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A MATEMÁTICA E O CAMINHO DAS ARTES: ALFABETIZAÇÃO MATEMÁTICA
Manoel L. C. Teixeira1
Resumo: Apresentam-se, neste trabalho, considerações sobre a prática docente e, para isso,
estabelecem-se relações entre a linguagem e o conhecimento matemático. Lança-se mão da poética
dos números como base metodológica, escolha respaldada pelo Ateliê de Matemática: movimento
Ciência e Arte. Os objetivos gerais têm três vertentes: criar metodologias para a sala de aula;
viabilizar a formação do professor e do aluno pesquisador no Ateliê de Matemática; e desenvolver a
transdisciplinaridade na construção dos conceitos matemáticos. A esses objetivos, acrescenta-se
como a pesquisa em sala de aula realizada pelo professor e pelos alunos pode superar os problemas
da alfabetização matemática. A experiência do professor em incluir essa avançada abordagem de
ensino-aprendizagem nas disciplinas do curso de Pedagogia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ) foi o motivo para a criação de novas peças que serão apresentadas na exposição
Matemática e o caminho das artes: alfabetização matemática. O resultado obtido foi, ainda, a
publicação do catálogo Matemática e os caminhos das artes (TEIXEIRA, 2010b) e do livro
Alfabetização matemática (TEIXEIRA, 2010a), além dos poemas Número e Número 1. Dentre
algumas intenções sugeridas neste trabalho, como a pesquisa sobre a alfabetização matemática,
estão as mudanças estruturais nos currículos de matemática em todos os níveis e as mudanças no
processamento das interações entre as diversas áreas do conhecimento. A filosofia radical tomou
conta deste pesquisador nesses anos de escolaridade infinita, pois sempre se aprende, e finita, pois
se encerra com a morte. Mas isto não é motivo para os cientistas e os artistas negacearem esta
proposta de pensamento e ação, embora se saiba que isso nem sempre acontece. Visto que se
acredita e se vive na esperança como dialética que transforma, porque o ser humano historicamente
entrelaça o interior e o exterior, não se coaduna com a alienação proposta pelo sistema vigente. A
educação, então, é lócus privilegiado para que tal mudança aconteça, mesmo com todas as
dificuldades de se criar um cultura educacional no País.
Palavras-chave: Alfabetização matemática. Linguagem. Matemática. Poética. Arte e educação
Apresentação
1 Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected].
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A matemática e os seus conceitos têm natureza abstrata. Dessa forma, utilizam-se
desconhecidos nomes para seus entes e usa-se uma linguagem de difícil apropriação. No entanto, a
alfabetização matemática é apresentada em uma dimensão mais ampla, abarcando tanto a formação
quanto o conceito, cujo nascimento se dá nas variedades encontradas em outras áreas. Nas artes, em
geral, o conhecimento matemático se apresenta relacionado ao real, e esse concreto se torna a
matéria viva da superação do conhecimento matemático. Ao encontro disso, a poética, os jogos, as
histórias, os contos e as brincadeiras são algumas das possibilidades que podem promover a
abertura de novos canais à criação, utilizando uma estratégia denominada Ateliê de Matemática:
movimento ciência e arte, que permite a compreensão dos conteúdos matemáticos e a construção de
saídas para a tão difícil aprendizagem matemática.
A exposição do material concreto Matemática e o caminho das artes: alfabetização
matemática aborda os conceitos matemáticos da topologia, da geometria, da álgebra e da aritmética
em uma perspectiva lúdica, com desdobramentos capazes de melhorar as competências dos alunos.
Configura-se, neste momento, a pesquisa em sala de aula, pois o professor e os alunos criam um
roteiro para que os resultados (trabalhos de professores e alunos) sejam apresentados em diversas
instâncias.
Esses trabalhos estão classificados em 21 quadros com motivos geométricos, topológicos,
algébricos e aritméticos, artísticos e poéticos. Há também 21 objetos, que são sólidos, em terceira
dimensão e de formas variadas. O catálogo (Figura 1) possibilita a visualização dessas peças.
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Figura 1: Amostra do projeto Matemática e o caminho das artes
Os objetivos gerais do Ateliê de Matemática: movimento ciência e arte têm três vertentes:
criar metodologias para a sala de aula; viabilizar a formação do professor e do aluno pesquisador no
Ateliê de Matemática; e desenvolver a transdisciplinaridade na construção dos conceitos
matemáticos. A esses objetivos, acrescenta-se como a pesquisa em sala de aula realizada pelo
professor e pelos alunos pode superar os problemas da alfabetização matemática.
Então, na próxima seção, segue uma pequena amostra do projeto em questão (Figura 2).
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Figura 2: Amostra do projeto Matemática e o caminho das artes
Alfabetização matemática
O ato de ler e o ato de ler a linguagem matemática foram apresentados e discutidos por
Dalilluky (1988). O entendimento do que seja não só ler, mas do que seja a alfabetização
matemática precisa ficar claro. Para a autora, ler e escrever é o que se chama de alfabetização
matemática e compreende, também, a interpretação dos conteúdos matemáticos das séries iniciais.
Outros autores nacionais, como Fonseca (2004), e publicações estrangeiras, como NCED (2003),
produziram artigos sobre a alfabetização matemática e suas variantes.
Quantitative Literacy: why numereracy matters for schools and colleges é uma publicação
do NCDE (2003), em que Bernard L. Madison analisa diferentes autores e as faces que o letramento
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quantitavo (LQ)2 assume. Primeiro, em sua visão, o LQ é a habilidade de compreender e usar
números e analisar dados na vida diária. Linda Rosen, com Lindsay Weil e Claus Von Zastrow,
considera o LQ uma aliança nacional para o negócio. O mundo dos negócios reconheceria a
necessidade dessa educação e das respostas que tal proposta acarretaria em benefício dos
investidores. Já Arnold argumenta que, no LQ, as habilidades devem ser avaliadas nos termos de
sua frequência de uso e valor econômico da força de trabalho. Parícia Cohen considera os aspectos
sócios-históricos e detalha o papel do LQ na Constituição de 1789 dos Estados Unidos da América.
Anthony Carnevale e Donna Desrochers consideram as demandas dos processos demácraticos e as
exigências da força de trabalho atual e futura (NCDE, 2003).
Na mesma publicação, D’Ambrósio (2003), no artigo The role of mathematics in building a
democratic society, faz uma crítica ao LQ e se posiciona favorável a uma matemática mais criativa
e não tanto cartesiana, como tão bem representam as propostas dos professores americanos. Para
D’Ambrósio, a sobrevivência do genêro humano, com dignidade, é o mais urgente, além de ser um
problema universal. Por conseguinte, matemáticos e pedagogos matemáticos têm de refletir sobre o
papel pessoal na inversão da situação mundial atual.
Tradicionalmente, a investigação sobre as questões da alfabetizção e da alfabetização
matemática têm girado em torno de uma pergunta: como se deve ensinar a ler, escrever e contar? O
contar, nessa perspectiva, põe em pauta a questão da quantificação numérica em detrimento da
qualificação. A crença explícita sempre é a de que esses processos de alfabetização começavam e
acabavam entre as quatro paredes da sala de aula e a aplicação de métodos adequados garantia ao
professor o controle sobre o processo de alfabetização dos alunos. Contudo, a contabilização de
fracassos foi se tornando mais alarmante, impondo a necessidade de mudanças radicais ao processo
educativo comtemporâneo.
Como a pesquisa em sala de aula pode superar os problemas da alfabetização matemática?
Entende-se como alfabetização matemática a leitura e a escrita dos números e os significados que
cada símbolo matemático encerra. Como se sabe, a escrita matemática é ideográfica, ou seja, existe,
por trás de cada signo, um significado, o que não ocorre com a escrita alfabética. Os códigos e os
sinais da escrita matemática têm relação direta com a linguagem, podendo-se afirmar que “a
2 O termo letramento quantitativo, traduzido do termo em inglês quantitative literacy, seria a tradução de alfabetização
matemática, considerando as devidas interpretações linguísticas.
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estrutura da língua é uma estrutura matemática” e essa corespondência necessita ser estudada no
sentido da conexão entre suas partes.
No livro Alfabetização matemática (Figura 3), Teixeira (2010a) sugere um caminho rumo a
uma matemática “de viagem”, ilustrada por atividades que contemplam alguns conteúdos do ensino
básico. São passagens para um mundo inusitado, delineando-se um novo campo de pesquisa, em
que a criatividade do aluno é priorizada, com vistas a permitir que os caminhos da língua
portuguesa se emaranhem nos da matemática e das artes.
Figura 3: Capa do livro Alfabetização matemática
Ideias do número
A visão logicista
No final do século XIX, Gottob Frege apresentou a formalização que reduziria todo
arcabouço matemático à aritmética. Pitágoras dizia que eram os números que regiam ao universo.
Mas, somente naquela virada de século, o número teria a sua definição precisa e matemática. A
formalização da matemática via conceitos aritméticos possibilitou a Frege criar um sistema
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axiomático que sustentaria a sua empreitada. Mas não deu completamente certo. Seu trabalho de
anos veio abaixo quando o jovem matemático inglês Bertrand Russell descobriu um paradoxo na
teoria de Frege recém-descoberta.
No livro escrito por Bertrand Russel denominado Introdução à filosofia da matemática,
encontra-se a visão logicista do número. Segundo os logicistas, e Russel era um deles, toda a
matemática pode ser reduzida à lógica. Assim, para poder definir o número segundo essa visão,
devem ser estabelecidos alguns conceitos, tais como classe, classes similares e relação de um para
um.
Russell definiu relação de um para um da seguinte maneira: “Uma relação é dita de um para
um quando, se x tem essa relação com y, nenhum outro x’ tem a mesma relação com y, e x não tem
a mesma relação com qualquer termo y’ outro que não y” (RUSSEL, 1974, p. 22). Duas classes
quaisquer são similares quando cabe entre elas uma relação de um para um. Enumerar é, pois,
estabelecer uma relação desse tipo entre um conjunto qualquer e o conjunto dos números naturais a
partir do número 1. Classes similares possuem a mesma quantidade de elementos.
O número seria a qualidade que caracteriza uma classe maior formada de classes menores
que são similares. Como muitas vezes se utiliza a qualidade para designar a própria classe, poder-
se-ia dizer que número é a classe das classes similares. Então, a ideia de número para os logicistas é
de um ente abstrato que não depende dos elementos aos quais está associado.
O número na visão formalista
O formalismo propõe a reconstrução do conhecimento sobre bases empíricas e lógicas,
afirmando que apenas o conhecimento obtido dessa forma tem o status de verdadeiro. Com base em
termos primitivos, obtidos por meio da experiência, como é no caso da física, ou obtidos sem
ligação com o mundo real, como é no caso da matemática (ponto, reta, plano, vazio), formam-se os
axiomas e os teoremas pelas relações lógicas e, assim, constrói-se todo um conjunto de conceitos
válidos. A esse tipo de conhecimento, obtido mediante inferência válida sobre algumas proposições,
chamou-se lógica dedutiva. A lógica dedutiva, porém, não foi capaz de, sozinha, dar conta de
atestar a veracidade ou não de todas as proposições. Pode-se citar o exemplo do teorema de Kurt
Gödel que evidencia que nem todas as proposições da aritmética são demonstráveis com base em
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um número finito de axiomas. Isso causou grande impacto nos pensadores da época, os quais
buscavam alternativas a esse problema.
Segundo Halmos (1970, p. 47), “cada número será igual ao conjunto de seus predecessores”.
Ao se definir um número qualquer X, deve-se pensar em um conjunto formado pelos elementos {0,
1, X-1}. O zero, por não ter nenhum antecessor, é então definido como o conjunto vazio. O número,
assim definido, é um conjunto formado por todos os números que o antecedem. Por meio da
fórmula de recorrência, cada número será formado pelos elementos de seu antecessor, unidos ao
conjunto unitário formado pelo próprio número antecessor. Assim, por exemplo, o sucessor de X
será definido por X
= X {X}. Tem-se, então, X = {0, 1, ..., X-1}, que, aplicado na fórmula,
leva a X
= {0, 1, ..., X-1} {X} = {0, 1, ..., X-1, X}. Todos os números surgem como
consequência de um processo desse tipo cujo termo primitivo ou base é o número zero. A definição
do número zero é uma verdade ou um axioma sobre o qual se constroem todos os números pela
fórmula de recorrência. Assim, na prática, funciona essa afirmação:
0 = Ø
1 = 0
=0 {0} = Ø { Ø } = {0} = { Ø}
2 = 1
= 1 {1} = {0} {1} = { 0, 1} = { Ø , { Ø}}
3 = 2
=2 {2} = {0,1} {2} = { 0, 1 , 2} = { Ø , { Ø}, { Ø , { Ø}}}
E assim por diante.
É interessante notar também que o número aqui não aparece relacionado a nenhum contexto
histórico-social. Portanto, não tem nenhum significado concreto. Ele é apenas um elemento de uma
estrutura formal fechada em si mesma. As antinomias da teoria dos conjuntos vieram provar a
inconsistência da tese formalista.
A visão psicológica
É de fundamental importância para a construção do número o aspecto sócio-histórico e o do
desenvolvimento das estruturas lógicas de ordem, de classes, de equipotência e topológicas. Fayol
sintetiza as descobertas do construtivismo sócio-histórico e piagetiano em relação à construção do
número.
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As atividades numéricas apresentam um duplo aspecto. Por um lado, elas remetem
à numeração como sistema organizado, elaborado e desenvolvido no seio de uma
determinada cultura. Trata-se de um produto sócio-histórico exterior à criança, mas
que dele deve se apropriar, interiorizando-o. Por outro lado, recorrem a um certo
número de noções lógico-matemáticas. Seriação, equivalência, interação, adição,
subtração etc., que estruturam o sistema. (FAYOL, 1996, p. 155).
O aspecto dito sócio-histórico remete aos sistemas de numeração propriamente ditos.
Diferentes culturas tiveram suas formas próprias de representar quantidades. Dependendo da
cultura, os números são escritos com símbolos diferentes. O sistema de escrita chinês, o indu-
arábico, o romano e o japonês são exemplos de formas próprias de representar quantidades e de
influência da cultura na escrita, cada um com suas escolhas de uso e significados dos símbolos
utilizados na interpretação das quantidades. Essa significação dos símbolos evolui na criança de
acordo com seu desenvolvimento cognitivo e em consequência dele.
Outro aspecto também importante diz respeito à sintaxe da linguagem, que traz relações
lógicas e regras de formação a ela subjacentes. Também aqui o conceito só é entendido quando a
criança percebe as regras de formação ou a sintaxe que caracteriza a escrita do número. Quando a
criança ainda não percebeu essas regras, ela, muitas vezes ao pronunciar a cadeia numérica,
esquece-se de alguns números ou os substitui por elementos similares, tais como os nomes das
cores ou as letras do alfabeto que ocupam a mesma posição do número ocultado. Por exemplo, as
unidades de 0 a 9 e os números de 11 a 15, além das dezenas, não possuem uma regra de formação
clara, tendo que ser memorizados. A ocorrência da ocultação de tais números ou de erros a eles
relacionados é muito frequente. O número dezesseis (dez mais seis), por exemplo, já traz uma regra
de formação (sintaxe) bastante clara, que, quando percebida pela criança, faz com que ela não
cometa erros durante a contagem.
Portanto, sintaxe e significação são dois aspectos da linguagem que também representam um
produto sócio-histórico que a criança deve interiorizar. Lidar com esses aspectos da linguagem é
produzir um desenvolvimento cognitivo e é consequência dele. Essas conclusões coincidem com as
observações de Vygotsky (1989), segundo o qual o desenvolvimento cognitivo é mediado pela
linguagem, como transmissora de um produto sócio-histórico, além de ter relação direta com os
tipos de atividade exercida por tais indivíduos, como, por exemplo, o trabalho executado em seu dia
a dia. Isso lhes dará um pensamento mais abstrato ou mais concreto, dependendo do tipo de
atividade. Outro aspecto que também influencia o desenvolvimento cognitivo de tais indivíduos é o
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fato de trabalharem em grupo ou não. O trabalho em grupo, segundo o autor, favorece esse
desenvolvimento.
A interiorização pela criança dos números e da cadeia numérica verbal e escrita já se
encontra acabada e é um produto sociocultural. Este é um processo que acontece de fora para
dentro. Os chineses, no seu sistema de numeração, têm maior facilidade com os números de 11 a
15. Isso não acontece no português. No chinês, existem regras linguísticas mais claras de formação.
O número 11 se forma como dez-um, o número 13 como dez-três, o número 14 como dez-quatro e o
número 15 como dez-cinco. A regra de formação linguística dos algarismos é mais explícita no
idioma chinês do que no português, para determinados números, o que representa uma facilidade
proporcionada pela cultura.
O segundo aspecto é o desenvolvimento das estruturas cognitivas que embasam o conceito
de número. Este é um processo que acontece de dentro para fora, intermediado, como já visto, por
fatores externos. É importante observar que os programas escolares costumam desconsiderar o
desenvolvimento das estruturas lógicas como importante para a aquisição do número, retendo-se
apenas ao aspecto cultural, que é o próprio sistema de numeração, sem relacioná-lo com o
desenvolvimento mental. Piaget (1975) estuda as modificações internas ocorridas com a criança, as
quais a ajudam a entender o conceito de número. Portanto, conservação, classificação, seriação etc.
são aspectos importantes para que a criança entre em contato com um dado sistema de numeração
não trabalhado em sala de aula.
A resposta que Piaget apresentou à questão “O que é o número?” está ligada ao desequilíbrio
cognitivo, conceito que introduziu para se referir, por exemplo, a dois conceitos já conhecidos e a
um terceiro que desequilibra e supera os outros dois: a teoria do conhecimento existente. Os
conceitos de número das teorias logicista e formalista estão epistemologicamente definidos pela
lógica formal. No caso, o que prevalece é a memória, sem nenhuma relação com o real. O corte
epistemológico introduzido por Piaget (1975) estabeleceu a cognição, pensamento que esclarece
que a linguagem formal, sozinha, não dá conta da definição do número, o que seria, nesse caso, a
ciência puramente idealista.
A gênese do número (PIAGET; SZMINSKA, 1971) necessita da arte da dialética do
concreto. Ao cientificismo idealista, o corte epistemológico piagetiano proporcionou a
transformação via filosofia estruturalista, a qual reduziu a matemática às estruturas algébricas, que
adotam a definição do número dada pelos axiomas de Giuseppe Peano. Essa filosofia apresenta, em
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seu bojo, a estrutura das revoluções científicas de Thomas Kuhn (1992). A Ciência Normal, a
Matemática, até então vigente, em determinado momento, apresenta os cortes epistemológicos que
transformam as suas estruturas. Segundo alguns, por esse motivo, não merece confiança a
matemática, questão inerente a esse vai e vem linguístico.
Essas perspectivas, em suma, mudaram os fundamentos da matemática: os números nas
interpretações formalista, logicista e intucionista. Esta última, tão ao gosto da filosofia estruturalista
e dos estudos piagetianos, não foi mencionada explicitamente neste trabalho.
A filosofia intucionista define o número usando os axiomas de Peano. Possibilita a
apresentação do ensino dos conteúdos da aritmética de forma intuitiva e sentida. O
que era a memorização passou a ser a expressão, por exemplo, dos dedos das mãos
e a visualização de características qualitativas dos objetos, dos lápis e sua
sequência numérica, representadas pelos símbolos 0, 1, 2, .... Na pedagogia
tradicional, os naturais eram anunciados e a correspondência era feita de maneira
quantitativa: 0, 1, 2, 3, ... eram símbolos e ficavam, portanto, no plano da
abstração. (TEIXEIRA, 2014, p. 32).
Essa mudança das estruturas das revoluções científicas abre o caminho para o número via
cognição. Nisso, o pensamento e a linguagem são preponderantes. O cérebro não tem mais o poder
único da linguagem lógica, pois outras linguísticas são incorporadas para se fazer a intermediação
entre o pensamento e a linguagem. O modernismo matemático, movimento que eclodiu nos anos
1930 do século XX, reduziu a matemática às estruturas algébricas, movimento com o qual a teoria
piagetiana é solidária. Com a epistemologia cognitiva, o salto qualitativo se estabelece, e a resposta
à questão do que seja o número avança no entendimento do funcionamento do cérebro humano.
O número é o método
“É como na criação de um poema: algo se impõe a quem o compõe”. (VELOSO,
2016).
A essência das poesias Número (Figura 4) e Número 1 (Figura 5), apresentadas a seguir,
traduz a concepção filosófica de fazer matemática no cotidiano. Por isso, é inspiração
transformadora dirigida à pergunta “O que é o número?”. Número, na verdade, não se define. As
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mudanças axiomáticas são substituídas, como as apresentadas nas duas filosofias da matemática
citadas, o logicismo e o formalismo.
Almeja-se, então, ver prevalecer a construção de novas criatividades. Na escrita das diversas
linguagens universais, para Teixeira (2016), a matemática, as artes e a poética são exemplos que
consolidam o processo de atualização da nova metodologia por meio do materialismo histórico e
científico. A noção do novo rumo da história das ciências e das tecnologias é revisitada. O número é
o Método.
Figura 4: Poema produzido no contexto do projeto Matemática e o caminho das artes
Levando a sério a formulação de Margaret Thatcher ‒ “A economia é o método. O objetivo
é mudar a alma” ‒, que aparece na resenha do livro A nova razão do mundo: ensaios sobre a
sociedade neoliberal, de Cristian Laval e Pierre Dardot (2016), analisa-se o momento atual na
perspectiva da realidade crua a ser transformada. No entanto, não é a economia o método, mas sim
o número. Nesse confronto, estabelece-se a prioridade de inverter o subtema “o objetivo é mudar a
alma” para a questão do uso da linguagem de dominação. Essa atitude de demanda social é
imperativa para a formação de mentes alienadas. As universidades interpretadas pelas ciências ditas
duras (matemática, físicas e outras) produzem, nas instâncias inferiores, o amálgama do processo de
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pensar. Aqui, coloca-se de antemão o slogan da academia inteligente. O movimento filosófico que
permeia o cérebro dessas instituições se origina das vantagens de exercer o poder da capacidade
falível de traduzir o verdadeiro.
Figura 5: Poema produzido no contexto do projeto Matemática e o caminho das artes
Não interessa ao povo ser manipulado por algo tão próprio ao regime capitalista neoliberal.
Essa linguagem, creditada em estância maior à economia, de fato, não acontece, pois é uma simples
usuária do pensamento matemático por excelência. A raiz que a engendra está nos subsolos da
ciência matemática. As oscilações das bolsas de valores, do petróleo, das moedas e, em suma, do
mercado de capitais, por exemplo, mostram a perplexidade de ser um número indiscernível, o que
não se pode ver claramente. Desse modo, a cada dia, há mudanças em todas as citações anteriores.
Portanto, nessa transformação sistêmica, o número assume ser o método para as ciências do
cérebro, assume ser a poética que origina o corte entre a razão e a criatividade exercidas. Trata-se
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das intermediações do indiscernível, o que não se pode afirmar de antemão sobre o certo e o errado,
e da busca incessante pelo que não se sabe claramente a priori, razão da irracionalidade. Trata-se do
método aplicável a todo conhecimento a vir a ser, da descoberta que se faz plena nas passagens dos
riscos a serem vividos, do nada pronto inexiste.
É a partir do número 1, de si mesmo, que se observa e se tem o mundo ao meio jeito. Só para
um sujeito que, assim, os outros surgem, e essa massa no cotidiano se impõe: do 1 para o 2 e assim
por diante. O ser humano é um quanto possível de quantificação momentânea, mas dotado de
qualidades infinitas, não herdadas ou supostamente estabelecidas por normas formais insurgidas e
condicionadas. Esse status quo das ciências ultrapassa os sonhos de ver o belo florescer.
A articulação desse movimento transforma a questão “O que é o número?” para a concretude
proporcionada pela criação artística. As ciências são artes, são duas linguagens universais (a
matemática e a artística) a serviço do novo mundo da razão, e não dos subjacentes. Antes, todos os
cientistas matemáticos ouviam falar dele, o número, e o usavam em datas histórias como medidas
dos diversos sistemas de representação em suas muitas aplicações (arábicas, romanas etc.). Há
quantas maneiras de escrever os números? Muitas, assim como há diversas línguas. Sua procura
significante irá ajudar a fazer surgir coisas importantes na matemática. Frege começou uma etapa
desse conceito.
Surgiram, então, novas filosofias da matemática, entretanto a mente matemática não resolveu
a questão fundamental: o que é, afinal, o número? Escondidos nas suas parafernálias linguísticas,
pouco ou quase nada descortinaram um conceito tão simples e corriqueiro, acobertado desde a
filosofia grega por Pitágoras e seus seguidores: o eterno em vez do simples. A verdade é que a
matemática clássica ainda domina a atualidade. Mas quais motivos têm essa ciência para se
resguardar em tão profundo mistério? A linguagem utilizada para conceituar o número é de
exceção, já que poucos fazem uso dele de fato aplicando-o na vida diária. É como se ainda hoje se
valesse da afirmação cunhada por Pitágoras: “Quem não for geômetra não entra”. Parafraseando,
em relação ao número, “É a Unidade o Deus Uno”, como afirmou o geômetra Grego? A geometria
e o número são para os poucos crentes. Mas esse é o caminho trilhado pela maioria dos cientistas
matemáticos, o caminho do abstrato, da mente não desvelada. Mas o número tem a ver com tudo
isso? Inato, nasce em todos.
Sem um rumo ou um norte, que matemática se deve construir, tendo em vista que a existente
não satisfaz as demandas atuais? Crianças, jovens e adultos são analfabetos de sua linguagem.
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Logo, é necessário reverter a matemática clássica, mexer com os pilares da ciência hegemônica,
refletir e decidir por algo a mais, que falta na ética, e se dedicar e compreender os cuidados que se
deve proporcionar aos outros.
Como trilhar os caminhos transformadores da incompreensão sobre a incompetência de se
oferecer uma cultura emancipada, levando em conta que a escolaridade e o acesso aos bens criados
pela humanidade são propriedades inalienáveis de todos? A negação ao cidadão dessa cultura
matemática milenar se traduz, nos dias atuais, como sujeição à cultura americanizada em geral,
assim como na matemática, que assume o acesso aos bens de consumo, às linguagens e aos serviços
das classes abastadas, num campo restrito a 10 a 15% dos que usufruem o capital, sistema de
execução do mito econômico.
Não seria uma boa ideia, então, transformar o conceito de número? Mudar aquela construção
dos pensamentos lógicos formais para a linguagem poética e das relações imaginárias, legado
cultural que cada povo constrói historicamente rumo às transformações sociais e políticas?
Passou-se a limpo a construção proposta por Piaget (1975), que estabeleceu o avanço no
sentido de se contrapor ao cientificismo mecanicista e de criar o materialismo científico, também de
Vygotsky (1989). A proposta transformadora do autor é a autonomia, incorporada à resolução de
problemas tão ao gosto das zonas de desenvolvimento proximal, de ordem superior e inferior. Aqui,
firma-se a hierarquia cognitiva de braços dados com o sistema que não propõe a emancipação do
sujeito, o capitalismo consentido. Essa atuação científico-pedagógica não interessa, visto que se
deve querer mais. As pesquisas e os descobrimentos matemáticos e, mais geralmente, as ciências e
as artes acontecem nesse devir indiscernível, de idas e vindas em busca do certo, em meio às
incertezas.
Já que a aventura paga os trajetos vindouros com lucro, esta é a proposta: estar sempre nesse
acompanhamento de descobertas. O número, na visão poética, faz a mediação das linguagens
universais, as quais são as inúmeras possibilidades de fazer a filosofia das línguas (a matemática, a
psicologia, as artes e muitas outras). O que a poética dos números emancipa é ser o sujeito o autor
da transformação inclusiva do movimento ciência e arte, emancipação proporcionada pelo
materialismo histórico e científico. O sujeito não é a-histórico, tampouco necessita galgar o
conhecimento histórico por estágios. A hierarquia das funções de ordem superior e inferior se
contrapõe aos estágios. Nos dois casos, o conhecimento ainda não se fez preponderante, em termos
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de emancipação. Em oposição a essas duas abordagens de ensino-aprendizagem, exerce-se o
conhecimento histórico-materialista e científico em todas as artes, a cada dia e a cada hora.
As digressões de um conhecimento ao outro, na Filosofia das Passagens (TEIXEIRA, 2014),
propõem uma nova teoria do conhecimento, sobrepujando as ideias científicas atuais e
ultrapassadas. A matemática como um todo é o método científico que regula o mundo pela sua
cultura filosófica, pela sua estrutura formal e hierárquica, como se fosse uma linguagem não
natural. A questão é de poder ideológico: uma inversão da realidade. Mas não é assim que acontece.
O número, como método científico e artístico, é reduzido aos fundamentos dessa ciência, a
matemática. Capta a trajetória que leva do finito ao infinito. É a língua culta, matemática, como no
português (TEIXEIRA, 2014), externa à ideia de que o conhecimento é privilégio para os poucos
letrados. Como se processa na teoria aqui descrita, o conhecimento se direciona só aos de cima e
não deixa que sua chama se alastre para todos os de baixo. Isto porque, na concepção poética, o
número transluz a nova filosofia da cultura.
Conclusão
Neste trabalho, propõem-se mudanças estruturais nos currículos de matemática em todos os
níveis, como a pesquisa em alfabetização matemática. Mudando a palavra currículo e passando por
uma ruptura histórico-científica e epistemológica, a prática pedagógica se constitui em um
programa que diversifica as relações de ensino-aprendizagem nas suas variadas interpretações:
tradicional, tecnicista, construtivista, poética, dentre outras.
A alfabetização matemática propõe a passagem da terna (matemática, pensamento,
linguagem) para a quadra (matemática, pensamento, linguagem, matéria), motivando a criação da
nova filosofia da linguagem. As linguagens universais são as intermediações que criam a filosofia
da língua, que é passível de interpretação. Este é o caso do conceito de número da matemática
científica, segundo as definições das duas vertentes filosóficas.
Um leque de assuntos ‒ música, matemática, português, culinária, política, linguagens, entre
outros ‒ está presente em qualquer proposta transdisciplinar para a educação transformadora. É
imprescindível mostrar, portanto, a possibilidade de esse fenômeno acontecer na virada educacional
que todos almejam, promovido pelas lutas sociais que hoje acontecem no Brasil.
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Trata-se aqui da filosofia radical que tomou conta do autor nesses anos de escolaridade
infinita, porque sempre se aprende, e finita, porque só encerra com a morte. Quiçá, não seja motivo
para os cientistas e artistas negacearem a proposta de pensamento e ação aqui desenvolvida, embora
se saiba que nem sempre isso acontece. Acredita-se e vive-se na esperança como dialética que
transforma.
As questões abertas neste estudo são relativas a mudanças no processamento das interações
entre as diversas áreas do conhecimento. A educação seria o lócus para tal mudança. Mas se sabe
das dificuldades de se criar um cultura educacional no País.
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