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FACULDADE DE LETRASUNIVERSIDADE DO PORTO
Sara Alexandra Santiago Silva
2º Ciclo de Estudos em Filosofia – Filosofia Contemporânea
Consciência e Intencionalidade:
perspetiva Dualista Naturalista e relação entre intenções e ações
2013
Orientador: Professora Doutora Sofia Miguens
Classificação: quinze (15) valores
Ciclo de estudos:
Dissertação/relatório/Projeto/IPP:
Versão definitiva
Resumo: Ao apresentar uma reflexão acerca da consciência e da intencionalidade
pretende-se perceber acerca do que falamos quando falamos de consciência e de que
forma esta se relaciona com a intencionalidade. Sabendo que o problema da consciência
poderá ser abordado através de dois pontos de vistas – o objetivo e o subjetivo –
pretende-se apresentar uma refutação à tese materialista culminando, por fim, com a
defesa de uma tese Dualista Naturalista a partir de David Chalmers.
Desenvolvendo conceitos como autoconsciência e racionalidade ficam não só vincadas
as diferenças existentes entre agentes cognitivos humanos como pessoas e restantes
organismos, como também fica aberto o caminho para apresentação do segundo tema
deste trabalho – a intencionalidade como aboutness (direcionalidade) e de que forma
ações e intenções se relacionam tendo por base John R. Searle.
Palavras-chave: Ações, Autoconsciência, Consciência, Dualismo Naturalista,
Identidade Pessoal, Intencionalidade, Intenções, Materialismo, Pessoalidade,
Racionalidade
ii
Agradecimentos
Em primeiro lugar agradeço à Professora Doutora Sofia Miguens, a Orientadora
de todo este trabalho, pela simpatia e tempo disponibilizado para a leitura e realização
de comentários para as várias versões de texto que foram sendo apresentadas. Agradeço,
principalmente pelo exemplo que para mim sempre foi desde o início de toda esta
jornada.
Agradeço também aos vários professores que me acompanharam ao longo dos
três anos de licenciatura e do primeiro ano de mestrado pois sem eles não me teria sido
possível obter o conhecimento que hoje possuo das várias disciplinas da Filosofia.
Aos meus pais que tudo fizeram para que tudo isto fosse possível.
Aos meus amigos (Carla, Catarina, Vítor Martins e Vítor Sousa) por todas as
discussões acerca do meu tema de tese que permitiram, por vezes, ver as coisas com
maior clareza.
À minha família emprestada por todo o apoio e por todas as vezes que me
perguntaram como estava a correr todo este trabalho.
Por último e não menos importante, ao Diogo por todo o amor, dedicação e
apoio que sempre me deu. Agradeço-lhe, também por todas as vezes que me deu o
incentivo necessário de forma a dar continuidade ao trabalho e principalmente, por toda
a calma que me transmitiu ao longo de todo este processo com maior destaque para os
momentos de maior stress em que nada parecia fazer sentido.
iii
ÍNDICE
Introdução 1
Apresentação geral do trabalho...............................................................................................1
Primeira Parte: Consciência e Senciência 8
Capítulo 1 – Materialismo e o esquecimento da experiência subjetiva do sujeito...................8
I. Consciência – o problema acerca do que se fala quando se fala de consciência...............8
II. O Materialismo.................................................................................................................9
III. Dos problemas fáceis aos problemas difíceis da consciência........................................20
Capítulo 2 – Do Materialismo ao Dualismo Naturalista..........................................................31
I. Materialismo: a resposta fácil ao problema difícil. Argumentos contra o materialismo. 31
II. Da falsidade do Materialismo à defesa de um Dualismo Naturalista.............................40
Segunda Parte: Intencionalidade, Intenções e Ações 45
Capitulo 1 – Pessoalidade e Identidade Pessoal.....................................................................45
I. O que é ser-se pessoa? Apresentação de duas características fundamentais.................45
II. Racionalidade Prática: pessoas como fazedoras de ações..............................................50
Capítulo 2 – Intencionalidade.................................................................................................54
I. Estados Mentais e atos da fala: uma teoria da Intencionalidade segundo John R. Searle...........................................................................................................................................54
Capítulo 3 – Intenções e Ações...............................................................................................61
I. Como é que intenções e ações se relacionam? Uma possível resposta a partir de John R. Searle.................................................................................................................................61
Conclusão 69
Bibliografia 74
iv
Introdução
Apresentação geral do trabalho.
Ao propor uma reflexão acerca da consciência e da intencionalidade
imediatamente surgem duas questões: do que falamos quando falamos de consciência e
de que forma esta se relaciona com a intencionalidade?
Muito se fala acerca do que poderá ser a consciência, porém poucas certezas
existem acerca do que realmente ela é e de que forma ela acontece. É certo que a cada
dia que passa, a ciência dá-nos a conhecer os mais variados progressos: as técnicas
utilizadas em laboratório são cada vez mais sofisticadas e cada vez mais um maior
número de descobertas é-nos dadas a conhecer. De um lado temos os neurofisiologistas,
neurocientistas e todas as restantes áreas cientificas relacionadas com o estudo do
cérebro e, do outro lado, temos os psicólogos e a nós, os filósofos. Neste sentido, o
problema da consciência é algo que interessa não só a uma determinada área ou
disciplina, mas a várias. Em Filosofia, a temática da consciência percorre diversas áreas
desde a Filosofia da Mente e Filosofia do Conhecimento até à Ética e à Filosofia da
Ação. Devido à multiplicidade de disciplinas que estudam e que se preocupam com a
consciência, encontramos vários e distintos métodos de investigação. Assim:
“(…) não é de estranhar que os métodos de investigação acerca da consciência
se apresentem em formas bastante diversas indo da experimentação comportamental ou
cognitiva levada a cabo pela psicologia até ao “mapeamento” do cérebro pelas
neurociências, passando pelos métodos não empíricos de disciplinas de carácter mais
analítico ou especulativo, como a filosofia e a psicanálise, ou mesmo de áreas como a
literatura e outras artes.”1
Todavia, nem sempre a consciência fez parte do âmbito de estudo das ciências
do cérebro. Durante longos anos, a consciência foi um problema que este tipo de
investigadores tentaram evitar, uma vez que a ciência, devido ao seu carácter objetivo
1 Augusto, 2009, p.1
1
do qual não pretendia (nem pretende) abdicar, não podia incluir no seu âmbito de estudo
algo tão subjetivo como a problemática da consciência. Tal verificou-se não só nas
chamadas ciências exatas, mas também no movimento behaviorista da psicologia onde
os processos internos foram ignorados passando-se, por sua vez, a dar uma elevada
importância no que dizia respeito ao comportamento externo do agente. Infelizmente,
apesar de, atualmente, muitos autores afirmarem que a consciência pode ser abordada
como sendo um problema científico legítimo como é o caso de F. Crick e C. Koch (dois
autores importantes na área das neurociências) e de Patricia Churchland e Daniel
Dennett (da área da filosofia), vai ser defendido que continuamos a assistir ao mesmo
erro que foi levado a cabo, anteriormente, pelo behaviorismo. O que acontece é que as
ciências cognitivas persistem em continuar a estudar a consciência a partir de
fenómenos objetivamente observáveis – o que é encarado, pela filosofia, como sendo
um problema.
Por outro lado, não nos podemos esquecer que o problema da consciência se
relaciona com o problema mente-corpo ou mente-cérebro. A discussão acerca do
problema mente-corpo poderá ser resumida da seguinte forma: o que quer que se passe
na consciência depende do que se passa no corpo que, por sua vez, depende do que se
passa no cérebro. O problema reside na incerteza acerca da questão se a mente
consciente é o cérebro ou se é outra coisa qualquer. O que se passa é que nos
encontramos conscientes acerca daquilo que pensamos, sentimos, desejamos e tememos,
por exemplo, mas não temos consciência do nosso cérebro nem do que se passa no seu
interior.
Em Filosofia da Mente a discussão acerca da consciência e do problema mente-
corpo ganhou especial destaque em duas importantes orientações filosóficas sendo que
uma delas é o dualismo e a outra é o monismo. Na primeira encontramos o dualismo de
substâncias – defende a existência de duas substâncias distintas: o físico e o mental - e o
dualismo de propriedades – a consciência existe não como sendo uma substância
separada, mas antes como sendo uma propriedade do cérebro, uma vez que este é
considerado pelos dualistas de propriedades como sendo o único órgão que tem inerente
a si um conjunto de propriedades não-fisicas. Por outro lado, o monismo divide-se entre
o materialismo – corrente filosófica que afirma que tudo o que existe é físico ou
material –, o idealismo – assente na ideia de que tudo o que existe é mental – e, por
2
ultimo, a teoria do aspeto dual ou monismo neutro – onde é defendida a ideia de que o
universo não é nem essencialmente físico nem mental.
Devido ao facto de nos últimos anos áreas cientificas como a física e a biologia e
até mesmo as ciências da computação terem conseguido consolidar-se e terem
apresentado uma visão do mundo essencialmente física e objetiva um dos vários tipos
de monismo ganhou elevado destaque no ceio da comunidade filosófica. Falo do
materialismo. O destaque alcançado por parte desta corrente deveu-se
fundamentalmente ao facto de ser vista como sendo aquela teoria que mais se assemelha
à visão científica do mundo. Contudo, as respostas fornecidas pelo materialismo não se
apresentam pacificadoras e assim se explicam os acesos debates entre dualistas e
monistas.
O problema mente-corpo sempre foi um problema presente no pensamento de
vários filósofos ao longo do tempo, mas foi René Descartes (1596-1650) o principal
fundador do pensamento moderno inerente a este problema. Inicia as Meditações
Metafísicas colocando tudo aquilo que anteriormente tinha como certo desde as suas
memórias até à existência do mundo real e exterior em dúvida pois poderia dar-se o
caso de tudo isso ser obra de um génio maligno que se diverte enquanto o engana.
Porém, existe algo do qual ele não pode duvidar. Não pode duvidar do facto de que ele é
um sujeito que pensa e esta ideia surge-lhe de forma tão clara e distinta que ele a
concebe como sendo necessariamente verdadeira. Continua o seu pensamento
afirmando que uma coisa que pensa é “uma coisa que duvida, que concebe, que afirma,
que nega, que quer, que não quer, que imagina e que sente”2 e mesmo que não existam
certezas acerca se tudo aquilo que pensa corresponde a algo de exterior a si, não pode
duvidar de que todos esses estados existem “em” si. Assim sendo, surge a certeza de
que essa coisa que pensa não pode corresponder a algo corpóreo visto que o mental
passa a ser entendido como sendo uma substância ontologicamente distinta do físico.
Desta forma o ser humano seria, segundo Descartes, constituído por duas naturezas
distintas sendo que uma delas seria a res cogitans (que representaria a mente ou a alma)
e a outra a res extensa (que, por sua vez, representaria o corpo). Espírito e corpo
encontrar-se-iam inteiramente relacionados um com o outro pois só assim, segundo este
autor, se explicaria o porquê de sentirmos dor quando o nosso corpo é ferido ou de
existirem em nós sensações como fome e sede. Tais sensações só seriam possíveis de
2 Descartes, 2003, p.28
3
serem experienciadas por cada um de nós devido à unidade existente entre espírito e
corpo. Quando Descartes procedeu à defesa da existência de duas substâncias
identificou como elo de ligação entre a mente e o corpo a glândula pineal. Esta glâdula
corresponderia ao local do cérebro onde se daria todo aquele tipo de experiências
mentais inerentes ao sujeito que pensa e a sua existência seria a justificação de como
uma mente corresponde a um corpo. Todavia, apesar de a distinção entre mental e físico
surgir de forma intuitiva com a consolidação das várias ciências como a Física e a
Biologia e principalmente com a aceitação e desenvolvimento do Darwinismo o
pensamento cartesiano passou a ser alvo de fortes criticas. Com o avanço destas ciências
assistiu-se a uma nova forma de pensar a natureza da consciência. Tudo poderia ser
descrito através de propriedades físicas desde uma dor aguda no fundo das costas até a
uma simples tontura e foi esta nova conceção do mundo por parte da Ciência que
conduziu muitos filósofos à aceitação da posição materialista como foi o caso de Daniel
Dennett e de Patricia Churchland. Do lado oposto encontramos autores como David
Chalmers e Thomas Nagel que apoiam uma tese dual e Searle que apresenta uma
possível solução para o problema mente-corpo fundamentando-se naquilo a que ele
chama de naturalismo biológico. São fundamentalmente estes os autores com que se
trabalhará ao longo da presente dissertação.
Por outro lado não nos podemos esquecer que a consciência se encontra
inteiramente relacionada com a intencionalidade. Essa relação reside no facto de que
sempre que estamos conscientes estamos conscientes de alguma coisa. A questão da
intencionalidade assim como a questão da consciência também já foi tratada por
diversos autores ao longo do tempo. Franz Brentano utilizou-a para definir o estatuto de
consciência, mas foi com Edmund Husserl que a questão da intencionalidade ganhou
maior destaque. Husserl considerou a consciência como sendo sempre intencional na
medida em que todos os fenómenos mentais, isto é, crenças, desejos, medos são sempre
acerca de alguma coisa. Outros autores como Searle defendem uma teoria da
Intencionalidade dividida entre intencionalidade intrínseca e intencionalidade derivada.
Sendo que a primeira diz respeito aos estados mentais como crenças e desejos e a
segunda aos atos da fala como sendo marcas num papel e sons que saem pela boca.
Tendo como inspiração Husserl, Searle defende que estados mentais e atos da fala são
intencionais sempre que forem acerca-de-aguma-coisa, isto é, sempre que existir uma
direcionalidade. Assim como também afirma que não existem ações sem intenções.
4
Feita a contextualização da consciência e da intencionalidade passemos à
apresentação da estrutura propriamente dita do trabalho a que me proponho levar a
cabo.
Em primeiro lugar o trabalho encontrar-se dividido em duas partes sendo que a
primeira refere-se à problemática da consciência e a segunda parte à intencionalidade.
O fenómeno ao qual damos o nome de “consciência” é dos fenómenos dos quais
estamos mais conscientes e ao mesmo tempo aquele que mais incerteza nos transmite.
Afinal o que é isso de estar consciente acerca do que quer que seja? Do que se fala
quando se fala de consciência e como é que esta se processa? Onde se encontra
instalada? Saber o que a consciência é, é algo que nos interessa porque uma das nossas
crenças consiste, precisamente, no facto de que o nosso eu – aquilo que faz de nós o que
efetivamente somos – se constrói a partir da consciência. Por outro lado, interessa-nos
saber o que a consciência é porque, de uma certa forma, é ela que nos permite atribuir
algum tipo de responsabilidade legal a um ato cometido por determinado agente – daí a
sua importância em disciplinas como a Ética, por exemplo.
São vários os objetivos aos quais me proponho levar a cabo ao longo da primeira
parte, entre os quais destacam-se dois: em primeiro lugar pretendo criticar uma das
tradições dominantes em filosofia da mente – o materialismo – tendo como pano de
fundo dois autores recorrentemente referidos e citados na vasta bibliografia da Filosofia
da Mente. Falo do materialismo reducionionista de Patricia Churchland e do
materialismo eliminativo de Daniel Dennett. A partir do artigo de Churchland Poderá a
Neurobiologia Ensinar-nos Alguma Coisa Acerca da Consciência e da Teoria dos
Esboços Múltiplos de Dennett pretende-se perceber por que razão uma teoria como o
materialismo não apresenta uma resposta satisfatória no que respeita ao problema da
consciência. Em segundo lugar, pretende-se afirmar que quando o assunto é a
consciência falamos i) de uma experiência subjetiva que ii) não pode ser analisada como
sendo apenas um problema epistemológico, mas também ontológico, uma vez que
quando falamos de consciência falamos de uma ontologia de primeira pessoa e iii) que
depende de um ponto de vista. Autores como Chalmers, Nagel e Searle serão
fundamentais na abordagem e desenvolvimento das alíneas i), ii) e iii) respetivamente.
Conceitos como experiência, experiência subjetiva, vida interna do sujeito, qualia e a
expressão “como é ser” surgem como fundamentais para a abordagem da consciência
segundo o ponto de vista dos três autores acima citados.
5
Pretende-se defender que são fenómenos como o sofrimento causado por uma
dor intensa que constituem, na minha opinião, o verdadeiro mistério da mente e são
fenómenos deste tipo que fazem parte daquilo a que, na minha opinião, damos o nome
de consciência. Assim, o que se pretende afirmar é que o fenómeno da consciência não
pode ser analisado única e exclusivamente segundo a perpetiva materialista, mas que
também devemos ter em atenção a experiência subjetiva do sujeito porque se assim não
for o que iremos obter será um conhecimento pouco satisfatório ou até mesmo
insuficiente daquela que é a consciência. Desta forma, torna-se essencial ter-se em
atenção a divisão entre problemas fáceis e difíceis da consciência feita por David
Chalmers, sabendo que nos primeiros encontramos os problemas relacionados com os
mecanismos objetivos do cérebro e que os segundos se relacionam com o modo como o
sujeito sente as coisas e como as perceciona – trata-se da experiência subjetiva do
sujeito. Por último, a partir de Chalmers dá-se início à defesa de um Dualismo
Naturalista.
Outra questão que se relaciona com a consciência é intencionalidade. É
precisamente sobre ela que nos ocuparemos ao longo da segunda parte deste trabalho.
Assim sendo, o primeiro objetivo desta segunda parte consiste em tentar perceber se a
consciência é uma característica presente unicamente em seres humanos ou se também
está presente em outras espécies da vida animal. À partida poderíamos dizer que a
principal diferença é que a nossa espécie – Homo Sapiens – evoluiu num sentido em que
mais nenhuma outra evoluiu. Somos os únicos seres capazes de justificar as nossas
crenças, desejos, medos e frustrações assim como também somos os únicos seres
capazes de justificar as nossas ações. A resposta à questão acerca se seremos ou não os
únicos seres detentores de uma consciência encontra-se relacionada com o problema de
identidade pessoal e de pessoalidade. Visto que aquilo que nos faz pensar que somos
seres dotados de um grau de consciência diferente dos restantes organismos baseia-se no
facto de termos consciência não só de nós próprios ao longo do tempo, mas também de
sermos detentores de pensamento racional. O conceito de pessoa surge como sendo
aquele que marca a diferença entre nós e os restantes animais, na medida em que uma
pessoa é considerada pessoa tendo em conta as capacidades que possui e não a espécie à
qual pertence, a saber: autoconsciência e pensamento racional. Através daquela que é a
característica principal acerca do que faz de nós pessoas – a racionalidade – e, mais
precisamente, através da racionalidade prática será apresentada uma primeira definição
6
acerca do que se fala quando se fala de ação, o que é racionalizar uma ação e o que
torna uma ação intencional. Para responder a estas três questões será abordada a teoria
instrumental de racionalidade e o pensamento de Anscombe acerca da intenção.
Em segundo lugar pretende-se compreender em que sentido é que consciência e
intencionalidade se relacionam. Tendo em vista que nunca estamos simplesmente
conscientes, isto é, sempre que nos encontramos conscientes encontramo-nos
conscientes de alguma pretende-se saber em que circunstâncias é que o “de” de
“consciente de” é intencional e quando não o é. Fazer-se-á, então, apelo à teoria
searliana dos atos da fala como via para explorar a natureza da intencionalidade.
Por último, retomaremos a Searle de forma a dar resposta acerca da questão
“como é que intenções e ações se relacionam?”. Deste modo, pretende-se afirmar com
base no pensamento deste autor que não podem existir ações sem intenções e que nem
todas as intenções são prévias, uma vez que algumas são intenções em ato, e assim
melhor fundamentar o carácter especial da consciência nos humanos defendido no
Capítulo 1 da Segunda Parte.
7
Primeira Parte: Consciência e Senciência
Capítulo 1 – Materialismo e o esquecimento da experiência subjetiva do sujeito
I. Consciência – o problema acerca do que se fala quando se fala de consciência
A palavra consciência (consciousness) é usualmente utilizada sempre que
pretendemos chamar a atenção para as mais variadas coisas que acontecem connosco e/
ou que fazemos acontecer. Descriminar estímulos, monitorizar estados internos e
reportar qualquer tipo de informação são alguns casos que servem de exemplo.3
Efetivamente, cada um de nós tem a capacidade de estar acordado, de adormecer e de
sonhar, rir e de chorar entre outras tantas coisas sem que se saiba como tudo isto é
causado (possivelmente) no nosso sistema nervoso. Nesse sentido, é-nos possível
afirmar que o estado consciente, por um lado é aquele tipo de estado do qual estamos
mais conscientes e por outro, aquele que mais incerteza nos transmite. Incerteza não só
no sentido em que (ainda) não nos é possível saber com exatidão aquilo que a
consciência é e como esta se processa, mas também devido à sua fragilidade. Pensemos
nas doenças neurodegenerativas em que as células (neurónios mais concretamente)
responsáveis pelo correto funcionamento das nossas capacidades cognitivas se vão
destruindo progressiva e irreversivelmente. Eu aqui e agora, por exemplo, penso e
acredito que o meu nome é Sara que vivo em Vila Nova de Gaia e que 2+2 são quatro,
penso e acredito em várias e diferentes coisas, mas num futuro próximo ou distante
poderá acontecer que eu já não esteja mais ciente quer de quem sou quer das crenças
que antes tinha como certas. Deste modo, não é de estranhar que nos dias de hoje exista
um número considerável de disciplinas que se interessam por esta problemática. São
disciplinas oriundas tanto das ciências da saúde como da vida (neuropsicologia,
psiquiatria, neurociência e a neurobiologia, por exemplo), das ciências sociais e
humanas (como é o caso da psicologia) e, como não nos podíamos esquecer, também 3 Em “Consciousness and its Place in Nature” David J. Chalmers diz-nos “The word ‘consciousness’ is
used in many different ways. It is sometimes used for the ability to discriminate stimuli, or to report
information, or to monitor internal states, or to control behavior.” (Chalmers, 1996, p.2).
8
das várias áreas ou disciplinas da filosofia (Filosofia da Mente e do Conhecimento, da
Ética e da Filosofia da Ação, por exemplo).
Antes de mais importa dizer que ao longo deste primeiro capitulo serão
abordadas duas correntes filosóficas sendo que a primeira será o materialismo
(reducionista de Churchland e eliminativo de Dennett) e a segunda o dualismo (tendo
como autores fundamentais Chalmers e Nagel). No final, através dos três argumentos de
Chalmers – o argumento explanatório (The Explanatory Argument), o argumento do
conhecimento (The Knowledge Argument) e o argumento da concebivilidade (The
Conceivability Argument), – e dos sete fundamentos contra o materialismo defendidos
por Searle pretende-se refutar a tese materialista assente na ideia de que a consciência
pode ser explicada unicamente através de processos físicos.
II. O Materialismo
Com o avanço da Física, da Biologia, das Ciências Cognitivas e da Computação
a visão da consciência foi-se modificando dando a entender que já não fazia sentido
defender qualquer tipo de dualismo e muito menos um dualismo das substâncias como
defendera outrora Descartes. Tudo poderia ser descrito por fenómenos físicos desde
uma dor aguda ao fundo das costas até a uma simples tontura e foi esta nova conceção
do mundo por parte da Ciência que conduziu muitos Filósofos a defenderem um certo
tipo de monismo – o materialismo. A pergunta que se coloca é a seguinte: será que tudo
pode ser resumido a fenómenos físicos ou caso se faça isso algo é deixado de fora? A
resposta que irei apresentar é que não podemos resumir tudo a fenómenos físicos porque
se o fizermos estaremos a anular a existência da consciência (como faz Churchland e
Dennett) o que, por sua vez, conduzirá à negação da existência da experiência subjetiva
do sujeito – referente ao modo como o sujeito sente as coisas e as perceciona – tal como
Chalmers e Nagel a concebem. Para autores como Chalmers e Nagel sempre que um
agente cognitivo diz frases como “a relva do meu jardim é verde”, “a cor da camisola
que tenho vestida é azul” ou “a moldura que se encontra pousada na secretária é
castanha” encontra-se a reportar não só eventos físicos, mas também qualidades
subjetivas das suas experiências mentais conscientes (comummente designadas de
qualia). Essas qualidades subjetivas diriam, então, respeito à forma como o sujeito sente
a cor verde da relva, o azul da camisola e o castanho da moldura, o que por sua vez se
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traduziriam em experiências mentais do tipo: agrado, desagrado ou indiferença, por
exemplo. Qualia são experiências altamente complexas e são entendidas pelos dois
autores acima citados como sendo entidades distintas de coisas físicas como “relva”,
“camisola” e “moldura”. Contudo, não podemos negar por completo que por base desta
experiência subjetiva estão processos físicos. Aliás, segundo Chalmers, embora os
estados mentais assim como os qualia tenham a sua origem em estados físicos, tal não
significa que os estados mentais e os qualia tenham qualquer tipo de influência nos
estados físicos. No entanto, como iremos ver ao longo deste primeiro capitulo a visão do
materialismo face aos qualia e à experiência subjetiva é bastante diferente da forma
como Chalmers e Nagel a pensam.
Uma adepta desta visão de como estudar a consciência sem os qualia e sem a
experiência subjetiva é Patricia Churchland. Apoiando-se na crença de que “as
capacidades da mente humana são, na verdade capacidades do cérebro humano”4 em
Poderá A Neurobiologia Ensinar-nos Alguma Coisa Acerca Da Consciência? defende a
possibilidade de as neurociências poderem explicar tudo aquilo que acontece a nível
psicológico através de processos físicos. Desta forma tudo aquilo que foi dito e
defendido por Descartes é deitado por terra, pois deixa de fazer sentido ficarmos
agarrados à ideia de uma alma cartesiana ou a outras coisas também elas difíceis de
explicar como é o caso dos qualia.
Ao longo do referido artigo, a autora vai respondendo a duas acusações que
usualmente são feitas a este tipo de investigação. A primeira diz respeito à ideia de que
é incoerente e de que é absurdo pensar que a perceção visual da cor vermelha ou a
perceção do sabor de um alimento possa ser inteiramente explicada e justificada em
termos físicos, isto é, através da atividade neuronal no cérebro. Esta posição, segundo
Churchland, apoia-se na premissa de que imaginar a hipótese de uma explicação
puramente física de algo tão complexo como a consciência não faz sentido e que é
impossível. Seguidamente, acusa que tal premissa não tem qualquer fundamento
precisamente porque muitas das coisas que hoje se encontram provadas cientificamente
foram em tempos consideradas como inimagináveis, incoerentes, absurdas, acusadas de
blasfémia e tendo como consequência a morte como forma de punição. Deste modo,
poderá, hoje, soar-nos estranho dizer que os fenómenos macroscópicos podem ser
reduzidos ao nível microscópico tal como já houve um tempo em que soou estranho
4 Churchland, 2005, p.1
10
afirmar que a Terra era redonda e não quadrada e que era esta que girava à volta do sol e
não o contrário. Portanto, é um erro dizer que “é impossível” ou que “é estranho” que a
consciência possa ser explicada única e exclusivamente através da atividade neuronal
porque tal não significa rigorosamente nada.
A segunda objeção consiste em afirmar que o objetivo a que Churchland se
propõe não vai de encontro com o argumento acerca da realizabilidade múltipla. Este
argumento encontra-se relacionado com um outro argumento que é o da identidade entre
estados mentais e estados físicos. Este último trata-se de um argumento tipo-tipo na
medida em que identifica um determinado tipo de estados mentais com o mesmo tipo de
acontecimentos. Vejamos o caso específico da dor: no exemplo clássico, que é bastante
simplificador relativamente aos pormenores neurofisiológicos para o estado mental
“dor” existe um estado físico que é a ativação das fibras C. Assim podemos definir o
argumento de identidade da seguinte forma:
Para qualquer estado mental M existe um estado físico F de forma que uma
criatura só pode ter M se, e somente se tiver F.
O problema reside no facto de conseguirmos facilmente imaginar criaturas
diferentes da nossa espécie que partilham os mesmos estados mentais que nós sem que
tenham os mesmos estados físicos ou cerebrais. Desta forma poderemos imaginar
organismos a habitar num outro Planeta detentores do estado mental “dor” sem que este
se relacione com o estado físico referente à ativação das fibras C. Aliás, poderá até
ocorrer que esse organismo não tenha aquilo que usualmente identificamos como sendo
fibras C. É disto que falamos quando falamos da teoria da realização múltipla. Esta
teoria foi defendida em 1967 no artigo The Natural of Mental States de H. Putnam em
defesa do funcionalismo. No artigo Putman rejeita a teoria da identidade, uma vez que
defende a tese de que os estados mentais não são estados cerebrais. Desta forma
deixaria de fazer sentido identificar um estado mental com um único estado físico para
se passar a adotar a teoria da realização múltipla, ou seja, os estados mentais passariam
a ser considerados como sendo multiplamente realizáveis na medida em que poderiam
estar associados diversos estados físicos a um mesmo estado mental.
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Patricia Churchand afirma que a defesa do argumento da Realizabilidade
Múltipla é inconsistente com aquilo que pretende defender no seu artigo. Defender tal
teoria não faz sentido precisamente porque mesmo face aos organismos que
conhecemos como rãs e porcos apesar de encontrarmos algumas semelhanças também
encontramos algumas diferenças. Veja-se o caso do coração. Tanto as rãs como os
porcos e nós seres humanos possuímos um coração que bombeia sangue e que é o órgão
fundamental para a manutenção da nossa vida. Todavia este órgão apesar de existir nos
três exemplos mencionados possui algumas variações, pois mesmo que em ambos os
casos o coração funcione da mesma forma existem variações como é o caso do
tamanho. O que Churchland pretende afirmar é que apesar de ainda não existir um
conhecimento preciso acerca de como, neste caso preciso, o cérebro funciona é
altamente provável que um dia o conhecimento humano consiga alcançar esse tipo de
saber. Por essa razão, para a autora não há nada de misterioso na consciência pois esta
“mais não é que um determinado padrão de actividade neuronal”.5 No entanto, deixa
ainda a ressalva de que poderá dar-se o caso de estar errada, mas se tal ocorrer foi
porque a ciência conduziu o estudo da consciência numa outra direção. Por outras
palavras, o que Churchland pretende afirmar é que a consciência não está fora do
alcance explicativo da ciência e que está será capaz de fornecer todas as respostas que
se procuram para a problemática da consciência quer seja num futuro próximo ou
distante. Assim, Patricia Churchland conclui que a consciência é um problema que
interessa à ciência tal como Crick e Kock defenderam no artigo Towards a
Neurobiological Theory of Consciousness. Também para estes dois autores o problema
da consciência poderia ser explicado recorrendo unicamente a explicações de nível
neuronal. Desta forma a consciência passaria a ser abordada como sendo um problema
cientificamente legítimo, uma vez que não se teria de recorrer a características
fantasmagóricas como a uma alma, mas antes a coisas puramente físicas como
neurónios. Mais concretamente a consciência poderia ser explicada através da
Neurobiologia. Recorrendo ao exemplo de como percecionamos as coisas que se
encontram ao nosso redor os autores dão como exemplo o caso da visão.
Diariamente temos várias perceções visuais e esta é uma das coisas das quais
não podemos negar, por exemplo, neste momento estou a ter várias. À minha frente vejo
o monitor do meu computador, em cima da secretária vejo folhas de cor branca
5 Churchland, 2005, p.14
12
rabiscadas, um lápis e uma caneta. A visão que tenho de todos estes objetos é unificada,
mas as partes constituintes desses mesmos objetos como a cor, o tamanho e o
movimento são tratados por diferentes zonas do meu córtex visual. Ao dizer isto
deparamo-nos imediatamente com um problema. Se diferentes zonas do meu córtex
visual observam um objeto desunificando-o como é que a perceção visual consciente de
um determinado objeto surge na minha mente como estando unido? Segundo os dois
autores a perceção visual consciente pode ser facilmente explicada por via científica.
Crick e Kock afirmam que este tipo de perceção se relaciona com um disparo
sincronizado de neurónios conectando o córtex e o tálamo que oscila entre os 40-70 Hz.
Desta forma a ideia de explicar tudo o que pertence ao nível macroscópico
(propriedades psicológicas) a partir do nível microscópico (propriedades neuronais)
surge como sendo uma hipótese plausível.
Não podemos negar a veracidade de muitos dos factos óbvios da Física como é o
caso da lei da gravidade e de que o mundo é constituído por partículas físicas, mas a
aceitação de que todos estes factos são reais não nos conduz necessariamente à negação
de factos evidentes como é o caso das nossas experiências mentais. Não parece de todo
plausível negar que somos detentores de estados mentais. O problema do materialismo
tanto o de tipo reducionista como o que é defendido por Churchland como o eliminativo
de Dennett consiste no facto de deixarem de fora a experiência subjetiva do sujeito e,
uma vez isso acontecendo, algo fica de fora e esse algo é precisamente a consciência
fenomenológica ou qualia.
Dennett é por muitos considerado não só como sendo um eliminativista, mas
também como sendo um instrumentalista que é outra forma de negar a realidade da
mente, uma vez que essa teoria defende que a atribuição de estados mentais acontece
por razões puramente pragmáticas. Segundo Dennett a consciência não é apenas uma
coisa, mas várias (para esta questão o Modelo de Esboços Múltiplos ser-nos-á bastante
útil). Procurar-se-á em seguida compreender em que sentido Dennett nega a existência
de uma consciência fenomenal ao mesmo tempo que consegue criar uma teoria da
mente, uma teoria acerca de como um agente humano consegue ter um apercebimento
do mundo, sem admitir a existência de qualia.
Para Dennett a consciência não surge como sendo um problema especial
filosófico e refuta duas das ideias que se relacionam com ela e das quais já falamos ao
longo desta primeira parte. Dennett não encara a consciência como sendo experiência
13
subjetiva como veremos em Chalmers e Nagel nem como dela fazendo parte os qualia.
Estes são usualmente definidos por ele como sendo “propriedades intrínsecas, inefáveis,
privadas, imediatamente (e incorrigivelmente) conhecidas, da maneira como as coisas
nos (a)parecem.”6. Usualmente, mas não de acordo com a definição de Dennett, quando
falamos de qualia falamos de algo que existe independentemente de qualquer
interpretação, de uma experiência de primeira pessoa à qual ninguém, para além de
quem experiência, poderá ter acesso com a finalidade de confirmar ou de negar a sua
existência. No entanto, Dennett nega a sua existência e é nessa aniquilação que consiste
o seu materialismo eliminativo. Poderíamos ainda acrescentar que a negação dos qualia
surge como sendo a peça-chave da teoria da mente desenvolvida por este autor.
Para uma maioria os qualia são propriedades fenomenológicas que se encontram
ligadas ao sentimento de si e que se relacionam com a sensação de que há algo para uma
determinada coisa ser como ser essa coisa (como será melhor analisado no capitulo 2).
Dennett encara os qualia não como sendo de uma natureza ontológica, mas antes como
se tratando de propriedades de segunda ordem. A sua posição eliminativista acerca dos
qualia não é assim, mais atentamente considerada, uma posição acerca de ontologia,
mas antes uma observação epistemológica, no sentido em que para o autor um
determinado sujeito cognitivo tem os qualia A se e somente se o sujeito cognitivo julga
que a sua experiência tem os qualia A. Tendo isto em conta não é de estranhar a
acusação de que a sua teoria da mente é meramente cognitiva e que não oferece
qualquer resposta acerca do problema da consciência fenomenal. Aliás, Dennett limita-
se a dar continuidade àquilo que durante muito tempo foi deixado de lado por parte não
só do movimento behaviorista, mas também por parte da ciência, isto é, continua a
negar a existência do carácter fenomenológico da consciência.
Descartes quando procedeu à defesa da existência de duas substâncias
identificou como elo de ligação entre o corpo e a mente a glândula pineal. A existência
desta glândula seria a justificação do como uma mente corresponderia a um corpo.
Posto isto, os qualia dar-se-iam nesta glândula pineal à qual Dennett se refere como se
se tratanto do Teatro Cartesiano. Este é considerado como sendo a imagem metafórica
do local onde a experiência fenomenológica do sujeito tem lugar. Deste modo, os qualia
não poderiam existir sem o Teatro Cartesiano e este, por sua vez, também não poderia
existir sem os qualia. No ponto de vista de Dennett, a existência de propriedades
6 Miguens, 2002, p.254
14
fenomenológicas dependeria da existência do Teatro Cartesiano assim como a
existência deste dependeria da existência das propriedades fenomenológicas. No
entanto, negar a existência dos qualia surge-nos de forma intuitiva como sendo uma
ideia absurda, uma vez que “Parece idiota dizer que nunca senti sede ou desejo, que
nunca tive uma dor, ou que nunca tive verdadeiramente uma crença, ou que as minhas
crenças e os meus desejos não desempenham qualquer papel no meu comportamento."7
Para Dennett continuar a afirmar a existência de algo fenomenal acerca da
consciência / mente é estar a querer pôr de lado os avanços científicos levados a cabo
que vão contra as intuições de “senso comum” como a experiência de sentir dor ou sede.
É precisamente neste sentido que Dennett surge com o Modelo de Esboços Múltiplos
como alternativa ao modelo padrão do Teatro Cartesiano. Dennett com este modelo
pretende criar uma teoria da mente que vai contra não só àquilo que foi dito por
Descartes, mas também à crença que autores como Nagel insistem em manter viva. A
crença de que se fala diz respeito ao facto de que sempre que falamos de uma mente
consciente falamos de um ponto de vista e consequentemente quando falamos de um
ponto de vista falamos de algo puramente subjetivo. Neste sentido, para Nagel a mente
seria um centro de subjetividade.
Como já foi anteriormente referido no artigo mencionado de Crick e Kock o
nosso cérebro no que toca à informação visual observa os objetos desunificando-os. Por
outro lado, a crença de que existe alguma zona do nosso cérebro “onde tudo se junta”
insiste em manter-se viva. Acerca disto, Dennett e Kinsbourne no artigo O Tempo e o
Observador dizem que esse lugar não existe em parte alguma do nosso cérebro. Não são
colocadas em questão as capacidades do cérebro para correlacionar e /ou comparar o
vasto número de coisas que vão sendo processadas; o que estes dois autores estão a
querer afirmar é que a unificação das várias partes de um mesmo objeto são analisadas
por várias partes do cérebro e não num local “onde tudo se junta”. A título de exemplo
surge a comparação da evolução temporal entre o processamento de estímulos auditivos
e visuais. Hoje em dia sabemos que a luz viaja mais rapidamente do que o som e tal
pode ser verificado quer no caso do fogo-de-artifício quer no que respeita à trovoada.
Posto isto, o problema inerente a esta situação é o facto de se desconhecer o local onde a
7 Searle, 1900, p.69
15
experiência consciente se dá no cérebro, pois “se pudéssemos indicar com exactidão
onde a experiência ocorreu, poderíamos inferir com exactidão quando ela ocorreu.”.8
Para Descartes o “onde” corresponderia à glândula pineal e esta, por sua vez,
situar-se-ia no centro do cérebro e funcionaria como sendo a via de acesso à mente
consciente. Um determinado indivíduo tornar-se-ia consciente de algo através da
interação que a glândula pineal causaria entre o material (o cérebro do indivíduo) e o
imaterial (a mente desse mesmo indivíduo). No entender de Dennett toda esta visão
acerca de como se dá a consciência está irremediavelmente errada. Mesmo que
concordando que o cérebro funciona como sendo o Quartel-General, visto que Dennett
identifica-o como sendo o obervador final, é um erro afirmar que no cérebro estão
contidos “outros quartéis-generais mais profundos, um qualquer santuário interior, a
chegada ao qual é a condição necessária ou suficiente para a experiência consciente.”9
Aceitar uma teoria como a de Descartes segundo Dennett e Kinsbourne é errado por
dois sentidos: primeiro devido ao facto de que não há nada que indique na
neuroanatomia funcional do cérebro a existência de um ponto “onde tudo se junta”, isto
é, não há nada que comprove a existência da glândula pineal e em segundo lugar porque
seria “o primeiro passo numa regressão ao infinito de homúnculos demasiado
perigosos.”10
O Modelo de Esboços Múltiplos surge em oposição ao Teatro Cartesiano
afirmando que operações de pensamento e de ação se realizam através de processos
múltiplos existentes nas várias zonas do cérebro e não numa zona mais central. Apesar
de poderem ser localizáveis as zonas onde esses processos se dão tal não quer dizer que
seja possível determinar o início do estado consciente. Desta forma estados mentais são
constituídos por propriedades objetivas devido à possibilidade de identificar o local
onde ocorrem o que por sua vez não determina a existência de propriedades subjetivas.
Outra característica do Modelo de Esboços Múltiplos consiste no facto de que “A
“corrente de consciência” não é uma narrativa única, definitiva.”11, na medida em que se
fossemos analisar essa “corrente de consciência” esta teria várias versões de uma
mesma narrativa. Por outras palavras, o que Dennett pretende afirmar através deste
modelo é que apesar de uma representação mental poder ser localizada no cérebro 8 Dennett & Kinsbourne, 2004, pp.3-49 Dennett & Kinsbourne, 2004, p.710 Dennett & Kinsbourne, 2004, p.711 Dennett & Kinsbourne, 2004, p.10
16
espacial e temporalmente não quer dizer que o sujeito tenha consciência dela
imediatamente. Assim, se questionarmos um sujeito acerca de algo em diferentes
intervalos de tempo a hipótese de obtermos diferentes respostas acerca desse mesmo
algo é bastante alta. Porquê? Porque durante esses intervalos de tempo o sujeito teve o
tempo necessário para pensar na pergunta que lhe foi feita e durante esse tempo poderá
ter-se lembrado de mais pormenores a serem relatados de forma a completar o que já
tinha sido dito, por exemplo. Encontramo-nos perante aquilo que Dennett chama de
anomalias temporais: dizem respeito a casos em que os relatos fornecidos por pessoas
acerca das suas experiências apresentam uma anomalia ou surgem como paradoxais no
que respeita ao ordenamento temporal dos acontecimentos. Neste sentido, poderemos
dizer que Dennett identifica a consciência com a memória ou pelo menos, sendo
consciência consciência-de, não considera que sejam conceptualmente separáveis.
Acerca disto, Dennett e Kinsbourne afirmam que tais anomalias podem ser
facilmente explicadas e previstas graças aos conhecimentos teóricos que possuem. De
forma a provar o seu ponto de vista são apresentados vários exemplos, porém irei
apenas focar-me num: o “coelho” cutâneo. Este exemplo consiste na seguinte
experiência: no braço de um determinado sujeito são colocados transmissores
telegráficos mecânicos de ondas quadradas em dois ou três pontos do braço com uma
distância máxima de 30 centímetros. Posteriormente, o sujeito irá sentir cinco batidas
rítmicas no pulso, duas no cotovelo e três no braço superior em intervalos que vão dos
cinquenta aos duzentos milissegundos. O que irá acontecer é que o sujeito irá sentir as
batidas a avançarem pelo seu braço acima como se estivesse um animal a saltar ao
longo do seu braço. A questão que se coloca é acerca do como é que o cérebro sabia que
a seguir às cinco batidas do pulso iria sentir outras batidas numa zona mais acima. A
hipótese fornecida é que o cérebro só sabe da batida quando esta ocorre, mas que a
experiência consciente é atrasada pelo cérebro até que todas as batidas tenham ocorrido.
Quer isto, então, dizer que aquilo que se apresenta como relevante para o cérebro não é
tanto acerca do quando os acontecimentos surgem nas várias partes do cérebro, mas
antes o conteúdo temporal desses acontecimentos. Desta forma “o que é importante é
que o cérebro possa continuar a controlar acontecimentos “sob a suposição de que A
ocorreu antes de B”, quer a informação de que A ocorreu entre no sistema relevante do
cérebro e seja reconhecida como tal antes ou depois da informação de que B ocorreu,
17
quer não.”.12 Assim, o que realmente importa não é saber quando ocorreu a batida no
cotovelo, mas antes a capacidade do cérebro conseguir compreender o conteúdo de tal
ocorrência. Assim como também não interessa a ordem exata de como as representações
chegam ao nosso cérebro, mas antes que cheguem a tempo de se ter o comportamento
apropriado a determinada situação. Não interessa se vejo primeiro a agente A a
caminhar debaixo de uma varanda ou se vejo em primeiro lugar o vaso a cair na direção
da sua cabeça – o importante é que todas estas representações cheguem ao cérebro a
tempo de eu poder ter um comportamento apropriado face ao que está a ocorrer. Neste
caso, o comportamento apropriado seria avisar o agente A antes que este ficasse ferido.
Voltando ao exemplo do “coelho” cutâneo. Nenhuma das batidas sentidas pelo
sujeito ao longo do seu braço pode ser atribuído um acontecimento de nível consciente
ou inconsciente até que a batida seja sentida e tenha despoletado a atividade neuronal
que lhe está associada. Aliás, se o sujeito decidisse relatar a experiência de que “neste
momento estou a sentir uma batida no meu cotovelo” acerca do seu estimulo sensorial
haveria uma diferença que variaria entre os cinquenta e os duzentos milissegundos
desde o momento em que a batida tivesse sido sentida numa determinada zona do
cérebro do sujeito até que este fosse capaz de fazer o relato verbal acerca do que tinha
sentido. Assistimos mais uma vez à negação da consciência quando Dennett e
Kinsbourne afirmam que apesar de qualquer conteúdo relatado acerca do que quer que
seja tenha de estar presente em alguma parte do cérebro tal não significa que tenha de
estar necessariamente presente na consciência. Para os defensores do modelo do Teatro
Cartesiano este tipo de anomalias constitui prova suficiente para a existência de qualia e
consequentemente de consciência e de algo imaterial. Afirmar tal coisa implica,
segundo os autores supracitados, a existência de um local exato onde tudo se dá, isto é,
uma zona específica do cérebro onde a experiência consciente teria lugar – a glândula
pineal. Afirmam ainda tratar-se de uma implicação intuitiva, mas mesmo assim falsa e
que pode ser facilmente provada através da seguinte experiência de pensamento. Por
vezes temos a sensação de recordar um acontecimento de forma fiel, mas quando
confrontados com outra realidade damos conta que a nossa memória tem falhas. Dennett
e Kinsbourne dão o seguinte exemplo: imaginemos que ao meu lado passa uma mulher
de cabelos compridos a correr e que assim que me perguntam quem passou por mim eu
respondo que foi uma mulher de cabelo comprido e de óculos. A minha memória acerca
12 Dennett & Kinsbourne, 2004, p.23
18
desta mulher de cabelo comprido e de óculos pode surgir na minha mente como sendo
uma memória clara, intensa e da qual não tenho qualquer dúvida. No entanto, é falsa.
Existem dois tipos de contaminações no que à memória diz respeito: uma delas são as
orwellianas13 e as outras tratam-se de confissões falsas e de pseudo-julgamentos
cuidadosamente planeados – este tipo de contaminação é conhecida pelo nome
estalinesco. A pergunta que se coloca quando ocorrem casos como o que foi relatado
mais acima é a seguinte: se o que passou por mim foi uma mulher de cabelos compridos
a correr e eu digo que o que passou por mim foi uma mulher de cabelo comprido e de
óculos será que em casos como este é a minha memória que me engana ou serão antes
os meus olhos? Outro caso semelhante a este poderá ser o seguinte: imaginemos que
várias letras são-nos expostas durante um curto espaço de tempo e, apesar de termos
tido acesso a todas as letras existem algumas que conseguimos identificar e outras que
não nos é possível recordar. O que terá acontecido no nosso cérebro? Será que ele
conseguiu ver todas as letras ou será que rapidamente se esqueceu de algumas delas? O
que poderá isto dizer acerca da consciência? Será possível apresentar-se uma resposta a
todas estas questões ou será que tal é pura perda de tempo? Dennett e Kinsbourne,
acerca disto, dizem que se de facto o Teatro Cartesiano existe, então todas estas
perguntas necessitam de uma resposta, uma vez que todas as experiências conscientes e
por isso mesmo fenomenológicas surgem num local fixo mesmo que a memória dessas
experiências tenha algumas limitações. Por outro lado, o que o Modelo de Esboços
Múltiplos oferece é uma perspetiva completamente distinta da expressa pelo Teatro
Cartesiano. Afirma que se existe um momento de consciência processado no cérebro
que esse momento é arbitrário. A conclusão acerca do Modelo de Esboços Múltiplos
defendida por estes dois autores “restringe-se às propriedades temporais da experiência:
a representação da sequência na corrente da consciência é um produto dos processos
interpretativos do cérebro, e não um reflexo directo da sequência de acontecimentos que
contrapõem esses processos.”
Mesmo que essas propriedades temporais e espaciais nada nos digam acerca dos
conteúdos da consciência, Dennett identifica-a com a memória. Assim, o que parece
acontecer é que Dennett nega os qualia e toda a consciência fenomenal substituindo os
qualia por crenças. É precisamente neste sentido que na sua teoria da mente não se trata
de um problema metafísico ou ontológico, mas antes de um problema epistemológico e 13 Relacionadas com uma personagem da obra de George Orwell que reescrevia a história proibindo o
acesso ao passado por parte das outras personagens. (Conferir, Dennett & Kinsbourne, 2004, p.30)
19
de segunda ordem. Por outro lado, ao negar o carácter fenomenal da mente e o seu
carácter ontológico afirma que tudo aquilo que ocorre na nossa mente, que no seu
pensamento se traduz por cérebro, não tem nada de imaterial ou de inexplicável visto
que pode ser explicado através de processos físicos ocorrentes no interior do cérebro.
Todavia, apresentar uma resposta deste tipo não é mais do que fornecer uma resposta
aos problemas fáceis da consciência como teremos a oportunidade de verificar no
próximo capítulo através de Chalmers. A minha memória acerca da mulher de cabelos
compridos que passou por mim a correr pode realmente conter lacunas que me
conduziram a um relato de um acontecimento falso, porém mesmo que a minha crença
seja falsa, não se pode negar que tive a experiência fenomenal de ver uma mulher de
cabelos compridos com óculos. A crença é falsa, a minha memória do acontecimento
apresenta lacunas, mas eu tive uma experiência consciente, mesmo que esta não tenha
sido processada num ponto central do cérebro, isto é, na glândula pineal como defendia
Descartes.
O que Dennett parece estar a querer afirmar é que todos os juízos referentes ao
que quer que seja, mais precisamente à memória têm um carácter objetivo, contudo
como veremos a partir de Searle (no Capítulo 2 desta Primeira Parte) e da sua visão
acerca do que se fala quando se fala de consciência nem todos os juízos são desse tipo.
Alguns deles são subjetivos e a subjetividade inerente a esse tipo de juízos não pode ser
ignorada porque tal como a consciência a subjetividade é uma das características
fundamentais da mente humana. Isto é válido tanto no que diz respeito ao pensamento
de Searle como ao pensamento de Chalmers e de Nagel acerca da consciência. É
precisamente acerca destes três autores que a parte III deste primeiro capitulo se focará.
Antes de partirmos para os argumentos utilizados tanto por Chalmers como por Searle
contra o materialismo, penso tornar-se fundamental expor desde já de que forma e
sentido autores como Chalmers, Nagel e Searle empregam o termo “consciência”.
III. Dos problemas fáceis aos problemas difíceis da consciência
Em diversos artigos, tais como Consciousness and its Place in Nature e O
Enigma da Experiência Consciente (2004), David Chalmers procede à divisão do
problema da consciência em dois. De um lado encontramos os problemas fáceis e do
outro temos os problemas difíceis da consciência. No primeiro grupo deparamo-nos
20
com os problemas relacionados com os mecanismos objetivos do cérebro, no sentido em
que nos interessa saber como é que seres humanos conseguem verbalizar os seus
estados interiores, como processam a vasta informação que lhes é dada a conhecer e
como a utilizam de forma diversificada de modo a controlarem o seu comportamento,
por exemplo. Apesar de ainda não ser certo como muitos destes processos são levados a
cabo há fortes indícios que mais cedo ou mais tarde serão encontradas respostas
pacificadoras por parte das neurociências e da neurobiologia, por exemplo. Ao passo
que o problema difícil (hard problem) da consciência (consciousness) é o problema da
experiência, mais concretamente a experiência subjetiva. Fala-se de experiência
subjetiva, segundo Chalmers, quando há algo como é ser (it is like to be).14 Este
segundo grupo diz respeito, precisamente, ao modo como o sujeito sente as coisas e
como este as perceciona – trata-se da experiência subjetiva e qualitativa do sujeito. São
fenómenos como o sofrimento causado por uma dor intensa ou uma sensação
apaziguadora que experienciamos quando ouvimos o som das ondas do mar a
arrebentarem no areal que constituem o verdadeiro mistério da mente. São
fenómenos deste tipo que fazem parte daquilo a que damos o nome de consciência.
Chalmers em The Conscious Mind define a experiência consciente da seguinte forma:
“When we perceive, think, and act, there is a whirl of causation and information
processing, but this processing does not usually go on in the dark. There is also an
internal aspect; there is something it feels like to be a cognitive agent. This internal
aspect is conscious experience.”15
Assim sendo, a consciência é entendida como um fenómeno natural no sentido
em que por um lado se relaciona e depende dos processos cognitivos ocorrentes no
cérebro e por outro lado como experiência subjetiva na medida em que depende de algo
como é sentir-se ser, neste caso, um sujeito cognitivo. No entanto, ainda ninguém sabe,
pelo menos até ao dia de hoje, como é que processos físicos no cérebro dão origem à
14 Nas palavras de Chalmers “The hard problem of consciousness is the problem of experience. Human
beings have subjective experience: there is something it is like to be them. We can say that a being is
conscious in this sense – or phenomenally conscious, as it is sometimes put – then there is something it is
like to be that being.” (Chalmers, 1996, p.2)15 Chalmers, 1995, p.4
21
experiência subjetiva e se só há consciência em nós, seres humanos. O problema assim
colocado leva-nos a dizer juntamente com Chalmers que a consciência, em parte, poderá
ser explicada através de teorias materialistas ou fisicalistas, mas que existe uma outra
parte – a da experiência – que foge a estas teorias.
Outro autor que podemos relacionar com a perspetiva de Chalmers é Thomas
Nagel, mais concretamente no que diz respeito à existência de algo como é ser de forma
a explicar a experiência subjetiva inerente ao sujeito. No seu artigo “Como é ser um
morcego?”16 encontramos parte desta questão desenvolvida.
Com este artigo Nagel não pretendeu fornecer uma resposta acerca se estes
animais – os morcegos – têm ou não alguma semelhança com a nossa espécie, mas antes
procurar respostas que justifiquem a crença de que há algo como ser um morcego.
Sempre que há algo como é sentir-se ser poderemos dizer que existe experiência. Para
Nagel a consciência surge em vários níveis da vida animal mesmo que ainda tenhamos
algumas reservas no que respeita a organismos mais simples. Assim como também
introduz a hipótese de existência de consciência não só aqui no nosso Planeta, mas
também noutros Planetas e restantes sistemas solares expandindo-se deste modo para
todo o Universo. Segundo o autor, dizemos que determinado organismo é possuidor
de consciência sempre que tenha inerente a si experiências conscientes que dizem
respeito ao caracter subjetivo da experiência – qualidades fenomenológicas. Nagel
utiliza o exemplo dos morcegos, uma vez que possuem algo em comum connosco.
Tanto seres humanos como morcegos são mamíferos e isso faz-nos sentir mais
próximos deles do que de abelhas ou de seres unicelulares, por exemplo. Todavia, os
morcegos comportam-se de forma diferente de nós e têm um sistema sensorial diferente
do nosso, o que tal não significa a inexistência de algo como é sentir-se ser um
morcego.
Atualmente sabemos que os morcegos percecionam o mundo exterior a partir de
um sistema designado de ecolocalização – este sistema faz com que os seus cérebros
sejam capazes de lhes fornecer informações precisas acerca de distâncias, tamanhos,
formas, movimento e texturas de um determinado objeto com um grau de precisão
semelhante ao da visão humana.17 No entanto, do facto do sistema de ecolocalização dos
morcegos ser semelhante ao da visão humana não se segue que sejamos capazes de
16 Titulo original: “What is it like to be a bat?”17 Nagel, 2004, p.3
22
experienciar ou de saber ou de sequer imaginar como é ser um morcego ou como é
sentir-se ser um morcego, uma vez que tanto a nossa experiência como a nossa
imaginação são limitadas. Nas palavras de Thomas Nagel:
“A nossa experiência fornece-nos o material básico para a nossa imaginação,
sendo o seu alcance por isso limitado. Não vale a pena tentar imaginar que temos uma
membrana nos braços que nos permite voar no crepúsculo e na alvorada e apanhar
insectos com a boca, ou que temos uma visão muito pobre e que percebemos o mundo à
nossa volta com a ajuda de um sistema de sinais sonoros de alta frequência reflectidos,
nem tão pouco nos vale a pena imaginar que passamos o dia pendurados de cabeça para
baixo num sótão. Na medida em que posso imaginar isto (o que não é muito), isto só me
diz como seria para mim comportar-me como um morcego se comporta. Mas essa não é
a questão. Eu quero saber como é para um morcego ser um morcego.” 18
Deste modo, a única coisa que seriamos capazes de saber seria como nos
comportar como um morcego, mas nunca como é ser um morcego para um morcego.
Tal conhecimento é-nos vedado assim como nenhum morcego ou outro animal sabe
como é sentir-se ser um ser humano ou uma pessoa. Apesar de não termos acesso direto
a esse conhecimento não se poderá concluir que os morcegos não são possuidores de
experiências de carácter subjetivo como nós possuímos e que não existe algo que é
como ser um morcego para um morcego. A nossa limitação, no entender de Nagel,
deve-se ao facto de possuirmos uma individualidade e uma consciência distinta da dos
morcegos. A nossa incapacidade de descrever detalhadamente as suas qualidades
fenomenológicas e de perceber como é ser um morcego para um morcego é válida
também no caso de se vir a provar a existência de consciência em outros Planetas,
sistemas solares e restante Universo. Como veremos mais tarde, toda esta questão
encontra-se relacionada com o problema mente-corpo.
A experiência consciente é sentida através de um ponto de vista o que
significa que o conhecimento de todos os fenómenos que são experienciados por outros
organismos é-nos vedado. Não possuímos tal conhecimento na medida em que só temos
acesso ao ponto de vista das experiências que são sentidas pela nossa espécie. Por
18 Nagel, 2004, pp.3-4
23
exemplo, se alguém nos disser que se está a sentir sonolento nós sabemos como é
experienciar tal sensação. Todos nós já nos sentimos dessa forma. Todos os dias temos
essa experiência, mesmo que nada nos garanta que a experienciamos da mesma forma
que a outra pessoa. No entanto, sabemos que conseguimos, até certo ponto,
compreendê-la. Acerca disso, Nagel diz-nos:
“É frequentemente possível adoptar um ponto de vista alheio, pelo que a
compreensão de tais factos não se limita à compreensão do nosso próprio caso. Há um
sentido em que os factos fenomenológicos são perfeitamente objectivos: uma pessoa
pode saber ou dizer qual é a qualidade da experiência do outro. Contudo, estes factos
fenomenológicos são subjetivos na medida em que mesmo essa atribuição objectiva da
experiência só é possível para alguém cuja semelhança com o objecto desta atribuição
seja suficiente para lhe permitir adoptar o seu ponto de vista – compreender a atribuição
quer na primeira quer na terceira pessoa, por assim dizer. Quanto maior for a diferença
entre nós e o experienciador, menor será o sucesso que podemos esperar deste
empreendimento”19
Tal significa que não nos é possível dizer com exatidão o carácter das
experiências que determinado organismo – neste caso referimo-nos aos morcegos – está
a ter. Podemos estudar o seu comportamento e morfologia, podemos apresentar dados
acerca de como o seu sistema neuronal funciona, mas dizer tudo isto é apenas apresentar
a parte objetiva de como é constituído um morcego ou qualquer outro tipo de
organismo. Como diria Chalmers, fazer isso seria apenas apresentar respostas acerca
dos problemas fáceis da consciência, pois a parte subjetiva referente às suas
experiências e ao modo como é sentir-se ser um morcego permanece incógnita. Este é
um dos motivos pelos quais Nagel, tal como Chalmers, rejeita uma teoria puramente
fisicalista para explicar a existência da consciência. Na medida em que, o carácter
subjetivo da experiência só é percebido na sua totalidade a partir de um ponto de vista e
quanto mais nos afastamos do caracter subjetivo e quanto mais nos aproximamos do
caracter objetivo mais afastados ficamos do ponto de vista.
19 Nagel, 2004, p.6
24
Tanto Chalmers como Nagel identificam a consciência com experiência.
“Experiência subjetiva”, “Vida interna do sujeito”, “Qualia” e a expressão “como é
ser” são outros termos utilizados por Chalmers quando se fala de consciência. Tanto
para Chalmers como para Nagel a consciência apresenta-se como sendo tão
fundamental no mundo como a matéria-energia e o espaço-tempo. Acerca disto Nagel
acrescenta que: “mesmo se as manifestações do mental evidentes para nós são locais –
dependem do cérebro, etc. – a base geral deste aspecto da realidade não é local, mas
inerentes aos constituintes gerais do universo e às leis que o governam.”20
Este elevado grau de importância que é conferido à consciência deve-se
precisamente ao facto de não existir nada no mundo que sejamos capazes de conhecer
melhor, isto é, mais diretamente do que a consciência. Para além de Chalmers entender
a consciência como sendo algo de fundamental também a entende como sendo
surpreendente, misteriosa e natural. O mistério da consciência reside precisamente no
facto de não termos dúvidas de que a consciência se relaciona de uma certa forma com
processos físicos ocorrentes no nosso cérebro, mas a verdadeira questão é saber como
e por que razão processos físicos dão origem à experiência. Aí reside o verdadeiro
mistério que envolve toda a temática acerca da consciência.21
Os problemas fáceis revelam-se fáceis porque podem ser facilmente
explicados através de um certo comportamento ou através de funções cognitivas.
Imaginemos o seguinte exemplo. A meio da noite o agente A levanta-se da cama.
Dirige-se até à sua cozinha e de um dos armários retira um copo que posteriormente
enche com água e, por fim, bebe essa mesma água. Não é preciso possuir dotes de
adivinhação ou de realizar vastos estudos para descobrir ou pelo menos para apresentar
palpites acerca da razão que levou o agente A a beber o copo de água. O
comportamento do agente basta-nos para concluir que ele, muito provavelmente, fez o
que fez porque se encontrava com sede. Ao passo que os problemas difíceis são assim
considerados precisamente porque dizem respeito em primeiro lugar ao modo como
as coisas são sentidas para o sujeito e, posteriormente porque não nos é (ainda)
20 Nagel, T. The View From Nowhere, p.821 Tal posição aparece exposta no seu artigo O Enigma da Experiência Consciente (2004, p. 4): “Não
nego que a consciência tenha origem no cérebro. Sabemos, por exemplo, que a experiência subjectiva da
visão está ligada a processos no córtex visual. Mas é exactamente esta ligação que nos deixa perplexos. É
decerto espantoso mas a experiência subjectiva parece ter origem num processo físico. E nós não fazemos
a mínima ideia do como ou do porquê disto ser assim.”
25
possível responder à questão mencionada acima (como e por que razão processos
físicos dão origem à experiência). Um outro exemplo: pensamos nas pessoas que têm
medo das alturas. Esse medo só é sentido pelo sujeito se ele se encontrar em
determinados locais ou em determinadas situações como a atravessar uma ponte de alta
altitude ou se estiver no cimo de uma montanha a apreciar a vista que se encontra mais
abaixo, por exemplo. Esse medo deve-se claramente a algo exterior, material e, por isso
mesmo, físico. Se o agente estivesse sentado num banco de jardim a apreciar o verde da
relva em vez de estar a atravessar uma ponte a pé ou no cimo de uma montanha a
sensação de medo não existiria. Sempre que temos a sensação de medo coisas
acontecem no interior do nosso cérebro que influenciam de certo modo o nosso
comportamento (tremores, respiração acelerada são alguns exemplos do que acontece a
nível comportamental). A isto Chalmers chama de aspeto psicológico – aspeto que
caracteriza a mente tendo em conta aquilo que ela faz. Este conceito opõe-se ao aspeto
fenomenal da mente que por seu turno se relaciona com o modo como cada agente
cognitivo sente determinada coisa. As ciências cognitivas22 segundo o autor ocupam-se
do aspeto psicológico ao passo que o aspeto fenomenal se relaciona com a experiência
consciente. Assim as ciências cognitivas seriam capazes de dizer o que é que o nosso
cérebro faz quando sentimos medo, mas não a razão que conduz a que processos físicos
deem origem à experiência.
Para Chalmers estes dois aspetos – o psicológico e o fenomenal – esgotam o
mental, no sentido em que a nossa vida mental pode ser explicada ou através do
psicológico ou através do fenomenal ou através da combinação de ambos. Dizemos que
um determinado estado mental é psicológico quando desempenha um papel causal no
que se refere à explicação de determinado comportamento e que é fenomenal quando se
refere ao modo como um agente experienciou determinada coisa. Chalmers identifica o
aspeto psicológico da mente com o funcionalismo, na medida em que estados mentais
de caracter psicológico exercem relações causais entre input e output. Veja-se o caso da
dor. A teoria funcionalista caracteriza a dor como sendo um estado provocado por uma
lesão corporal manifestando a crença de que algo está mal no nosso corpo e provocando
o desejo de sair desse estado. Segundo o autor, não há dúvida de que a experiência
consciente se encontra associada a processos físicos ocorrentes no cérebro e que estes
influenciam os estados mentais de caracter fenomenológico. Para Chalmers, estados
22 Chalmers identifica as Ciências Cognitivas com a Psicologia.
26
mentais são causados por causas materiais, mas os estados mentais não podem
influenciar o físico. Com isto parece estar, também, a defender uma teoria
epifenomenista na medida em que a tese epifenomenalista defende a ideia de que
enquanto que os estados mentais têm a sua origem em estados físicos, os estados
mentais não têm qualquer influência nos estados físicos.
Tanto Chalmers como Nagel defendem uma teoria dualista e ambos defendem a
ideia de que a mente poderá ser pensada através de dois pontos de vista sendo que um
deles é objetivo e o outro subjetivo. O primeiro é aquele que pode ser facilmente
explicado através de processos físicos ao passo que o ponto de vista subjetivo é
referente a sensações, isto é, ao modo como me sinto quando olho para um jardim
repleto de flores ou quando saboreio um pedaço de chocolate – sensações como estas
são, no entender destes dois autores, modos de representação da nossa consciência, ou
seja, modos de representação da vida interior do sujeito. Para ambos os autores uma
teoria puramente física acerca da consciência não se apresenta como sendo algo viável,
visto que estaríamos a rejeitar todo e qualquer caracter subjetivo inerente ao ser
humano. Por outro lado, tal opinião não é partilhada por toda a comunidade filosófica,
mais concretamente pelos fisicalistas ou materialistas.
Sabemos que somos constituídos por pensamentos, memórias, sentimentos,
crenças, desejos, medos e frustrações dos quais estamos, à partida, conscientes.
Efetivamente, cada um de nós, agente cognitivo humano, é capaz de recordar momentos
do seu passado, de tomar decisões e de justificar o porquê de ter feito isto e não aquilo.
Assim como também sabemos o que sentimos quando experienciamos determinados
momentos e situações quer no presente quer no passado. Temos um acesso privilegiado
a essa experiência – à nossa experiência. Uma experiência subjetiva, qualitativa ou
fenomenal – o que se queira chamar. Falo da mesma experiência de que David
Chalmers fala. O acesso a ela é direto e privilegiado na medida em que mais ninguém
tem acesso a ela, só nós temos acesso a tal experiência. Imaginemos o seguinte caso:
cinquenta pessoas vão a um museu de arte e todas elas são expostas durante um período
curto de tempo a uma mesma obra de arte. Todas elas ouvem a explicação que o guia do
museu lhes dá. No final, se perguntássemos a cada uma delas o que tinham visto todas
elas iriam fornecer-nos respostas distintas. Porquê? Ora, todas elas estiveram expostas
ao mesmo objeto, mas todas estas pessoas experienciaram-no de forma diferente.
Muitas poderão ter sentido sensações agradáveis, outras poderão ter sentido uma total
27
indiferença e outras poderão ter sentido repulsa pelo objeto. Todas estas pessoas
estiveram conscientes do que sentiram enquanto se encontravam face ao objeto e todas
elas tiveram experiências diferentes. Todas estas pessoas poderão ter experienciado o
prazer, a dor, a repulsa, o medo e todas elas poderão ter guardado na sua memória
imagens mentais e pensamentos do que sentiram e do que viram – tudo isto é
comummente designado de estados mentais. Estados mentais são diferentes de estados
físicos, mas para cada estado físico existe um estado mental correspondente do qual
estamos conscientes. De uma forma sucinta poderíamos dizer que estar consciente é
estar consciente de alguma coisa.
Segundo um outro autor – Searle – nunca estamos simplesmente conscientes,
isto é, quando estamos conscientes de alguma coisa temos de ser capazes de responder à
questão acerca do que estamos nós conscientes. O «de» de «consciente de» por vezes é
intencional e outras vezes não o é. No seu livro A Redescoberta da Mente Searle, acerca
disto, fornece-nos o seguinte exemplo: se neste preciso momento alguém tocasse à porta
da minha casa eu estaria consciente de que me tocaram à porta e, neste caso o «de» de
«consciente de» seria intencional. Por outro lado, se o meu estado consciente se se
referir ao facto de eu estar consciente de uma dor o «de» já não é intencional. Um
estado consciente é intencional se fizer referência a algo para além de si e não é
intencional caso não represente nada para além de si mesmo.23 Assim sendo não
poderemos dizer que quando falamos de intencionalidade falamos de consciência
porque nem todos os estados conscientes são intencionais. Contudo, este ainda não é o
momento oportuno para explorarmos toda esta questão, uma vez que esta será melhor
elaborada e explicada na segunda parte do trabalho, mais precisamente no Capítulo 2 da
Segunda Parte.
Para além de nunca estarmos simplesmente conscientes de alguma coisa, na
perspetiva de Searle existem, também, vários níveis de consciência. Há uma diferença
no nível de consciência no qual me encontro enquanto estou atenta ou distraída,
acordada ou adormecida e até mesmo durante o tempo em que me encontro a dormir os
níveis de consciência variam dependendo do facto de me encontrar consciente do que
sonho ou não. Todo o pensamento acerca do que acontece enquanto dormimos, mais
concretamente acerca da questão dos sonhos surge como sendo uma questão complexa,
no sentido em que as teorias em torno desta temática não são de todo pacíficas. Para
23 Conferir Searle, 1900, pp.108-109
28
este autor a questão dos sonhos assim como toda a questão acerca da consciência trata-
se de uma experiência subjetiva e, por isso de primeira pessoa; o sonho é ainda encarado
como sendo aquilo que faz distinção entre o estado consciente e o inconsciente.
Consciente caso me lembre de ter sonhado e inconsciente caso não me recorde. Por
outro lado, para autores como Dennett toda esta questão é encarada de um modo
distinto, no sentido em que, para Dennett, as questões acerca dos sonhos relacionam-se
com os problemas da epistemologia da consciência, a saber: um caso-tese diz respeito a
saber se os sonhos são ou não experiências.
De uma forma geral e de um ponto de vista intuitivo, os sonhos são considerados
como sendo experiências que ocorrem durante o sono e que poderão ser recordadas e
relatadas pelo sujeito assim que este desperta. Tendo em conta que a teoria da
consciência que se pretende defender diz respeito àquela que aborda a consciência como
sendo uma experiência do tipo subjetivo, a questão que se coloca é acerca se haverá
alguma coisa que é como sonhar. Em primeiro lugar, os sonhos são uma experiência à
qual só o sujeito cognitivo que sonha tem acesso, o que quer dizer que só eu tenho
acesso aos meus sonhos e sendo assim só eu serei capaz de descrever como é para mim
sonhar. No entanto, o ato de se ser capaz de fornecer um relato repleto de descrições
acerca dos mesmos encontra-se inteiramente dependente da minha memória. Por outro
lado, há que ter em conta que a memória é falível (como vimos anteriormente em
Dennett): por vezes falha, por vezes acordamos e sabemos com o que sonhamos
recordando muitos dos pormenores e outras vezes simplesmente não recordamos ou
esquecemos. Todavia, mesmo que se dê o caso de o sujeito que sonha ser capaz de se
recordar de algum pormenor do seu sonho nunca saberá até que ponto é que as suas
memórias são verdadeiras ou falsas. Acerca disto, Dennett atribui três características aos
sonhos sendo que a primeira é a apresentação consciente de várias imagens, a segunda
é a memória pois é nela que fica armazenada toda a informação acerca do sonho que
será essencial para o relato e, por último a composição que diz respeito às narrativas,
isto é, ao relato dos sonhos. Ao contrário de Searle que encara a questão dos sonhos
como sendo uma experiência subjetiva e de primeira pessoa, Dennett afirma que a
pergunta acerca dos sonhos serem ou não uma experiência é uma questão em aberto,
mas se a resposta for afirmativa essa experiência não terá qualquer propriedade
subjetiva. Por outras palavras, Dennett usa toda a questão acerca dos sonhos de forma a
colocar em causa a noção apriorista de “experiência”.
29
Uma vez existindo vários níveis de consciência quer enquanto dormimos quer
enquanto permanecemos despertos, um outro autor, Searle, define a consciência como
sendo “um interruptor que se liga e desliga: um sistema está consciente ou não está.
Mas uma vez consciente, o sistema é um reóstato: há diferentes níveis de
consciência.”24
Podemos ainda acrescentar que a ontologia do mental é uma ontologia da
primeira pessoa, visto que cada estado mental é o estado mental de alguém. Já no que
diz respeito aos processos físicos ocorrentes no interior do cérebro eles são, segundo
Searle, de terceira pessoa. Aqui reside o problema mente-corpo ou mente-cerebro, uma
vez que o cérebro é aquela parte do corpo que, pelo menos em seres humanos, se
encontra ligada à existência de fenómenos mentais. Na perspetiva deste autor, a solução
para o problema mente-corpo não se encontra nem no dualismo (Chalmers e Nagel)
nem no materialismo (P. Churchland e Dennett), mas antes na aceitação de um
naturalismo biológico. Trata-se de uma teoria filosófica que reside na ideia de que “As
ocorrências e processos mentais fazem tanto parte da nossa história natural como a
digestão, a mitose, a meiose, ou a secreção de enzimas.”25 Deste modo, a solução para o
problema mente-corpo passaria pela aceitação de que os fenómenos mentais como
dores, desejos, prazeres, crenças, experiências visuais, gostos, odores, pensamentos,
ódio, alegria, medo, depressão entre outros seriam causados por processos
neurobiologicos cerebrais, que são também eles, características do cérebro. Esta
distinção entre mental e físico surge como sendo algo de intuitivo e do chamado senso
comum, na medida em que fenómenos como dor e prazer contam como sendo “mental”
e os processos que lhes estão associados como “físico”. Todavia, como vimos desde o
início deste primeiro capitulo autores como Churchland e Dennett não concebem a
consciência como sendo uma experiência subjetiva dependente de um ponto de vista e
como tal rejeitam a tese de que esta se trata de uma ontologia de primeira pessoa.
A partir deste ponto, sempre que se falar do termo “consciência” estarei a
referir-me tal como aconteceu com Chalmers, Nagel e Searle a uma experiência de
carácter subjetivo dependente de um ponto de vista e consequentemente de algo que
possui uma ontologia de primeira pessoa.
24 O negrito é meu. Searle, 1900, p.10825 Searle, 1900, p.15
30
Capítulo 2 – Do Materialismo ao Dualismo Naturalista
I. Materialismo: a resposta fácil ao problema difícil. Argumentos contra o materialismo.
Quando pensamos no mundo, no qual existimos, pensamo-lo como sendo físico
ou material. Pensamo-lo deste modo precisamente porque todos os dias esbarramos com
coisas materiais – quer quando entramos dentro do nosso automóvel quer quando nos
encontramos sentados num banco de jardim quer quando tocamos acidentalmente no
braço do desconhecido que passa ao nosso lado na rua. No entanto, quando pensamos
naquilo que sentimos enquanto conduzimos que pode variar entre o sentimento de
prazer se nos encontramos a conduzir numa estrada calma, de medo se estivermos
perdidos ou de frustração se estivermos presos no trânsito durante horas. Quando
pensamos no prazer, no medo ou no sentimento de frustração não pensamos em coisas
físicas, mas antes mentais. Fenómenos mentais que surgem na nossa mente e que são
referentes a coisas físicas. Desta forma, pensamos a consciência como se esta fosse
constituída tanto por fenómenos mentais como por propriedades físicas. Relembrando
que os primeiros são referentes aos problemas difíceis da consciência e os segundos aos
problemas difíceis segundo a divisão efetuada por Chalmers. De facto, esta divisão entre
“mental” e “fisico” surge-nos na mente de forma intuitiva, contudo tanto Churchland
como Dennett colocam em causa esse conhecimento apriorista do mental defendendo
uma tese materialista. Vejamos através de Searle e mais concretamente quais são os
principais fundamentos em que o materialismo se baseia, são eles:
1. É possível apresentar uma explicação tanto da linguagem como da
cognição e restantes estados mentais ignorando a subjetivadade e a
consciência;
2. Uma vez que a realidade é objetiva, também a Ciência o é;
3. Aceitando-se a tese defendida no ponto dois deixa de fazer sentido
estudar-se a mente através do ponto de vista da primeira pessoa
passando a ser o ponto de vista da terceira pessoa considerado o melhor
método para estudar a mente;
31
4. O ponto de vista de terceira pessoa é suficiente para conhecermos os
fenómenos mentais de outro sistema, uma vez que estes são possíveis de
conhecer a partir do comportamento;
5. Podemos explicar a essência do mental através do comportamento
inteligente e as relações causais com o comportamento;
6. Todos os factos existentes no Universo podem ou poderão, um dia, ser
conhecidos pelos seres humanos;
7. Tudo o que existe, em última análise, é físico visto que por físico
entendemos tudo aquilo que se opõe ao mental.
Para cada um destes sete fundamentos Searle em A Redescoberta da Mente
apresentou sete teses onde expõem as razões pelas quais os fundamentos nos quais o
materialismo assenta, ao contrário do que se possa pensar, estão errados.
Quando falamos de consciência vemo-nos quase que na obrigação de procurar
respostas para pelo menos três questões de máxima importância sendo que a primeira é
de origem ontológica – o que é? –, a segunda epistemológica – como descobrimos o que
é isso? –, e a terceira é referente à causalidade – o que é que isso faz? Sempre que
falamos da consciência falamos de uma ontologia da primeira pessoa, na medida em
que, como já foi referido, estados mentais como dores, desejos, frustrações e receios são
sempre estados de alguém e só esse alguém tem uma noção precisa dos estados mentais
que sente em determinado momento. Desta forma não podemos ignorar que 1. “A
consciência é importante” (o itálico é de Searle)26, uma vez que é a partir da noção de
consciência que temos noção da nossa vida mental e dos vários estados mentais pela
qual é constituída. No entanto, tal não quer dizer que estejamos conscientes de todos os
estados mentais que habitam no interior da nossa mente. Por exemplo, quando pretendo
abrir uma porta não me encontro consciente de todos os processos que tenho de levar a
cabo para que consiga, por fim, abri-la. Não penso que tenho de colocar a mão no
puxador e rodá-lo para a esquerda ao mesmo tempo que puxo a porta na minha direção.
Não, não me encontro consciente de tudo isto quando pretendo abrir ou fechar uma
porta, “No entanto, apesar de a maior parte da nossa vida mental em determinado
momento ser inconsciente, argumentarei que não temos qualquer concepção de um
26 Searle, 1900, p.34
32
estado mental inconsciente excepto em termos derivados dos nossos estado mentais
conscientes.”27
Então, o que se está a querer dizer é que só sabemos o que é um estado mental
inconsciente porque sabemos o que é ter um estado mental consciente. Os gestos que
faço para conseguir abrir uma porta são inconscientes, na medida em que naquele
preciso momento não me encontro a pensar neles, mas sei que seriam conscientes se se
desse o caso de eu pensar neles sempre que pretendesse abrir uma porta ou enquanto
estivesse a abri-la.
Para Searle, estados mentais e processos conscientes possuem uma característica
que outros estados não possuem: essa característica é a subjetividade. A consciência e a
subjetividade são duas características fundamentais para se pensar a mente humana.
Uma vez ignoradas ficamos incapazes de fazer uma distinção entre fenómenos mentais
e fenómenos não mentais. Eis a segunda tese contra o materislismo: 2. “Nem toda a
realidade é objectiva; parte dela é subjectiva” (o itálico é de Searle).28 Segundo Searle
“(…) ontologicamente, a tese que defende que toda a realidade é objectiva é, em termos
neurobiológicos, pura e simplesmente falsa.”29, uma vez que os estados mentais têm
uma ontologia subjetiva. O tipo de subjetividade de que fala Searle não é do mesmo tipo
de que se fala quando se fala de juízos subjetivos – aquele tipo de juízos em que tanto a
sua verdade como falsidade não podem ser estabelecidas objetivamente. Quando digo
que “as margaridas são as flores mais bonitas” estou a expressar um juízo do tipo de que
falei acima. Trata-se de um juízo em que não nos é possível verificar quer a sua
veracidade quer a sua falsidade, uma vez que depende de pontos de vista e de
sentimentos quer por parte de quem faz tal juízo quer por quem o ouve. Já dizer que
“Paris é a capital de França” é estar a expressar um juízo completamente distinto do
anterior visto que se trata de um juízo objetivo e que pode ser facilmente comprovada a
sua veracidade ou falsidade. A subjetividade inerente à consciência de que Searle fala
não é de cariz epistemológica como acontecia com Dennett, mas antes ontológica.
Então, 3. “Visto que é um erro supor que a ontologia do mental é objectiva, é um erro
supor que a metodologia de uma ciência da mente deve ocupar-se exclusivamente do
comportamento objectivamente observável.” (o itálico é de Searle).30
27 Searle, 1900, p.3528 Searle, 1900, p.3529 Searle, 1900, p.3530 Searle, 1900, p.36
33
Utilizando o exemplo de Searle, quando digo que “tenho neste momento uma
dor no fundo das costas”31 estou a expressar um estado mental específico que é “dor” e
o estado mental de “dor” é subjetivo no que respeita à sua existência. A dor que eu sinto
ao fundo das costas não é igual à dor que o meu vizinho sente, até poderá ser, mas
nunca o saberemos porque cada um sente a sua. Trata-se de uma experiência de
primeira pessoa e que só poderá ser sentida segundo um ponto de vista, também ele, de
primeira pessoa isto porque quando falamos do estado mental de dor ou de qualquer
outro estado mental falamos de um estado mental que é de alguém. A relação que
mantenho com os meus estados mentais é diferente da relação que mantenho com os
estados mentais das outras pessoas e vice-versa. Desta forma 4. “É um erro supor que
conhecemos a existência de fenómenos mentais nos outros apenas observando o seu
comportamento.” (o itálico é de Searle)32
Em A Redescoberta da Mente Searle afirma que não é através do
comportamento que concebemos a existência de fenómenos mentais não só em nós
seres humanos, mas também em animais como cães e gatos, mas antes através de “uma
concepção causal da maneira como o mundo funciona”.33 Searle concebe a consciência
como sendo subjetiva na medida em que eu tenho uma relação particular com os meus
estados conscientes que é distinta da relação que mantenho com os estados conscientes
de outra pessoa qualquer. Eu posso tentar observar a sua consciência durante horas a fio,
mas tudo o que conseguirei observar será a pessoa em si e o modo como se comporta e
o modo como ela se relaciona com o ambiente e como este, por sua vez, influencia o seu
comportamento. Pois, 5. O comportamento ou as relações causais com o
comportamento não são essenciais para a existência de fenómenos mentais” (o itálico é
de Searle)34. Acerca disto, Searle fornece-nos como exemplo os cérebros de silício.35 O
exemplo consiste numa experiência de pensamento em que o meu cérebro se encontra
em constante deterioração o que conduz à perda gradual das minhas capacidades visuais
levando-me posteriormente ao estado de cegueira. Como solução os médicos decidem
inserir no meu córtex visual pastilhas de silício. Com o passar do tempo a minha visão
vai voltando, no entanto o meu cérebro continua a deteriorar-se. Apesar destes dois
31 Conferir Searle, 1900, pp.119-12032 Searle, 1900, p.3733 Searle, 1900, p.3834 Searle, 1900, p.3935 ? Conferir Searle, 1900, pp.87-91
34
fatores os médicos decidem não cessar o tratamento até que chega a um ponto em que
no meu cérebro não existe mais nada para além das pastilhas de silício que foram
inseridas no seu interior ao longo do tempo. Este exemplo é constituído por várias
variantes. Vejamos cada uma delas:
1. Num primeiro momento podemos imaginar que mantenho os meus
estados mentais intactos, apesar de ser um pouco improvável na
atualidade que as pastilhas de silício possam desempenhar as mesmas
funções de neurónios, por exemplo, como pensamentos, memórias, etc.
Neste caso as pastilhas de silício teriam não só solucionado o meu
problema como também tinham conseguido manter intacta toda a minha
vida mental.
2. Outra forma de imaginar o problema é a seguinte: durante todo este
processo senti que quantas mais pastilhas de silício iam sendo inseridas e
apesar de continuar a ter o mesmo comportamento que tinha
anteriormente menos consciência tinha a nível da minha vida mental, isto
é, acerca dos meus fenómenos mentais.
3. Uma terceira variante consiste na hipótese de que as pastilhas de silício
não afeteram de nenhum modo a minha vida mental, mas antes o meu
comportamento, visto que me era cada vez mais difícil levar a cabo as
ações que pretendia realizar, por exemplo. Ou seja, o meu
comportamento ia ficando cada vez mais afetado até que um dia todo o
meu corpo ficaria totalmente paralisado.
Expostas as três variantes de pensamento a pergunta que se coloca é acerca do
seu significado. No primeiro caso as pastilhas de silício desempenhavam o mesmo papel
que um cérebro intacto: mantendo a vida mental consciente intacta e desempenhando o
mesmo comportamento de estimulo-resposta. No segundo caso, as pastilhas já
apresentavam um problema na medida em que mantinham o comportamento intacto,
mas aniquilavam a minha experiência consciente e no último caso temos exactamente o
oposto do segundo. A conclusão mais importante que podemos retirar destas três
variantes de pensamento, segundo o autor, é acerca da relação existente entre a mente e
o comportamento. Assim sendo, poderemos concluir que em parte e epistemicamente
falando é certo que tomamos conhecimento de alguns dos estados mentais
ocorrentes em outras pessoas através do seu comportamento, contudo quando o
35
assunto é a consciência abordámo-la como se se tratando de uma ontologia de
primeira pessoa. Assim sendo o comportamento e as relações causais que se traduzem
em forma de estimulo-resposta surgem como sendo irrelevantes para a existência de
fenómenos mentais. Claro que analisar o comportamento da outra pessoa diz-nos
alguma coisa acerca dos seus estados mentais, mas o que se está a pretender dizer é que
não é possível ter acesso à subjetividade desses mesmo estados, visto que a consciência
trata-se de uma ontologia de primeira pessoa.36
A sexta tese contra o materialismo consiste no facto de que 6. “É inconsistente
com o que sabemos de facto sobre o universo e o lugar que nele ocupamos que tudo é
cognoscível por nós.” (o itálico é de Searle)37
O nosso cérebro assim como o que demais existe na natureza foi fruto de certos
processos evolutivos, porém desenvolveu-se de forma distinta da que ocorreu no
cérebro de cães, gatos ou macacos. Neste momento, parece-nos certo afirmar que o
nosso cérebro é o mais desenvolvido. Não duvidamos de que nós seres humanos somos
capazes de compreender a teoria da evolução de Darwin, mas parece-nos de todo
impossível fazer com que um animal como um cão consiga compreender tal complexa
teoria. Todavia, seria um erro supor que podemos conhecer tudo. A verdade é que nem
tudo é cognoscível por nós e se o nosso cérebro é neste momento o cérebro mais
desenvolvido do nosso Planeta não implica que não possa existir algures no Universo
um cérebro ou algo semelhante a cérebros humanos mais desenvolvido do que o nosso e
capaz de compreender coisas que não são por nós compreendidas.38
Por último, a sétima e última tese diz que 7. “A concepção cartesiana do físico,
a concepção da realidade física como res extensa, não é, pura e simplesmente,
adequada para descrever os factos que correspondem a enunciados de realidade
36 Nas palavras de Searle: “Ontologicamente falando, o comportamento, o papel funcional, e as relações
causais são irrelevantes para a existência de fenómenos mentais conscientes. Espistemicamente, tomamos
conhecimento dos estados mentais conscientes das outras pessoas em parte devido ao seu comportamento.
Causalmente, a consciência serve para mediar relações causais entre estímulos de entrada e o
comportamento de saída; e, numa perspectiva evolucionista, a mente consciente funciona causalmente
para controlar o comportamento. Mas, ontologicamente falando, os fenómenos em questão podem existir
completamente e ter cada uma das suas propriedades essenciais independentemente de qualquer saída de
comportamento.” (Searle, 1900, p.91)37 Searle, 1900, p.4038 Conferir Searle, 1900, p.40-41
36
física.” (o itálico é de Searle)39. Searle afirma que há, pelo menos, três coisas erradas na
nossa conceção do mundo e da realidade como pertencendo ao físico. Quando pensamos
no “físico” pensamos em moléculas e átomos em oposição a coisas “mentais” como
sensações de dor ou prazer. Porém, no entender de Searle a apresentação do físico em
oposição ao mental como se tudo o que existe no mundo se dividisse somente nestas
duas categorias é bastante pobre. Pobre, no sentido em que, segundo o autor, existem
coisas que não cabem nestas duas categorias, coisas como taxas de juro ou a minha
habilidade para jogar futebol. O primeiro erro consiste na tendência de se opor o físico
ao mental e que tal oposição é um erro. O segundo erro consiste na identificação do
físico com a res extensa cartesiana. Se pensarmos no físico desta forma, então tudo está
errado mesmo na ciência da Física, nomeadamente no que respeita à teoria da
relatividade em que se pensa nos eletrões como sendo pontos de massa / energia. O
terceiro erro é de cariz ontológico, no sentido que encontraríamos a questão “«Que
género de coisas existem no mundo?» por oposição a: «Que deve passar-se realmente
no mundo para os nossos enunciados empíricos serem verdadeiros?»”40 Desta forma,
esta última tese não serve apenas para colocar em causa o materialismo, mas também o
dualismo, na medida em que se fossemos questionar as duas teorias acerca de “quantos
tipos de coisas e de propriedades existem no mundo?” os primeiros responderiam que só
existiria uma (o físico) e os segundos responderiam que existiam duas coisas (o mental
em oposição ao físico). Porém, o que Searle está a tentar dizer é que existem outras
tantas coisas que não cabem nem no físico nem no mental, visto que existem outras
propriedades que têm a sua própria forma de existência: atléticas (quando atrás referi o
exemplo acerca da minha habilidade para jogar futebol) e económicas (como quando dei
o exemplo de taxas de juro).
Outro autor que teceu fortes críticas à tese materialista foi Chalmers. Para tal
apoiou-se em três importantes argumentos: 1. argumento explanatório; 2. o argumento
da concebivilidade; e 3. o argumento do conhecimento.
O primeiro argumento utilizado por Chalmers como modo de refutação do
materialismo é o argumento explanatório (The Explanatory Argument). Este
argumento tem como principal objetivo refutar a tese acerca da superveniência lógica de
forma a provar que a existência da consciência não é superveniente ao mundo físico.
39 Searle, 1900, p.4140 Searle, 1900, p.42
37
Para tal torna-se necessário refutar o materialismo já que este afirma que tudo o que
acontece na consciência poderá ser explicado através de processos físicos. Por outras
palavras, segundo o materialismo a consciência pode ser reduzida ao físico. A sua
refutação encontra-se assente em duas premissas:
1) Estruturas físicas apenas explicam a estrutura e a função;
2) Explicar a estrutura e a função não é suficiente para explicar a consciência.
Posto isto, Chalmers conclui que o materialismo é falso pois mesmo que consiga dar
resposta aos problemas fáceis da consciência não é capaz de encarar e de estudar o
fenómeno da consciência como experiência.
Como já foi referido Chalmers encara a consciência como sendo uma
propriedade fundamental do universo e que não pode ser reduzida única e
exclusivamente ao físico. Então, o materialismo nunca poderia ser considerado, pelo
autor, como sendo verdadeiro na medida em que apenas este apenas fornece respostas
para as questões fáceis da consciência. Desenvolver toda uma teoria acerca daquilo que
a consciência é ou de como esta se processa tendo apenas em conta funções
comportamentais e cognitivas seria deixar de lado o facto de que inerente à consciência
está a experiência.
O segundo argumento referente ao argumento da concebivilidade (The
Conceivability Argument) é acerca da possibilidade de existir um sistema físico idêntico
ao nosso onde existe algo como ser consciente, mas sem alguns dos estados conscientes.
Esse sistema seria conhecido como um zombie. Um zombie seria alguém ou alguma
coisa semelhante a mim, mas sem experiências conscientes. Ou seja, seria alguém ou
alguma coisa semelhante a mim com processos cerebrais idênticos aos meus,
constituído molecularmente igual a mim e com um comportamento semelhante ao meu.
Contudo, seria completamente diferente de mim no que respeita ao ponto de vista de
primeira pessoa. A nível de terceira pessoa seria exatamente igual e impossível de ser
distinguido de qualquer ser humano semelhante a mim, mas não teria experiências da
primeira pessoa da mesma forma que eu, uma vez que elas não existiram no seu
sistema. Claro que a probabilidade de zombies existirem no mundo em que vivemos é
bastante improvável, contudo não é nada que não possamos imaginar como tendo uma
certa probabilidade de existência em outro Planeta ou em outro sistema solar que não o
nosso. Uma extensão desta ideia seria um mundo zombie (zombie world). Este seria um
mundo idêntico ao nosso, mas mais uma vez vazio de experiência de primeira pessoa. O
38
objetivo deste argumento é uma vez mais refutar o argumento da superveniência lógica.
Chalmers refuta-o com o seguinte argumento:
1) É concebível a existência de zombies;
2) Se é concebível a existência de zombies, é matafisicamente possível existirem
zombies;
3) Se é metafisicamente possível existirem zombies, então a consciência é não-
fisica.
Disto, Chalmers conclui que a consciência é não-fisica.
O terceiro e último argumento de Chalmers – o argumento do conhecimento
(The Knowledge Argument) – de forma a refutar o materialismo, segue a via
epistemológica no sentido que mesmo que conhecêssemos todos os factos físicos,
continuaríamos a não ter acesso a todos os factos da consciência. Como exemplo surge
Mary – argumento formulado inicialmente por Frank Jackson e que Chalmers utiliza.
Mary é uma neurocientista que conhece tudo o que há para saber sobre os processos
físicos acerca da visão, mas encontra-se fechada numa sala a preto e branco e nunca
experienciou a cor vermelha. Apesar de ela conhecer todos os processos físicos
ocorrentes no cérebro desde que um determinado sujeito visualiza a cor vermelha da sua
camisola até verbalizar frases como “a minha camisola é vermelha” ela não sabe como é
ver vermelho. Nesse sentido, a questão que se coloca é a seguinte: o que acontece
quando Mary sair da sala a preto e branco e vir pela primeira vez vermelho? A
conclusão a que Jackson chega é que apesar de 1) Mary conhecer todos os factos físicos
ela 2) não conhece todos os factos, pois não conhece como é experienciar o vermelho,
então 3) o conhecimento de todos os factos físicos não é suficiente para se conhecer
todos os factos da consciência. Deste modo, mais uma vez conclui-se que o
materialismo não pode ser verdadeiro.
II. Da falsidade do Materialismo à defesa de um Dualismo Naturalista.
Como se disse desde o inicio de todo este trabalho a principal questão acerca da
consciência é acerca do “como e por que razão processos físicos dão origem à
experiência consciente?”. Referiu-se, também e por diversas vezes que a consciência era
39
constituída por fenómenos mentais como dor e prazer e que todos estes fenómenos
tinham a sua origem em propriedades físicas. Durante a apresentação do pensamento
materialista reducionista de Patricia Churchland e da abordagem de um materialismo
eliminativo por parte de Daniel Dennett vimos que muitos dos fenómenos mentais
poderiam ser explicados através de propriedades físicas ocorridas no nosso cérebro. Um
dos exemplos fornecidos foi acerca da perceção visual das cores em relação à
apresentação da teoria neurobiológica da consciência de Crick e Kock. Segundo estes
dois autores, as oscilações ocorrentes no córtex dariam origem à consciência, porém
nada foi acrescentado acerca daquela que é a verdadeira questão. Nada foi dito por
Crick e Kock acerca do porquê destas oscilações darem origem à consciência ou qual a
conexão existente entre as oscilações e a experiência consciente. A teoria desses dois
autores apenas apresenta uma explicação física tendo em conta conceitos como
“estrutura” e “função”, porém a explicação da consciência não pode ser apresentada
tendo unicamente em conta a estrutura do cérebro e as suas funções. É precisamente
neste sentido que Chalmers afirma que existe uma lacuna explicativa (explanatory gap)
entre o nível físico e a experiência consciente. Desta forma parece fazer sentido dizer
que apesar de muitos fenómenos mentais poderem ser explicados através de
propriedades físicas a parte da experiência inerente a esses mesmos fenómenos
permanece inexplicável. Deste modo, parece certo concluir-se que a experiência
consciente não pode ser explicada única e exclusivamente através de uma redução ao
físico.
Ao longo de toda esta primeira parte o objetivo foi provar a falsidade do
materialismo tentado apoiar ao mesmo tempo um certo tipo de dualismo. A falsidade da
teoria materialista foi apresentada tanto através da exposição das sete teses contra esta
teoria por parte de Searle como dos três argumentos defendidos por Chalmers. Neste
momento, a questão que se coloca é acerca do tipo de dualismo que se pretende
defender e de que modo este apresenta uma resposta, a meu ver, mais completa do que
aquela que foi apresentada pelo materialismo. Em The Conscious Mind, Chalmers
propõe um novo tipo de dualismo, falo pois do Dualismo Naturalista que surge como
sendo uma combinação entre o dualismo de propriedades e o funcionalismo. Não fala,
portanto, de dualismo da mesma forma que este foi apresentado por Descartes onde o
ser humano seria constituído por uma substância mental capaz de influenciar processos
físicos. Fala antes de um certo tipo de dualismo de propriedades, na medida em que a
40
experiência consciente implica propriedades individuais – propriedades fenomenais –
que são ontologicamente independentes das propriedades físicas embora estas
propriedades fenomenais possam depender das anteriores. Ou seja, o que Chalmers
defende é que existem dois tipos de propriedades: as fenomenais e as físicas e que as
primeiras têm a sua origem e são influenciadas pelas segundas, mas ao contrário do que
acontecia com o dualismo cartesiano as propriedades fenomenais não influenciam o
físico. Outra coisa que não só Chalmers, mas também Searle e Nagel defendem é que a
experiência consciente não pode ser unicamente explicada através do ponto de vista de
terceira pessoa como acontecia no materialismo. Apresentar uma reposta para a questão
da consciência através do ponto de vista de terceira pessoa seria apresentar apenas uma
parte da resposta, isto é, seria apresentar a resposta para os problemas fáceis da
consciência deixando de lado os difíceis que diriam respeito ao ponto de vista de
primeira pessoa. Relatos verbais de estados internos, o modo como conseguimos
processar informação e a apresentação das diferenças entre o sono e a vigília podem ser
facilmente explicadas recorrendo a explicações objetivas dos processos físicos
ocorrentes no interior do nosso cérebro. Porém, quando falamos de experiências visuais
(a vermelhidão do vermelho), experiências percetivas (sons, toque), experiências
corporais (dor, prazer), experiências emocionais (felicidade, tristeza) falamos de um
determinado tipo de experiência. Falamos de uma experiência que só pode ser
conhecida e sentida em primeira pessoa. Assim, do mesmo modo que apresentar uma
resposta acerca da experiência consciente tendo em conta apenas o ponto de vista de
terceira pessoa representaria uma resposta incompleta, também apresentar uma resposta
tendo em conta unicamente o ponto de vista de primeira pessoa o seria. Então, só uma
resposta que envolva tanto o ponto de vista de terceira pessoa como o de primeira
pessoa surge como sendo uma resposta satisfatória. Contudo, como explicar a sua
conexão? Existem boas razões para acreditarmos na existência de uma conexão entre o
ponto de vista de primeira pessoa e o ponto de vista de terceira pessoa. O que quer, por
outras palavras, dizer que existem boas razões para pensarmos que as experiências
subjetivas se encontram correlacionadas com os processos ocorrentes no cérebro e com
o comportamento. Então, se uma resposta acerca da experiência consciente completa
necessita tanto do ponto de vista de terceira pessoa como do de primeira pessoa, parece
haver fortes indícios que seja possível existir uma ciência da consciência. Todavia, não
uma ciência da consciência como o materialismo propõe nem como foi apresentada por
Crick e Kock, mas antes tendo em conta a parte objetiva e subjetiva da experiência
41
consciente. De facto, existem, atualmente, alguns projetos científicos que pretendem
apresentar uma abordagem científica da consciência. Um desses projetos foi o de Crick
e Kock mais concretamente acerca de como percecionamos as cores e os próprios
objetos. A informação que nos chega acerca de objetos bem como das cores é
processada e analisada por um disparo sincronizado de neurónios instalados em várias
zonas do córtex cerebral. E, apesar de a resposta apresentada por eles não ser
considerada completa uma vez que só explica os processos objetivos da experiência
consciente, não se pode negar que saber isto nos ajuda a perceber os correlatos
neuronais (sistema neural que está diretamente associado com estados de consciência)
ligados à consciência.
Experiências conscientes têm uma estrutura complexa com conteúdos
representacionais igualmente complexos. Experiências visuais e corporais, por exemplo,
são elas mesmas experiências subjetivas complexas. Cada uma destas experiências
acarreta um enorme grau de complexidade, para tal basta pensar na quantidade de coisas
que percecionamos subjetivamente quando temos uma experiência visual de um objeto.
No momento em que olhamos para um objeto percecionamos diferentes coisas
igualmente complexas como a cor, formato, tamanho, textura… É precisamente nessa
complexidade que reside o maior obstáculo para a criação de uma ciência da
consciência tendo em conta as propriedades fenomenais e físicas. Ao passo que no que
respeita à terceira pessoa podemos facilmente apresentar conclusões tendo em conta o
comportamento e processos físicos ocorrentes nos nossos sistemas nervosos (mesmo
que muita coisa no que a isto diz respeito permaneça em aberto é altamente provável
que um dia a ciência apresente respostas) no que respeita à primeira pessoa tal é
impossível. O principal obstáculo encontra-se inerente ao grau de subjetividade e
privacidade, uma vez que as experiências conscientes acerca do que quer que seja
encontram-se diretamente relacionadas com o sujeito que está a ter essas experiências.
Para os outros, estas experiências de primeira pessoa encontram-se indiretamente
disponíveis, na medida em que só podem ser analisadas através do comportamento e de
processos cerebrais. O nosso conhecimento acerca da consciência é um conhecimento
limitado, contudo não se pode entender essa limitação como sendo paralisante. Uma das
soluções para se continuar a estudar o problema da consciência no que se refere à
experiência de primeira pessoa passaria por ter em conta os relatos verbais das
experiências conscientes de alguém. Contudo, esses relatos verbais não seriam
42
entendidos como sendo de terceira pessoa, mas antes como um relatório dos relatos de
primeira pessoa disponíveis para o sujeito. Claro que o tratamento destes relatos como
se tratando de relatos de primeira pessoa exigem que aceitemos certas premissas: a
primeira refere-se precisamente à aceitação de que o sujeito teve mesmo as experiências
conscientes que relata e que os seus relatos são capazes de refletirem as suas
experiências conscientes. Porém, os próprios relatos verbais acerca das várias
experiências conscientes que o sujeito experiencia apresentam vários problemas. Em
primeiro lugar o sujeito que se encontra a relatar as suas experiências pode mentir-nos
ou pode ocorrer que na sua língua não exista vocabulário suficiente para descrever
determinada experiência subjetiva. Outro obstáculo referente à abordagem da
experiência consciente tendo em conta a primeira pessoa refere-se ao método. Enquanto
que os métodos utilizados na terceira pessoa foram evoluindo com o passar do tempo
principalmente devido à atenção que lhes é dada pela ciência, os métodos utilizados
para a primeira pessoa ainda se revelam primitivos. Porém nem tudo está perdido.
Assim como os julgamentos acerca das experiências subjetivas sentidas pelo sujeito não
são infalíveis, também não existe nenhum método de estudo que não apresente as suas
limitações.
De forma a concluir, o que se pretende dizer é que quando falamos de
consciência falamos de dois tipos de propriedades: as propriedades fenomenais e as
propriedades físicas. Por esse motivo, uma resposta acerca de como devemos abordar a
questão da consciência não passa pela teoria materialista visto que esta tende a explicar
a consciência através do comportamento do sujeito e de uma redução ao físico. A
resposta que proponho juntamente com Chalmers é que para que exista uma resposta
completa acerca da consciência devemos ter em vista tanto as propriedades físicas como
as fenomenais inerentes a cada indivíduo. Contudo, apesar de hoje em dia ainda não nos
ser possível apresentar um método sólido acerca do estudo da consciência tendo em
conta o ponto de vista de primeira e de terceira pessoa, tal não significa que devemos
desistir de tentar perceber a subjetividade da consciência. Se hoje esse conhecimento se
apresenta como sendo privado e limitado não se segue que daqui a 10 ou 50 anos não
nos seja possível conhecer mais e melhor essa parte da consciência. Prova disso são os
vários estudos que vão sendo levados a cabo tanto por parte da psicologia como da
ciência.
43
Assim como um psicólogo quando se encontra face a um paciente não procura
apenas diagnosticar o estado em que este se encontra, mas também perceber o que o
conduziu até esse mesmo estado, também a ciência não deve apenas preocupar-se como
o cérebro percebe o formato ou a cor de um determinado objeto através de processos
físicos, mas também se deve preocupar com o modo com que o sujeito cognitivo
perceciona o mundo. Pois só tendo em conta as propriedades fenomenais e as
propriedades físicas será possível apresentar-se uma resposta completa acerca do
problema da consciência.
44
Segunda Parte: Intencionalidade, Intenções e Ações
Capitulo 1 – Pessoalidade e Identidade Pessoal
I. O que é ser-se pessoa? Apresentação de duas características fundamentais.
Ao longo da primeira parte falamos sobre a consciência contrastando duas
importantes orientações na Filosofia da Mente: o materialismo e o dualismo. Como se
pôde ver muitos dos exemplos que foram utilizados de forma a clarificar as várias ideias
que se pretendia passar tiveram essencialmente como protagonistas agentes cognitivos
humanos à exceção do caso dos morcegos. Recorreu-se a estes exemplos, uma vez que
usualmente atribuímos o estado de consciência a seres humanos. Contudo, também se
verificou que quando falamos de experiência consciente referimo-nos à existência de
algo como é ser (it is like to be) e, sendo assim, a experiência consciente não se resume
única e exclusivamente aos seres humanos, mas também se estende a outros organismos
como é o caso dos morcegos. Esta capacidade que seres humanos e animais como
morcegos têm em comum é usualmente designada de senciência. No entanto, quererá
isto dizer que todos os tipos de animais são sencientes ou será que algumas espécies
escapam?
Se pegássemos num leque extenso de diferentes tipos de animais e
analisássemos a sua fisiologia e sistemas nervosos iríamos observar que alguns animais
têm um sistema nervoso semelhante ao nosso e outros não, assim como iríamos verificar
que alguns desses animais tinham, por sua vez, um sistema nervoso mais complexo e
outros mais simples e que tudo isso iria influenciar o modo como iriam ou não sentir
sensações de dor ou de prazer. Porém, analisar a experiência de sentir dor e outros
estímulos / sensações ou não sentir tendo unicamente em conta o critério fisiológico
pode-se revelar uma forma incompleta de avaliar tal questão. Por essa razão torna-se
importante juntar um outro critério que é, como não poderia deixar de ser, o
comportamental. Sabemos que quando pisamos a pata de um cão ele gane como que a
manifestar a sua dor, sabemos que um rato chia quando experiência o sentimento de dor
e, no nosso caso, um simples esgar ou um piscar de olhos pode ser indicativo de dor ou
45
de desconforto, mas nós sabemos que tanto nós como os animais piscamos os olhos por
diversas razões sendo que uma delas é a sua lubrificação.
Se fôssemos inquirir um vasto número de pessoas seria quase certo que para uma
maioria seria mais fácil afirmar que animais semelhantes a nós como mamíferos e
vertebrados têm inerentes a si a capacidade de sentirem dor ou prazer ao passo que
pensar que insetos e outros seres que não mamíferos ou vertebrados possuem tal
capacidade torna-se mais complicado. Tal acontece principalmente porque quando “se
desce demasiado fundo na árvore filogenética, as pessoas perdem gradualmente a crença
de que possa existir lá qualquer experiência.”41 Porém, devido ao vasto número de
experiências que têm sido realizadas nos últimos anos, tem-se verificado que
cefalópodes como o polvo e a lula apesar de terem um sistema nervoso dissemelhante
do nosso têm respostas comportamentais bastante complexas face a estímulos enviados
pelo exterior, mas será que isto é suficiente para afirmarmos com toda a certeza de que
estes animais sentem ou não dor? A verdade é que interpretar o comportamento de
outras espécies que não a nossa de forma a descobrir se sentem ou não dor ou prazer
revela-se uma tarefa complicada ou mesmo impossível. Por outro lado, tendo em conta
aquilo que se disse desde o início – que determinado organismo é possuidor de
consciência sempre que existir algo como é ser – não podemos negar de que existe algo
como é ser um mosquito, que existe algo como é ser uma lula ou um polvo. Portanto,
não podemos negar a existência de consciência quer em organismos mais próximos de
nós como é o caso dos mamíferos e vertebrados quer em organismos mais simples como
um mosquito ou uma anémona. Contudo, esse grau de consciência apesar de ter uma
semelhança com a nossa – o estado de senciente (capacidade de sentir dor ou prazer,
etc.) – no resto é completamente distinta da nossa, pois no que respeita à nossa espécie –
Homo Sapiens – é fácil avaliar se sentimos ou não dor, em que circunstâncias a
sentimos e com que intensidade foi sentida. Somos capazes de fazer relatos
pormenorizados acerca das nossas experiências precisamente porque evoluímos num
aspeto em que mais nenhuma espécie conseguiu: somos detentores de uma linguagem
que nos permite comunicar uns com os outros a nível superior dos restantes animais
além de que o homem é um ser capaz de articular ideais e pensamentos; é um ser capaz
de tomar decisões, de escolher e de deliberar. Principalmente: é um fazedor de ações. É
um ser dotado de racionalidade. Claro que também é possível dizermos que um leão
41 Nagel, 2004, p.3
46
quando vai caçar a sua presa também está a levar a cabo uma ação, no entanto só
agentes cognitivos humanos são capazes de fornecer razões para as suas ações.
Um dos primeiros autores a tratar esta questão – a da racionalidade – foi, como
não poderia deixar de ser, Aristóteles. Hoje em dia encaramos a racionalidade como
sendo uma adaptação evolutiva da nossa espécie, mas para Aristóteles a racionalidade
marcaria a principal diferença entre os homens e os restantes animais. Enquanto que os
humanos seriam detentores de racionalidade (logos) os restantes animais seriam
detentores de perceção sensorial. Também Dennett teve algo a dizer acerca da
racionalidade como sendo uma das várias condições de pessoalidade. Em Conditions of
Personhood diz-nos que quando falamos de pessoas falamos de seres a quem são
atribuídos estados de consciência (tal como já foi referido) ou a quem são atribuídos
predicados psicológicos, mentais ou intencionais; devem ainda ser capazes de produzir
relatos verbais e, por último, uma das principais diferenças existente entre pessoas e
outras entidades é o facto de que as primeiras estão conscientes a um nível em que
nenhuma outra espécie está – esse nível é usualmente designado de autoconsciência.
Deste modo, quando falamos de agentes cognitivos que são pessoas, duas
capacidades parecem sobressair, são elas: a autoconsciência e o pensamento racional.
A primeira engloba as experiências conscientes e o sentido do eu, enquanto que o
pensamento racional engloba dois tipos de racionalidade: a racionalidade teórica e a
racionalidade prática. A primeira diz respeito às nossas crenças, no sentido em que estas
serão tidas como sendo racionais se tivermos boas razões para as sustentar e se estas são
fiáveis na forma como representam o mundo. Portanto, a crença de que todos os corvos
são pretos será considerada racional se de facto ocorrer que todos os corvos sejam
mesmo pretos, ao passo que a crença de que a relva é vermelha será tida como
irracional, na medida em que tal não se verifica no mundo tal como o conhecemos. Já
quando falamos de racionalidade prática falamos da racionalidade na ação. Porém, entre
estes dois tipos de racionalidade existe espaço para a irracionalidade, sendo que um
desses casos é o auto-engano (casos em que não acreditamos naquilo que temos razões
para acreditar) e outro é a fraqueza da vontade ou akrasia (casos em que temos a
intenção de fazer algo, mas acabamos por não fazer).
Com isto pretende-se dizer que “Os seres humanos começam a ser pessoas
quando começam a ter sentido do eu e a responder a padrões de racionalidade.”42
42 Bortolotti & Harris, 2006, p.11
47
Ao contrário das restantes espécies, somos seres capazes de armazenar memórias
de um passado distante ou daquilo que fizemos há cinco minutos atrás; somos capazes
de formular pensamentos de pensar que hoje está sol e que 2 mais 2 são 4; somos
capazes de aprender coisas novas e diferentes assim como somos capazes de tomar
decisões e de justifica-las. Contudo, o que acontece quando deixamos de recordar aquilo
que éramos, isto é, aquilo que tínhamos como sendo o nosso eu, ou seja, a nossa pessoa?
Num momento está tudo bem, mas noutro momento posso estar a atravessar a rua e ser
atropelada por um carro, o meu corpo cai e a minha cabeça bate nos paralelos que
pavimentam a rua. O condutor abandona o veículo, chama uma ambulância e dou
entrada nas urgências do Hospital mais próximo. Sem mais nada a que recorrer os
médicos induzem o coma. Não sabem o que esperar no instante em que acordar porque
tanto me posso recordar até ao mais ínfimo pormenor o que aconteceu ao longo de toda
a minha vida como já não reconhecer as pessoas que me acompanhavam diariamente.
Os dias passam um após outro até que, por fim, acordo. Porém, o pior acontece e não
me recordo de nada do que me aconteceu. Não sei o meu nome, desconheço o local
onde nasci assim como não me é conhecido o nome dos meus familiares e no momento
em que os vejo olho-os como se estes fossem completos desconhecidos. O que dizer
nestes casos?
Não acredito que sejamos imutáveis, como as teorias fixistas43 tendiam a afirmar
e para tal basta pensarmos na pessoa que éramos há 5 ou há 10 anos atrás. Todos os dias
esbarramos com pequenas coisas que provocam uma mudança nem sempre consciente e
imediata na pessoa que somos. Há diferenças na maneira como penso e como falo assim
como há diferenças no meu aspeto físico e na forma como encaro a vida. Todos os dias
sofremos pequeníssimas mudanças quer a nível psicológico – há diferenças entre eu-há-
10 anos-atrás, eu-ontem e eu-hoje – quer a nível físico. Ao longo da nossa vida muitas
das proteínas (coisas que funcionam como tijolos nas nossas células) existentes no
interior do nosso corpo encontram-se num processo contínuo de degradação fazendo
com que novas sejam produzidas. Quando tinha 5 anos queria ser arquiteta, hoje
encontro-me a frequentar o último ano de mestrado em Filosofia. A vida muda, as
43 Segundo a teoria fixista todas as espécies teriam sido criadas através de um poder divino e desde então
permaneceriam imutáveis por toda a sua existência. Esta teoria foi colocada em causa aquando o
aparecimento da teoria evolucionista de Darwin onde se afirmava que todas as espécies foram evoluindo
com o tempo e que nenhuma permanecia intocável sem que houvesse mudanças significas quer devido ao
ambiente quer ao fator de hereditariedade.
48
circunstâncias mudam e nós também mudamos. Não quer isto dizer que somos pessoas
totalmente diferentes daquelas que éramos; encaro antes como se estivéssemos em
permanente processo evolutivo e que não somos uma pessoa nova de X em X anos, mas
antes que somos constituídos por pequenos fragmentos de todos os acontecimentos que
ao longo da vida experienciamos e dos quais estamos maioritariamente conscientes.
Neste sentido poderíamos dizer que tanto aquilo que faz com que o nosso Eu (self) se
mantenha e se reconheça como sendo o mesmo como o sentimento de consciência de si
é, precisamente, todo o conjunto de memórias que o nosso cérebro foi armazenando ao
longo da nossa vida. Uma vez perdidas essas memórias deixamos de ter acesso a esse
Eu e começamos a construção de um novo. A memória como vimos anteriormente em
Dennett surge como sendo uma característica fundamental da mente humana (mesmo
que às vezes nos induza em erro) e que marca mais uma diferença entre o nosso nível de
consciência e o nível de consciência existente nas restantes espécies. Na minha opinião,
dizer que um animal – qualquer animal – tem consciência de si ao longo do tempo
(passado, presente e futuro) não é de todo razoável. Claro que podemos estar a cometer
um erro ao afirmar tal coisa, mas pelo menos até onde nos é permitido saber não nos é
possível afirmar que tal se verifique, uma vez que não nos é possível verificar a sua
veracidade ou a sua falsidade. Não sabemos o que é sentir-se morcego, apenas sabemos
o que é sentir-se eu – eu sujeito cognitivo humano da espécie Homo Sapiens. Daí o
carácter subjetivo da consciência de que se falou desde o início.
Desta forma à questão referente acerca se seremos os únicos seres dotados de
consciência direi que tanto seres humanos da espécie Homo Sapiens como as restantes
espécies são dotadas de um certo tipo de consciência, contudo o grau de consciência
existente entre elas é diferente. Enquanto que nós (seres humanos) somos detentores de
autoconsciência que nos torna capazes de ter não somente experiências conscientes, mas
também ter consciência do nosso eu ao longo do tempo, as restantes espécies, como
macacos apenas possuem, até onde se sabe, experiências conscientes como dor, prazer
ou medo. Neste sentido, concluímos então que aquilo que nos define como “pessoas”
nada tem que ver com a espécie à qual pertencemos, mas antes às características que
fazem de nós aquilo que somos. Entre elas, duas tiveram maior destaque, a saber:
autoconsciência (experiências conscientes e sentido de si) e pensamento racional
(racionalidade teórica e racionalidade prática). Uma vez que a primeira – a
racionalidade teórica – já foi abordada, pretende-se, neste momento apresentar uma
49
análise acerca do que se fala quando se fala de racionalidade prática a partir de dois
autores: Aristóteles e E. Anscombe.
II. Racionalidade Prática: pessoas como fazedoras de ações
Em A Ética a Nicómaco (uma das mais importantes obras sobre Ética da história
da filosofia, embora concebida de forma bastante distinta daquilo que viria a ser a Ética)
Aristóteles apresenta-nos várias investigações acerca da racionalidade prática, mais
concretamente apresenta-nos uma teoria das ações, onde encontramos dois conceitos
essenciais, são eles: a deliberação e a decisão. Acerca do primeiro diz-nos que não
deliberamos sobre “coisas eternas” nem acerca daquilo que nunca estará ao nosso
alcance, mas antes acerca daquilo que depende de nós e que se encontra ao nosso
alcance. Assim, não fará sentido deliberar acerca se podemos voar da mesma forma
como os pássaros voam, mas fará sentido deliberar sobre voar se por voar entendermos
utilizar como meio de transporte o avião. Enquanto que, quando falamos de decisão
falamos de um desejo deliberado – um desejo que é formado depois de o agente ter
passado pelo processo de deliberação. Desta forma o desejo relaciona-se com os fins
enquanto que a deliberação se relaciona com a escolha dos meios. É precisamente neste
sentido que Aristóteles surge como sendo considerado um defensor da teoria
instrumental de racionalidade, sendo que segundo a definição desta teoria
“Aquilo de que estamos a falar quando qualificamos como racional o
comportamento desse agente é de uma acção apropriada a uma dada finalidade, da
selecção e mobilização de meios com vista a um determinado fim (os fins do agente
são relativos àquilo que ele deseja, e os agentes chegam supostamente à situação de
decisão já munidos de desejos).” 44
Imaginemos o seguinte caso: se um determinado agente tiver como finalidade
comer alguma coisa de forma a saciar a sua fome terá de decidir se quer cozinhar ou se
quer ir a um restaurante. Em ambas as alternativas, terá ainda de deliberar acerca da
escolha daquilo que deseja comer. De acordo com a definição instrumental de
racionalidade diremos que a sua ação foi racional se o agente A foi ou não capaz de
44 Miguens, 2004, p.48
50
reunir os meios necessários para satisfazer o seu desejo, isto é, o seu fim. Reunir os
meios necessários, neste caso, passaria por se dirigir até um restaurante ou cozinhar,
escolher o que comer e, posteriormente comer os alimentos que cozinhou ou que pediu
no restaurante. Desta forma poderemos dizer que a racionalidade prática se relaciona
com o comportamento dos agentes e que este é influenciado quer pelas crenças quer
pelos desejos que cada agente possui. Por outro lado, não nos podemos esquecer que
quando falamos de Racionalidade Prática falamos de Racionalidade da Ação o que quer
dizer que para percebermos com exatidão quando uma ação é ou não racional importa
dar resposta a três questões: 1) O que é uma ação; 2) Em que consiste a explicação de
uma ação; 3) O que é uma ação intencional.
Existe uma diferença entre corpos a mover-se e a agir intencionalmente em
função quer das suas crenças quer dos seus desejos. Disse-se mais atrás que a
racionalidade era um dos aspetos mais importantes para caracterizar os humanos como
pessoas e os diferenciar dos restantes animais. Contudo, quando falamos de
racionalidade não nos referimos apenas à capacidade de raciocinar com o objetivo de
solucionar problemas, de argumentar ou de ser capaz de resolver a mais difícil equação
matemática. Quando falamos de racionalidade falamos também da capacidade de os
agentes darem razões para o facto de terem feito o que fizeram e do porquê de terem
feito isto e não aquilo. Assim diremos que
“Racionalizar uma acção é dar a razão do agente para ter levado a cabo
aquela acção. Para racionalizar uma acção é sempre necessário atribuir a um agente
uma intenção, e para falarmos de intenção precisamos de (pelo menos) um desejo e
(pelo menos) uma crença relevante. Sem isto não poderemos falar de acções.”45
Desta forma, só fará sentido dizer que um determinado agente executou uma
ação e não meros movimentos corporais se e somente se o agente for capaz de fornecer
razões acerca do que fez e se de facto teve a intenção de fazer aquilo que fez. Quando
falamos de intenções falamos de um plano de um agente, plano esse que envolve
desejos de se fazer alguma coisa e crenças acerca de que os atos realizados conduzirão
ao que é pretendido. O ato de pedir e de dar razões de forma a dar uma razão para as
45 Miguens, 2004, p. 95
51
ações realizadas por nós surge como sendo uma noção central para a nossa noção de
pessoa porque “Esclarecer a natureza do raciocínio prático e a existência de acções ao
nível pessoal é, assim, esclarecer a própria existência de ‘pessoas’”.46
E. Anscombe, no seu livro Intention começou por estabelecer diferenças entre
previsões e intenções, uma vez que existe uma diferença entre eu dizer que “amanhã irá
chover” e “amanhã irei à pastelaria”. No primeiro caso uso a evidência e ao ocorrer é
algo que não dependeu, de todo, de mim ao passo que no segundo caso trata-se de uma
intenção. Ao dizer que ”amanhã irei à pastelaria” estou a descrever uma intenção, em
que a justificação passará por fornecer a razão pela qual ir à pastelaria se apresenta
como sendo útil ou atrativo para mim. Todavia, a capacidade de fornecer razões acerca
de algo nem sempre significa que houve intenção na ação. Aliás, às vezes não houve
qualquer ocorrência de intenção. Acerca disso, Anscombe em Intention refere que
falamos de intencionalidade ao em vez de movimentos corporais sempre que o
movimento ocorrer sob uma determinada descrição e o agente for capaz de se aperceber
desses movimentos, todavia esse apercebimento terá de ser feito sem se recorrer à
observação. Por sua vez, a ação levada a cabo pelo agente será considerada intencional
se este for capaz de dar razões para o que fez sem que necessite de recorrer à
observação. Porém, o problema da ação consiste em saber em que condições os agentes
são capazes de fornecer razões para as suas ações sem recorrerem à observação nem à
racionalização da ação, isto é, sem a atribuição de razões a posteriori da ação
propriamente dita. Desta forma, não poderemos dizer que houve intenção se eu
estremecer assim que alguém me toca no ombro, uma vez que assim que me
perguntarem o porquê de ter tido essa reação o que irei fornecer não serão as
verdadeiras razões, mas antes uma racionalização da ação. O que aconteceu não foi uma
ação, mas antes um simples movimento corporal não intencional, visto que “(…) uma
acção não é intencional se o suposto agente apenas chega mais tarde ao seu próprio
comportamento e observa ou vem a tomar conhecimento de que estava a fazer alguma
coisa."47 Assim como também não será considerada uma ação intencional se eu estiver a
tamborilar os dedos em cima da mesa ao mesmo tempo que falo com alguém se só tiver
conhecimento do tamborilar através da observação ou se alguém me questionar acerca
da razão pela qual estou a tamborilar os dedos enquanto falo.
46 Miguens, 2002, p.11047 Miguens, 2002, p.114
52
Falamos há pouco que as intenções englobam crenças e acerca disto, Anscombe
chamou a atenção para a direção de ajustamento existente entre crenças e intenções. As
primeiras pretendem retratar o mundo tal como ele é e, por isso, a direção de
ajustamento é mente-mundo, no sentido em que se a crença não representar o mundo
como ele é o problema residirá na mente porque esta não se ajustou ao mundo. Quanto
às intenções a direção de ajustamento é mundo-mente, visto que cabe ao mundo ajustar-
se à mente. Assim, uma intenção, segundo Anscombe corresponderia a “estar disposto a
agir no sentido de fazer o mundo ajustar-se-lhe, por contraste com o ajustar a mente ao
mundo.”48
Apresentadas as respostas às três questões – 1) O que é uma ação; 2) Em que
consiste a explicação de uma ação; 3) O que é uma ação intencional; – vejamos o que
resta reter de toda esta exposição acerca da racionalidade prática. Em primeiro lugar só
nos é possível falar de racionalidade prática se existirem ações, em segundo lugar só
podemos falar de ações se existir mente, uma vez que sem mente não poderíamos falar
nem de desejos nem crenças e sem estes não poderíamos falar de intenções. Neste
sentido, a questão que se coloca é acerca de como tudo isto de relaciona. É isso que
procurarei abordar ao longo do Capítulo 2.
48 Miguens, 2004, p.101
53
Capítulo 2 – Intencionalidade
I. Estados Mentais e atos da fala: uma teoria da Intencionalidade segundo John R. Searle
Vimos no capítulo anterior que quando falamos de pessoas falamos de casos
especiais de mentes, uma vez que inerentes a si reúnem duas capacidades fundamentais
(a autoconsciência e o pensamento racional) que as tornam distintas das restantes
espécies. Apontamos que as principais diferenças entre as pessoas e os restantes animais
residem não só no facto de sermos capazes de dar razões para as nossas ações, mas
também de termos consciência de nós ao longo do tempo assim como dos nossos
estados interiores. Contudo, relembro que na primeira parte deste trabalho referi
juntamente com Searle que quando estamos conscientes não estamos simplesmente
conscientes, isto é, quando estamos conscientes estamos sempre conscientes de alguma
coisa. Por vezes o “de” de “consciente de” representa intencionalidade e outras vezes
não. Nesse sentido importa perceber quando é que o “de” de “consciente de” é
intencional e quando não o é. Porém, há que ter em conta que a teoria da
Intencionalidade em relação a estados e eventos mentais que Searle trata não engloba as
ações que os agentes poderão levar a cabo. Acerca disto, Searle, chama a nossa atenção
para o erro de descrever estados e eventos mentais como crenças, desejos, medos, entre
outros como atos mentais. Atos são coisas que se fazem: beber um copo de água ou
escrever uma carta podem ser considerados como sendo atos. Todavia, “(…) não há
uma resposta para a pergunta «Que está agora a fazer?», que seja, «Agora estou à
acreditar que vai chover» ou «a esperar que os impostos baixem» ou «a recear uma
queda na taxa de juro» ou «a desejar ir ao cinema».”49
Searle retoma o conceito de intencionalidade introduzido por Franz Brentano em
que a intencionalidade era identificada como sendo a marca do mental e que os estados
mentais (como crenças e desejos) se encontravam sempre direcionados a um ou vários
objetos. Desta forma a crença de que “a neve é branca” está direcionada ao objeto
“neve”. Porém a intencionalidade dos estados mentais não é entendida como sendo
intencional e é nesse sentido que Searle surge com a seguinte proposta: fala-se de
intencionalidade com “I” maiúsculo para caracterizar os estados mentais Intencionais e 49 Searle, 1999, p.24
54
com “i” minúsculo para a palavra “intenção”. Assim, o que se pretende dizer é que,
apesar de a Intencionalidade ser “a propriedade de muitos estados e eventos mentais”50
não se quer com isto dizer que todos os estados e eventos mentais são Intencionais. Para
que um estado e evento mental sejam considerados Intencionais terão que ter uma
direcionalidade (directedness) ou ser-acerca-de (aboutness). Vejamos então, como
Searle define a natureza dos estados Intencionais. Uma pista já foi sendo dada acerca do
que faz com que estados e eventos mentais sejam considerados Intencionais:
direcionalidade / ser-acerca-de.
Falamos de estados e eventos mentais para falarmos de crenças, desejos,
esperanças, medos e estes são, à partida, considerados estados mentais Intencionais.
Porquê? Ora, porque sempre que existam estes tipos de estados mentais fará sentido
perguntar “acredito em quê?”, “desejo o quê?”, “tenho esperança que aconteça o quê?”
e, por último “tenho medo de quê?”. No entanto, existem outros estados e eventos
mentais como o nervosismo ou a depressão que nem sempre são dirigidos, uma vez que
nem sempre temos uma resposta acerca do porquê de estarmos nervosos ou em baixo.
Às vezes acontece que simplesmente estamos nesse estado sem razão aparente. Quando
isso acontece não podemos dizer que estes estados possuem Intencionalidade, uma vez
que não possuem a característica essencial para que o sejam que é precisamente a
direcionalidade ou ser-acerca-de.
Em segundo lugar, Intencionalidade não é o mesmo que consciência. Na
primeira parte deste trabalho chamei a atenção para o facto de não estarmos conscientes
de todos os movimentos que temos de levar a cabo quando queremos abrir uma porta e
que só temos consciência deles assim que pensamos neles. O mesmo acontece em
relação à Intencionalidade. Cada um de nós tem um sem número de crenças, mas não
estamos conscientes de todas elas. Por exemplo: eu posso ter a crença de que “a relva é
verde” sem que esteja consciente dela. Apesar de possuir Intencionalidade, na medida
em que é acerca-de-alguma-coisa, não se tratava de uma crença consciente, pelo menos
até ao momento em que pensei nela. Nesse momento ela passou a ser consciente. Ao
longo da primeira parte foi dito que nem sempre o “de” de “consciente de” é
Intencional, por vezes é e outras vezes não o é. Como exemplo, Searle chama-nos a
atenção para a diferença entre o “de” de ter uma experiência consciente de ansiedade e o
“de” existente no enunciado “estou consciente do meu medo de cobras” em que este
50 Searle, 1999, p.20
55
“de” contém Intencionalidade. A explicação que Searle dá é que no primeiro caso a
experiência de ansiedade e ansiedade são idênticas enquanto que o medo de cobras não
é idêntico a cobras, na medida em que posso ter medo de muitas outras coisas.
Desde o início chamei a atenção para o facto de que quando Searle fala de
Intencionalidade não fala necessariamente de intenções (daí a diferença entre o I
maiúsculo para Intencionalidade e o i minúsculo para intenção). Normalmente pensa-se
que sempre que existam intenções existe Intencionalidade, porém, na abordagem de
Searle intenções são simplesmente mais um exemplo para estados e eventos mentais
como crenças, desejos, medos. Tal como os restantes estados e eventos mentais, as
intenções serão consideradas Intencionais sempre que tiverem direcionalidade, isto é,
sempre que forem acerca-de-alguma-coisa.
Desde o início desta questão foi dito que estados Intencionais representam coisas
e objetos no mundo. O mesmo acontece com os atos da fala. Para falar de ambos
(estados mentais e de atos da fala) Searle adota uma postura naturalista, no sentido em
que afirma que tanto os estados mentais como os atos da fala têm origem biológica. Os
primeiros porque “(…) são causados por operações do cérebro e realizados na estrutura
do cérebro”51 e, por esse motivo “(…) a consciência e a Intencionalidade são tanto uma
parte da biologia humana como o são a digestão ou a circulação no sangue.”52 e os atos
da fala porque apresentam-se como sendo “(…) uma extensão das capacidades,
biologicamente mais fundamentais, da mente (ou cérebro) de relacionar o organismo
com o mundo (…)”53. Estas capacidades mais fundamentais, de que fala Searle, dizem
respeito aos estados mentais. Alguns destes estados mentais são conscientes e outros
não, assim como nem todos os estados mentais são Intencionais. Estados mentais e
atos da fala serão considerados Intencionais sempre que forem “dirigidos para”
alguma coisa e / ou sempre que forem “acerca-de” alguma coisa. No entanto, estados
mentais e atos da fala possuem uma Intencionalidade distinta: aos primeiros Searle
refere-se como tendo uma Intencionalidade intrínseca e os segundos como possuindo
uma Intencionalidade derivada da mente. Isto passa-se desta forma, uma vez que, para
Searle, as capacidades representacionais dos estados mentais Intencionais não são
impostas, mas intrínsecas. Ao passo que quando falamos de atos da fala falamos de
51 Searle, 1999, p.1752 Searle, 1999, p.1753 Searle, 1999, p.15
56
frases que podem ser transmitidas através de sons que saem pela boca ou através de
marcas que se encontram num papel que representam objetos e estados de coisas no
mundo e, dessa forma, possuem uma Intencionalidade derivada da Intencionalidade da
mente, uma vez que têm um nível físico de realização.
Ao explicar a Intencionalidade recorrendo aos atos da fala poderia conduzir-nos,
segundo Searle, a pensar que a Intencionalidade só poderia ser explicada em termos de
linguagem, contudo tal não se verifica precisamente porque este autor defende a ideia de
que a linguagem (atos da fala) deriva dos estados Intencionais e não o oposto. De forma
a tornar a sua ideia clara diz-nos que não faz sentido pensarmos que recém-nascidos que
ainda não possuem linguagem assim como animais não têm estados Intencionais. Nas
palavras de Searle: “Só alguém totalmente dominado por uma teoria filosófica negaria a
possibilidade literal de se afirmar que os bebés pequenos querem leite e que os cães
querem sair à rua ou acreditar que o seu dono está à porta.”54 Ao utilizar o nosso
conhecimento linguístico de forma a explicar a Intencionalidade Searle usa o exemplo
da linguagem como sendo um instrumento heurístico. A teoria da Intencionalidade
levada a cabo por Searle apresenta algumas semelhanças (entre elas contam-se quatro) à
teoria acerca dos atos da fala desenvolvida no seu livro Os Actos da Fala.
Tanto atos da fala como estados Intencionais possuem um “conteúdo”. Contudo,
nos atos da fala está contida uma “força ilocutória” e nos últimos, um “modo
psicológico”. O conteúdo é o que faz com que tanto atos da fala como estados mentais
sejam acerca de alguma coisa, enquanto que a força ilocutória pode ser explicada
recorrendo a um exemplo. Imaginemos o seguinte conjunto de frases:
1. O João fuma muito.
2. O João fuma muito?
3. Fuma muito, João!
4. Oxalá o João fumasse muito!
A pergunta que se coloca é a seguinte: o que está o falante a fazer quando
enuncia tais enunciados? Pelo menos uma coisa, à partida, nós sabemos: o falante
enuncia o que enuncia usando palavras de uma determinada língua que neste caso é o
português. Todavia, o falante não se limita a enunciar palavras, ou seja, ele não se limita
a dar-lhes uma ordem, ele pretende, efetivamente, dizer coisas com elas, isto é, ele
54 Searle, 1999, p.26
57
pretende dar-lhes um significado. Segundo Searle, em 1) o falante faz uma asserção, em
2) faz uma pergunta, em 3) dá uma ordem e, em 4) exprime um desejo ou uma vontade.
Sabendo que estes quatro enunciados fazem referência a um mesmo objeto, que neste
caso é “João” e que a predicação se refere a “fuma muito”, então poderemos dizer que
“(…) a referência e a predicação são as mesmas, embora em cada caso, a mesma
referência e a mesma predicação ocorram como partes de um acto da fala completo que
é diferente de qualquer dos outros três. Assim, destacaremos as noções de referir e
predicar das noções de actos da fala completos como asseverar, perguntar, ordenar,
etc.”.55
Influenciado por J. Austin, Searle quando fala de força ilocutória refere-se a atos
da fala completos como afirmar, descrever, perguntar, ordenar, pedir, aprovar entre
tantos outros. Já em relação aos estados mentais Intencionais em vez de dizermos que
são constituídos por força ilocutória dizemos que possuem um “modo psicológico”. O
que acontece é que, tal como aconteceu com os atos da fala, também nos estados
mentais podemos ter o mesmo conteúdo, mas em diferentes modos psicológicos. Por
exemplo, em Mente, Cérebro e Ciência Searle usa o seguinte exemplo: “(…) posso
querer sair da sala, posso julgar que irei sair da sala e posso tencionar sair da sala. Em
cada caso, temos o mesmo conteúdo, isto é, que eu sairei da sala; mas em diferentes
modos psicológicos ou tipos: crença, desejo e intenção, respectivamente.”56
A segunda semelhança entre atos da fala e estados mentais Intencionais é
referente às direções de ajustamento (direction of fit). Em relação aos atos da fala
existem diferentes direções de ajustamento para as várias classes ou tipos de atos da
fala, por exemplo: quando falamos da classe assertiva dos atos da fala – enunciados e
descrições – dizemos que a sua direção de ajustamento é palavra-mundo, visto que
enunciados e descrições são tomados como verdadeiros quando se ajustam ao mundo e
tomados como falsos quando tal não acontece. Nesse caso são os enunciados e
descrições que falham e não o mundo. Já nos casos respeitantes à classe diretiva dos
atos da fala – ordens e solicitações – e, à classe comissiva – promessas e juramentos – a
55 Searle, 1981, p.3456 Searle, 1987, p.75
58
direção de ajustamento é mundo-palavra, ou seja “Se um enunciado não é verdadeiro,
é ele que falha, não o mundo; se a ordem é desobedecida ou a promessa quebrada, não é
a ordem ou a promessa que falham, mas o mundo, na pessoa daquele que desobedece ou
que quebra a promessa.”57. Algo de semelhante se passa com as direções de ajustamento
relativas aos estados mentais Intencionais, no caso das crenças a direção de ajustamento
é mente-mundo, enquanto que a direção de ajustamento das intenções e desejos é
mundo-mente, uma vez que
“Se as minhas crenças provarem ser falsas, são as minhas crenças que falham, e
não o mundo, como mostra o facto de eu poder corrigir as minhas crenças. (…). Mas, se
falho na prossecução das minhas intenções, ou se os meus desejos não são realizados,
não poderei corrigir a situação dessa maneira, simplesmente mudando a intenção ou
desejo.”58
Apresentada esta segunda conexão entre atos da fala e estados mentais
Intencionais deparamo-nos com uma terceira que diz respeito, precisamente, ao facto de
que ambos reúnem condições de satisfação, ou seja, atos da fala e estados mentais
Intencionais podem ser verdadeiros ou falsos. Quando são verdadeiros dizemos que
reúnem as suas condições de satisfação e quando são falsos dizemos que tal não se
verifica. Neste modo “(…) um enunciado é satisfeito, se, e somente se, for verdadeiro,
uma ordem é satisfeita se, e somente se, for obedecida, uma promessa é satisfeita se, e
somente se, for mantida, e assim por diante.”59. Algo de semelhante encontramos no que
respeita aos estados mentais Intencionais: as minhas crenças serão verdadeiras se
corresponderem ao modo como o mundo é e falsas caso ocorra o oposto; os meus
desejos serão realizados ou não e as minhas intenções serão concretizadas ou não. O que
significa que “(…) a minha crença apenas será satisfeita se, e somente se, as coisas
forem tal como acredito serem, os meus desejos serão satisfeitos se, e somente se, forem
realizados, as minhas intenções serão satisfeitas se, e somente se forem executadas.”60
57 Searle, 1999, pp. 28-2958 Searle, 1999, pp. 28-2959 Searle, 1999, p. 3260 Searle, 1999, p. 32
59
A última conexão existente entre atos da fala e estados mentais Intencionais diz
respeito ao facto de que para cada ato da fala existe um estado mental Intencional que
lhe está associado. Assim sendo poder-se-á dizer que o estado mental Intencional surge
como sendo a condição de sinceridade expresso pelo ato da fala. Acerca disto, Searle dá
o seguinte exemplo: eu não poderei dizer que “Está a nevar mas eu não acredito que
esteja a nevar”61, visto que dizer isto desta forma é contraditório. Por outro lado, há que
ter em conta que existe sempre a possibilidade de mentir – onde se expressa um ato da
fala sem que se tenha o estado mental Intencional que à partida lhe corresponderia.
Quando isto acontece dizemos que está a ser realizado um ato da fala não sincero.
Apresentadas as quatro conexões entre atos da fala e estados Intencionais e
relembrando mais uma vez que os primeiros possuem uma Intencionalidade derivada
enquanto que os segundos possuem uma Intencionalidade intrínseca, a questão que
importa dar resposta reside no seguinte: como derivam os atos da fala dos estados
Intencionais? De uma forma geral, mas concisa diremos que sempre que pronuncio um
enunciado estou a expressar ou alguma crença ou algum desejo ou algum medo, por
exemplo, uma vez que atos da fala reúnem as mesmas condições de satisfação que o
estados Intencionais. Consequentemente, sempre que pronuncio um enunciado para
além de reunir as mesmas condições de satisfação que os estados Intencionais e de ter
uma certa força ilocutória também me encontro a expressar o estado psicológico
correspondente aos estados Intencionais. Então, dir-se-á que os atos da fala têm um
duplo nível de Intencionalidade.
Apresentada a teoria da Intencionalidade de Searle e sabendo que não há um dia
em que não pratiquemos ações importa saber de que forma é que intenções e ações se
relacionam.
61 Searle, 1999, p. 30
60
Capítulo 3 – Intenções e Ações
I. Como é que intenções e ações se relacionam? Uma possível resposta a partir de John R. Searle
Em enunciados do tipo “Eu quero andar de bicicleta” ou “Eu tenciono andar de
bicicleta” estão representados estados Intencionais (desejo e intenção, respetivamente) e
cada estado representa as suas condições de satisfação (essas condições serão satisfeitas
se eu for andar de bicicleta e não serão satisfeitas se eu não for andar de bicicleta).
Neste sentido, Searle apresenta uma definição provisória de ação intencional: “uma ação
intencional equivale simplesmente às condições de satisfação de uma intenção.”62 Desta
forma todas as ações que reúnem condições de satisfação são consideradas como sendo
ações intencionais. Esta não é, de todo, uma definição correta e completa do que é uma
intenção intencional, assim como também não era uma definição correta aquela que foi
apresentada anteriormente a partir de Aristóteles e mais tarde através de Anscombe.
Essa incompletude poderá ser facilmente percebida se tivermos em conta um exemplo
de Searle acerca do homem que queria pesar 70 quilos no Natal. Certamente que não
podemos negar de que se trata de uma ação intencional. Como vimos anteriormente,
para Anscombe uma ação seria intencional sempre que o agente fosse capaz de dar as
razões para ter feito o que fez e, muito provavelmente, se perguntássemos ao homem a
razão pela qual ele deseja pesar 70 quilos no Natal ele seria capaz de nos dar um certo
número de razões. Por outro lado, também seria uma ação intencional se tivermos em
conta a definição provisória de ação intencional fornecida por Searle. Porém, Searle
pretende chamar-nos à atenção para a existência de muitas outras ações (ações gerais)
que são levadas a cabo entre o momento em que o homem diz pela primeira vez “quero
pesar 70 quilos no Natal” até que chega ao Natal com os tão desejados 70 quilos.
Intuitivamente percebemos que existe uma conexão entre ações e intenções e
que a minha intenção de fazer seja o que for será satisfeita se a minha ação for realizada.
Segundo Searle, não podem existir ações sem intenções. Por outro lado, mesmo que o
evento representado no conteúdo da minha intenção ocorra tal não significa que esse
evento seja, efetivamente, a condição de satisfação na minha ação. Por exemplo, se eu
62 Searle, 1999, p.113
61
digo que “quero ser rica” e eu fico rica dizemos que o meu desejo foi satisfeito, no
sentido em que não interessa como fiquei rica. Por outro lado, se imaginarmos que Bill
quer matar o seu tio e que acidentalmente atropela um transeunte que por acaso é o seu
tio veremos que, neste caso, não podemos dizer que as condições de satisfação da ação
foram preenchidas. Assim como também não podemos dizer que ele teve a intenção de
matar o seu tio, uma vez que a forma como ele o matou não foi intencionalmente, mas
antes acidentalmente.
Na maior parte das vezes pensamos nas ações que queremos levar a cabo antes
de as realizarmos – neste caso dizemos que sabemos o que vamos fazer porque já temos
a intenção de o fazer. Porém, nem todas as intenções são assim. Imaginemos o caso em
que quero sair de casa e assim que consigo sair alguém me pergunta “tinhas a intenção
de abrir a porta?” e neste caso eu poderei dizer que “não, simplesmente abri-a”, uma vez
que a minha intenção primordial era sair de casa. No entanto, segundo Searle a minha
ação de abrir a porta é intencional, porém a intenção encontra-se na ação propriamente
dita e não em mim, isto é, não houve uma intenção prévia. Dizemos que houve uma
intenção prévia se a intenção for expressa linguisticamente na forma “Vou fazer A” ou
“Farei A”, enquanto que a intenção em ato (quando não penso previamente na ação)
surge como “Estou a fazer A”. Assim, dizemos que há uma intenção prévia sempre que
“ (…) o agente age com base na sua intenção, ou que executa a sua intenção, ou que a
tenta executar;”63.
Antes de continuarmos, temos de ter bem assente duas coisas: a primeira é que
para Searle todas as ações englobam intenções, no entanto algumas destas intenções são
prévias e outras são em ato. Portanto, neste momento importa perceber com maior
clareza esta distinção entre intenções prévias e intenções em ato. Searle dá o exemplo
acerca de alguém que se encontra sentado a pensar num problema filosófico e que
repentinamente se levanta e começa a andar de um lado para o outro. O ato de se
levantar e andar de um lado para o outro, segundo o autor, são intenções, porém antes
de as realizar essa pessoa não pensou nem disse algo como “agora vou levantar-me e
andar de um lado para o outro”. Poderia ter dito, mas, neste caso, não é necessário
formar uma intenção, isto é, essa pessoa não precisa de formular um plano acerca do
como se vai levantar e andar de um lado para o outro, assim como nenhum de nós pensa
em todas as ações que tem de levar a cabo para conseguir abrir uma porta, por exemplo.
63 Searle, 1999, p.118
62
Nestes casos simplesmente agimos. Mesmo quando formulo a intenção de “agora vou
abrir a porta” existe pelo meio um certo número de ações que tenho de levar a cabo para
que consiga abrir a porta, tais como: levantar o braço, abrir a mão, agarrar o puxador e
puxar. Tal quer dizer que “todas as acções intencionais têm intenções em acção, mas
nem todas as acções intencionais têm intenções prévias.”64 Para além disso e tendo por
base os exemplos em que se verificou que para além da intenção base de uma ação
existem outras tantas ações em ato temos de acrescentar mais uma característica acerca
desta problemática. Searle afirma que existe uma conexão entre intenções prévias e
intenções em ato – ambas são auto-referenciais. Seguidamente veremos como é que essa
conexão é estabelecida.
Intenções prévias e intenções em ato são consideradas auto-referenciais, visto
que é a intenção que causa a ação e esta, por sua vez deve ser a execução dessa
intenção. Porém, o que se quer dizer com “execução” neste sentido? Pretende-se dizer
que “a intenção tem que ter um papel causal na acção, e o argumento a favor disso é
simplesmente que, se quebrarmos a conexão causal entre intenção e acção, não teremos
mais um caso de execução da intenção.”65 Este carácter auto-referencial pode ser melhor
explicado recorrendo a um exemplo: imaginemos que eu digo ao agente A para sair da
sala e que ele me responde “eu vou sair da sala, não porque me mandaste, mas porque já
ia sair da sala”. Neste caso, segundo o autor, não podemos dizer que o agente A
desobedeceu à minha ordem, contudo apesar de o agente A ter saído da sala ele não saiu
tendo por base a razão que lhe dei para sair da sala. Deste modo o carácter auto-
referencial neste exemplo só existiria se o agente A tivesse saído da sala devido à razão
que lhe dei para sair e não porque era isso que ele já tencionava fazer
independentemente da minha ordem. Outro exemplo explorado por Searle refere-se à
questão sobre “o que se passa no caso das acções simples, tais como erguer o braço? O
que acontece quando se realiza a acção intencional de erguer o braço?”66
Searle responde a estas duas questões dizendo que existem duas componentes
referentes à ação intencional de erguer o meu braço: a primeira é a experiência de
erguer o braço e o movimento físico do braço. Estas duas componentes não existem de
forma independente uma da outra, uma vez que a experiência de erguer o braço tem
64 Searle, 1999, p.11965 Searle, 1999, p.12066 Searle, 1999, p.121
63
Intencionalidade e, portanto, também tem condições de satisfação. A experiência de
erguer o meu braço tem um conteúdo Intencional, uma vez que quando ergo o meu
braço tenho uma certa experiência. O conteúdo Intencional será satisfeito se eu tiver a
experiência de erguer o meu braço e este subir e não será satisfeito se eu erguer o meu
braço sem que tenha a experiência de ergue-lo assim como também não será satisfeito
caso eu tenha a experiência de erguer o meu braço e acontecer que este não suba.
Observamos então que no ato de erguer o braço estão reunidas duas componentes sendo
que uma delas é referente ao conteúdo Intencional (experiência de agir) e a segunda às
condições de satisfação desse conteúdo (o movimento do braço). Relativamente à
Intencionalidade contida na experiência de agir a direção de ajustamento é mundo-
mente, uma vez que caso tenha a experiência de erguer o meu braço e mesmo assim este
não suba direi que fui eu que falhei e não o mundo, isto é, eu tentei erguer o meu braço
e mesmo assim não consegui. Enquanto que a direção da causalidade é da experiência
de agir para o evento, no sentido em que se eu conseguir erguer o meu braço (que é o
mesmo que dizer quando o conteúdo Intencional é satisfeito) dizemos que a experiência
de agir causou a subida do meu braço (que corresponde ao evento). É precisamente
neste sentido que Searle defende a premissa de que “Nesta abordagem, a acção, (…), é
uma transacção causal e Intencional entre a mente e o mundo.”67
Visto que não há um termo para aquilo que nos dá conteúdo Intencional à nossa
ação intencional, Searle inventou um. Que é, precisamente, a “experiência de agir” –
uma experiência que reúne as qualidades fenoménicas e lógicas inerentes à experiência
Intencional. Esta experiência de agir como conteúdo Intencional surge de forma a
marcar a diferença fenoménica entre o caso em que um agente sobe o braço e o caso em
que o agente simplesmente observa o braço a subir independentemente das suas
intenções. Ao passo que as qualidades lógicas se relacionam com as condições de
satisfação referentes à experiência de erguer o braço.
Até aqui exploramos quatro importantes conceitos: intenções prévias, intenções
em ato, movimento corporal e ações. Agora o problema reside em saber qual a relação
entre estes quatro elementos. Para tal será necessário perceber com exatidão quais os
conteúdos Intencionais que encontramos nas duas intenções (intenções prévias e
intenções em ato).
67 Searle, 1999, p.123
64
Apesar de intenções prévias e intenções em ato serem auto-referenciais as
primeiras representam a ação completa assim como as suas condições de satisfação, ao
passo que as intenções em ato apresentam (e não representam) o movimento físico
assim como as suas condições de satisfação. Searle acrescenta ainda que nas intenções
prévias o “objeto Intencional” é a ação completa enquanto que no segundo o “objeto
Intencional” é o movimento. Deste modo, o que se está a pretender dizer é que “a
intenção prévia representa e causa a acção inteira, mas a intenção em acto apresenta e
causa apenas o movimento corporal.”68
Dissemos que uma ação será considerada intencional sempre que reunir dois
componentes: um componente Intencional e um evento que é o seu objeto Intencional.
Contudo, existem ações que designamos como sendo ações não intencionais. Vimos,
anteriormente em Anscombe, que uma ação seria considerada como sendo uma ação
não intencional sempre que o agente não fosse capaz de realizar a ação que pretendia ou
sempre que ele não conseguisse justificar o porquê de ter feito o que fez. Parece
bastante óbvio, que nessa perspectiva o fundamental não era tanto a ação em si, mas
antes a descrição da mesma. No entanto, para Searle encontramos exatamente o oposto,
no sentido em que para este autor o que é fundamental são os factos, isto é, a ação em si,
e não as descrições. Vejamos o exemplo do cão que corre pelo jardim perseguindo uma
bola. Nesta caso, o cão está a realizar uma ação intencional (ao perseguir a bola) e uma
ação não intencional (à medida que corre pelo jardim vai estragando algumas flores).
Deste modo,
“O sentido em que um e o mesmo evento ou sequência de eventos pode ser ao
mesmo tempo uma acção intencional e uma acção não intencional não tem qualquer
conexão intrínseca com uma representação linguística, mas, antes, com uma
apresentação Intencional. Alguns aspectos do evento podem ser condições de satisfação
do conteúdo Intencional, outros podem não o ser; e sob o primeiro conjunto de aspectos,
a acção é intencional, sob o segundo, não o é; embora não seja necessário haver algo de
linguístico na maneira como o conteúdo Intencional apresenta as suas condições de
satisfação.”69
68 Searle, 1999, pp.130-13169 Searle, 1999, p.138
65
Outro aspeto importante acerca do pensamento de Searle acerca das ações e
intenções é que para além de afirmar que o importante é a ação em si mesma e não as
descrições acerca dela, também afirma que do facto de alguém saber que ao realizar a
sua ação existirão consequências não se segue que ao realizar a ação o agente pretendia
que estas ocorressem. Pensar isso, segundo Searle, é um erro porque “Pode-se saber que
algo ocorrerá como resultado da própria acção embora a sua ocorrência não seja parte
das condições de satisfação da intenção.”70. Por exemplo, quando temos de extrair um
dente do siso o dentista sabe que a ação de extrair o dente, no final, poderá ter como
consequência a dor. Contudo, não é, de todo, sua intenção causar dor ao paciente. Se no
final, o paciente não tiver dor, o dentista não irá pensar que a ação de extrair o dente foi
uma ação falhada, mas antes que estava enganado. Ou seja, o dentista não falhou na sua
ação, apenas estava enganado acerca da sua crença de que a seguir à extração o paciente
iria sentir dor. Então, as condições de satisfação da sua intenção (extrair o dente) foram
satisfeitas, mas as condições de satisfação da sua crença (a seguir à extração do dente, o
paciente sentirá dor) não foram.
A partir daqui será feita a ligação entre intenção e responsabilidade por ações.
Quando pensamos nas pessoas como sendo capazes de realizar ações intencionais e não
intencionais pensamos automaticamente que essas mesmas pessoas são responsáveis por
aquilo que fazem. No entanto, por vezes, atribuímos responsabilidade tanto às várias
coisas que as pessoas fazem, sem que tenham tencionado faze-las como às coisas que
elas tencionaram fazer. Um exemplo para o primeiro tipo poderá ser o caso em que um
condutor atropela acidentalmente um transeunte e um exemplo para o segundo caso
poderá ser a pessoa que é obrigada a passar um cheque de 10.000 euros porque tem uma
arma encostada à cabeça. No primeiro caso, o condutor não teve a intenção de atropelar
o transeunte e, mesmo assim é considerado responsável pela sua ação, mas no segundo
caso o agente teve a intenção de passar o cheque de 10.000 euros e mesmo assim não é
considerado responsável, uma vez que foi condicionado a agir de determinada maneira.
Outra coisa que dissemos no primeiro capítulo desta segunda parte é que quando
falamos de intenções falamos de desejos e de crenças, porém, segundo Searle, não
podemos reduzir intenções prévias a desejos e crenças devido ao carácter auto-
referencial do qual falamos anteriormente. Todavia, mesmo que tal redução não faça
sentido tal não quer dizer que quando tenho a intenção prévia de “Fazer A” não tenha a
70 Searle, 1999, p.140
66
crença de que, de facto, é possível fazer A. Assim como também não significa que eu
não tenha o desejo de fazer A. Assim, tal como Aristóteles afirmou que não faz sentido
deliberar acerca de coisas que não dependem de nós, isto é, não faz sentido pensar
“quero que chova” porque nunca serei capaz de fazer com que chova. Chover ou não
chover não é algo que depende de mim. Também Searle afirma algo parecido quando
diz que não faz sentido tencionar intenções que não me são possíveis pôr em ação. Nada
me impede de desejar estar em dois sítios ao mesmo tempo, contudo sei que tal não me
é possível. Por isso, não faz sentido dizer que “quero estar aqui e ali ao mesmo tempo”
porque tal não é uma ação que eu consiga levar a cabo. Assim, tal como não posso
tencionar que chova também não posso tencionar estar em dois sítios ao mesmo tempo,
uma vez que “dada a auto-referencialidade das intenções só posso pretender aquilo que
a minha intenção puder causar”.71
Posto tudo isto, resta-me apenas especificar com maior pormenor por que razão
existe uma relação mais estreita entre ações e intenções do que entre crenças e estados
de coisas. Quando pensamos na ação de erguer o braço sabemos que esta ação reúne
duas componentes sendo que a primeira é a intenção em ato (o que estou a fazer agora)
e o movimento de erguer o braço. Se a primeira componente não estivesse presente não
haveria como existir ação e se não existisse a segunda a minha ação de erguer o braço
não teria sucesso. Por essa razão dizemos que não poderá haver ações sem que haja
intenções, visto que toda as ações mesmo que não tenham uma intenção prévia têem
uma intenção em ato. Assim, à questão acerca do que falamos quando falamos de ação
responderemos que falamos de ação sempre que existir um evento onde ocorra uma
intenção em ato. Se esta – a intenção em ato – causar as suas condições de satisfação
diremos que foi uma ação intencional que viu satisfeitas as suas condições de satisfação;
caso não reúna diremos que foi mal sucedida. Por outro lado, quando falamos de uma
ação não intencional falamos de uma ação intencional que foi ou não bem sucedida, mas
que contém aspetos que não foram pretendidos como condições de satisfação da
intenção em ato. Claro que podemos dizer que fazemos muitas coisas de forma
intencional diariamente como tossir, espirrar, piscar os olhos, porém para este autor,
coisas como estas não são consideradas ações, uma vez que não têm intenções em ato.
Posto isto, concluiremos que para que exista ação são necessárias três coisas: a
intenção prévia, a intenção em ato e o movimento, uma vez que “A intenção prévia
71 Searle, 1999, p.142
67
causa o movimento através do causar a intenção em acto, a qual causa e apresenta o
movimento como sua condição de satisfação.”72
Por outras palavras, o que se pretendeu concluir ao longo deste capítulo é que
não nos é permitido falar de ações sem falarmos de intenções, uma vez que existe uma
conexão entre ações e intenções. Essa conexão dá-se no sentido em que existem dois
tipos de intenções: as intenções prévias (quando pensamos previamente na ação antes de
a levarmos a cabo) e as intenções em ato (quando simplesmente agimos). As primeiras
representam a ação completa enquanto que as últimas apresentam unicamente o
movimento. Por último, concluiu-se que aquilo que dá conteúdo Intencional às nossas
ações é a experiência de agir. Deste modo, uma ação terá um conteúdo Intencional
sempre que essa experiência estiver presente na sua ação e será não Intencional sempre
que não houver experiência de agir.
72 Searle, 1999, p.146
68
Conclusão
Ao longo de todo este trabalho abordou-se dois importantes temas da Filosofia
da Mente: a consciência e a intencionalidade. Ambos são temas que interessam a várias
disciplinas tanto das áreas da Filosofia como das ciências humanas (como é o caso da
psicologia e do direito, a segunda mais concretamente ligada à intencionalidade, na
medida em que esta se relaciona com a responsabilidade) como das chamadas ciências
duras. Acerca da consciência, apesar de serem várias as disciplinas interessadas em
encontrar uma resposta completa e satisfatória, nos dias de hoje, ainda não nos é
possível apresentar uma resposta livre de lacunas e de mal entendidos sem que se dê
inicio a acesos debates. Porém, do facto de ainda não existir uma resposta pacificadora
acerca desta problemática, tal não significa que não possamos apresentar uma possível
resposta. A resposta que se tentou apresentar ao longo de todo este trabalho é aquela
resposta que me parece ser a mais completa e que mais sentido faz, ou seja, é aquela
resposta com a qual eu mais me identifico.
A tese que procurei defender e espero que tenha ficado suficientemente claro é
que não podemos tentar apresentar uma resposta acerca do que se fala quando se fala de
consciência reduzindo tudo a processos físicos como defende a tese materialista
apresentada neste trabalho através de Patricia Churchland e de Daniel Dennett. O
materialismo não me parece ser aquela teoria que traga consigo a resposta mais
completa acerca da problemática da consciência, na medida em que ao reduzir tudo ao
físico algo permanece de fora. Esse algo é a experiência subjetiva do sujeito que, como
vimos, diz respeito ao modo como o sujeito sente as coisas e as perceciona. Assim,
sempre que dizemos coisas como “a relva é verde” ou “este gelado é delicioso” não nos
encontramos apenas a reportar eventos físicos, mas também qualidades subjetivas das
nossas experiências mentais conscientes. Com isto, pretendeu-se dizer que por base
desta experiência subjetiva estão processos físicos, mas também se pretendeu deixar
claro que nem os estados mentais nem os qualia têm qualquer tipo de influência nos
processos físicos.
Para uma defesa de uma resposta deste tipo foi fundamental recorrer-se à divisão
entre problemas fáceis e difíceis da consciência explorados por David Chalmers.
Certamente que não podemos pôr em causa muitos dos factos óbvios da Física como é o
69
caso da lei da gravidade ou então de tudo aquilo que foi sendo dito por parte das
neurociências acerca do modo como o nosso cérebro perceciona os objetos. Embora não
possamos duvidar de tudo isto, também não me parece plausível negar que sou
possuidora de qualia, de uma experiência subjetiva que é, precisamente, uma
experiência de primeira pessoa à qual eu tenho um acesso direto e privilegiado.
Contudo, autores como Patricia Churchland e Daniel Dennett surgem com um
pensamento acerca da consciência assente fundamentalmente na ideia de que a
consciência pode ser explicada única e exclusivamente através da explicação dos
processos físicos ocorrentes no cérebro e na aniquilação dos qualia. No caso de Daniel
Dennett, essa aniquilação surge como sendo a peça-chave de toda a sua teoria acerca da
consciência. Pois, para Dennett, insistir numa defesa dos qualia, isto é, de uma
experiência fenomenológica é estar a querer negar todos os avanços científicos
conduzidos pela Ciência.
Como vimos, Dennett, através do modelo de Esboços Múltiplos pretendeu
relacionar a consciência com a memória afirmando que nem sempre temos consciência
das coisas no momento extato em que estas ocorrem e que prova disso, segundo o autor,
são as narrativas. Por vezes, pensamos que estamos a relatar um acontecimento tal e
qual ele ocorreu, quando tal poderá não corresponder à realidade. Assim, vimos que
Dennett aborda a questão da consciência através de um ponto de vista epistemológico e
não ontológico nem de primeira pessoa e que ao aniquilar os qualia está a substitui-los
por crenças. Essa substituição ocorre, na medida em que os relatos levados a cabo tendo
em conta a nossa memória são traduzidos por crenças que consequentemente serão tidas
como verdadeiras ou falsas. Porém, como pretendi dizer, apresentar uma resposta deste
tipo é apenas aceitar a parte objetiva da consciência e ignorar, por outro lado, aquilo que
corresponde ao verdadeiro problema da consciência. São fenómenos como o sofrimento
causado por uma dor intensa, segundo a minha opinião, que constituem o verdadeiro
problema da consciência. Assim, o que se pretendeu afirmar a partir de Chalmers foi um
dualismo naturalista, no sentido em que a consciência é encarada como sendo um
fenómeno natural, uma vez que, por um lado se relaciona e depende dos processos
cognitivos ocorrentes no cérebro e por outro, trata-se de uma experiência subjetiva,
visto que depende de algo como é ser alguma coisa. Outro autor que se revelou
importante para a apresentação de uma resposta ainda mais completa acerca da
consciência foi John R. Searle, na medida em que para este, a consciência é uma
70
ontologia de primeira pessoa, visto que estados mentais como dores e desejos são
sempre estados de alguém e só esse alguém tem uma noção clara e precisa dos estados
mentais que sente em determinado momento. Por outro lado, os processos físicos
ocorrentes no cérebro são de terceira pessoa. Desta forma, a partir das sete teses contra
o materialismo expostas por Searle e dos três argumentos defendidos por Chalmers
argumentou-se a favor da falsidade do materialismo ao mesmo tempo que se defendeu
um certo tipo de dualismo – o Dualismo Naturalista. Este surge como sendo uma
combinação entre o dualismo de propriedades e o funcionalismo, no sentido em que a
experiência consciente implica a existência de propriedades fenomenais que têm a sua
origem e são influenciadas pelas propriedades físicas, contudo as primeiras não têm
qualquer influencia nas últimas. Assim, o que se pretendeu afirmar é que aceitar uma
tese puramente física seria deixar uma parte da questão da consciência de fora – a parte
subjetiva –, mas aceitar uma tese onde se teria unicamente em conta a experiência
subjetiva do sujeito estaria igualmente errada e incompleta. Desta forma, o que se
concluiu acerca da questão da consciência é que a forma mais completa de pensar Este
problema – o da consciência – é pensar e aceitar que a consciência é constituída tanto
por propriedades fenomenais como por propriedades físicas.
Normalmente quando pensamos em seres humanos pensamo-los como sendo em
primeiro lugar pessoas e em segundo lugar como sendo possuidores de consciência. Foi
precisamente neste sentido que abordei a questão de pessoalidade e de identidade
pessoal, uma vez que tinha em mente dois objetivos: o primeiro consistia em perceber o
que faz de nós pessoas e o segundo consistiu na procura da resposta acerca se seríamos
ou não os únicos seres possuidores de consciência. Acerca disto concluiu-se que aquilo
que faz de nós pessoas nada tem que ver com a espécie à qual pertencemos, mas antes
às capacidades que possuímos. Foram referidas duas: a autoconsciência que
corresponde às experiências conscientes e ao sentido do eu e a racionalidade que
engloba a racionalidade teórica e a racionalidade prática. Quanto ao segundo objetivo
chegou-se à conclusão que tanto nós como os restantes animais temos algo em comum,
esse algo é a senciência, ou seja, tanto nós como os outros animais somos capazes de ter
experiências conscientes de dor e de prazer, por exemplo. Contudo, quanto mais
afastada da nossa espécie um certo organismo estiver, mais dificilmente conseguimos
atribuir algum grau de consciência. Desta forma, a principal diferença apontada de
forma a diferenciar as pessoas dos restantes animais foi a racionalidade – tanto teórica
71
como prática. Evoluímos num sentido em que mais nenhuma espécie conseguiu: somos
seres racionais e como tal somos capazes de pensar, raciocinar e de apresentar razões de
forma a justiçar o porquê de termos feito isto e não aquilo. Somos seres capazes de agir
em função das nossas intenções que como vimos, a partir de Anscombe dependem de
pelo menos de um desejo e de uma crença. Também vimos que não poderíamos falar de
ações sem a existência destas três características (intenções, desejos e crenças) assim
como também não poderíamos se faltasse o fundamental: a mente.
Por último, com este trabalho também pretendi deixar claro que quando estamos
conscientes não estamos simplesmente conscientes, visto que sempre que estamos
conscientes estamos conscientes de alguma coisa. Este “de” de “consciente de”, por
vezes é intencional e por vezes não é. No sentido de deixar clara esta distinção decidiu-
se apresentar a teoria da Intencionalidade a partir de Searle de forma a perceber quando
é que estados mentais são Intencionais e quando não o são. Em primeiro lugar verificou-
se que para cada estado mental existe um ato da fala que lhe é correspondente e ambos
possuem Intencionalidade sempre que apresentem uma direcionalidade ou sejam acerca-
de alguma coisa. No entanto, a Intencionalidade referente a cada um deles corresponde
a um tipo diferente: os estados mentais possuem uma Intencionalidade intrínseca ao
passo que os atos da fala possuem uma Intencionalidade derivada. Para além da
direcionalidade existem mais duas características que fazem parte da natureza dos
estados Intencionais: Intencionalidade não é o mesmo que consciência e intenção é um
tipo de Intencionalidade (daí a diferenciação entre o “i” minúsculo e o “I” maiúsculo.
Por fim, procurou-se perceber como é que intenções e ações se relacionavam tendo em
conta a teoria da Intencionalidade.
Apresentar a teoria da Intencionalidade de Searle foi fundamental para a segunda
parte de todo este trabalho, visto que permitiu o fornecimento de uma explicação mais
clara acerca da relação entre ações e intenções e assim melhor fundamentar as questões
da pessoalidade entretanto introduzidas. Segundo Searle não há ações sem intenções:
entre elas existe uma conexão. As ações que são por nós levadas a cabo podem conter
intenções prévias – sempre que pensamos na ação que pretendemos levar a cabo antes
de agir – e intenções em ato – quando não pensamos previamente e simplesmente
agimos. Por outras palavras, sempre que agimos existe uma intenção prévia e intenções
em ato. Tal, foi observado a partir do exemplo do cão que corre para apanhar a bola e
entretanto estraga as flores do jardim. A intenção prévia diz respeito ao apanhar a bola e
72
a intenção em ato, por sua vez, é referente ao ato de estragar as flores. Ao passo que a
intenção prévia representa a ação completa, a intenção em ato apenas apresenta o
movimento. Entre estas duas intenções existe uma conexão, na medida em que são auto-
referenciais. Essa conexão foi explicada da seguinte forma: a relação existente entre
estas duas ações é auto-referencial, uma vez que é a intenção que causa a ação e esta por
sua vez deve ser a execução dessa mesma intenção.
No que respeita a ações intencionais e não intencionais concluiu-se que uma
ação intencional tem inerentes a si dois componentes sendo que um deles é respeitante à
experiência e o segundo ao movimento. Uma vez que a experiência tem um conteúdo
Intencional, também irá ter condições de satisfação sendo que estas apenas serão
consideradas satisfeitas se, de facto, houver experiência. Por outro lado, quando falamos
de uma ação não intencional falamos de uma ação intencional que contém aspetos que
não foram pretendidos como condições de satisfação da intenção em ato. Dizemos que
ocorreu uma intenção não intencional quando o agente A tinha como intenção matar o
seu tio e acidentalmente (numa ação em ato) atropela alguém que, por acaso, é o seu tio
e este morre.
Em contrapartida, sem intenções e acções não teríamos no mundo os fenómenos
da pessoalidade e de identidade pessoal que, conforme foi defendido neste trabalho,
constituem as mentes propriamente humanas.
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