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REQUALIFICAÇÃO URBANA E SUAS CONTRADIÇÕES: A ESTRUTURAÇÃO URBANÍSTICA RECENTE DA ORLA DO CENTRO
HISTÓRICO DE BELÉM/PA
SOUZA BARBOSA, CAMILLA; DA SILVA PIANI GODINHO, EMANUELLA.
1. UFPA. Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo
Avenida Nazaré, 1355, apto. 1302, 66035-445, Belém/PA - Brasil [email protected]
2. UFPA. Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo
Travessa Angustura, 2843, 66093-040, Belém/PA - Brasil [email protected]
RESUMO A orla de Belém apresenta usos portuários há séculos, em função da necessidade de importação/exportação de mercadorias e de promover o acesso às demais cidades da Amazônia. A dinâmica das trocas comerciais nas margens da cidade foi essencial ao processo de valorização da área ao longo da formação do centro urbano, de modo que os cursos d’água, bem como a orla, adquiriram grande relevância na configuração do espaço urbano. No entanto, ocorre atualmente uma transformação na dinâmica existente entre a cidade e sua orla a partir de um posicionamento do poder público, em face de promover o crescimento da economia desta área. Busca-se impulsionar o turismo de Belém através de novos equipamentos voltados ao lazer e cultura. Assim o Centro Histórico de Belém (CHB) desempenha um papel fundamental aqui como mancha histórica que integra essas dinâmicas paisagísticas, econômicas e culturais da Orla ao cenário histórico citadino e cujas intervenções de “reabilitação” incorporam uma nova visão e combinação de atividades à adaptabilidade de antigas estruturas físicas para novos usos. Evidencia-se a tênue linha entre a valorização da memória patrimonial e a idealização espacial urbana, tal qual como um contraponto na busca pelo controle da paisagem e a estetização do cenário patrimonial urbano a partir de dois contextos que coexistem no mesmo espaço e suscitam dinâmicas que estão inter-relacionadas: a rede hidrográfica e o patrimônio histórico. As recentes intervenções foram concebidas pela ótica da economia da cultura, apresentando problemas ao desconsiderar os usos sociais. Alterando a paisagem, dinâmicas e relação que se estabelece e não seguem um diálogo com a população ali inserida. Dessa forma, o estudo sugerido aqui faz-se necessário, para o debate sobre a relação dos cursos d’água com o desenvolvimento da cidade, bem como os desdobramentos do significado destes no contexto urbano, levando em consideração, principalmente, o seu entorno histórico e cultural e os processos de intervenção a que o mesmo está sujeito nessa conjuntura. Enfatizando a crítica sobre os empreendedorismo à revitalização de sítios históricos e da paisagem natural, e assim, discutir suas consequências e as diferentes alternativas de democratização do espaço urbano regional.
Palavras-chave: Reestruturação Urbana; Indústria Cultural; Orla; Centro Histórico.
4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016
1. DESENVOLVIMENTO DA ORLA DE BELÉM
Belém vive em meio a diversos cursos d’água, característica inerente ao ambiente amazônico,
e ao longo dos tempos presenciou diferentes dinâmicas com os afluentes da Bacia
Amazônica. O uso da água para fins portuários é secular e intimamente conectado com a
necessidade de importação e exportação de produtos, deste modo o desenvolvimento da
cidade ocorreu em paralelo ao uso portuário em conjunto a outros usos do setor terciário,
como o comércio (BAENA, 2004).
A área portuária de Belém desenvolveu-se de forma expressiva, principalmente pela sua
posição geográfica favorável, localizada no nó das influências marítimas e fluviais (MOREIRA,
1966). Além da sua localidade, outros fatores também foram de grande importância, como a
crescente exploração da Amazônia e a dinâmica comercial na região aliado à evolução
socioeconômica do Brasil e de outros países parceiros no âmbito comercial.
De acordo com Ponte (2015), a formação do que conhecemos atualmente por orla de Belém é
caracterizada por uma série de períodos, em que a água possui diferentes usos e formas de
abordagem. Durante o período entre o século XVII e a primeira metade do século XVIII, a
água serviu para produção de terra, com a expansão do território a partir de drenagens de
igarapés.
O crescimento de empreendimentos portuários de cunho público e privado tornou Belém em
um entreposto comercial entre a segunda metade do século XVII e século XIX, caracterizando
a água como veículo de produtos e trocas comerciais. O processo de modernização da cidade
instigava mudanças em sua infraestrutura e serviços urbanos, e ao final do século XIX
expandia-se as estruturas portuárias a partir da construção de diques e aterros para produção
de solo, enquanto que no início do século XX a água tornou-se “técnica” com a inauguração
do Porto de Belém em 1912 (PONTE, 2015).
Houve uma grande distinção no modo de produção das cidades a partir do advento do
pensamento capitalista, transformações aconteceram no momento em que as cidades já não
eram mais produzidas pela sociedade tradicional, e sim produzidas pela sociedade capitalista
(LEFEBVRE, 2008). Deste modo as distintas transformações que ocorreram na orla da cidade
são compreendidas segundo a mudança no modo em que Belém foi produzida.
Belém tornou-se um polo comercial na Amazônia a partir do comercio de
importação/exportação que predominava na orla desde os primórdios da sua urbanização,
sendo possível caracterizar já no século XVII uma hinterlandia na cidade, em função do
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crescimento das relações econômicas na área, e também pelas iniciativas privadas existentes
na orla, sendo que houve interferência do poder público em algumas delas (PENTEADO,
1973).
Figura 1 – Aspecto da Doca do Ver-o-Peso, localizado na orla de Belém. Fonte: Penteado, 1973, p. 59.
Neste período econômico o espaço da orla é compreendido como resultado da divisão do
trabalho em função da movimentação de pessoas e mercadorias, principalmente pela intensa
atividade econômica com a caracterização da hinterlandia na cidade, de modo que a orla é
concebida pelo conjunto de elementos que a preenchem (LEFEBVRE, 2008).
A economia da região amazônica se desenvolveu com a orla de Belém como o local mais
importante da movimentação de pessoas e produtos, e como consequência houve a
valorização dos cursos d’água do Rio Guamá e Baía do Guajará durante o processo de
urbanização da cidade, conferindo papel de destaque à orla na configuração do espaço,
sendo que nesta área há uma aglomeração de comércio e serviços (TRINDADE JR, 2006).
Todavia, nos dias atuais não ocorre uma democratização do uso deste espaço, sendo que
muitos lugares são utilizados pela classe comercial e elitista da população.
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Figura 2 – Os principais cursos d’água da cidade de Belém. Fonte: Google Earth (alterado).
A valorização da orla ocorreu pois por décadas as atividades econômicas nela realizadas
foram as principais fontes de renda para sociedade belenense. O espaço urbano obteve seu
reconhecimento no momento em que houve a compreensão do impacto e relevância dos
objetos nele produzidos. As relações de produção foram reproduzidas seguindo um sistema
dinâmico da divisão de trabalho atribuída anteriormente, com o espaço mantendo uma ligação
essencial à essa reprodução. A concepção do espaço transforma-se junto com as mudanças
vivenciadas na orla de Belém, ao longo do tempo, o espaço da orla é convertido pela
transformação da sociedade belenense, e é através dele que podemos visualizar o
desenvolvimento das relações sociais das cidades (LEFEBVRE, 2008).
Dessa forma, vemos aqui a que a orla, deixa apenas de ser espaço de convergência das
dinâmicas sociais e econômicas e passa em si própria a ser imbuída de significado e valores.
Numa apropriação do espaço natural como um elemento da identidade paraense vemos o rio
como uma representação simbólica da cultura local.
As transformações que ocorreram na orla de Belém atribuíram ao seu espaço um significado,
o espaço valorizou-se e tornou-se algo além do lugar em que ocorrem as relações sociais.
Como afirma Lefebvre (2008), ao passar do tempo, as relações de produção se encontraram
subordinadas ao tempo em si, de modo que o espaço em que antes era o local da produção
das relações sociais, tornou-se onde há a reprodução destas. Deste modo, uma identidade é
construída atrelada ao processo histórico de formação da orla e, sobretudo, de acordo com os
interesses da sociedade capitalista que vivemos.
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2. O COMPLEXO FELIZ LUSITÂNIA: RECORTE DO CHB
Levantado este panorama das imbricações da orla, nos propomos a encarar o lado oposto ao
rio. Isso por si só merece uma ressalva neste trabalho, pois como evidenciamos na Fig. 2,
Belém possui diversos cursos d’água, de modo que a orla em toda sua magnitude se trata de
uma grande extensão a ser analisada, portanto adota-se aqui o recorte do Centro Histórico de
Belém mais especificamente a área do Complexo Feliz Lusitânia como núcleo de análise na
presente pesquisa. Faz-se necessário compreender que o que se conhece hoje como Centro
Histórico em Belém (CHB) é algo firmemente reconhecido no cenário e imaginário paraense,
mas que só vem a ser definido de fato a partir de 1994, quando no âmbito Municipal, é
estabelecida a Lei Nº 7.709 de 18 de maio (BELÉM, 1994), que trata especificamente do
tombamento, da preservação e proteção do patrimônio e que vem a definir, de fato, todo o
núcleo que será considerado Centro Histórico e entorno, o primeiro sendo formado por dois
sítios Históricos Urbanos Nacionais (BRASIL, 2005) e localizado nos núcleos da Cidade e da
Campina.
A mancha que delimita a área urbana de maior valor histórico da cidade é consequência de
diversos processos de preservação e proteção patrimonial dos sítios históricos, de modo que
que se constituem de forma seletiva, como Le Goff pontua:
(...) o que sobrevive não é o conjunto daquilo que existiu no passado, mas uma escolha efetuada quer pelas forças que operam no desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade, quer pelos que se dedicam à ciência do passado e do tempo que passa, os historiadores. (Le Goff, 2013, p. 485).
A inter-relação da forma do conjunto e do tecido urbano e a simultaneidade nos processos de
mudança que repercute materialmente constata as relações mutáveis mas constantes no
tempo (PEREIRA, 2012) e que designam como o tecido urbano se relaciona com a história do
seu patrimônio edificado. Estabelecendo assim paralelos e contraposições entre esses dois
elementos - hídrico e patrimonial - que evidenciem os sentidos urbanísticos atribuídos a esse
recorte resultando na sua construção física e social.
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Figura 3 – Localização da Orla, Centro Histórico e Complexo Feliz Lusitânia na cidade de Belém. Fonte:
Belém, 2000 (alterado)
Dessa forma o Complexo Feliz Lusitânia dentro do Centro Histórico de Belém (CHB)
desempenha um papel essencial como marco inicial da estruturação urbana regional, em que
a cidade, como território e sociedade, se formara e prosperara. A configuração da morfologia
urbana marcada pelas suas ruas estreitas e delgadas e suas edificações, em sua maioria
comerciais e religiosas, cujas características plásticas lhe conferem valor estético, delimitam
manifestações arquitetônicas e urbanísticas formando o conjunto de elementos que comporia
a cidade colonial belenense. Progressivamente a cidade se expandiu e foi adquirindo outros
perfis de acordo com desenvolvimento urbano, de modo que medidas protecionistas tiveram
que ser instauradas para a preservação histórica da identidade do núcleo inicial.
O Complexo Feliz Lusitânia se caracteriza aqui como espaço aglutinador das dinâmicas e
transformações, tanto a partir do elemento da orla, quanto do cenário patrimonial belenense.
Composta pelas edificações: a Casa das Onze Janelas (antigo Hospital Militar); A Igreja de
Santo Alexandre e Arcebispado e a Catedral da Sé (BRASIL, 2005) o Complexo representa,
em âmbito federal, o Conjunto Urbanístico Praça Frei Caetano Brandão.
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Figura 4 – Delimitação do Conjunto Urbanístico Praça Frei Caetano Brandão com indicação dos bens tombados: 1.Forte do Castelo; 2.Igreja de Santo Alexandre; 3.Colégio dos Jesuítas; 4.Igreja da Sé;
5.Hospital Militar. Fonte: BRASIL, 2005. p. 69.
Contudo, apesar da praça Frei Caetano Brandão em termos físicos ser o elemento de
convergência de todas essas obras, o nome “Feliz Lusitânia” é mais amplamente utilizado e
reconhecido, tanto pela sua carga histórica local, quanto pela sua adoção em propagandas de
projetos de intervenção e revitalização da área como ação de reativação da memória.
Propagandas essas que em sua maioria seguem um perfil elitista, na qual os elementos
populares são apropriados em busca do controle da paisagem e a estetização de uma
paisagem urbana.
É importante ressaltar que, tal como consta nas fichas dos Sítios e Conjuntos Históricos
Urbanos Nacionais Tombados das Regiões Norte, Nordeste e Centro Oeste do Programa
Monumenta, o Complexo Feliz Lusitânia nem sempre teve essa relação imagética e
paisagística com o rio, apesar de ter sido o marco inicial da cidade e ter uma relação direta de
proximidade com a orla fluvial, esta “(...) foi construída de costas para a baía que a margeia,
todos os edifícios que a circundam têm suas frentes voltadas para o passeio público e os
fundos para o rio” (BRASIL, 2005. p. 70). Limitando a visualização da Baía do Guajará apenas
através do Forte do Castelo, Feira do Açaí e doca do Ver-O-Peso.
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Figura 5 – Os principais pontos de referência que margeiam a orla da Baía do Guajará. Fonte: Google Earth (alterado).
O que se percebe atualmente é que existe uma inversão deste, até então, quadro de negação
à baia, em que obedecendo a uma tendência econômica mundial de valorização dos espaços
de margem fluvial ou marítima, em Belém essa mudança de dinâmica imprime-se através da
narrativa de “devolução” da contemplação visual desses espaços (PONTE, 2004).
A importância e o aproveitamento econômico dos rios que cercam a parte mais antiga de Belém fizeram com que o espaço fosse ocupado pelos portos, galpões, serrarias, fábricas e empresas, negando ao morador de Belém o prazer do contato visual com seus rios, onde está o verdadeiro espírito da Amazônia. A busca da própria identidade paraense, de mais qualidade de vida, de valorização artística, histórica, turística e cultural da cidade, faz com que a abertura de janelas para o rio seja muito mais que uma febre, mas uma necessidade inquestionável (PARÁ, 2000 apud PONTE, 2004. p. 60).
As chamadas “janelas para o rio” é um slogan que passa a imperar a partir de meados dos
anos 80 na cidade (PONTE, 2004), cuja veiculação midiática como forma de legitimar as
intervenções e mudar a relação de distanciamento, denunciam uma abordagem de
estetização da paisagem. Paisagem esta que age como artefato, instrumento cuja
representação é uma forma de manipular nosso olhar sobre o espaço. O Centro Histórico,
então, passa a se voltar para a sua Baía num aspecto não mais militar ou de defesa, como
havia sido primordialmente em sua fundação, ou apenas como espaço de troca comercial, no
período de seu desenvolvimento. O controle e domínio da imagem portuária no discurso de
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devolução da orla ao habitante da cidade engendra novas perspectivas e usos a partir da
valorização de atributos que constroem um cenário símbolo de significados e identidades.
Figura 6 – Visualização da Orla a partir do Forte do Castelo. Fonte: Emanuella Godinho.
Dessa forma, utilizando-se desse discurso, os atuais projetos voltados à área se enquadram
num perfil em que o fluxo turístico da orla passa a ser um elemento de valorização da
identidade local:
Almejando a integração da cidade de Belém com a paisagem ribeirinha, o Complexo Feliz Lusitânia foi pensado como mais uma grande ‘janela’ que se abre para o Rio Guamá, eliminando o muro para descortinar a paisagem natural, fator de originalidade de nossa região em relação às metrópoles de concreto (MIRANDA, 2006).
Contudo, a coexistência dos usos portuário e patrimonial, apesar de compartilharem o mesmo
cenário urbano e no imaginário local, pouco dialogam no que se refere a estratégias políticas.
Em termos imagéticos, por mais que um tenha influência direta na conformação do outro,
vemos que na elaboração de planos e projetos urbanísticos de requalificação urbana na área,
volta-se, atualmente, o olhar das edificações tombadas (BRASIL, 2005) para a paisagem
natural - no caso o rio -, mais especificamente do Complexo Feliz Lusitânia para a Baía do
Guajará.
3. TRANSFORMAÇÃO DOS USOS NA ORLA
Nas últimas décadas a orla passou por mudanças em sua dinâmica sócio espacial, através
dos fundamentos da economia da cultura aumentou-se os investimentos provenientes do
poder público, em face de promover o crescimento econômico na área. Justificada pelo
estímulo ao desenvolvimento econômico da cidade, uma série de intervenções urbanas foram
realizadas pelo Projeto de Revitalização da Área do Porto de Belém (REVAP-Belém) na orla,
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ao transformar antigas estruturas da zona portuária em novos equipamentos públicos
voltados ao incentivo da cultura à população; como o Complexo Feliz Lusitânia, projeto que
engloba edificações históricas, como o Forte do Castelo e o antigo Palácio Episcopal (atual
Museu de Arte Sacra do Pará), em uma área de aproximadamente 50.000 m² e situada no
CHB.
E sabendo que o espaço é povoado de acordo com as intenções dos que estão no poder,
sendo um instrumento para atingir objetivos que podem não condizer com os da população
geral, a orla da cidade é intencionalmente manipulada pelo Estado e classe empresarial em
busca sobretudo do crescimento econômico, o espaço é definido pela sua funcionalidade em
uma sociedade comandada pelo consumo. Deste modo, o espaço subordinado ao poder
possui a necessidade de atender ao capitalismo, de forma que ele passa a contribuir
segregação existente na cidade (LEFEBVRE, 2008).
Criado para impulsionar a economia do turismo, o posicionamento estratégico determinado
pelo poder público é o responsável pela revitalização urbanística da área da orla de Belém e
pelo fortalecimento da característica seletiva do espaço capitalista. Trindade Jr. (2006)
considera que este posicionamento estratégico, aliado aos novos equipamentos mencionados
anteriormente, pretende instigar a criação de uma nova imagem para Belém. Dessa maneira,
visualiza-se como a cidade está inserida em um mercado competitivo de cidades turísticas,
ela passa a ser compreendida como uma mercadoria que possui estratégias de mercado e a
população de classe alta como público consumidor (ARANTES, VAINER, MARICATO, 2002).
Entretanto, Harvey (1996) adverte sobre a efemeridade da vantagem na competição entre as
cidades adquiridas por investimentos do setor público e privado, uma vez que para se manter
no topo é preciso continuidade no setor de inovações urbanas. De modo que há a
possibilidade de demasiadas intervenções designarem um espaço fragmentado:
O resultado é um turbilhão estimulante, conquanto por vezes destrutivo, de inovações urbanas, culturais e políticas na produção do consumo. É nessa altura que podemos identificar uma conexão vital, porém subjacente, entre o crescimento do empresariamento urbano e a inclinação pós-moderna pelo desenho de fragmentos urbanos em vez do planejamento urbano (...). (HARVEY, 1996, p.59)
A fragmentação do espaço urbano é reflexo do sistema capitalista na cidade, que configura o
espaço como objeto de compra e venda, e que contraria o direito à cidade, uma vez que este
estipula que a população possua o direito ao encontro. Prezando pela reconstituição do
elemento espaço-temporal, no entanto, sem eliminar os conflitos necessários à utilização
plena da cidade pelos seus indivíduos (LEFEBVRE, 2008).
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4. INTRUMENTALIZAÇÃO DO ESPAÇO DA ORLA
Hoje em dia sabe-se que o fator cultural representa um aspecto de interesse econômico na
área, os bairros e faces de quadra do CHB encontram-se nas faixas mais valorizadas do
município. Por essas e outras razões, a institucionalização desse núcleo representa um
processo marcante não somente pelo reconhecimento do patrimônio cultural, mas também
delimita a diversidade dos pensamentos e interesses concomitantes que moldam esse
panorama urbano.
Na cidade construída na sociedade capitalista percebe-se que o “antigo” passa a ser
ativamente um atributo elementar na caracterização e que demonstra a “construção do
tempo histórico e de uma imagem de si mesma enriquecida de modo progressivo por dados
genealógicos (CHOAY, 2001). Essa imagem moldada é um reflexo do que seria o espaço
significante, em que a relação dialética entre espaço mental e o espaço social indica que a
cidade trata-se de um sistema formado por símbolos interconectados a serem decodificados
que comportam significados que são dotados de experiências e sentidos que influem e
determinam nossos comportamentos (LEFEBVRE, 2008). E os processos e tomadas de
decisão estão condicionados também a esses aspectos que caracterizam e moldam a
cidade: "um cenário físico vivo e integrado, capaz de produzir uma imagem bem definida,
desempenha também um papel social" (LYNCH, 1997, p. 5). Esse choque entre o mental e o
social, ou seja, do que é vivido, concebido contra o que é instrumentalizado demonstra que o
espaço se dá como essa mediação das vivências, prática e ideia do ser humano, juntamente
a produção física do capital. A concomitância, simultaneidade e dependência entre o nosso
modo de vida e produto físico social.
Dessa forma, percebe-se que os centros históricos brasileiros, têm sofrido, continuamente,
com maiores intervenções, acompanhando os pensamentos de instrumentalização técnica,
estrategicamente orientados, é o espaço projetado, imbuído de intencionalidades.
Reestruturação, revitalização, requalificação, reabilitação, entre outros re’s, são
expressões-chave que incorporam uma nova visão e a intermediação de relações e práticas
sociais à adaptabilidade de antigas estruturas físicas para novos usos (HALL, 1988).
Essa instrumentalização tem relação direta à atuação do espaço urbano como capital
(HARVEY, 2005). A indústria cultura produz uma “imagem” a ser consumida, e por meio desta
a participação social confunde-se com a prática do consumo (MENDES JÚNIOR, 2010. p. 95).
Se cria a idealização do espaço público, em que o mesmo passa a visto como produto, que o
turismo cultural possa manejar e consumir. Nesse panorama, os meios midiáticos possuem
um importante papel na construção e divulgação desses produtos. Um exemplo mencionado
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aqui foi o próprio slogan “janelas para o rio”, cujos efeitos reverberam nos ícones e imagens
que definem visualmente a cidade de Belém, atualmente. E a partir do momento que a
paisagem se coloca como algo o a fomentar o consumo visual, suas especificidades e até
defesa das camadas populares e da história que ali se inserem são relegadas a segundo
plano face às estratégias competitivas de desenvolvimento econômico que opera a partir da
cultura visual e controle espacial (ZUKIN, 2003). Dessa forma, subtrai-se a diversidade e
organicidade do lugar na busca por uma coerência visual construída e controlada, mesmo que
desconsidere as pessoas que ali vivem e que se abastecem dali, ou tomem medidas que
desqualificam o acervo patrimonial. O consumo e leitura do espaço devem ser instantâneos,
nas palavras de Sharon Zukin: “A aparência é a experiência do lugar. Controlar a visão
aumenta o poder de mercado” (2003, p. 19).
De acordo do Lefebvre (2008), é justamente essa atuação de intermediação entre o social e o
funcional, a reprodução do modo de vida associada à estratégias e intencionalidades
reproduzidas no meio físico, que fornece os aparatos para a concepção do espaço como um
produto político. Nessa mediação que reside o poder, poder para manipular, impor e regular.
Faz-se necessário compreender que a instrumentalização está sob o poder da classe
dominante que age de acordo com os seus interesses para o controle e organização do
quadro de consumo.
Diante dessa conjuntura, contradições e conflitos tornam-se evidentes, mas, como colocado
anteriormente aqui, são mascaradas e dissimuladas através de um image making a partir da
indústria da cultural, que permite transpassar uma coesão forjada e enfraquecer a dimensão
política de luta. De modo que, mesmo que esse espaço em seu contexto real seja
caracterizado pela fragmentação e desigualdade, sendo pulverizado e estrategicamente – e
intencionalmente - selecionado para atender um contexto global, distante e imediato, suas
reais consequências resultadas dessa exclusão são encobertas por uma “ordem” espacial
que visa atingir objetivos específicos através da vida e do consumo da população.
Assim, é possível compreender como as medidas intervencionistas dentro desse contexto
capitalista que enquadra o espaço como meio e modo de reprodução e consumo
(LEFEBVRE, 2008) do mesmo modo que os agentes que as encabeçam, são permeadas por
contradições. Existe uma classe média que heroicamente se coloca como defensora do
patrimônio, mas que, desde os primórdios do processos preservacionistas, mostravam como
o seu sentimento preservacionista eram um reflexo dos seus próprios interesses de classe
(CANTARELLI, 2013). É fato que existe um interesse constante da população de apreciação
por esta área, contudo, é preciso explorar que discurso estes agentes imprimem, em que
constroem uma narrativa visual de um passadismo que não corresponde ao uso popular. E é
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diante desse panorama, que acompanhamos o elemento patrimonial, pouco a pouco, ser
substituído pelo fator paisagístico oferecido pelo rio.
Se a cidade se torna um produto e um meio para consumirmos e reproduzirmos nossas
práticas sociais e força de trabalho, seguindo essa logística, as forças dominantes irão buscar
atender – ou influenciar – o mercado. E em Belém isso se faz notável a partir do
encabeçamento de estratégias públicas voltadas para a valorização da área portuária,
obedecendo a uma tendência global do aproveitamento de áreas naturais que vêm a ser
progressivamente vendidas pelo discurso de democratização do espaço e “resgate”. A água
passa a ser nosso commodite a partir dessa ideia de aproveitamento do ambiente pensando
num mercado externo, a exportação de commodites. Sendo um elemento da paisagem que é
apropriada, culturalmente, economicamente, misticamente, carrega consigo um significado
histórico e representatividade. Nesse processo, volta-se à paisagem como uma nova frente a
fomentar o consumo visual, enquanto que, vira cada vez mais as suas costas ao patrimônio
histórico presente em suas margens, que agora se interpõem mais como uma barreira em
razão de suas especificidades e protecionismo em oposição à novidade e cenário promissor
oferecida pelo experiência de não-reflexão e de prazer efêmero desses waterfronts.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ponte (2015) afirma que a orla de Belém apresenta diferentes contextos e fenômenos que
tratam a água como elemento essencial à configuração espacial da cidade, sendo que esta
rede de dinâmicas existentes na área atua de acordo com a ideia da cidade como mercadoria
e as suas aplicações, com atuação do poder público e da iniciativa privada na transformação
do espaço através de intervenções pontuais.
O estudo do surgimento da orla abrange o impacto dos diversos usos portuários na
constituição das áreas centrais da cidade, sendo que atualmente ocorre a valorização da área
através da “revitalização da orla” com suas recentes intervenções urbanas, o que mais uma
vez mostra a importante relação dos cursos d’água no meio urbano. Tal posicionamento
indica como a economia da cultura age em Belém, promovendo os usos das amenidades,
cultura e lazer em detrimento de modificações no padrão de ocupação da área, sendo
possível indicar a classe elitista como público alvo destas intervenções.
Percebe-se, portanto, que mesmo passando que, seja a valorização patrimonial ou da
paisagem, a indústria cultural constrói algo duradouro no imaginário mas que não é
acompanhado na realidade. O capital transforma o sentimento de pertencimento em produto,
o que resulta numa construção utópica (ZUKIN, 2003) em que excluem-se as diferenças e
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anula-se a diversidade espontânea dos processos e relações que formam a cidade, a
empacotando numa imagem a ser consumida sem de fato aderi-la. Acompanha-se cada vez
mais essa narrativa como uma estratégia de aumento do valor econômico.
O espaço urbano como instrumento imagético construído através do capital se apoia em
nossa inserção na “(...) civilização da imagem: instrumento de análise do mundo e suporte da
memória" (CHOAY, 2001. p. 206), porém o subverte a partir do momento que impõe uma
identidade voltada ao consumo, afasta as reais necessidades e ignora as relações pré-
estabelecidas ali. Isso se torna evidente na situação local por meio do descaso dos órgãos
públicos com suas instituições, que sofrem indiscriminadamente com a ação do tempo,
abandono e o uso indiscriminado de medidas descaracterizadoras.
Dessa forma, estabelece-se a relação do Centro Histórico com a área portuária, não somente
pela proximidade geográfica e composição da paisagem, mas para análise de como atua uma
conjuntura mercadológica em Belém, em que até a área tida como a representação mais
antiga e expressiva dos primórdios urbanos citadinos, dignos de proteção e luta, pode ser
subjugada a segundo plano em razão da propaganda a uma nova imagem espacial, apoiada
em identidades que possam a vir ser forjadas para atender o que é economicamente,
visualmente e politicamente mais promissor para o capital. Um elemento se sobrepõe ao outro
e vira o produto da vez, não havendo assim uma integração coerente nas propostas de
intervenção, assume-se uma posição num determinado período em de acordo com os
atributos estão em voga. E nesse processo que busca a valorização de uma imagem e relega
parte integrante do seu cenário a mero coadjuvante, a população que usufrui desse espaço,
seja para moradia ou comércio é que é mais prejudicada em meio a um cabo de forças
liderados por agentes que não compõem esses espaços, que criam e destroem o espaço
urbano como um produto e cujas prioridades e interesses passam longe daqueles que deste
necessitam.
O espaço, portanto, não é inerte e nem absoluto, assim como é composto por significações
distintas, há concepções mutáveis e transformações sobre ele ao longo do tempo, contundo,
faz-se necessário compreender como essa construção social do espaço se instrumentaliza,
pois a partir do momento que se opta por uma representação do espaço concebido e
praticado - como ambos os casos ilustrados aqui– silenciam-se as demais. E sendo a
paisagem essa mediação indissociável entre a cultura e o mundo externo, é preciso analisar
as estratégias e objetivos pelas quais ocorre sua construção e ressignificação, e que tipos de
relações sociais estão sendo silenciadas nesse cenário.
4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016
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