RESIDÊNCIA ARTÍSTICA MÓVEL: VAMOS TOMAR O CÉU INTEIRO...

14
RESIDÊNCIA ARTÍSTICA MÓVEL: VAMOS TOMAR O CÉU INTEIRO POR TETO, O MUNDO É TODO MEU, É TODO SEU MOBILE ARTISTIC RESIDENCE: LET'S TAKE THE WHOLE SKY BY CEILING. THE WORLD IS ALL MINE AND ALL YOURS Raísa Curty / UNB RESUMO O texto propõe uma reflexão a respeito de dois trabalhos realizados por Ale Gabeira e Raísa Curty, Hotel Relento e Horizonte Professor, a partir do processo da Residência Artística Móvel, uma expedição de bicicleta realizada pela dupla ao longo do litoral norte do Espírito Santo e Sul da Bahia que se propôs a pesquisar o processo criativo nômade. A partir das especificidades de cada trabalho o texto aborda temas como hospitalidade e educação. PALAVRAS-CHAVE Residência artística; Bicicleta; Deriva; Hospitalidade ABSTRACT The text proposes a reflection on two works carried out by Ale Gabeira and Raísa Curty, Hotel Relento and Horizonte Professor, from the process of the Mobile Artistic Residence, a bicycle expedition carried out by the pair along the northern coast of Espírito Santo and South of Bahia who set out to research the nomadic creative process. From the specificities of each work the text addresses topics such as hospitality and education.. KEYWORDS Artistic Residence; Bicycle; Drift; Hospitality

Transcript of RESIDÊNCIA ARTÍSTICA MÓVEL: VAMOS TOMAR O CÉU INTEIRO...

Page 1: RESIDÊNCIA ARTÍSTICA MÓVEL: VAMOS TOMAR O CÉU INTEIRO …anpap.org.br/anais/2019/PDF/ARTIGO/28encontro... · A Residência Artística Móvel foi pensada como um método de pesquisa

RESIDÊNCIA ARTÍSTICA MÓVEL: VAMOS TOMAR O CÉU INTEIRO POR TETO, O MUNDO É TODO MEU, É TODO SEU

MOBILE ARTISTIC RESIDENCE: LET'S TAKE THE WHOLE SKY BY CEILING. THE WORLD IS ALL MINE AND ALL YOURS

Raísa Curty / UNB

RESUMO O texto propõe uma reflexão a respeito de dois trabalhos realizados por Ale Gabeira e Raísa Curty, Hotel Relento e Horizonte Professor, a partir do processo da Residência Artística Móvel, uma expedição de bicicleta realizada pela dupla ao longo do litoral norte do Espírito Santo e Sul da Bahia que se propôs a pesquisar o processo criativo nômade. A partir das especificidades de cada trabalho o texto aborda temas como hospitalidade e educação. PALAVRAS-CHAVE Residência artística; Bicicleta; Deriva; Hospitalidade ABSTRACT The text proposes a reflection on two works carried out by Ale Gabeira and Raísa Curty, Hotel Relento and Horizonte Professor, from the process of the Mobile Artistic Residence, a bicycle expedition carried out by the pair along the northern coast of Espírito Santo and South of Bahia who set out to research the nomadic creative process. From the specificities of each work the text addresses topics such as hospitality and education.. KEYWORDS Artistic Residence; Bicycle; Drift; Hospitality

Page 2: RESIDÊNCIA ARTÍSTICA MÓVEL: VAMOS TOMAR O CÉU INTEIRO …anpap.org.br/anais/2019/PDF/ARTIGO/28encontro... · A Residência Artística Móvel foi pensada como um método de pesquisa

CURTY, Raísa. Residência artística móvel: vamos tomar o céu inteiro por teto, o mundo é todo meu, é todo seu, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1980-1993.

1981

A Residência Artística Móvel foi pensada como um método de pesquisa e prática,

onde os artistas, no caso eu e Ale, faríamos uma imersão em um trajeto litorâneo e

ficaríamos atentos aos efeitos dessa experiência sobre nós, sobre o nosso corpo. O

projeto envolvia uma viagem de bicicleta de Vila Velha (ES) até Salvador (BA) por 40

dias, mas acabou durando mais de um ano. Nossa proposta era de se deixar afetar

pelos encontros e trabalhar a partir deles, por outro lado já saímos de Vila Velha

com propostas de happenings em nossas cabeças, que acabaram se misturando

aos afetos locais.

A arte pública lança as bases dessa viagem. O título da expedição dita suas regras:

“Tomar o céu inteiro por teto” é um projeto megalomaníaco. “O mundo é todo meu” é

uma afirmação que poderia ter sido dita por qualquer colonizador e seus anseios de

posse. Acontece que fazer do mundo sua casa é diferente de impor ao mundo suas

regras. Afirmar logo em seguida que “O mundo é todo seu” é uma tentativa de

produzir uma noção de propriedade que caminha de forma paradoxal e potente.

Pensávamos em abundância. Pensávamos em um jogo de ganha-ganha que

andasse na contramão da dominação e da exploração.

O crítico e curador Jacopo Crivelli Visconti, fala sobre uma linha de pesquisa

desenvolvida a partir da arte conceitual e a classifica como Novas Derivas (2014).

Segundo identifica o autor, a origem desse novo movimento se encontra

principalmente no situacionismo. A Teoria da deriva (1957) do Guy Debord, lança as

bases de um método que, segundo o olhar que Jacobo propõe, vem sendo utilizado

por artistas principalmente ao longo das últimas quatro décadas, não de maneira

ortodoxamente guy-debordiana, mas com propostas que “enriquecem e matizam”

(JACOBO. p.IX) sua teoria. Logo no início de seu livro, Jacobo observa certa

ambiguidade onde se por um lado os artistas estão cada vez mais em contínuo

movimento fazendo com que suas nacionalidades passem a ser irrelevante, por

outro “a presença do território onde a deriva acontece é quase sempre o elemento

central da obra.” (p.XVIII). Parece ser interessante pensar a Residência Artística

Móvel nesses termos.

Page 3: RESIDÊNCIA ARTÍSTICA MÓVEL: VAMOS TOMAR O CÉU INTEIRO …anpap.org.br/anais/2019/PDF/ARTIGO/28encontro... · A Residência Artística Móvel foi pensada como um método de pesquisa

CURTY, Raísa. Residência artística móvel: vamos tomar o céu inteiro por teto, o mundo é todo meu, é todo seu, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1980-1993.

1982

Durante a efervescência das décadas de 1960 e 1970, a arte conceitual invadiu a

cena artística e performances, happenings e instalações renovaram a noção de obra

de arte. A valorização do processo pode ser percebida como uma reação ao que

Guy Debord chamou de Sociedade do Espetáculo (1967), a sociedade fruto do

capitalismo que tem suas relações mediadas pela produção e pelo consumo. Pode-

se observar esse movimento como uma ruptura da arte com o mercado, que andava

a todo vapor durante os trinta gloriosos. A arte se desfaz do seu fim como objeto.

Sem um produto final as obras não poderiam ser cooptadas pelo sistema, ou assim

se esperava, ou quem sabe, assim foi feito em alguma medida. Fato é, que nesse

momento surgiram discussões que condenavam a voracidade do capital e que ainda

hoje se fazem muito importantes. Enquanto nos anos 60/70, a economia estava a

toda na Europa e nos Estados Unidos, em Itaúnas (BA) e em muitas outras

“colônias”, o que se passava era o outro lado dessa moeda: os moradores assistiram

passar por ali uma incalculável quantidade de madeira de lei extraída da mata

atlântica.

Itaúnas foi a cidade onde fizemos nosso primeiro trabalho. Durante os anos 70, a

debilitação da vegetação que continha as dunas entre a vila e o mar, permitiu que os

ventos atingissem os montes de areia que foram avançando sobre as casa e em

poucos anos soterraram por completo a Antiga Vila. Hoje, andar sobre as dunas é

andar sobre a antiga cidade. Inclusive há dias em que se pode tropeçar no topo da

torre do sino da Igreja. Lá são encontrados vestígios do povoado de colonos

portugueses, como louças e objetos pessoais bem como vestígios dos índios

tupiniquins que por alí passavam.

Chegamos em Itaúnas após um mês de viagem. As questões que pairavam em

nosso corpo eram como uma troca de correspondência com o espaço. Arrisco dizer,

talvez por experiência própria, que existem pessoas que já nascem desterradas. As

pessoas que nascem dessa maneira partem rumo a uma jornada por chão:

vagueiam, caminham, seguem, partem e continuam partindo em busca, em fuga, em

deriva. O acolhimento é fundamental para a nossa sobrevivência. Não só o

Page 4: RESIDÊNCIA ARTÍSTICA MÓVEL: VAMOS TOMAR O CÉU INTEIRO …anpap.org.br/anais/2019/PDF/ARTIGO/28encontro... · A Residência Artística Móvel foi pensada como um método de pesquisa

CURTY, Raísa. Residência artística móvel: vamos tomar o céu inteiro por teto, o mundo é todo meu, é todo seu, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1980-1993.

1983

acolhimento que os outros nos oferecem, mas também o nosso lugar como

acolhedores. Nesse trabalho, as relações entre hóspede e anfitrião, são colocadas

em jogo. A hospitalidade é o que faz o nômade possível. O anfitrião acolhe, recebe o

que está de passagem em sua casa, compartilha seu alimento e o seu tempo, o

anfitrião aceita a interrupção. Já o hóspede é o estrangeiro, o imigrante que veio de

outro canto, o viajante e por vezes o bandoleiro, mas não um sem casa, pois os

passageiros possuem a vocação de habitar o trajeto, residem em qualquer lugar, se

apropriam, permitindo que sejam eles também anfitriões do seu espaço-tempo.

Gostaria de pensar então na receptividade da arte e encarar a Residência Artística

Móvel também como uma hospedaria. A arte tem um destino, o mesmo tipo de

destino das portas abertas, das entradas abertas, das casas de pensão. A arte

abriga o estrangeiro. A arte é ela mesma o nome de um hotel.

Figura 1. Gabeira, Ale. Curty, Raísa – Hotel Relento, 2015. Fotografia digital. Acervo dos artistas.

Page 5: RESIDÊNCIA ARTÍSTICA MÓVEL: VAMOS TOMAR O CÉU INTEIRO …anpap.org.br/anais/2019/PDF/ARTIGO/28encontro... · A Residência Artística Móvel foi pensada como um método de pesquisa

CURTY, Raísa. Residência artística móvel: vamos tomar o céu inteiro por teto, o mundo é todo meu, é todo seu, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1980-1993.

1984

Figura 2 e 3. Gabeira, Ale. Curty, Raísa – Hotel Relento, 2015. Fotografia digital. Acervo dos artistas.

Figura 4 e 5. Gabeira, Ale. Curty, Raísa – Hotel Relento, 2015. Fotografia digital. Acervo dos artistas.

Para o Hotel Relento foram dispostas doze camas em uma linha horizontal sobre as

Dunas de Itaúnas. A linha traçada inscrevia um campo de acolhimento sobre a

paisagem. A mobília desviada compunha a instalação provisória que insinuava uma

situação de sono coletivo. Estávamos interessados em sonhar os sonhos da Antiga

Vila. Perguntava-me como poderia se dar a comunicação entre os desacordados.

Será que por dormirmos um ao lado do outro conseguiríamos fazer um corpo de

sonho? Será que esse corpo de sonho seria permeado pelos sonhos que ali já

pairavam? Talvez assim como Laurie Anderson na série Institutional Dream (1973),

também procurávamos saber se os sonhos são influenciados pelos lugares onde

são sonhados. (ANDERSON, 2011)

Page 6: RESIDÊNCIA ARTÍSTICA MÓVEL: VAMOS TOMAR O CÉU INTEIRO …anpap.org.br/anais/2019/PDF/ARTIGO/28encontro... · A Residência Artística Móvel foi pensada como um método de pesquisa

CURTY, Raísa. Residência artística móvel: vamos tomar o céu inteiro por teto, o mundo é todo meu, é todo seu, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1980-1993.

1985

De “natureza pscicogeográfica”, as derivas são uma forma de reconhecimento do

território. As derivas investigam o ambiente a partir do estado psíquico e emocional

das pessoas que a praticam. A caminhada é também uma forma de medir o mundo

com o seu próprio corpo e de medir seu corpo através do mundo. Ao mesmo tempo,

as derivas afirmam um “comportamento lúdico-construtivo”, que segundo Jacobo

querem apreender a “realidade profunda, misteriosa e escondida da cidade”. Poderia

dizer que o Hotel Relento é uma boa tática de apreensão do território, mas me

ponho a pensar quais são os anseios dessa prática. Debord fala sobre “estabelecer

uma cartografia influencial que falta até o momento (...) não se trata exatamente de

criar continentes duráveis, mas de mudar arquitetura e o urbanismo”. Quando

Debord fala sobre tal cartografia de continentes não duráveis, me lembro de Suely

Rolnik e a cartografia sentimental:

Sendo tarefa do cartógrafo dar língua para afetos que pedem passagem,

dele se espera basicamente que esteja mergulhado nas intensidades de

seu tempo e que, atento às linguagens que encontra, devore as que lhe

parecerem elementos possíveis para a composição das cartografias que

se fazem necessárias. O cartógrafo é antes de tudo um antropófago.

(ROLNIK, 1989, p.15-16)

Talvez seja então essa uma prática faminta, que quer deglutir outras culturas, que

quer uma origem para chamar de sua. Talvez o desterramento de nascença seja

apenas uma desculpa para sempre partir. Talvez o real motivo da partida seja a

curiosidade. Fome pelo outro, fome pelo próximo. “O cartógrafo é um verdadeiro

antropófago: vive de expropriar, se apropriar, devorar e desovar, transvalorado. Está

sempre buscando elementos/alimentos para compor suas cartografias.” Como o

cartógrafo pode não ser um ser um voraz? Rolnik segue o texto dizendo que o

critério de escolha do cartógrafo consiste em “descobrir que composições de

linguagem favorecem a passagem das intensidades que percorrem seu corpo no

encontro com os corpos que pretende entender.” Talvez, o uso do corpo como

principal ferramenta de conhecimento do espaço seja o domador de tal voracidade.

Acreditar no corpo antes de tudo, acreditar nas capacidades do “corpo vibrátil”.

Corpo, antídoto da voracidade moderna.

Page 7: RESIDÊNCIA ARTÍSTICA MÓVEL: VAMOS TOMAR O CÉU INTEIRO …anpap.org.br/anais/2019/PDF/ARTIGO/28encontro... · A Residência Artística Móvel foi pensada como um método de pesquisa

CURTY, Raísa. Residência artística móvel: vamos tomar o céu inteiro por teto, o mundo é todo meu, é todo seu, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1980-1993.

1986

Sobre a semana que antecedeu a instalação gostaria de mencionar o livro O

Estrangeiro para nós mesmos (1994), onde Julia Kristeva nos dá uma perspectiva

histórica do estrangeiro além de escrever uma sequência de situações pela qual o

estrangeiro passa. A própria autora que nasceu na Bulgária e viveu boa parte de sua

vida na França conhece pessoalmente determinadas sensações. Encontrar (p.xx) é

um parágrafo em que Kristeva se debruça sobre a descrição do encontro entre um

possível anfitrião e um possível hospéde.

O encontro equilibra o nomadismo. Cruzamento de duas alteridades, ele

acolhe o estrangeiro sem fixá-lo, apresentando o anfitrião ao seu visitante,

sem engajá-lo. Reconhecimento recíproco, o encontro deve a sua

felicidade exatamente ao provisório, pois os conflitos o dilacerariam se

tivesse que se prolongar. (KRISTEVA, 1994, p.18)

Após esse depoimento que para mim muito tem a ver com certa sensação

provocada pela Residência Artística Móvel, onde se atravessa, onde se

cumprimenta para logo em seguida dizer adeus. Nós, passageiros, realizamos

sucessivos encontros e sucessivas despedidas. Chegamos com a certeza de que

iremos embora, constantes atravessamentos nos põe diante da natureza

impermanente das coisas. Acontece que Kristeva segue dizendo que o estrangeiro é

um ávido por encontros, ela os narra de uma forma alegórica que facilmente agrega

uma camada de compreensão ao trabalho da Residência Artística Móvel:

O encontro em geral começa com uma festa do paladar: pão, sal e vinho.

Uma refeição, uma comunhão nutritiva. Um confessa-se bebê faminto, o

outro acolhe essa criança ávida: num instante eles se fundem no rito da

hospitalidade. (...) O nutritivo banquete é inicialmente um pouco animal,

elevando-se aos vapores dos sonhos e das idéias. Os celebradores da

hospitalidade, por algum tempo também se alinham espiritualmente.

Milagre da carne e do pensamento, o banquete da hospitalidade é a utopia

dos estrangeiros: cosmopolitismo de um momento, fraternidade dos

convivas que acalmam e esquecem as suas diferenças, o banquete está

fora do tempo. Ele se imagina eterno na embriaguez daqueles que,

entretanto, não ignoram a sua fragilidade provisória. (KRISTEVA, 1994,

p.19)

Page 8: RESIDÊNCIA ARTÍSTICA MÓVEL: VAMOS TOMAR O CÉU INTEIRO …anpap.org.br/anais/2019/PDF/ARTIGO/28encontro... · A Residência Artística Móvel foi pensada como um método de pesquisa

CURTY, Raísa. Residência artística móvel: vamos tomar o céu inteiro por teto, o mundo é todo meu, é todo seu, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1980-1993.

1987

O Hotel Relento foi amplamente comemorado nos banquetes da hospitalidade de

Itaúnas. Vivemos essa embriaguez com mais de quarenta anfitriões, que ofertaram

ao trabalho as camas necessárias, além de colchões, travesseiros, um trator para o

transporte da mobília, alimentos para lanches e café da manhã e todo o suporte

necessário para o acontecimento.

Em março de 2015, estávamos passando por um período em que a seca assolava o

sudeste. Já não chovia há mais de três meses. Foi na primeira noite do Hotel

Relento que caiu a primeira chuva. Amanhecemos sem ter podido realizar a

experiência. À luz do dia as camas ficaram nas dunas que é o ponto de acesso a

praia, por onde moradores e visitantes transitavam e interagiam com a instalação.

Resolvemos anoitecer mais uma vez por alí e tentar realizar o sono coletivo sobre a

Antiga Vila. Muitos compareceram, eu mesma estava dormindo quando sonhei com

agulhadas geladas atravessando o meu rosto e a chuva mais uma vez bateu à porta.

A falta de resultado a princípio, ou seja, não ter conhecido os sonhos porque eles

não foram sonhados, poderia insinuar certo desapontamento, mas acredito que daí

surgem outras perspectivas. Ponho-me a pensar que fez-se obra todo o movimento,

que eu não saberia dizer nem onde começou nem onde terminou.

Voltando a observação de Jacobo, sobre a ambiguidade do movimento dos artistas,

que ao mesmo tempo que se desterritorializam, procuram lugares de ancoragem sob

os quais seus trabalhos vão experimentar um pouco de chão, penso que de fato, as

ações propostas pela Residência Artística Móvel tem relação direta com o território

onde acontecem. São concebidas a partir da vivência no local e o mais importante,

são feitas no próprio local e para o local, provocando uma relação social de afeto

que arrisco dizer ser a base do trabalho. Gostaria de lembrar aqui de Nicolas

Borriaud e o seu livro Estética Relacional(2009). O autor também é citado por

Jacobo (2014), que diz que boa parte das novas derivas poderiam ser lidas nesse

contexto.

Page 9: RESIDÊNCIA ARTÍSTICA MÓVEL: VAMOS TOMAR O CÉU INTEIRO …anpap.org.br/anais/2019/PDF/ARTIGO/28encontro... · A Residência Artística Móvel foi pensada como um método de pesquisa

CURTY, Raísa. Residência artística móvel: vamos tomar o céu inteiro por teto, o mundo é todo meu, é todo seu, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1980-1993.

1988

Durante a década de 1980, artistas voltaram-se novamente para o ateliê, em um

movimento de retorno à pintura. Porém logo na década seguinte (1990), as práticas

dos 60/70 se manifestaram com força. Os trabalhos novamente pairavam entre a

ação artística e a ação social e ocupavam os espaços dentro e fora da galeria. Aliás,

muitas vezes, o que passou a ser mostrado na galeria foi apenas o registro do

processo de pesquisa que incluía um trabalho social ativo. O livro de Borriaud se

empenha justamente em uma leitura desse período sob o ponto de vista da Estética

Relacional. O curador apresenta uma variedade de trabalhos que têm na atividade

relacional seu princípio estético. Gosto do fato das relações serem colocadas em

evidência na obra de arte. O autor fala sobre “interstícios sociais” que seriam

espaços-tempo onde nos afastamos da cultura vigente para experimentar outras

formas de relação.

A relações produzidas pela Residência Artística Móvel possuem suas

peculiaridades. A bicicleta com certeza é peça fundamental desse interstício que

criamos. Ela se demonstrou uma ferramenta chave para abertura de portas. A

relação de hospitalidade que se deu ao longo dessa viagem está relacionada com

essa escolha, que nos afasta da figura do turista tradicional e nos livra de muitas

suspeitas. De todo modo, sempre éramos estrangeiros. Hotel, hospitalidade,

hostilidade: todas essa palavras possuem uma raiz comum. Hospitalidade é uma

questão que segundo Derrida (2003) mais do que ter a ver com o estrangeiro, ela é

uma questão de estrangeiro. Uma questão vinda do estrangeiro. Essa é a potência

da hospitalidade, uma questão que é discutida a partir da chegada do outro.

Horizonte Professor é mais um trabalho da Residência Artística Móvel e o considero

muito importante nessa trajetória. Inevitavelmente ele fala sobre educação. São

dezoito carteiras escolares dispostas em uma linha horizontal de frente pro mar. A

linha de pensamento que eu vinha desenvolvendo em relação a educação, partia

primeiramente dos dois anos (2013-2014) que trabalhei como artista educadora no

CCBB-RJ e segundo pela própria experiência da Residência Artística Móvel.

Page 10: RESIDÊNCIA ARTÍSTICA MÓVEL: VAMOS TOMAR O CÉU INTEIRO …anpap.org.br/anais/2019/PDF/ARTIGO/28encontro... · A Residência Artística Móvel foi pensada como um método de pesquisa

CURTY, Raísa. Residência artística móvel: vamos tomar o céu inteiro por teto, o mundo é todo meu, é todo seu, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1980-1993.

1989

Figura 6. Gabeira, Ale. Curty, Raísa – Hotel Relento, 2015. Fotografia digital. Acervo dos artistas.

Como educadora pude acompanhar de perto a relação do público com a obra e

perceber a importância da arte quando encontra o outro. Lembro em uma exposição

onde uma criança subiu em uma das peças. O trabalho era de concreto, mas não

poderia ser tocado. Os trabalhos, na maioria das vezes eram apenas para

contemplação, ou interação mediada por instrutores. Não que eu pense que não

possa existir trabalho para contemplação em museu, mas não era fácil pra mim,

interferir na espontaneidade de um corpo curioso. De todo modo, persistiu a vontade

de retirar as cercas que dividem a arte da educação e deixar as duas matérias

habitarem o mesmo território, ambas com seu enorme potencial de reinvenção do

mundo. Distantes da sala de aula e distante dos museus, nos afastamos dos

grandes circuitos e das instituições, porém levamos conosco uma residência, um

laboratório ambulante, espaço de investigação. A arte, assim como a escola, é

espaço de investigação. O lugar da investigação é o lugar da curiosidade. Investiga-

se para conhecer, mas não se trata de buscar um conhecimento que como um

Page 11: RESIDÊNCIA ARTÍSTICA MÓVEL: VAMOS TOMAR O CÉU INTEIRO …anpap.org.br/anais/2019/PDF/ARTIGO/28encontro... · A Residência Artística Móvel foi pensada como um método de pesquisa

CURTY, Raísa. Residência artística móvel: vamos tomar o céu inteiro por teto, o mundo é todo meu, é todo seu, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1980-1993.

1990

espiral trará ao anfitrião uma melhor condição. O circuito da curiosidade não se

fecha nem se amplia ele é potencialmente autodestrutivo, pautado na transitoriedade

e na receptividade infinita. A curiosidade é a força motriz da hospitalidade e

consequentemente do conhecimento.

Figura 7 e 8. Gabeira, Ale. Curty, Raísa – Hotel Relento, 2015. Fotografia digital. Acervo dos artistas.

Figura 9 e 10. Gabeira, Ale. Curty, Raísa – Hotel Relento, 2015. Fotografia digital. Acervo dos artistas.

O ritmo da viagem pelo litoral, é marcado pelo movimento cíclico do nível das águas.

Cumuruxatiba, nome de origem tupi, dado pelos índios Pataxó, significa maré

rasante, fenômeno onde a maré passa por intensa variação ao longo do dia. Durante

a maré baixa em Cumuruxatiba, é possível andar por mais de 100 metros mar

adentro. Horizonte Professor é um trabalho entusiasmado com o aprendizado

através das marés, além disso, é uma saudação aos pescadores com quem

havíamos convivido durante os últimos meses.

Page 12: RESIDÊNCIA ARTÍSTICA MÓVEL: VAMOS TOMAR O CÉU INTEIRO …anpap.org.br/anais/2019/PDF/ARTIGO/28encontro... · A Residência Artística Móvel foi pensada como um método de pesquisa

CURTY, Raísa. Residência artística móvel: vamos tomar o céu inteiro por teto, o mundo é todo meu, é todo seu, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1980-1993.

1991

A instalação foi realizada diariamente durante a maré baixa diurna, pelo período de

uma semana. As carteiras escolares vagas se configuravam em um convite a sentar.

Sabíamos que as carteiras sugeriam um aprendizado que não valorizava a

experiência do corpo, mas pensamos que o trabalho também falava sobre esses

limites, sobre uma tradição colonial deslocada, jogada em outro contexto. Ao longo

dos dias que a instalação foi exposta, diversos transeuntes pararam, observaram e

respeitaram a sugestões do trabalho de se sentar para ver e ouvir o mar. Pequenos

ciclistas que passavam próximo ao local, viram a organização metódica das carteiras

como oportunidade de ziguezaguear, utilizaram-nas como balizas. Conforme os dias

foram passando, recebemos a visita de muitas crianças e a dessignificação das

carteiras tomou um rumo que acabou dentro do mar. Foi na inesquecível visita da

Vila Escola ao Horizonte Professor que as carteiras foram levadas para dentro

d’água. A iniciativa das crianças diante da regra, no caso a carteira, foi de total

irreverência: nas mãos deles, elas se transformaram em trampolins, em palcos, em

pranchas de surf.

O Horizonte Professor fala sobre o nosso lançamento em um trajeto litorâneo: ele é

um trabalho entusiasmado com o aprendizado através das marés e uma saudação

aos pescadores com quem havíamos convivido durante os últimos meses.

A viagem é hoje onipresente nas obras contemporâneas, quer os artistas

recorram a suas formas (trajetos, expedições, mapas…), iconografia

(espaços virgens, matas, desertos...) ou métodos (do antropólogo, do

arqueólogo, do explorador...). Se esse imaginário nasce da globalização,

da democratização do turismo e dos deslocamentos pendulares, cabe

destacar o paradoxo constituído por essa obsessão pela viagem no

momento que desaparece toda terra incógnita da superfície do globo:

como se tornar o explorador de um mundo já esquadrinhado pelos satélites

e do qual cada milímetro já se encontra cadastrado? E, de modo mais

geral, como os artistas podem dar conta do espaço nos quais são levados

a viver? (BORRIAUD, 2009)

Usar a Residência Artística Móvel como método acaba nos aproximando de todas

essas questões, afinal seu eixo central é justamente uma deriva. Muitas vezes já me

Page 13: RESIDÊNCIA ARTÍSTICA MÓVEL: VAMOS TOMAR O CÉU INTEIRO …anpap.org.br/anais/2019/PDF/ARTIGO/28encontro... · A Residência Artística Móvel foi pensada como um método de pesquisa

CURTY, Raísa. Residência artística móvel: vamos tomar o céu inteiro por teto, o mundo é todo meu, é todo seu, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1980-1993.

1992

questionei se esse deslocamento de bicicleta é em si um trabalho de arte, que pode

ser investigado mais próximo à performance, ou se é apenas um modo de pesquisa

que possibilita interações específicas para se chegar ao trabalho que seriam as

instalações na paisagem. Penso que ambas as opções estejam corretas. Nicolas

Borriaud em seu livro Radicante(2009) observa a ostensiva presença da viagem na

arte contemporânea, tanto em sua forma quanto em sua iconografia. Penso que a

RAM tem formato de deriva, e a iconografia que movimentamos ao longo desse

deslocamento está estritamente relacionada a essa experiência. É comum encontrar

em nosso trabalho elementos que se remetem ao estrangeiro, a hospitalidade, a

educação, enfim assuntos que se constroem a partir da relação com o outro.

Eduardo Galeano diz que “o mundo ao avesso nos adestra para ver o próximo como

uma ameaça e não como uma promessa” (GALEANO, 2011). A hospitalidade, a

educação, e o processo proposto pela Residência Artística Móvel era assenta-se

justamente ao reverso desse revés. A promessa do que chega tem a nossa

curiosidade. A curiosidade conduz a hospitalidade. A hospitalidade conduz ao

encontro, a relação com o outro.

Referências

ANDERSON, L. I in U = Eu em Tu, Volume 2 / curadoria Marcello Dantas. Trad. de Renato

Rezende. –Santana do Parnaíba, SP : Mag Mais Rede Cultural, 2011

BOURRIAUD, N. Estética relacional. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Martins

Fontes, 2009.

______. Radicante: por uma estética da globalização. Trad. Dorothée de Bruchard.

São Paulo: Martins Fontes, 2011.

DEBORD, G. Sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000.

GALEANO, E. De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso. Tradução de Sérgio

Faraco. Porto alegre RS: L&PM editores, 2011.

KRISTEVA, J. Estrangeiros para nós mesmos. Trad. Maria Carlota Carvalho

Gomes. Rio de Janeiro: Rocco, 1994

Page 14: RESIDÊNCIA ARTÍSTICA MÓVEL: VAMOS TOMAR O CÉU INTEIRO …anpap.org.br/anais/2019/PDF/ARTIGO/28encontro... · A Residência Artística Móvel foi pensada como um método de pesquisa

CURTY, Raísa. Residência artística móvel: vamos tomar o céu inteiro por teto, o mundo é todo meu, é todo seu, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1980-1993.

1993

ROLNIK, S. Cartografia Sentimental: Transformações contemporâneas do desejo.

São Paulo: Editora Estação Liberdade, 1989

VISCONTI, J. C. Novas Derivas. São Paulo: Martins Fontes, 2014

Raísa Curty

Artista visual e artista educadora, mas não diferencia uma atividade da outra. Mestranda em Artes Visuais pela UNB e graduada em pintura pela UFRJ. Desde 2014 pesquisa o trajeto e suas formas de subjetivação. Contato: [email protected]