assomarem-se as despesas com os escravos com pouca entrada
de rendimentos- ao menos aquele provindo das terras que se preparava- como nos
testemunha Francisco de Castro Ribeiro ao vender seu sítio nas Catas Altas, com
serviço “de água metida em as terras minerais em (a) qual gastara mais de um ano que
nela trabalharam seus escravos para o haver de por corrente para efeito de se poderem
lavrar as terras minerais24”.
Conclusão
Sobressai, principalmente, dos dados e reflexões feitas a forte vinculação entre a
agricultura e a mineração. A utilização feita pelo proprietário das terras da força escrava
em concomitância nas duas atividades demonstra que não havia menosprezo pela
prática agrária pelos mineradores, ao contrário, ela foi largamente realizada na região
ainda no auge minerador, o que se contrapõe à visão de que a mineração era o objetivo
único daqueles que se aventuravam à cata do ouro sendo a agricultura relegada aos
simples roceiros. A formação das sociedades é um fator que deve ser ainda melhor
explorado, mas, no momento, ela nos informa o quão indispensável era construir laços
com outros indivíduos para se inserir ou se estabelecer em certas atividades
dispendiosas, como a mineração e a produção da aguardente, e para redução dos gastos
e mesmo das incertezas advindas das atividades encetadas.
ABREVIATURAS
AHCSM - Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana
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24 AHCSM, Livro de Notas 10, 1o ofício, escritura de compra e venda, data 23/11/1718.
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