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REPRESENTAÇÕES DE UMA CRIANÇA SOBRE A OBRA “MENINOS GOSTAM DE AZUL, MENINAS GOSTAM DE ROSA. OU NÃO?” Lucilia Vernasachi de Oliveira Doutoranda (UEM) [email protected] Bethânia Vernaschi de Oliveira Graduanda (UEM) Solange Franci Raimundo Yaegashi Orientadora (UEM) Resumo: O presente estudo tem o objetivo de compreender as representações de uma criança de cinco anos de idade sobre o uso convencional do azul e rosa e de atividades desempenhadas por meninos e meninas que os caracterizam como tal. A fundamentação teórica alicerça-se na Teoria das Representações Sociais (TRS) de Moscovici (1978; 2015) e em seus adeptos. Para a parte prática, por meio de estudo de caso, solicitamos à participante da pesquisa que nos contasse a história de autoria de Nívea Salgado: “Meninos gostam de azul, meninas gostam de rosa. Ou não?”. No decorrer da atividade interagimos com ela e registramos o seu discurso. De forma geral, constatamos que a obra analisada é bastante instigante, pois a partir do que é tradicionalmente estabelecido na divisão binária de gênero, estimula o leitor a refletir sobre atividades e brincadeiras que meninas e meninos podem compartilhar sem alterar seus gostos e preferências nos papéis socioculturais que desempenham. Palavras-chave: Azul e rosa; Meninos e meninas; Marca de gênero; Teoria das Representações Sociais. Introdução O objetivo deste estudo de caso é compreender as representações de uma criança de cinco anos de idade sobre o uso convencional do azul e rosa e de atividades desempenhadas por meninos e meninas que os caracterizam como tal. Nossa reflexão é: como a pesquisada reagirá à quebra de paradigmas apresentada

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REPRESENTAÇÕES DE UMA CRIANÇA SOBRE A OBRA “MENINOS

GOSTAM DE AZUL, MENINAS GOSTAM DE ROSA. OU NÃO?”

Lucilia Vernasachi de Oliveira Doutoranda (UEM)

[email protected]

Bethânia Vernaschi de Oliveira Graduanda (UEM)

Solange Franci Raimundo Yaegashi

Orientadora (UEM) Resumo: O presente estudo tem o objetivo de compreender as representações de uma criança de cinco anos de idade sobre o uso convencional do azul e rosa e de atividades desempenhadas por meninos e meninas que os caracterizam como tal. A fundamentação teórica alicerça-se na Teoria das Representações Sociais (TRS) de Moscovici (1978; 2015) e em seus adeptos. Para a parte prática, por meio de estudo de caso, solicitamos à participante da pesquisa que nos contasse a história de autoria de Nívea Salgado: “Meninos gostam de azul, meninas gostam de rosa. Ou não?”. No decorrer da atividade interagimos com ela e registramos o seu discurso. De forma geral, constatamos que a obra analisada é bastante instigante, pois a partir do que é tradicionalmente estabelecido na divisão binária de gênero, estimula o leitor a refletir sobre atividades e brincadeiras que meninas e meninos podem compartilhar sem alterar seus gostos e preferências nos papéis socioculturais que desempenham. Palavras-chave: Azul e rosa; Meninos e meninas; Marca de gênero; Teoria das Representações Sociais. Introdução

O objetivo deste estudo de caso é compreender as representações de uma

criança de cinco anos de idade sobre o uso convencional do azul e rosa e de

atividades desempenhadas por meninos e meninas que os caracterizam como tal.

Nossa reflexão é: como a pesquisada reagirá à quebra de paradigmas apresentada

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por Salgado (2014) na apresentação de cores e atividades comuns aos gêneros em

estudo?

Como referencial teórico-metodológico nos valemos dos pressupostos da

TRS de Moscovici (1978; 2015) e de Abric (2000; 2001; 2003) para

compreendermos que é por meio das interações sociais que ocorrem as trocas e as

representações de algo ou de alguma coisa. E que há mudanças que são mais

resistentes, pois são impregnadas de valores sociais quase que intangíveis,

entretanto há aspectos que aceitam com maior facilidade as mudanças sociais.

Na parte prática de nosso estudo, realizada por meio da técnica de estudo de

caso, analisamos alguns aspectos discursivos de uma história de livro infantil

intitulado “Meninos gostam de azul, meninas gostam de rosa. Ou não?”, de Nívea

Salgado, (2014), interpretado por uma criança de cinco anos de idade, identificada

pela criança (C), estudante no infantil cinco, em uma escola privada, localizada no

norte do estado do Paraná. A contação da história se deu por meio da leitura de

imagens por C. e de leitura da escrita alfabética mediada pela pesquisadora (P),

gravada em áudio transcrita e discutida na sequência. Algumas reflexões sobre a interpretação da participante

O livro escrito e ilustrado por Nívea Salgado (2014), traz em cada página

frase (s) curta (s) e sua ilustração. Inicialmente apresenta as brincadeiras e

atividades tradicionalmente dirigidas a meninos e a meninas. Contudo, na

sequência, a autora problematiza a afirmativa anterior, levando o leitor a posicionar-

se quanto a coisas de menino ou menina, ou de ambos. Salgado (2014) instiga o

leitor a romper com as ideias preconcebidas de divisão social de gênero. Apresentamos a leitura compartilhada da obra mencionada, na qual C.

inicialmente interpretou as ilustrações do livro, na sequência a P. leu a escrita

alfabética e levou a pesquisada a refletir sobre o material lido, conforme o diálogo

que se segue.

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C: Aqui dá pra ver bem que tudo que é azul é de homem e o rosa é de meninas. P.: Você acha que está correto pensar que os meninos só gostam de azul e as meninas, só de rosa? C: Acho que sim, porque vejo as meninas usando rosa, e eles (meninos) usando o azul. C: Aqui já tá parecendo meio estranho porque trocou as cores. P: Explique o que você achou de estranho? C: Porque o que era azul ficou rosa, e o que era rosa ficou azul. P.: Aconteceu alguma coisa prejudicial à menina por usar azul ou ao menino por usar rosa? C: (Pensativa). Pior que não, eles nem estão tristes. P: Então, aqui está escrito que “Meninas gostam de azul e meninos gostam de rosa também”. E você, não gosta de roupas e brinquedos na cor azul? C: Eu gosto de rosa e de azul. C: Aqui está mostrando que o menino está brincando de carrinho e a menina, com os bonecos. P: Exatamente. É isso mesmo que está escrito. Mas haveria algum problema se menina brincasse de carrinho? Você já brincou com carrinho alguma vez? C.: Eu gosto de brincar de carrinho e de bonecas. C: Olha! A menina está brincando de carrinho e o menino empurrando a boneca. P: Sim. Aqui está escrito que meninas brincam com carrinhos, e meninos com bonecos, também. C: Nessa outra página está certo, o menino jogando tênis, e a menina bailando. P: E se fosse ao contrário, estaria errado? C: É que eu nunca joguei tênis. E no meu balé não tinha menino dançando. Eu não sei porque não tinha. Mas eu quero fazer judô. P.: E você deixa de ser menina, por fazer judô? C: Não. Eu sou a J. e não sou menino. C: Oba, aqui menina e menino estão jogando juntos. A roupa deles é da cor do Brasil. P: A autora do livro escreveu aqui: “Meninas adoram jogar bola e meninos adoram dançar também. O que será que ela quis dizer com isso? C: Que os dois podem brincar juntos e dançar juntos. Todos podem gostar de qualquer coisa. P: Aqui a autora do livro disse que: “Meninos se divertem sobre rodas e meninas se divertem entre livros”. Você concorda com o que acabei de ler? C: As meninas também podem andar de rodinha, de skate. E todos precisam aprender a ler. C: Olha só, ela (a autora) mudou aqui. P: Mudou o quê? C: Agora o menino está lendo e a menina feliz no skate. P: Aqui está dizendo que menino faz prédios e a menina faz jantar. P: Você acredita que é assim que funciona, cozinhar é coisa de mulher? C: Em minha casa menino não cozinha. C: Puxa, aqui a mulher é uma construtora e o menino faz pizza. Faz mesmo, eu já vi na pizzaria M. P: É isso que está escrito aqui, vou ler: “Meninas gostam de construir e meninos gostam de cozinhar também”. C: Entendi. C: Última página, o menino e a menina de mãos dadas.

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P: O que será que a autora do livro quer nos dizer com essa imagem das crianças de mãos dadas? C: Será que eles (menino e menina) podem fazer a mesma coisa? P: Vou ler, daí você explica: “Menino ou menina, não importa. Divertido é brincarmos todos juntos!”. C: Também acho. P: A leitura desse livro mudou alguma coisa na forma como você pensa sobre o uso do azul e do rosa? C: Eu gosto do rosa e do azul. Eu já sabia que menina pode gostar dos dois. P: E os meninos, podem usar rosa? C: Podem combinar o azul e o rosa, camiseta rosa e calça azul ou calça rosa e camiseta azul. Acho que não fica feio.

De forma geral, é possível perceber no discurso de C. a influência que as

cores azul e rosa representa em sua concepção de gênero. Essa representação está

bem marcada logo no início da leitura quando sistematiza a quem se destina cada

cor, e na sequência a estranheza que lhe causa a quebra desse estereótipo pela

autora, ao trocar os papéis, menina de azul e menino, de rosa. A partir dessa

anuência de Salgado (2014), C. afirma que gosta do azul, também. O

comportamento de C. nos remete ao que Moscovici (1978; 2015) explica quando

tornamos familiar o que nos era não familiar. Ou seja, as convenções sociais

dividem o mundo entre azul/homem e rosa/mulher, entretanto, a pequena leitora

conclui que é possível que qualquer um dos gêneros use essas cores, brincadeiras e

outras atividades sem interferir em quem e como são.

Conforme o exposto, mesmo refletindo sobre os papéis desempenhados por

meninas e meninos, C. se coloca nas situações demonstradas pela autora, se avalia

e deduz que há coisas que ela não faz, como exemplo não joga tênis e que gostaria

de praticar judô. Deixa bem marcado também que há atividades em sua escola,

como aula de balé, das quais os meninos não participam e que em sua casa

meninos não cozinham. Podemos inferir que numa determinada representação há

um núcleo central e um periférico, que o primeiro é mais rígido, por isso não permite

mudanças a curto prazo, ao passo que o segundo, é mais flexível e passível de

alterações (ABRIC, 2000; 2001; 2003).

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Considerações finais

A leitura do livro trabalhado no presente artigo demonstrou ser um material

importante para desconstruir a distinção demarcada para caracterizar a supremacia

de um gênero sobre outro e na própria negação do corpo e da identidade de quem

ousa quebrar as normas sociais e se vestir ou fazer atividades diversas ao seu

gênero.

Consideramos importante que discussões sobre componentes curriculares

sobre a temática em estudo sejam incorporados desde à educação infantil na

formação inicial e continuada de professores, considerando que a educação sexual

é princípio fundamental para tratar de direitos sexuais desde a primeira etapa da

educação básica, em que os pequenos podem se constituírem de forma serena e

sem preconceitos. Referências ABRIC, J. C. A abordagem estrutural das representações sociais. In: MOREIRA, A. S. P.; OLIVEIRA, D. C. Estudos interdisciplinares de representações sociais. Goiânia: AB, 2000. p. 27-38. ABRIC, J. C. O estudo experimental das representações sociais. In: JODELET, D. As representações sociais. (Org.). Rio de Janeiro: EDUERJ. 2001. p. 155-171. ABRIC, J. C. Abordagem estrutural das representações sociais: desenvolvimentos recentes. In: CAMPOS, P. H. F.; LOUREIRO, M. C. S. (Orgs.). Representações sociais e práticas educativas. Goiânia: Ed. da UCG, 2003. p. 37-57. MOSCOVICI, S. A representação social da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar Editores, 1978. MOSCOVICI, S. Representações sociais: investigações em psicologia social. 11. ed. Petrópolis: Vozes, 2015. SALGADO, N. Meninos gostam de azul, meninas gostam de rosa. Ou não? 1. ed. São Paulo: Callis, 2014.

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SANT’ANNA, L. M. de. Além do azul e do rosa: papéis culturais de gênero em brinquedos e revistas dirigidos à criança.62 f. Monografia. (Graduação em Ciências Biológicas). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2014. Disponível em:<https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/117633/000967585.pdf?sequence=1 >. Acesso em 10 fev. 2019.