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687 RESISTIR PARA DEMOCRATIZAR: O PAPEL DA GESTÃO DEMOCRÁTICA E PARTICIPATIVA FRENTE À IMPLEMENTAÇÃO DA BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR Resist to democratizate: the role of democratic and participative management in connection with the implementation of the Common Curricular National Basis Nicole Claro Moreira 1 1 Universidade Federal do Mato Grosso do Sul Campus do Pantanal E-mail: [email protected] RESUMO A pesquisa debate o papel da gestão democrática e participativa das escolas públicas diante da implementação Base Nacional Comum Curricular (BNCC). O artigo consta inicialmente de uma revisão bibliográfica sobre a trajetória da BNCC e uma contextualização histórica da gestão escolar, com destaque à sua importância na democratização de ensino. No segundo mo- mento, a pesquisa faz um paralelo entre o processo de elaboração da atual BNCC e o espaço da participação da comunidade escolar na implementaçãodo documento. A pesquisa, de cunho bibliográfico, também apresenta os resultados, discussão e considerações finais, em que se con- clui que o documento fere toda a trajetória de luta e autonomia conquistada pela Gestão Escolar. A Educação está diante de um retrocesso no cenário educacional, semelhante à realidade que se tinha durante o Regime Militar, onde a escola apresentava uma autonomia fraca ou quase nula em suas ações e sua organização possuía um caráter administrativo empresarial (BOR- GES, 2012). O trabalho espera contribuir nas reflexões acerca da implementação recente da BNCC, para que os gestores articulem com as escolas a importância da participação popular frente às medidas que o atual governo vem articulando sem consulta popular, para que todos os integrantes da comunidade escolar reconheçam a força do trabalho coletivo e, juntos, lutem pela sobrevivência da democracia nas Educação e pelo direito de formar e educar o indivíduo em sua totalidade. Palavras-Chave: Base Nacional Comum Curricular . Gestão democrática. Educação INTRODUÇÃO Cultura, vozes, sonhos, lutas, feridas... descrever a dimensão de um currículo escolar não cabe a poucas linhas. O currículo traz consigo as singularidades de cada sujeito que estará

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RESISTIR PARA DEMOCRATIZAR: O PAPEL DA GESTÃO DEMOCRÁTICA E PARTICIPATIVA FRENTE À IMPLEMENTAÇÃO

DA BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR

Resist to democratizate: the role of democratic and participative management in connection with the implementation of the Common Curricular National Basis

Nicole Claro Moreira1

1Universidade Federal do Mato Grosso do SulCampus do Pantanal

E-mail: [email protected]

RESUMO

A pesquisa debate o papel da gestão democrática e participativa das escolas públicas diante da implementação Base Nacional Comum Curricular (BNCC). O artigo consta inicialmente de uma revisão bibliográfi ca sobre a trajetória da BNCC e uma contextualização histórica da gestão escolar, com destaque à sua importância na democratização de ensino. No segundo mo-mento, a pesquisa faz um paralelo entre o processo de elaboração da atual BNCC e o espaço da participação da comunidade escolar na implementaçãodo documento. A pesquisa, de cunho bibliográfi co, também apresenta os resultados, discussão e considerações fi nais, em que se con-clui que o documento fere toda a trajetória de luta e autonomia conquistada pela Gestão Escolar. A Educação está diante de um retrocesso no cenário educacional, semelhante à realidade que se tinha durante o Regime Militar, onde a escola apresentava uma autonomia fraca ou quase nula em suas ações e sua organização possuía um caráter administrativo empresarial (BOR-GES, 2012). O trabalho espera contribuir nas refl exões acerca da implementação recente da BNCC, para que os gestores articulem com as escolas a importância da participação popular frente às medidas que o atual governo vem articulando sem consulta popular, para que todos os integrantes da comunidade escolar reconheçam a força do trabalho coletivo e, juntos, lutem pela sobrevivência da democracia nas Educação e pelo direito de formar e educar o indivíduo em sua totalidade.Palavras-Chave: Base Nacional Comum Curricular. Gestão democrática. Educação

INTRODUÇÃO

Cultura, vozes, sonhos, lutas, feridas... descrever a dimensão de um currículo escolar não cabe a poucas linhas. O currículo traz consigo as singularidades de cada sujeito que estará

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presente dentro da instituição escolar, os anseios dessa instituição para o compromisso social de formar cidadãos críticos, preparados para trilhar seus destinos na sociedade capazes de lutar por uma sociedade mais justa.

Pensar na Base Nacional Comum Curricular como documento normativo requer, antes de tudo, conhecer as diversas realidades presentes na sociedade brasileira. Como pensar em uma base adequada para atender a demanda da esfera pública e privada de ensino? De que forma a comunidade pode fazer parte da construção desse documento? Quando se levanta tais indagações, nos remetemos a pensar no papel da gestão democrática das escolas públicas frente à implementação do documento.

O fi nal dos anos 80 e início dos anos 90 é marcado por grandes mudanças para a Gestão Escolar, com os movimentos que lutaram pela redemocratização da educação. Um dos primei-ros passos foram dados em 1987, com o Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública, cujo foco foi “A descentralização do ensino e o poder local, associados à gestão democrática dos sis-temas de ensino e das unidades escolares” (BATISTA, 2002). Já o segundo e maior passo dado rumo à democratização da educação se dá com a consolidação da atual Carta Magna (Consti-tuição Federal/1988), documento que marca a transição do Regime Militar (1964-1985) à Nova República. Dentre vários artigos, a educação torna-se direito de acesso e permanência a todos.

Em um cenário que se constituía de novos ideais e olhares para a Educação Básica, ree-laboração de documentos, mudanças e lutas, no ano de 1996 é promulgada a atual versão da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, instituída como Lei 9.394/96 que traz, entre suas determinações, a atuação de uma gestão que comporte sujeitos da comunidade escolar local.

Art. 14 – Os sistemas de ensino defi nirão as normas da gestão democrática do ensino público na educação básica, de acordo com as suas peculiaridades e conforme os seguintes princípios:I. participação dos profi ssionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola;II. participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares e equivalen-tes [...];Art. 15 – Os sistemas de ensino assegurarão às unidades escolares públicas de educa-ção básica que os integram, progressivos graus de autonomia pedagógica, administra-tiva e de gestão fi nanceira, observadas as normas de direito fi nanceiro público.

A gestão escolar é composta por pessoas cujo foco de trabalho visa à organização e ges-tão de pessoas que conduzem o processo educacional da instituição, com objetivos comuns as-sumidos por todos, decisões tomadas coletivamente e discutidas publicamente. Gestão é um ato sistêmico, é a visão de um todo sem perder os detalhes das mais variadas partes da instituição. A gestão escolar, diante desse cenário, vem compor um espaço não só prático, como também subjetivo, assim como afi rma Libâneo et. al (2007):

[...] seus objetivos dirigem-se para a educação e a formação de pessoas; seu processo de trabalho tem uma natureza eminentemente interativa, com forte presença das rela-ções interpessoais; o desempenho das práticas educativas implica uma ação coletiva de profi ssionais; o grupo de profi ssionais tem níveis muito semelhantes de qualifi ca-ção, perdendo relevância as relações hierárquicas; os resultados do processo educati-

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vo são de natureza muito mais qualitativa que quantitativa; os alunos são ao mesmo tempo, usuários de um serviço e membros da organização escolar (2007, p. 315).

Antes de analisar o papel da gestão democrática frente à implementação da Base Na-cional Comum Curricular, cabe tecer uma contextualização quanto à trajetória histórica do documento na educação brasileira e uma discussão sobre a implementação da atual versão do documento em discussão.

A TRAJETÓRIA HISTÓRICA DA BASE NACIONAL COMUM CURRICULARTendo sua primeira versão lançada em 2016, a Base Nacional Comum Curricular visa

garantir um padrão curricular obrigatório para todas as escolas brasileiras que atendam a Edu-cação Básica.

Amparada no art. 210 da atual Constituição Federal, e no art. 26 da Lei 9.394/96 - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional –, a discussão sobre a necessidade de uma Base Nacional Comum tem início em 2010, com a realização da Conferência Nacional de Educação (CONAE) que discutiu sobre as“diretrizes e estratégias de ação para a confi guração de um novo PNE” (BRASIL, 2010), em seu Eixo IV:

Para a regulamentação do regime de colaboração entre os entes federados e, conse-quentemente, entre os sistemas de ensino, algumas ações devem ser aprofundadas, destacando-se:[...]k) Estabelecer base comum nacional, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais (CF, art. 210).

Diante das discussões entre os eixos da Conferência e do documento fi nal elaborado pelo evento, foi salientada a importância de se construir uma Base Comum a todos os currícu-los. Em 2014 é, então, construído o Plano Nacional da Educação (PNE), com vigência decenal, que aborda a necessidade da consolidação de uma Base Nacional Comum, para que o Brasil possa, enfi m, garantir a qualidade da educação. Dentre as quatro metas cujo o tema é discutido, pode-se ressaltar a meta 7, do PNE:

Meta 7: fomentar a qualidade da educação básica em todas as etapas e modalidades, com melhoria do fl uxo escolar e da aprendizagem de modo a atingir as seguintes mé-dias nacionais para o Ideb. [...]Estratégias:7.1. estabelecer e implantar, mediante pactuaçãointerfederativa, diretrizes pedagógi-cas para a educação básica e a base nacional comum dos currículos, com direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento dos(as) alunos(as) para cada ano do ensino fundamental e médio, respeitada a diversidade regional, estadual e local

Figura 1: Quadro apresentado pelo Plano Nacional de Educação, na meta 7, referente as médias nacionais a serem atingidas no IDEB.

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Após o início da vigência do PNE, em 2015, a primeira versão da Base Nacional Co-mum Curricular é discutida:

A BNCC é constituída pelos conhecimentos fundamentais aos quais todo/toda estu-dante brasileiro deve ter acesso para que seus direitos à Aprendizagem e ao Desenvol-vimento sejam assegurados. Esses conhecimentos devem constituir a base comum do currículo de todas as escolas brasileiras, embora não sejam, eles próprios, a totalidade do currículo, mas parte dele. Deve-se acrescer à parte comum, a diversifi cada, a ser construída em diálogo com a primeira e com a realidade de cada sistema educacional sobre as experiências e conhecimentos que devem ser oferecidos aos estudantes e às estudantes ao longo de seu processo de escolarização (BRASIL, 2015, p. 15).

Diante do parecer com a consulta pública redigido e enviado para a reformulação do documento, em 2016 é lançada a segunda versão do documento. Essa versão traz a debate duas importantes ações a serem consolidadas na educação, para que se efetive o documento nos currículos escolares: a mudança do material didática para a adequação das exigências que o documento traz, e a formação dos professores, tanto inicial quanto continuada, para que possam entender as mudanças propostas, possam trazer novas contribuições e afi rmem o compromisso de cumprir as ações estabelecidas pelo documento.

No processo de implementação da BNCC, como norma que deve subsidiar a elabora-ção de currículos, e em consonância com as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica, recomenda-se estimular a refl exão crítica e propositiva, que deve subsidiar a formulação, execução e avaliação do projeto político-pedagógico da escola de Educação Básica face a esta norma. (BRASIL, 2016, p. 30).

Entre discussões e debates, chegamos em 2017 com a terceira e última versão da Base Nacional Comum Curricular, que traz as mudanças a serem, enfi m, implementadas nos currí-culos escolares. Esta ultima versão, já com as possíveis modifi cações com base nos pareceres consolidados por meio de consulta pública, precisava ser aprovada pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) e depois homologada pelo Ministério da Educação. O parecer que foi enviado ao CNE para aprovação considera os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) insufi cientes para a homogeneização dos currículos educacionais e que a efetivação de uma Base Nacional Comum, de caráter normativo, fará com que a qualidade da educação seja efetivamente asse-gurada, com suas diretrizes para a Educação Básica. Aprovada em 15 de dezembro de 2017, a Base Nacional Comum Curricular tem dois anos para ser adequada as instituições escolares.

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A PROBLEMÁTICA DA ATUAL BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR

A atual versão traz como objetivo:

[...] o conjunto de aprendizagens essenciais e indispensáveis a que todos os estudan-tes, crianças, jovens e adultos, têm direito. Com ela, redes de ensino e instituições escolares públicas e particulares passam a ter uma referência nacional obrigatória para a elaboração ou adequação de seus currículos e propostas pedagógicas. Essa referên-cia é o ponto ao qual se quer chegar em cada etapa da Educação Básica, enquanto os currículos traçam o caminho até lá. (p. 5).

Alguns pontos devem ser elencados quanto à proposta de mudança nos currículos es-colares. O primeiro ponto a ser analisado é a alfabetização antecipada do 3º para o 2º ano do Ensino Fundamental.

O processo da alfabetização não se dá da noite para o dia, “refere-se à capacidade para criar e compreender mensagens impressas, bem como às mudanças trazidas por esta capacida-de” (GUMPERZ, 1991, p.29). Começa pelo processo do letramento, onde a criança entende a função social das letras e números. Mais do que decodifi car códigos, o processo do letramento leva o sujeito a se descobrir como agente sócio histórico dentro da sociedade uma vez que o mesmo se encontra em uma sociedade predominada por símbolos e códigos. Além do mais, os métodos nãos são esgotados e tampouco o currículo não deve ser estático, pois lidamos com sujeitos singulares, cada qual com suas necessidades, suas defi ciências e em busca de um saber que o transforme e emancipe seu pensar.

Surge, nesse contexto, a preocupação do aprendizado mecanizado, fruto de um processo desesperador em fazer as crianças aprenderem a tempo de corresponderem com resultados posi-tivos a Avaliação Nacional que também será reformulada para atender as novas exigências (até o momento a avaliação que se tem para aferir o nível de alfabetização é chamada de Avaliação Nacional da Alfabetização – ANA1). Aprender a decodifi car o código sem ao menos entender qual a sua função na sociedade pode levar o indivíduo a “robotizar” suas ações e ate mesmo ao esquecimento. Segundo Nunes e Silveira (2009, p. 19), “a aprendizagem [...] se constitui na relação do sujeito com as situações concretas nas quais está inserido. Aprender [...] não pode ser um ato mecânico”.

Esse cenário também poderá levar resultar na antecipação do processo da alfabetiza-ção, escrita e leitura para os espaços da Educação Infantil. Antecipando o processo o Ensino Fundamental terá mais tempo para aprimorar seus resultados, assumindo os riscos de se perder a parte essencial da etapa, o brincar que, segundo Kishimoto (2010) “é uma ação livre, que surge aqualquer hora, iniciada e conduzida pela criança; dá prazer, não exige como condição umproduto fi nal; relaxa, envolve, ensina regras, linguagens, desenvolve habilidades e introduz acriança no mundo imaginário” (p. 1).

Além disso, nessa versão tem-se como instituído, dentre as várias mudanças curricula-res, igualdade de ensino.

1 Ver mais sobre a prova ANA em: http://portal.inep.gov.br/educacao-basica/saeb/sobre-a-ana. Acesso em: 04/08/2018

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A equidade supõe a igualdade de oportunidades para ingressar, permanecer e aprender na escola, por meio do estabelecimento de um patamar de aprendizagem e desenvolvi-mento a que todos têm direito. Decorre disso a necessidade de defi nir, mediante pactu-açãointerfederativa, direitos e objetivos de aprendizagem essenciais a ser alcançados por todos os alunos da educação básica. A BNCC vem cumprir esse papel, tendo como foco principal a igualdade e a unidade nacional. (p. 11).

Falar em igualdade de ensino é traçar uma linha tênue entre as condições de acesso e permanência no ensino e a comunidade escolar que a instituição está inserida. Todos os educa-dores almejam com igualdade de acesso e permanência. A intenção de toda escola pública poder ofertar ensino de qualidade, com todos os padrões que uma escola privada de alto padrão orça-mentário pode ofertar aos seus alunos. Mas, de que forma poderemos falar nessa igualdade com tamanha discrepância social, no que tange a desigualdade social e fi nanceira da população?

Quando se pensa em currículo escolar remete-se a analisar a comunidade pela qual a instituição se insere, as múltiplas vivencias que os alunos trazem para a sala de aula, as con-cepções sobre educação que a escola adota em seu Projeto Político e Pedagógico (PPP), entre outros. Pensar em uma educação homogênea em um país com a dimensão e a diversidade do Brasil, é pensar nos riscos que se assume em desconsiderar singularidades presentes em cada currículo proposto pelas escolas.

O Projeto Político Pedagógico é o documento chave de toda instituição de ensino. Ele caracteriza a escola, dando-lhe uma identidade singular. Por meio dele conhecemos as concep-ções adotadas como método de ensino, qual o objetivo que a escola busca alcançar na sua ação docente e como estrutura-se a instituição.Segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional,em seu artigo 12, inciso I, a escola tem total autonomia na construção do documento. Desse modo cada instituição tem a liberdade de construir o seu PPP de acordo com as concep-ções abraçadas pelo corpo docente.

Pensar em um currículo homogêneo, que atenda igualmente escolas públicas e particu-lares de todo Brasil é descartar a singularidade de cada aluno presente na sala de aula, ferindo sua garantia democrática de ser considerado um individuo de direitos. Considerar o aluno como ser sócio-histórico é reconhecer seu potencial criador, um agente transformador, dentro da sala de aula, um ser completo”[...] o projeto político-pedagógico, na esteira da inovação emancipa-tória, enfatiza mais o processo de construção. É a confi guração da singularidade e da particula-ridade da instituição educativa” (VEIGA, 2003, p. 275).

De acordo com o portalMovimento Pela Base Nacional Comum2, “As escolas também deverão ajustar seus PPP’s à luz da BNCC”. Diante dessa normativa de ajuste do currículo escolar, pensando nas atribuições da Gestão Escolar no que tange ao preparo e organização do PPP da instituição, qual o real papel da Gestão Escolar frente a esse processo de engessamento curricular?

O PAPEL DA GESTÃO ESCOLAR NA DEMOCRATIZAÇÃO DO ENSINO

A partir da ideia do trabalho coletivo, pensar na implementação da Base Nacional Co-mum Curricular, que traz em seu documento a premissa de um currículo que seja capaz de

2 Disponível em: http://movimentopelabase.org.br/. Acesso em: 04/08/2018

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atender igualmente alunos de escola pública e privada de toda esfera brasileira é antes pensar no árduo trabalho que a gestão escolar realiza para formular o Projeto Político e Pedagógico (PPP) das suas escolas.

A gestão democrática é parte do projeto de construção da democratização da socieda-de brasileira. Nesse sentido, a construção do projeto político-pedagógico, a participa-ção em conselhos, a eleição para diretores, a autonomia fi nanceira, são processos pe-dagógicos de aprendizagem da democracia, tanto para a comunidade escolar, quanto para a comunidade em geral, porque a participação, depois de muitos e muitos anos de ditadura, é um longo processo de construção. (PERONI, 2012, p. 26)

Se a gestão escolar é a peça fundamental no processo de democratização do ensino, é com ela que salvaremos o fruto da democratização: a identidade escolar.

Para lutarmos contra o engessamento educacional é preciso superarmos a fragmentação do trabalho pedagógico. A origem da fragmentação não é a divisão técnica, mas sim a neces-sidade de valorização do capital. A escola reproduz aspectos do modo de produção capitalista porque contribui para a valorização do capital e não porque o trabalho pedagógico é fragmen-tado. Há uma forma peculiar de sistematização, elaborada a partir da cultura de uma classe social. E, não por coincidência, é a classe que detém o poder material que possui também os instrumentos materiais para a elaboração do conhecimento. Assim, a escola, fruto da prática fragmentada, expressa e reproduz essa fragmentação, por meio de seus conteúdos, métodos e formas de organização e gestão.

Se o trabalho pedagógico é uma prática social que “atua na confi guração da existência humana e individual e grupal para realizar nos sujeitos humanos as características de seres hu-manos”, como afi rma Libâneo (1998, p.22), em uma sociedade dividida em classes, onde as re-lações sociais são de exploração, ele desempenhará a função de desenvolver subjetividades tais como são demandadas pelo projeto hegemônico, neste caso, o capital. Nesse sentido, pode-se afi rmar que a fi nalidade do trabalho pedagógico, articulado ao processo de trabalho capitalista, é o disciplinamento para a vida social e produtiva, em conformidade com as especifi cidades que os processos de produção, em decorrência do desenvolvimento das forças produtivas, vão assumindo.

Tem-se, nesse contexto, a necessidade da escola abrir suas portas para a comunidade e fazê-la compreender a importância da participação efetiva nas decisões dos conselhos que a representa.

A BNCC vem para normatizar o currículo. Não são apenas sugestões ou ideias a serem acrescentadas ao currículo. É toda uma identidade escolar que se perde em meio ao slogan de igualdade. Mais uma vez reforço a indagação: Como igualar o ensino público e privado em um país onde a desigualdade social é gritante? Como traçar um currículo igual em um país rico em diversidade social e educacional?

É preciso que haja uma mobilização da Gestão escolar frente às decisões tomadas pela esfera governamental. A democracia é um dos maiores direitos conquistados e com ela, o direi-to a educação e ao respeito das diversas singularidades.

Cada instituição é um pequeno mundo, com semelhanças e peculiaridades. Em cada

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uma existe um marco regulador com dimensões internas e externas à própria instituição e às pessoas que nela atuam. Assim, quando pensamos em mudanças nas instituições, é preciso ter a clareza quanto à viabilidade das modifi cações propostas, de acordo com o contexto da escola e, também, a participação dos professores. As mudanças não ocorrem apenas em uma das fases da escola. Sua complexidade requer uma visão sistêmica de seu alcance e suas condições de viabilidades e interesse. Por isso, a gestão como um todo deve ampliar o olhar sobre a escola e as inter-relações de ensino, conhecimento e sociedade.

Educar é uma tarefa coletiva. Não aprendemos sozinhos, tampouco construímos sa-beres isolados. Defender a escola é defender a democracia conquistada pela sociedade. Lutar pela efetivação da democracia e pela garantia da identidade e autonomia escolar é prezar pela formação de cidadãos críticos, pela construção integral de um ser de direitos e de uma escola de direitos. É prezar pela diversidade escolar, pela garantia de um espaço rico em cultura, que valorize seu regionalismo, suas individualidades e seus anseios. A comunidade escolar precisa viver e existir.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em meio a leituras e analises, surge a angustia do futuro educacional incerto. A incerte-za vem diante de um cenário de desmonte e desgaste democrático. Pensar em uma alfabetização antecipada, fruto de uma necessidade do capital em formar pessoal altamente “capacitadas” para responder a necessidade do mercado fi nanceiro nos faz refl etir o papel da escola diante das novas políticas. A educação precisa sim avançar, mas sem tirar o direito das escolas de serem autônomas. Fazendo uma análise para além do documento, tem-se também a perda da autono-mia da Gestão escolar frente ao processo de produção do PPP. Querem uma escola igualitária, mas atribuímos a escola toda a responsabilidade de responder a essa necessidade. Será que a desigualdade está presente apenas dentro da escola? Antecipar a alfabetização é a forma mais didática de se pensar em uma educação de qualidade?

Falar em escola nos remete a pensar em uma instituição, cujo foco é formar cidadãos pensantes, formadores de opinião. “Portanto, o sentido da educação, a sua fi nalidade, é o pró-prio homem, quer dizer, a sua promoção” (SAVIANI apud CARDOSO e LAIA, 2009, p. 1319). Se a instituição tem como a ideal a formação integral do indivíduo, preparando-o para a socie-dade, não há como se pensar em um currículo que não dê margens para esse aluno ter voz nas decisões.

É preciso e até urgente que a escola vá se tornando em espaço escolar acolhedor e multiplicador de certos gostos democráticos como o de ouvir os outros, não por puro favor, mas por dever, o de respeitá-los, o da tolerância, o do acatamento às decisões tomadas pela maioria a que não falte contudo o direito de quem diverge de exprimir sua contrariedade. (FREIRE, 1995, p. 91).

É preciso quebrar o engessamento proposto pela BNCC e permitir o pensar coletivo seja uma das ferramentas imprescindíveis no processo ensino-aprendizagem. Como, aliás, um dos recursos que deve fazer parte das práticas pedagógicas dos professores e todos que atuam no espaço educacional, na construção do conhecimento.A escola precisa se reinventar a todo o

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momento e essa mudança deve partir da gestão, com seu olhar sensível as problemáticas, os ou-vidos atentos às vozes que sempre norteiam algo novo, e um grupo disposto a colaborar de ma-neira conjunta na construção de seus ideais. Um ensinar diferente, que foge da reprodução, que leva os alunos a buscarem a construção do próprio saber.Esse deve ser um dos desafi os a serem trabalhados no currículo escolar, levar os educadores ao pleno envolvimento com o saber, para que assim, estejam preparados para lidar com os desafi os do dia a dia na sala de aula.À escola resta o compromisso de gerar o saber, o qual está interligado a verdade, justiça e igualdade. A humanização do ensino há de ser imperativa.

REFERÊNCIAS

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