Resenha do livro de Fernanda Castelano Rodrigues: Língua viva, letra morta: obrigatoriedade e...
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abehache - ano 3 - n 4 - 1 semestre 2013
RODRIGUES, F. C. Lngua viva, letra morta:
obrigatoriedade e ensino de espanhol no
arquivo jurdico e legislativo brasileiro. So
Paulo: Humanitas, 2012. 322 p.
Jorge Rodrigues de Souza Junior1
Recentemente foi publicada, em livro, a tese de doutorado de Fernanda
Castelano Rodrigues, cujo mote central a publicao da Lei federal 11.161/
2005, que estabelece a oferta obrigatria, por parte das escolas de ensino m-
dio, do ensino de lngua espanhola. O trabalho de Rodrigues, caso tivesse so-
mente como objeto de anlise tal lei, j seria destacvel, dado o impacto provo-
cado por esta no panorama do ensino de espanhol em nosso pas. Mas alm
desse trabalho, a autora estabelece, como corpus de sua pesquisa, um amplo
conjunto de leis e de projetos sobre legislao educacional destacando, em sua
textualizao, determinaes sobre o ensino de lnguas estrangeiras em nosso
pas.
O trabalho de descrio e anlise que Rodrigues realiza sobre o que de-
nomina arquivo jurdico (textos com os quais se constroem e impem as leis)
e arquivo legislativo (textos produzidos para dar incio ao processo de tramita-
o de um projeto de lei ou ao longo de sua tramitao: justificaes, exposi-
es de motivos, mensagens presidenciais, pareceres e relatrios de comisses,
por exemplo) torna-se referncia no somente de uma memria sobre o ensi-
no de lnguas em nosso pas (do ensino de portugus como lngua materna e a
relao desta com o ensino de outras lnguas estrangeiras em escolas brasilei-
ras), como tambm de como o analista do discurso deve trabalhar com a espe-
cificidade desta materialidade discursiva. Alm de estabelecer questes impor-
tantes para abordar este tipo de corpus no prprio campo da Anlise do Discur-
so, o trabalho realizado pela autora referncia tambm aos profissionais de
1 Doutorando em Letras, rea de Lngua Espanhola, pela Faculdade de Filosofia, Letras e
Cincias Humanas da USP. Email: [email protected] / [email protected]
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educao, acadmicos, juristas e legisladores que trabalham com a educao
ou se interessam por ela em nosso pas.
Rodrigues realiza um criterioso trabalho de pesquisa de arquivo. Assim
constri e delimita os dois tipos o jurdico e o legislativo ao longo da anlise
que desenvolve em separado. Esta deciso se justifica pela considerao das
prprias condies de produo de cada arquivo, que determinam suas
textualidades (deixando nelas marcas) e sua circulao.
O primeiro recorte, ento, o do arquivo jurdico sobre as lnguas na
educao brasileira, desde a poca colonial at a primeira metade do sculo XX
realizando um percurso de descrio e de interpretao sobre a textualidade
desses textos legais. No uma preocupao da autora considerar como foi
realizada a aplicao dessas leis tampouco o processo resultante delas, e sim
analisar sua materialidade textual. Nesse sentido, Rodrigues pratica um verda-
deiro gesto de interpretao ao identificar um percurso que conformou uma
memria sobre as lnguas no ensino regular, memria que institucionalizada,
oficial e oficializada em deslocamentos e rearranjos realizados na histria sobre
a educao e o ensino de lnguas no Brasil. O leitor, nesse percurso, observa
como uma rede de prticas e fios discursivos que constituiriam a memria do
ensino de lnguas em nosso pas teve como base a imposio de uma poltica
lingustica que remonta poca da colonizao.
Vale destacar, como exemplo do trabalho que a autora realiza com tal
arquivo, a anlise do primeiro documento que o compe: O Diretrio que se
deve observar nas povoaes dos ndios do Par e do Maranho. Denominado
por Rodrigues de Diretrio dos ndios e tendo sido editado por quem viria a ser
o Marqus de Pombal em 1757, este documento obrigava o uso e o ensino de
lngua portuguesa na colnia, em detrimento da lngua geral, o que leva a pes-
quisadora a afirmar que se trata do primeiro gesto efetivo de apagamento da
diversidade lingustica instalada no territrio brasileiro. Tal acontecimento se-
ria fundamental na constituio de um imaginrio que relacionaria uma lngua
nao imaginrio determinante na atuao do Estado brasileiro nesta ques-
to deixando marcas que a autora identifica nos demais documentos que com-
pem o arquivo jurdico; nestes, sintagmas como gramtica nacional e ln-
gua nacional ocupam metonimicamente o lugar correspondente ao de lngua
portuguesa, apagando a diversidade de lnguas faladas pelos indgenas e, no
sculo XX, das que passaram a fazer parte do territrio brasileiro com a vinda
de imigrantes de vrios pases.
Nesse percurso analtico e interpretativo, Rodrigues aborda um impor-
tante dado histrico para os que se dedicam ao ensino de lngua espanhola em
nosso pas: a primeira insero do ensino de lngua espanhola no currculo das
escolas brasileiras se deu pelo Decreto-Lei N 4.244, de 1942. Esse decreto, de
sua perspectiva, se constituiu em um lugar fundacional de uma memria
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discursiva do arquivo jurdico e legislativo brasileiro sobre o ensino de espa-
nhol (p. 77), mediante sentidos a instaurados que seriam retomados em qua-
se todos os textos do arquivo legislativo que posteriormente reivindicariam o
ensino dessa lngua em nosso pas: um desses sentidos se tinha a ver com a
importncia que esta teria na relao do Brasil com os seus (pases) vizinhos.
A memria constituda ao longo da histria atravs desses discursos de-
terminaria o estatuto do ensino de lnguas em nosso pas nas Leis de Diretrizes
e Bases da Educao (1961, 1971 e 1996), em que a relao das lnguas com as
demais disciplinas comuns do currculo do ensino regular seria submetida a
uma redefinio e passaria a ser singularmente diferente. Segundo Rodrigues,
as LDBs, mediante diferentes gestos de apagamento e de realocao do ensino
de lnguas na escola que culminaram na LDB de 1996, atualmente em vigncia,
se constituiriam em um acontecimento discursivo ao mobilizar uma mudana e
instaurar um novo paradigma que apagaria o percurso anteriormente adotado
sobre este tema na legislao brasileira. Isto permite que a autora realize uma
formulao muito significativa ao dizer que a LDB de 1961 se inscreve num pro-
cesso de desoficializao das disciplinas de lnguas estrangeiras por parte do
Estado, pelo fato de no contempl-las em sua textualidade, diferenciando-as
das demais disciplinas do currculo fato que segundo a prpria autora contri-
bui a que o contedo destas fosse significado como extracurricular. Essa srie
de fatos propiciou sua terceirizao no espao escolar.
Dessa forma, a LDB de 1961 foi acontecimento instaurador de uma me-
mria que balizaria as relaes entre lnguas. Estas, hierarquizadas e
estabelecidas principalmente pelo fator econmico, determinariam a perda de
sua funo educativa e a instaurao de seu carter instrumental, reforando o
imaginrio de que, no ensino regular, no seria apropriado aprender uma ln-
gua estrangeira. Tal processo no sofreu grandes modificaes com a LDB de
1971. Somente a ltima LDB estabeleceria o ensino obrigatrio de uma lngua
estrangeira moderna no currculo comum e a possibilidade de ensino de outra
lngua em carter facultativo no Ensino Mdio, configurando um papel para elas
no currculo comum do ensino regular sem determin-las de modo especfico.
Por esse longo percurso analtico que descrevemos, Rodrigues destaca
as condies de produo que determinariam a textualizao da Lei federal
11.161/2005. A autora relaciona essa lei a um segundo corpus, constitudo por
textos de projetos de lei que propunham o ensino de lngua espanhola no ensino
regular, alocando-os no segundo dos arquivos por ela conceitualizados e aborda-
dos: o legislativo. Sua anlise coloca em relao os discursos que permeiam as
textualidades deste arquivo, instauradores de uma memria sobre o ensino de
lnguas no ensino regular que entra, por sua vez, em relao com outra memria:
a que se refere ao estatuto da lngua espanhola em nosso pas, fortemente vincu-
lada relao do Brasil com os seus vizinhos um processo contraditrio cons-
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titudo por posies na histria de aproximao e de afastamento que deixa-
ram marcas na constituio do pas como estado nacional.
No bastasse realizar uma pesquisa de flego que descristaliza sentidos
evidentes, ao colocar em destaque a iluso de transparncia e de literalidade
do texto jurdico filiando os arquivos memria discursiva e aos discursos
constitutivos dessas textualidades a autora recupera do campo dos estudos
da historiografia o mito da Ilha Brasil, em um detalhado trabalho em que anali-
sa o quanto tal mito foi determinante na formao do pas como memria signi-
ficativa que deixou marcas em sua constituio como nao e nas suas relaes
com os pases vizinhos.
Por fim, Rodrigues conclui que a Lei federal 11.161/2005 (comumente
referida de Lei do Espanhol) no se tornou conhecida somente por instaurar
um acontecimento no paradigma do ensino de lnguas estrangeiras em nosso
pas, mas tambm porque foi e responsvel por um rearranjo nas relaes
entre lnguas no ensino regular ou seja, do portugus com as lnguas estran-
geiras presentes na escola. Processo determinado por um longo percurso hist-
rico que Rodrigues identifica, descreve e analisa em seu trabalho, cuja pesquisa
lana luz sobre como tal processo continuar, dada a fora da memria sobre o
ensino de lnguas em nosso pas, constituda durante um longo processo por
meio de diferentes textualidades legais, como bem mostra a autora. Seu traba-
lho uma referncia a todo estudo em que se pretenda discutir politicas
lingusticas levadas a cabo no somente no contexto brasileiro, mas por qual-
quer Estado nacional.