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FACULDADE DE LETRAS UNIVERSIDADE DO PORTO Sara Alexandra Santiago Silva 2º Ciclo de Estudos em Filosofia – Filosofia Contemporânea Consciência e Intencionalidade: perspetiva Dualista Naturalista e relação entre intenções e ações 2013 Orientador: Professora Doutora Sofia Miguens Classificação: quinze (15) valores Ciclo de estudos: Dissertação/relatório/Projeto/IPP:

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FACULDADE DE LETRASUNIVERSIDADE DO PORTO

Sara Alexandra Santiago Silva

2º Ciclo de Estudos em Filosofia – Filosofia Contemporânea

Consciência e Intencionalidade:

perspetiva Dualista Naturalista e relação entre intenções e ações

2013

Orientador: Professora Doutora Sofia Miguens

Classificação: quinze (15) valores

Ciclo de estudos:

Dissertação/relatório/Projeto/IPP:

Versão definitiva

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Resumo: Ao apresentar uma reflexão acerca da consciência e da intencionalidade

pretende-se perceber acerca do que falamos quando falamos de consciência e de que

forma esta se relaciona com a intencionalidade. Sabendo que o problema da consciência

poderá ser abordado através de dois pontos de vistas – o objetivo e o subjetivo –

pretende-se apresentar uma refutação à tese materialista culminando, por fim, com a

defesa de uma tese Dualista Naturalista a partir de David Chalmers.

Desenvolvendo conceitos como autoconsciência e racionalidade ficam não só vincadas

as diferenças existentes entre agentes cognitivos humanos como pessoas e restantes

organismos, como também fica aberto o caminho para apresentação do segundo tema

deste trabalho – a intencionalidade como aboutness (direcionalidade) e de que forma

ações e intenções se relacionam tendo por base John R. Searle.

Palavras-chave: Ações, Autoconsciência, Consciência, Dualismo Naturalista,

Identidade Pessoal, Intencionalidade, Intenções, Materialismo, Pessoalidade,

Racionalidade

ii

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Agradecimentos

Em primeiro lugar agradeço à Professora Doutora Sofia Miguens, a Orientadora

de todo este trabalho, pela simpatia e tempo disponibilizado para a leitura e realização

de comentários para as várias versões de texto que foram sendo apresentadas. Agradeço,

principalmente pelo exemplo que para mim sempre foi desde o início de toda esta

jornada.

Agradeço também aos vários professores que me acompanharam ao longo dos

três anos de licenciatura e do primeiro ano de mestrado pois sem eles não me teria sido

possível obter o conhecimento que hoje possuo das várias disciplinas da Filosofia.

Aos meus pais que tudo fizeram para que tudo isto fosse possível.

Aos meus amigos (Carla, Catarina, Vítor Martins e Vítor Sousa) por todas as

discussões acerca do meu tema de tese que permitiram, por vezes, ver as coisas com

maior clareza.

À minha família emprestada por todo o apoio e por todas as vezes que me

perguntaram como estava a correr todo este trabalho.

Por último e não menos importante, ao Diogo por todo o amor, dedicação e

apoio que sempre me deu. Agradeço-lhe, também por todas as vezes que me deu o

incentivo necessário de forma a dar continuidade ao trabalho e principalmente, por toda

a calma que me transmitiu ao longo de todo este processo com maior destaque para os

momentos de maior stress em que nada parecia fazer sentido.

iii

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ÍNDICE

Introdução 1

Apresentação geral do trabalho...............................................................................................1

Primeira Parte: Consciência e Senciência 8

Capítulo 1 – Materialismo e o esquecimento da experiência subjetiva do sujeito...................8

I. Consciência – o problema acerca do que se fala quando se fala de consciência...............8

II. O Materialismo.................................................................................................................9

III. Dos problemas fáceis aos problemas difíceis da consciência........................................20

Capítulo 2 – Do Materialismo ao Dualismo Naturalista..........................................................31

I. Materialismo: a resposta fácil ao problema difícil. Argumentos contra o materialismo. 31

II. Da falsidade do Materialismo à defesa de um Dualismo Naturalista.............................40

Segunda Parte: Intencionalidade, Intenções e Ações 45

Capitulo 1 – Pessoalidade e Identidade Pessoal.....................................................................45

I. O que é ser-se pessoa? Apresentação de duas características fundamentais.................45

II. Racionalidade Prática: pessoas como fazedoras de ações..............................................50

Capítulo 2 – Intencionalidade.................................................................................................54

I. Estados Mentais e atos da fala: uma teoria da Intencionalidade segundo John R. Searle...........................................................................................................................................54

Capítulo 3 – Intenções e Ações...............................................................................................61

I. Como é que intenções e ações se relacionam? Uma possível resposta a partir de John R. Searle.................................................................................................................................61

Conclusão 69

Bibliografia 74

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Introdução

Apresentação geral do trabalho.

Ao propor uma reflexão acerca da consciência e da intencionalidade

imediatamente surgem duas questões: do que falamos quando falamos de consciência e

de que forma esta se relaciona com a intencionalidade?

Muito se fala acerca do que poderá ser a consciência, porém poucas certezas

existem acerca do que realmente ela é e de que forma ela acontece. É certo que a cada

dia que passa, a ciência dá-nos a conhecer os mais variados progressos: as técnicas

utilizadas em laboratório são cada vez mais sofisticadas e cada vez mais um maior

número de descobertas é-nos dadas a conhecer. De um lado temos os neurofisiologistas,

neurocientistas e todas as restantes áreas cientificas relacionadas com o estudo do

cérebro e, do outro lado, temos os psicólogos e a nós, os filósofos. Neste sentido, o

problema da consciência é algo que interessa não só a uma determinada área ou

disciplina, mas a várias. Em Filosofia, a temática da consciência percorre diversas áreas

desde a Filosofia da Mente e Filosofia do Conhecimento até à Ética e à Filosofia da

Ação. Devido à multiplicidade de disciplinas que estudam e que se preocupam com a

consciência, encontramos vários e distintos métodos de investigação. Assim:

“(…) não é de estranhar que os métodos de investigação acerca da consciência

se apresentem em formas bastante diversas indo da experimentação comportamental ou

cognitiva levada a cabo pela psicologia até ao “mapeamento” do cérebro pelas

neurociências, passando pelos métodos não empíricos de disciplinas de carácter mais

analítico ou especulativo, como a filosofia e a psicanálise, ou mesmo de áreas como a

literatura e outras artes.”1

Todavia, nem sempre a consciência fez parte do âmbito de estudo das ciências

do cérebro. Durante longos anos, a consciência foi um problema que este tipo de

investigadores tentaram evitar, uma vez que a ciência, devido ao seu carácter objetivo

1 Augusto, 2009, p.1

1

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do qual não pretendia (nem pretende) abdicar, não podia incluir no seu âmbito de estudo

algo tão subjetivo como a problemática da consciência. Tal verificou-se não só nas

chamadas ciências exatas, mas também no movimento behaviorista da psicologia onde

os processos internos foram ignorados passando-se, por sua vez, a dar uma elevada

importância no que dizia respeito ao comportamento externo do agente. Infelizmente,

apesar de, atualmente, muitos autores afirmarem que a consciência pode ser abordada

como sendo um problema científico legítimo como é o caso de F. Crick e C. Koch (dois

autores importantes na área das neurociências) e de Patricia Churchland e Daniel

Dennett (da área da filosofia), vai ser defendido que continuamos a assistir ao mesmo

erro que foi levado a cabo, anteriormente, pelo behaviorismo. O que acontece é que as

ciências cognitivas persistem em continuar a estudar a consciência a partir de

fenómenos objetivamente observáveis – o que é encarado, pela filosofia, como sendo

um problema.

Por outro lado, não nos podemos esquecer que o problema da consciência se

relaciona com o problema mente-corpo ou mente-cérebro. A discussão acerca do

problema mente-corpo poderá ser resumida da seguinte forma: o que quer que se passe

na consciência depende do que se passa no corpo que, por sua vez, depende do que se

passa no cérebro. O problema reside na incerteza acerca da questão se a mente

consciente é o cérebro ou se é outra coisa qualquer. O que se passa é que nos

encontramos conscientes acerca daquilo que pensamos, sentimos, desejamos e tememos,

por exemplo, mas não temos consciência do nosso cérebro nem do que se passa no seu

interior.

Em Filosofia da Mente a discussão acerca da consciência e do problema mente-

corpo ganhou especial destaque em duas importantes orientações filosóficas sendo que

uma delas é o dualismo e a outra é o monismo. Na primeira encontramos o dualismo de

substâncias – defende a existência de duas substâncias distintas: o físico e o mental - e o

dualismo de propriedades – a consciência existe não como sendo uma substância

separada, mas antes como sendo uma propriedade do cérebro, uma vez que este é

considerado pelos dualistas de propriedades como sendo o único órgão que tem inerente

a si um conjunto de propriedades não-fisicas. Por outro lado, o monismo divide-se entre

o materialismo – corrente filosófica que afirma que tudo o que existe é físico ou

material –, o idealismo – assente na ideia de que tudo o que existe é mental – e, por

2

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ultimo, a teoria do aspeto dual ou monismo neutro – onde é defendida a ideia de que o

universo não é nem essencialmente físico nem mental.

Devido ao facto de nos últimos anos áreas cientificas como a física e a biologia e

até mesmo as ciências da computação terem conseguido consolidar-se e terem

apresentado uma visão do mundo essencialmente física e objetiva um dos vários tipos

de monismo ganhou elevado destaque no ceio da comunidade filosófica. Falo do

materialismo. O destaque alcançado por parte desta corrente deveu-se

fundamentalmente ao facto de ser vista como sendo aquela teoria que mais se assemelha

à visão científica do mundo. Contudo, as respostas fornecidas pelo materialismo não se

apresentam pacificadoras e assim se explicam os acesos debates entre dualistas e

monistas.

O problema mente-corpo sempre foi um problema presente no pensamento de

vários filósofos ao longo do tempo, mas foi René Descartes (1596-1650) o principal

fundador do pensamento moderno inerente a este problema. Inicia as Meditações

Metafísicas colocando tudo aquilo que anteriormente tinha como certo desde as suas

memórias até à existência do mundo real e exterior em dúvida pois poderia dar-se o

caso de tudo isso ser obra de um génio maligno que se diverte enquanto o engana.

Porém, existe algo do qual ele não pode duvidar. Não pode duvidar do facto de que ele é

um sujeito que pensa e esta ideia surge-lhe de forma tão clara e distinta que ele a

concebe como sendo necessariamente verdadeira. Continua o seu pensamento

afirmando que uma coisa que pensa é “uma coisa que duvida, que concebe, que afirma,

que nega, que quer, que não quer, que imagina e que sente”2 e mesmo que não existam

certezas acerca se tudo aquilo que pensa corresponde a algo de exterior a si, não pode

duvidar de que todos esses estados existem “em” si. Assim sendo, surge a certeza de

que essa coisa que pensa não pode corresponder a algo corpóreo visto que o mental

passa a ser entendido como sendo uma substância ontologicamente distinta do físico.

Desta forma o ser humano seria, segundo Descartes, constituído por duas naturezas

distintas sendo que uma delas seria a res cogitans (que representaria a mente ou a alma)

e a outra a res extensa (que, por sua vez, representaria o corpo). Espírito e corpo

encontrar-se-iam inteiramente relacionados um com o outro pois só assim, segundo este

autor, se explicaria o porquê de sentirmos dor quando o nosso corpo é ferido ou de

existirem em nós sensações como fome e sede. Tais sensações só seriam possíveis de

2 Descartes, 2003, p.28

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serem experienciadas por cada um de nós devido à unidade existente entre espírito e

corpo. Quando Descartes procedeu à defesa da existência de duas substâncias

identificou como elo de ligação entre a mente e o corpo a glândula pineal. Esta glâdula

corresponderia ao local do cérebro onde se daria todo aquele tipo de experiências

mentais inerentes ao sujeito que pensa e a sua existência seria a justificação de como

uma mente corresponde a um corpo. Todavia, apesar de a distinção entre mental e físico

surgir de forma intuitiva com a consolidação das várias ciências como a Física e a

Biologia e principalmente com a aceitação e desenvolvimento do Darwinismo o

pensamento cartesiano passou a ser alvo de fortes criticas. Com o avanço destas ciências

assistiu-se a uma nova forma de pensar a natureza da consciência. Tudo poderia ser

descrito através de propriedades físicas desde uma dor aguda no fundo das costas até a

uma simples tontura e foi esta nova conceção do mundo por parte da Ciência que

conduziu muitos filósofos à aceitação da posição materialista como foi o caso de Daniel

Dennett e de Patricia Churchland. Do lado oposto encontramos autores como David

Chalmers e Thomas Nagel que apoiam uma tese dual e Searle que apresenta uma

possível solução para o problema mente-corpo fundamentando-se naquilo a que ele

chama de naturalismo biológico. São fundamentalmente estes os autores com que se

trabalhará ao longo da presente dissertação.

Por outro lado não nos podemos esquecer que a consciência se encontra

inteiramente relacionada com a intencionalidade. Essa relação reside no facto de que

sempre que estamos conscientes estamos conscientes de alguma coisa. A questão da

intencionalidade assim como a questão da consciência também já foi tratada por

diversos autores ao longo do tempo. Franz Brentano utilizou-a para definir o estatuto de

consciência, mas foi com Edmund Husserl que a questão da intencionalidade ganhou

maior destaque. Husserl considerou a consciência como sendo sempre intencional na

medida em que todos os fenómenos mentais, isto é, crenças, desejos, medos são sempre

acerca de alguma coisa. Outros autores como Searle defendem uma teoria da

Intencionalidade dividida entre intencionalidade intrínseca e intencionalidade derivada.

Sendo que a primeira diz respeito aos estados mentais como crenças e desejos e a

segunda aos atos da fala como sendo marcas num papel e sons que saem pela boca.

Tendo como inspiração Husserl, Searle defende que estados mentais e atos da fala são

intencionais sempre que forem acerca-de-aguma-coisa, isto é, sempre que existir uma

direcionalidade. Assim como também afirma que não existem ações sem intenções.

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Feita a contextualização da consciência e da intencionalidade passemos à

apresentação da estrutura propriamente dita do trabalho a que me proponho levar a

cabo.

Em primeiro lugar o trabalho encontrar-se dividido em duas partes sendo que a

primeira refere-se à problemática da consciência e a segunda parte à intencionalidade.

O fenómeno ao qual damos o nome de “consciência” é dos fenómenos dos quais

estamos mais conscientes e ao mesmo tempo aquele que mais incerteza nos transmite.

Afinal o que é isso de estar consciente acerca do que quer que seja? Do que se fala

quando se fala de consciência e como é que esta se processa? Onde se encontra

instalada? Saber o que a consciência é, é algo que nos interessa porque uma das nossas

crenças consiste, precisamente, no facto de que o nosso eu – aquilo que faz de nós o que

efetivamente somos – se constrói a partir da consciência. Por outro lado, interessa-nos

saber o que a consciência é porque, de uma certa forma, é ela que nos permite atribuir

algum tipo de responsabilidade legal a um ato cometido por determinado agente – daí a

sua importância em disciplinas como a Ética, por exemplo.

São vários os objetivos aos quais me proponho levar a cabo ao longo da primeira

parte, entre os quais destacam-se dois: em primeiro lugar pretendo criticar uma das

tradições dominantes em filosofia da mente – o materialismo – tendo como pano de

fundo dois autores recorrentemente referidos e citados na vasta bibliografia da Filosofia

da Mente. Falo do materialismo reducionionista de Patricia Churchland e do

materialismo eliminativo de Daniel Dennett. A partir do artigo de Churchland Poderá a

Neurobiologia Ensinar-nos Alguma Coisa Acerca da Consciência e da Teoria dos

Esboços Múltiplos de Dennett pretende-se perceber por que razão uma teoria como o

materialismo não apresenta uma resposta satisfatória no que respeita ao problema da

consciência. Em segundo lugar, pretende-se afirmar que quando o assunto é a

consciência falamos i) de uma experiência subjetiva que ii) não pode ser analisada como

sendo apenas um problema epistemológico, mas também ontológico, uma vez que

quando falamos de consciência falamos de uma ontologia de primeira pessoa e iii) que

depende de um ponto de vista. Autores como Chalmers, Nagel e Searle serão

fundamentais na abordagem e desenvolvimento das alíneas i), ii) e iii) respetivamente.

Conceitos como experiência, experiência subjetiva, vida interna do sujeito, qualia e a

expressão “como é ser” surgem como fundamentais para a abordagem da consciência

segundo o ponto de vista dos três autores acima citados.

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Pretende-se defender que são fenómenos como o sofrimento causado por uma

dor intensa que constituem, na minha opinião, o verdadeiro mistério da mente e são

fenómenos deste tipo que fazem parte daquilo a que, na minha opinião, damos o nome

de consciência. Assim, o que se pretende afirmar é que o fenómeno da consciência não

pode ser analisado única e exclusivamente segundo a perpetiva materialista, mas que

também devemos ter em atenção a experiência subjetiva do sujeito porque se assim não

for o que iremos obter será um conhecimento pouco satisfatório ou até mesmo

insuficiente daquela que é a consciência. Desta forma, torna-se essencial ter-se em

atenção a divisão entre problemas fáceis e difíceis da consciência feita por David

Chalmers, sabendo que nos primeiros encontramos os problemas relacionados com os

mecanismos objetivos do cérebro e que os segundos se relacionam com o modo como o

sujeito sente as coisas e como as perceciona – trata-se da experiência subjetiva do

sujeito. Por último, a partir de Chalmers dá-se início à defesa de um Dualismo

Naturalista.

Outra questão que se relaciona com a consciência é intencionalidade. É

precisamente sobre ela que nos ocuparemos ao longo da segunda parte deste trabalho.

Assim sendo, o primeiro objetivo desta segunda parte consiste em tentar perceber se a

consciência é uma característica presente unicamente em seres humanos ou se também

está presente em outras espécies da vida animal. À partida poderíamos dizer que a

principal diferença é que a nossa espécie – Homo Sapiens – evoluiu num sentido em que

mais nenhuma outra evoluiu. Somos os únicos seres capazes de justificar as nossas

crenças, desejos, medos e frustrações assim como também somos os únicos seres

capazes de justificar as nossas ações. A resposta à questão acerca se seremos ou não os

únicos seres detentores de uma consciência encontra-se relacionada com o problema de

identidade pessoal e de pessoalidade. Visto que aquilo que nos faz pensar que somos

seres dotados de um grau de consciência diferente dos restantes organismos baseia-se no

facto de termos consciência não só de nós próprios ao longo do tempo, mas também de

sermos detentores de pensamento racional. O conceito de pessoa surge como sendo

aquele que marca a diferença entre nós e os restantes animais, na medida em que uma

pessoa é considerada pessoa tendo em conta as capacidades que possui e não a espécie à

qual pertence, a saber: autoconsciência e pensamento racional. Através daquela que é a

característica principal acerca do que faz de nós pessoas – a racionalidade – e, mais

precisamente, através da racionalidade prática será apresentada uma primeira definição

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acerca do que se fala quando se fala de ação, o que é racionalizar uma ação e o que

torna uma ação intencional. Para responder a estas três questões será abordada a teoria

instrumental de racionalidade e o pensamento de Anscombe acerca da intenção.

Em segundo lugar pretende-se compreender em que sentido é que consciência e

intencionalidade se relacionam. Tendo em vista que nunca estamos simplesmente

conscientes, isto é, sempre que nos encontramos conscientes encontramo-nos

conscientes de alguma pretende-se saber em que circunstâncias é que o “de” de

“consciente de” é intencional e quando não o é. Fazer-se-á, então, apelo à teoria

searliana dos atos da fala como via para explorar a natureza da intencionalidade.

Por último, retomaremos a Searle de forma a dar resposta acerca da questão

“como é que intenções e ações se relacionam?”. Deste modo, pretende-se afirmar com

base no pensamento deste autor que não podem existir ações sem intenções e que nem

todas as intenções são prévias, uma vez que algumas são intenções em ato, e assim

melhor fundamentar o carácter especial da consciência nos humanos defendido no

Capítulo 1 da Segunda Parte.

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Primeira Parte: Consciência e Senciência

Capítulo 1 – Materialismo e o esquecimento da experiência subjetiva do sujeito

I. Consciência – o problema acerca do que se fala quando se fala de consciência

A palavra consciência (consciousness) é usualmente utilizada sempre que

pretendemos chamar a atenção para as mais variadas coisas que acontecem connosco e/

ou que fazemos acontecer. Descriminar estímulos, monitorizar estados internos e

reportar qualquer tipo de informação são alguns casos que servem de exemplo.3

Efetivamente, cada um de nós tem a capacidade de estar acordado, de adormecer e de

sonhar, rir e de chorar entre outras tantas coisas sem que se saiba como tudo isto é

causado (possivelmente) no nosso sistema nervoso. Nesse sentido, é-nos possível

afirmar que o estado consciente, por um lado é aquele tipo de estado do qual estamos

mais conscientes e por outro, aquele que mais incerteza nos transmite. Incerteza não só

no sentido em que (ainda) não nos é possível saber com exatidão aquilo que a

consciência é e como esta se processa, mas também devido à sua fragilidade. Pensemos

nas doenças neurodegenerativas em que as células (neurónios mais concretamente)

responsáveis pelo correto funcionamento das nossas capacidades cognitivas se vão

destruindo progressiva e irreversivelmente. Eu aqui e agora, por exemplo, penso e

acredito que o meu nome é Sara que vivo em Vila Nova de Gaia e que 2+2 são quatro,

penso e acredito em várias e diferentes coisas, mas num futuro próximo ou distante

poderá acontecer que eu já não esteja mais ciente quer de quem sou quer das crenças

que antes tinha como certas. Deste modo, não é de estranhar que nos dias de hoje exista

um número considerável de disciplinas que se interessam por esta problemática. São

disciplinas oriundas tanto das ciências da saúde como da vida (neuropsicologia,

psiquiatria, neurociência e a neurobiologia, por exemplo), das ciências sociais e

humanas (como é o caso da psicologia) e, como não nos podíamos esquecer, também 3 Em “Consciousness and its Place in Nature” David J. Chalmers diz-nos “The word ‘consciousness’ is

used in many different ways. It is sometimes used for the ability to discriminate stimuli, or to report

information, or to monitor internal states, or to control behavior.” (Chalmers, 1996, p.2).

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das várias áreas ou disciplinas da filosofia (Filosofia da Mente e do Conhecimento, da

Ética e da Filosofia da Ação, por exemplo).

Antes de mais importa dizer que ao longo deste primeiro capitulo serão

abordadas duas correntes filosóficas sendo que a primeira será o materialismo

(reducionista de Churchland e eliminativo de Dennett) e a segunda o dualismo (tendo

como autores fundamentais Chalmers e Nagel). No final, através dos três argumentos de

Chalmers – o argumento explanatório (The Explanatory Argument), o argumento do

conhecimento (The Knowledge Argument) e o argumento da concebivilidade (The

Conceivability Argument), – e dos sete fundamentos contra o materialismo defendidos

por Searle pretende-se refutar a tese materialista assente na ideia de que a consciência

pode ser explicada unicamente através de processos físicos.

II. O Materialismo

Com o avanço da Física, da Biologia, das Ciências Cognitivas e da Computação

a visão da consciência foi-se modificando dando a entender que já não fazia sentido

defender qualquer tipo de dualismo e muito menos um dualismo das substâncias como

defendera outrora Descartes. Tudo poderia ser descrito por fenómenos físicos desde

uma dor aguda ao fundo das costas até a uma simples tontura e foi esta nova conceção

do mundo por parte da Ciência que conduziu muitos Filósofos a defenderem um certo

tipo de monismo – o materialismo. A pergunta que se coloca é a seguinte: será que tudo

pode ser resumido a fenómenos físicos ou caso se faça isso algo é deixado de fora? A

resposta que irei apresentar é que não podemos resumir tudo a fenómenos físicos porque

se o fizermos estaremos a anular a existência da consciência (como faz Churchland e

Dennett) o que, por sua vez, conduzirá à negação da existência da experiência subjetiva

do sujeito – referente ao modo como o sujeito sente as coisas e as perceciona – tal como

Chalmers e Nagel a concebem. Para autores como Chalmers e Nagel sempre que um

agente cognitivo diz frases como “a relva do meu jardim é verde”, “a cor da camisola

que tenho vestida é azul” ou “a moldura que se encontra pousada na secretária é

castanha” encontra-se a reportar não só eventos físicos, mas também qualidades

subjetivas das suas experiências mentais conscientes (comummente designadas de

qualia). Essas qualidades subjetivas diriam, então, respeito à forma como o sujeito sente

a cor verde da relva, o azul da camisola e o castanho da moldura, o que por sua vez se

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traduziriam em experiências mentais do tipo: agrado, desagrado ou indiferença, por

exemplo. Qualia são experiências altamente complexas e são entendidas pelos dois

autores acima citados como sendo entidades distintas de coisas físicas como “relva”,

“camisola” e “moldura”. Contudo, não podemos negar por completo que por base desta

experiência subjetiva estão processos físicos. Aliás, segundo Chalmers, embora os

estados mentais assim como os qualia tenham a sua origem em estados físicos, tal não

significa que os estados mentais e os qualia tenham qualquer tipo de influência nos

estados físicos. No entanto, como iremos ver ao longo deste primeiro capitulo a visão do

materialismo face aos qualia e à experiência subjetiva é bastante diferente da forma

como Chalmers e Nagel a pensam.

Uma adepta desta visão de como estudar a consciência sem os qualia e sem a

experiência subjetiva é Patricia Churchland. Apoiando-se na crença de que “as

capacidades da mente humana são, na verdade capacidades do cérebro humano”4 em

Poderá A Neurobiologia Ensinar-nos Alguma Coisa Acerca Da Consciência? defende a

possibilidade de as neurociências poderem explicar tudo aquilo que acontece a nível

psicológico através de processos físicos. Desta forma tudo aquilo que foi dito e

defendido por Descartes é deitado por terra, pois deixa de fazer sentido ficarmos

agarrados à ideia de uma alma cartesiana ou a outras coisas também elas difíceis de

explicar como é o caso dos qualia.

Ao longo do referido artigo, a autora vai respondendo a duas acusações que

usualmente são feitas a este tipo de investigação. A primeira diz respeito à ideia de que

é incoerente e de que é absurdo pensar que a perceção visual da cor vermelha ou a

perceção do sabor de um alimento possa ser inteiramente explicada e justificada em

termos físicos, isto é, através da atividade neuronal no cérebro. Esta posição, segundo

Churchland, apoia-se na premissa de que imaginar a hipótese de uma explicação

puramente física de algo tão complexo como a consciência não faz sentido e que é

impossível. Seguidamente, acusa que tal premissa não tem qualquer fundamento

precisamente porque muitas das coisas que hoje se encontram provadas cientificamente

foram em tempos consideradas como inimagináveis, incoerentes, absurdas, acusadas de

blasfémia e tendo como consequência a morte como forma de punição. Deste modo,

poderá, hoje, soar-nos estranho dizer que os fenómenos macroscópicos podem ser

reduzidos ao nível microscópico tal como já houve um tempo em que soou estranho

4 Churchland, 2005, p.1

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afirmar que a Terra era redonda e não quadrada e que era esta que girava à volta do sol e

não o contrário. Portanto, é um erro dizer que “é impossível” ou que “é estranho” que a

consciência possa ser explicada única e exclusivamente através da atividade neuronal

porque tal não significa rigorosamente nada.

A segunda objeção consiste em afirmar que o objetivo a que Churchland se

propõe não vai de encontro com o argumento acerca da realizabilidade múltipla. Este

argumento encontra-se relacionado com um outro argumento que é o da identidade entre

estados mentais e estados físicos. Este último trata-se de um argumento tipo-tipo na

medida em que identifica um determinado tipo de estados mentais com o mesmo tipo de

acontecimentos. Vejamos o caso específico da dor: no exemplo clássico, que é bastante

simplificador relativamente aos pormenores neurofisiológicos para o estado mental

“dor” existe um estado físico que é a ativação das fibras C. Assim podemos definir o

argumento de identidade da seguinte forma:

Para qualquer estado mental M existe um estado físico F de forma que uma

criatura só pode ter M se, e somente se tiver F.

O problema reside no facto de conseguirmos facilmente imaginar criaturas

diferentes da nossa espécie que partilham os mesmos estados mentais que nós sem que

tenham os mesmos estados físicos ou cerebrais. Desta forma poderemos imaginar

organismos a habitar num outro Planeta detentores do estado mental “dor” sem que este

se relacione com o estado físico referente à ativação das fibras C. Aliás, poderá até

ocorrer que esse organismo não tenha aquilo que usualmente identificamos como sendo

fibras C. É disto que falamos quando falamos da teoria da realização múltipla. Esta

teoria foi defendida em 1967 no artigo The Natural of Mental States de H. Putnam em

defesa do funcionalismo. No artigo Putman rejeita a teoria da identidade, uma vez que

defende a tese de que os estados mentais não são estados cerebrais. Desta forma

deixaria de fazer sentido identificar um estado mental com um único estado físico para

se passar a adotar a teoria da realização múltipla, ou seja, os estados mentais passariam

a ser considerados como sendo multiplamente realizáveis na medida em que poderiam

estar associados diversos estados físicos a um mesmo estado mental.

11

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Patricia Churchand afirma que a defesa do argumento da Realizabilidade

Múltipla é inconsistente com aquilo que pretende defender no seu artigo. Defender tal

teoria não faz sentido precisamente porque mesmo face aos organismos que

conhecemos como rãs e porcos apesar de encontrarmos algumas semelhanças também

encontramos algumas diferenças. Veja-se o caso do coração. Tanto as rãs como os

porcos e nós seres humanos possuímos um coração que bombeia sangue e que é o órgão

fundamental para a manutenção da nossa vida. Todavia este órgão apesar de existir nos

três exemplos mencionados possui algumas variações, pois mesmo que em ambos os

casos o coração funcione da mesma forma existem variações como é o caso do

tamanho. O que Churchland pretende afirmar é que apesar de ainda não existir um

conhecimento preciso acerca de como, neste caso preciso, o cérebro funciona é

altamente provável que um dia o conhecimento humano consiga alcançar esse tipo de

saber. Por essa razão, para a autora não há nada de misterioso na consciência pois esta

“mais não é que um determinado padrão de actividade neuronal”.5 No entanto, deixa

ainda a ressalva de que poderá dar-se o caso de estar errada, mas se tal ocorrer foi

porque a ciência conduziu o estudo da consciência numa outra direção. Por outras

palavras, o que Churchland pretende afirmar é que a consciência não está fora do

alcance explicativo da ciência e que está será capaz de fornecer todas as respostas que

se procuram para a problemática da consciência quer seja num futuro próximo ou

distante. Assim, Patricia Churchland conclui que a consciência é um problema que

interessa à ciência tal como Crick e Kock defenderam no artigo Towards a

Neurobiological Theory of Consciousness. Também para estes dois autores o problema

da consciência poderia ser explicado recorrendo unicamente a explicações de nível

neuronal. Desta forma a consciência passaria a ser abordada como sendo um problema

cientificamente legítimo, uma vez que não se teria de recorrer a características

fantasmagóricas como a uma alma, mas antes a coisas puramente físicas como

neurónios. Mais concretamente a consciência poderia ser explicada através da

Neurobiologia. Recorrendo ao exemplo de como percecionamos as coisas que se

encontram ao nosso redor os autores dão como exemplo o caso da visão.

Diariamente temos várias perceções visuais e esta é uma das coisas das quais

não podemos negar, por exemplo, neste momento estou a ter várias. À minha frente vejo

o monitor do meu computador, em cima da secretária vejo folhas de cor branca

5 Churchland, 2005, p.14

12

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rabiscadas, um lápis e uma caneta. A visão que tenho de todos estes objetos é unificada,

mas as partes constituintes desses mesmos objetos como a cor, o tamanho e o

movimento são tratados por diferentes zonas do meu córtex visual. Ao dizer isto

deparamo-nos imediatamente com um problema. Se diferentes zonas do meu córtex

visual observam um objeto desunificando-o como é que a perceção visual consciente de

um determinado objeto surge na minha mente como estando unido? Segundo os dois

autores a perceção visual consciente pode ser facilmente explicada por via científica.

Crick e Kock afirmam que este tipo de perceção se relaciona com um disparo

sincronizado de neurónios conectando o córtex e o tálamo que oscila entre os 40-70 Hz.

Desta forma a ideia de explicar tudo o que pertence ao nível macroscópico

(propriedades psicológicas) a partir do nível microscópico (propriedades neuronais)

surge como sendo uma hipótese plausível.

Não podemos negar a veracidade de muitos dos factos óbvios da Física como é o

caso da lei da gravidade e de que o mundo é constituído por partículas físicas, mas a

aceitação de que todos estes factos são reais não nos conduz necessariamente à negação

de factos evidentes como é o caso das nossas experiências mentais. Não parece de todo

plausível negar que somos detentores de estados mentais. O problema do materialismo

tanto o de tipo reducionista como o que é defendido por Churchland como o eliminativo

de Dennett consiste no facto de deixarem de fora a experiência subjetiva do sujeito e,

uma vez isso acontecendo, algo fica de fora e esse algo é precisamente a consciência

fenomenológica ou qualia.

Dennett é por muitos considerado não só como sendo um eliminativista, mas

também como sendo um instrumentalista que é outra forma de negar a realidade da

mente, uma vez que essa teoria defende que a atribuição de estados mentais acontece

por razões puramente pragmáticas. Segundo Dennett a consciência não é apenas uma

coisa, mas várias (para esta questão o Modelo de Esboços Múltiplos ser-nos-á bastante

útil). Procurar-se-á em seguida compreender em que sentido Dennett nega a existência

de uma consciência fenomenal ao mesmo tempo que consegue criar uma teoria da

mente, uma teoria acerca de como um agente humano consegue ter um apercebimento

do mundo, sem admitir a existência de qualia.

Para Dennett a consciência não surge como sendo um problema especial

filosófico e refuta duas das ideias que se relacionam com ela e das quais já falamos ao

longo desta primeira parte. Dennett não encara a consciência como sendo experiência

13

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subjetiva como veremos em Chalmers e Nagel nem como dela fazendo parte os qualia.

Estes são usualmente definidos por ele como sendo “propriedades intrínsecas, inefáveis,

privadas, imediatamente (e incorrigivelmente) conhecidas, da maneira como as coisas

nos (a)parecem.”6. Usualmente, mas não de acordo com a definição de Dennett, quando

falamos de qualia falamos de algo que existe independentemente de qualquer

interpretação, de uma experiência de primeira pessoa à qual ninguém, para além de

quem experiência, poderá ter acesso com a finalidade de confirmar ou de negar a sua

existência. No entanto, Dennett nega a sua existência e é nessa aniquilação que consiste

o seu materialismo eliminativo. Poderíamos ainda acrescentar que a negação dos qualia

surge como sendo a peça-chave da teoria da mente desenvolvida por este autor.

Para uma maioria os qualia são propriedades fenomenológicas que se encontram

ligadas ao sentimento de si e que se relacionam com a sensação de que há algo para uma

determinada coisa ser como ser essa coisa (como será melhor analisado no capitulo 2).

Dennett encara os qualia não como sendo de uma natureza ontológica, mas antes como

se tratando de propriedades de segunda ordem. A sua posição eliminativista acerca dos

qualia não é assim, mais atentamente considerada, uma posição acerca de ontologia,

mas antes uma observação epistemológica, no sentido em que para o autor um

determinado sujeito cognitivo tem os qualia A se e somente se o sujeito cognitivo julga

que a sua experiência tem os qualia A. Tendo isto em conta não é de estranhar a

acusação de que a sua teoria da mente é meramente cognitiva e que não oferece

qualquer resposta acerca do problema da consciência fenomenal. Aliás, Dennett limita-

se a dar continuidade àquilo que durante muito tempo foi deixado de lado por parte não

só do movimento behaviorista, mas também por parte da ciência, isto é, continua a

negar a existência do carácter fenomenológico da consciência.

Descartes quando procedeu à defesa da existência de duas substâncias

identificou como elo de ligação entre o corpo e a mente a glândula pineal. A existência

desta glândula seria a justificação do como uma mente corresponderia a um corpo.

Posto isto, os qualia dar-se-iam nesta glândula pineal à qual Dennett se refere como se

se tratanto do Teatro Cartesiano. Este é considerado como sendo a imagem metafórica

do local onde a experiência fenomenológica do sujeito tem lugar. Deste modo, os qualia

não poderiam existir sem o Teatro Cartesiano e este, por sua vez, também não poderia

existir sem os qualia. No ponto de vista de Dennett, a existência de propriedades

6 Miguens, 2002, p.254

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fenomenológicas dependeria da existência do Teatro Cartesiano assim como a

existência deste dependeria da existência das propriedades fenomenológicas. No

entanto, negar a existência dos qualia surge-nos de forma intuitiva como sendo uma

ideia absurda, uma vez que “Parece idiota dizer que nunca senti sede ou desejo, que

nunca tive uma dor, ou que nunca tive verdadeiramente uma crença, ou que as minhas

crenças e os meus desejos não desempenham qualquer papel no meu comportamento."7

Para Dennett continuar a afirmar a existência de algo fenomenal acerca da

consciência / mente é estar a querer pôr de lado os avanços científicos levados a cabo

que vão contra as intuições de “senso comum” como a experiência de sentir dor ou sede.

É precisamente neste sentido que Dennett surge com o Modelo de Esboços Múltiplos

como alternativa ao modelo padrão do Teatro Cartesiano. Dennett com este modelo

pretende criar uma teoria da mente que vai contra não só àquilo que foi dito por

Descartes, mas também à crença que autores como Nagel insistem em manter viva. A

crença de que se fala diz respeito ao facto de que sempre que falamos de uma mente

consciente falamos de um ponto de vista e consequentemente quando falamos de um

ponto de vista falamos de algo puramente subjetivo. Neste sentido, para Nagel a mente

seria um centro de subjetividade.

Como já foi anteriormente referido no artigo mencionado de Crick e Kock o

nosso cérebro no que toca à informação visual observa os objetos desunificando-os. Por

outro lado, a crença de que existe alguma zona do nosso cérebro “onde tudo se junta”

insiste em manter-se viva. Acerca disto, Dennett e Kinsbourne no artigo O Tempo e o

Observador dizem que esse lugar não existe em parte alguma do nosso cérebro. Não são

colocadas em questão as capacidades do cérebro para correlacionar e /ou comparar o

vasto número de coisas que vão sendo processadas; o que estes dois autores estão a

querer afirmar é que a unificação das várias partes de um mesmo objeto são analisadas

por várias partes do cérebro e não num local “onde tudo se junta”. A título de exemplo

surge a comparação da evolução temporal entre o processamento de estímulos auditivos

e visuais. Hoje em dia sabemos que a luz viaja mais rapidamente do que o som e tal

pode ser verificado quer no caso do fogo-de-artifício quer no que respeita à trovoada.

Posto isto, o problema inerente a esta situação é o facto de se desconhecer o local onde a

7 Searle, 1900, p.69

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experiência consciente se dá no cérebro, pois “se pudéssemos indicar com exactidão

onde a experiência ocorreu, poderíamos inferir com exactidão quando ela ocorreu.”.8

Para Descartes o “onde” corresponderia à glândula pineal e esta, por sua vez,

situar-se-ia no centro do cérebro e funcionaria como sendo a via de acesso à mente

consciente. Um determinado indivíduo tornar-se-ia consciente de algo através da

interação que a glândula pineal causaria entre o material (o cérebro do indivíduo) e o

imaterial (a mente desse mesmo indivíduo). No entender de Dennett toda esta visão

acerca de como se dá a consciência está irremediavelmente errada. Mesmo que

concordando que o cérebro funciona como sendo o Quartel-General, visto que Dennett

identifica-o como sendo o obervador final, é um erro afirmar que no cérebro estão

contidos “outros quartéis-generais mais profundos, um qualquer santuário interior, a

chegada ao qual é a condição necessária ou suficiente para a experiência consciente.”9

Aceitar uma teoria como a de Descartes segundo Dennett e Kinsbourne é errado por

dois sentidos: primeiro devido ao facto de que não há nada que indique na

neuroanatomia funcional do cérebro a existência de um ponto “onde tudo se junta”, isto

é, não há nada que comprove a existência da glândula pineal e em segundo lugar porque

seria “o primeiro passo numa regressão ao infinito de homúnculos demasiado

perigosos.”10

O Modelo de Esboços Múltiplos surge em oposição ao Teatro Cartesiano

afirmando que operações de pensamento e de ação se realizam através de processos

múltiplos existentes nas várias zonas do cérebro e não numa zona mais central. Apesar

de poderem ser localizáveis as zonas onde esses processos se dão tal não quer dizer que

seja possível determinar o início do estado consciente. Desta forma estados mentais são

constituídos por propriedades objetivas devido à possibilidade de identificar o local

onde ocorrem o que por sua vez não determina a existência de propriedades subjetivas.

Outra característica do Modelo de Esboços Múltiplos consiste no facto de que “A

“corrente de consciência” não é uma narrativa única, definitiva.”11, na medida em que se

fossemos analisar essa “corrente de consciência” esta teria várias versões de uma

mesma narrativa. Por outras palavras, o que Dennett pretende afirmar através deste

modelo é que apesar de uma representação mental poder ser localizada no cérebro 8 Dennett & Kinsbourne, 2004, pp.3-49 Dennett & Kinsbourne, 2004, p.710 Dennett & Kinsbourne, 2004, p.711 Dennett & Kinsbourne, 2004, p.10

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espacial e temporalmente não quer dizer que o sujeito tenha consciência dela

imediatamente. Assim, se questionarmos um sujeito acerca de algo em diferentes

intervalos de tempo a hipótese de obtermos diferentes respostas acerca desse mesmo

algo é bastante alta. Porquê? Porque durante esses intervalos de tempo o sujeito teve o

tempo necessário para pensar na pergunta que lhe foi feita e durante esse tempo poderá

ter-se lembrado de mais pormenores a serem relatados de forma a completar o que já

tinha sido dito, por exemplo. Encontramo-nos perante aquilo que Dennett chama de

anomalias temporais: dizem respeito a casos em que os relatos fornecidos por pessoas

acerca das suas experiências apresentam uma anomalia ou surgem como paradoxais no

que respeita ao ordenamento temporal dos acontecimentos. Neste sentido, poderemos

dizer que Dennett identifica a consciência com a memória ou pelo menos, sendo

consciência consciência-de, não considera que sejam conceptualmente separáveis.

Acerca disto, Dennett e Kinsbourne afirmam que tais anomalias podem ser

facilmente explicadas e previstas graças aos conhecimentos teóricos que possuem. De

forma a provar o seu ponto de vista são apresentados vários exemplos, porém irei

apenas focar-me num: o “coelho” cutâneo. Este exemplo consiste na seguinte

experiência: no braço de um determinado sujeito são colocados transmissores

telegráficos mecânicos de ondas quadradas em dois ou três pontos do braço com uma

distância máxima de 30 centímetros. Posteriormente, o sujeito irá sentir cinco batidas

rítmicas no pulso, duas no cotovelo e três no braço superior em intervalos que vão dos

cinquenta aos duzentos milissegundos. O que irá acontecer é que o sujeito irá sentir as

batidas a avançarem pelo seu braço acima como se estivesse um animal a saltar ao

longo do seu braço. A questão que se coloca é acerca do como é que o cérebro sabia que

a seguir às cinco batidas do pulso iria sentir outras batidas numa zona mais acima. A

hipótese fornecida é que o cérebro só sabe da batida quando esta ocorre, mas que a

experiência consciente é atrasada pelo cérebro até que todas as batidas tenham ocorrido.

Quer isto, então, dizer que aquilo que se apresenta como relevante para o cérebro não é

tanto acerca do quando os acontecimentos surgem nas várias partes do cérebro, mas

antes o conteúdo temporal desses acontecimentos. Desta forma “o que é importante é

que o cérebro possa continuar a controlar acontecimentos “sob a suposição de que A

ocorreu antes de B”, quer a informação de que A ocorreu entre no sistema relevante do

cérebro e seja reconhecida como tal antes ou depois da informação de que B ocorreu,

17

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quer não.”.12 Assim, o que realmente importa não é saber quando ocorreu a batida no

cotovelo, mas antes a capacidade do cérebro conseguir compreender o conteúdo de tal

ocorrência. Assim como também não interessa a ordem exata de como as representações

chegam ao nosso cérebro, mas antes que cheguem a tempo de se ter o comportamento

apropriado a determinada situação. Não interessa se vejo primeiro a agente A a

caminhar debaixo de uma varanda ou se vejo em primeiro lugar o vaso a cair na direção

da sua cabeça – o importante é que todas estas representações cheguem ao cérebro a

tempo de eu poder ter um comportamento apropriado face ao que está a ocorrer. Neste

caso, o comportamento apropriado seria avisar o agente A antes que este ficasse ferido.

Voltando ao exemplo do “coelho” cutâneo. Nenhuma das batidas sentidas pelo

sujeito ao longo do seu braço pode ser atribuído um acontecimento de nível consciente

ou inconsciente até que a batida seja sentida e tenha despoletado a atividade neuronal

que lhe está associada. Aliás, se o sujeito decidisse relatar a experiência de que “neste

momento estou a sentir uma batida no meu cotovelo” acerca do seu estimulo sensorial

haveria uma diferença que variaria entre os cinquenta e os duzentos milissegundos

desde o momento em que a batida tivesse sido sentida numa determinada zona do

cérebro do sujeito até que este fosse capaz de fazer o relato verbal acerca do que tinha

sentido. Assistimos mais uma vez à negação da consciência quando Dennett e

Kinsbourne afirmam que apesar de qualquer conteúdo relatado acerca do que quer que

seja tenha de estar presente em alguma parte do cérebro tal não significa que tenha de

estar necessariamente presente na consciência. Para os defensores do modelo do Teatro

Cartesiano este tipo de anomalias constitui prova suficiente para a existência de qualia e

consequentemente de consciência e de algo imaterial. Afirmar tal coisa implica,

segundo os autores supracitados, a existência de um local exato onde tudo se dá, isto é,

uma zona específica do cérebro onde a experiência consciente teria lugar – a glândula

pineal. Afirmam ainda tratar-se de uma implicação intuitiva, mas mesmo assim falsa e

que pode ser facilmente provada através da seguinte experiência de pensamento. Por

vezes temos a sensação de recordar um acontecimento de forma fiel, mas quando

confrontados com outra realidade damos conta que a nossa memória tem falhas. Dennett

e Kinsbourne dão o seguinte exemplo: imaginemos que ao meu lado passa uma mulher

de cabelos compridos a correr e que assim que me perguntam quem passou por mim eu

respondo que foi uma mulher de cabelo comprido e de óculos. A minha memória acerca

12 Dennett & Kinsbourne, 2004, p.23

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desta mulher de cabelo comprido e de óculos pode surgir na minha mente como sendo

uma memória clara, intensa e da qual não tenho qualquer dúvida. No entanto, é falsa.

Existem dois tipos de contaminações no que à memória diz respeito: uma delas são as

orwellianas13 e as outras tratam-se de confissões falsas e de pseudo-julgamentos

cuidadosamente planeados – este tipo de contaminação é conhecida pelo nome

estalinesco. A pergunta que se coloca quando ocorrem casos como o que foi relatado

mais acima é a seguinte: se o que passou por mim foi uma mulher de cabelos compridos

a correr e eu digo que o que passou por mim foi uma mulher de cabelo comprido e de

óculos será que em casos como este é a minha memória que me engana ou serão antes

os meus olhos? Outro caso semelhante a este poderá ser o seguinte: imaginemos que

várias letras são-nos expostas durante um curto espaço de tempo e, apesar de termos

tido acesso a todas as letras existem algumas que conseguimos identificar e outras que

não nos é possível recordar. O que terá acontecido no nosso cérebro? Será que ele

conseguiu ver todas as letras ou será que rapidamente se esqueceu de algumas delas? O

que poderá isto dizer acerca da consciência? Será possível apresentar-se uma resposta a

todas estas questões ou será que tal é pura perda de tempo? Dennett e Kinsbourne,

acerca disto, dizem que se de facto o Teatro Cartesiano existe, então todas estas

perguntas necessitam de uma resposta, uma vez que todas as experiências conscientes e

por isso mesmo fenomenológicas surgem num local fixo mesmo que a memória dessas

experiências tenha algumas limitações. Por outro lado, o que o Modelo de Esboços

Múltiplos oferece é uma perspetiva completamente distinta da expressa pelo Teatro

Cartesiano. Afirma que se existe um momento de consciência processado no cérebro

que esse momento é arbitrário. A conclusão acerca do Modelo de Esboços Múltiplos

defendida por estes dois autores “restringe-se às propriedades temporais da experiência:

a representação da sequência na corrente da consciência é um produto dos processos

interpretativos do cérebro, e não um reflexo directo da sequência de acontecimentos que

contrapõem esses processos.”

Mesmo que essas propriedades temporais e espaciais nada nos digam acerca dos

conteúdos da consciência, Dennett identifica-a com a memória. Assim, o que parece

acontecer é que Dennett nega os qualia e toda a consciência fenomenal substituindo os

qualia por crenças. É precisamente neste sentido que na sua teoria da mente não se trata

de um problema metafísico ou ontológico, mas antes de um problema epistemológico e 13 Relacionadas com uma personagem da obra de George Orwell que reescrevia a história proibindo o

acesso ao passado por parte das outras personagens. (Conferir, Dennett & Kinsbourne, 2004, p.30)

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de segunda ordem. Por outro lado, ao negar o carácter fenomenal da mente e o seu

carácter ontológico afirma que tudo aquilo que ocorre na nossa mente, que no seu

pensamento se traduz por cérebro, não tem nada de imaterial ou de inexplicável visto

que pode ser explicado através de processos físicos ocorrentes no interior do cérebro.

Todavia, apresentar uma resposta deste tipo não é mais do que fornecer uma resposta

aos problemas fáceis da consciência como teremos a oportunidade de verificar no

próximo capítulo através de Chalmers. A minha memória acerca da mulher de cabelos

compridos que passou por mim a correr pode realmente conter lacunas que me

conduziram a um relato de um acontecimento falso, porém mesmo que a minha crença

seja falsa, não se pode negar que tive a experiência fenomenal de ver uma mulher de

cabelos compridos com óculos. A crença é falsa, a minha memória do acontecimento

apresenta lacunas, mas eu tive uma experiência consciente, mesmo que esta não tenha

sido processada num ponto central do cérebro, isto é, na glândula pineal como defendia

Descartes.

O que Dennett parece estar a querer afirmar é que todos os juízos referentes ao

que quer que seja, mais precisamente à memória têm um carácter objetivo, contudo

como veremos a partir de Searle (no Capítulo 2 desta Primeira Parte) e da sua visão

acerca do que se fala quando se fala de consciência nem todos os juízos são desse tipo.

Alguns deles são subjetivos e a subjetividade inerente a esse tipo de juízos não pode ser

ignorada porque tal como a consciência a subjetividade é uma das características

fundamentais da mente humana. Isto é válido tanto no que diz respeito ao pensamento

de Searle como ao pensamento de Chalmers e de Nagel acerca da consciência. É

precisamente acerca destes três autores que a parte III deste primeiro capitulo se focará.

Antes de partirmos para os argumentos utilizados tanto por Chalmers como por Searle

contra o materialismo, penso tornar-se fundamental expor desde já de que forma e

sentido autores como Chalmers, Nagel e Searle empregam o termo “consciência”.

III. Dos problemas fáceis aos problemas difíceis da consciência

Em diversos artigos, tais como Consciousness and its Place in Nature e O

Enigma da Experiência Consciente (2004), David Chalmers procede à divisão do

problema da consciência em dois. De um lado encontramos os problemas fáceis e do

outro temos os problemas difíceis da consciência. No primeiro grupo deparamo-nos

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com os problemas relacionados com os mecanismos objetivos do cérebro, no sentido em

que nos interessa saber como é que seres humanos conseguem verbalizar os seus

estados interiores, como processam a vasta informação que lhes é dada a conhecer e

como a utilizam de forma diversificada de modo a controlarem o seu comportamento,

por exemplo. Apesar de ainda não ser certo como muitos destes processos são levados a

cabo há fortes indícios que mais cedo ou mais tarde serão encontradas respostas

pacificadoras por parte das neurociências e da neurobiologia, por exemplo. Ao passo

que o problema difícil (hard problem) da consciência (consciousness) é o problema da

experiência, mais concretamente a experiência subjetiva. Fala-se de experiência

subjetiva, segundo Chalmers, quando há algo como é ser (it is like to be).14 Este

segundo grupo diz respeito, precisamente, ao modo como o sujeito sente as coisas e

como este as perceciona – trata-se da experiência subjetiva e qualitativa do sujeito. São

fenómenos como o sofrimento causado por uma dor intensa ou uma sensação

apaziguadora que experienciamos quando ouvimos o som das ondas do mar a

arrebentarem no areal que constituem o verdadeiro mistério da mente. São

fenómenos deste tipo que fazem parte daquilo a que damos o nome de consciência.

Chalmers em The Conscious Mind define a experiência consciente da seguinte forma:

“When we perceive, think, and act, there is a whirl of causation and information

processing, but this processing does not usually go on in the dark. There is also an

internal aspect; there is something it feels like to be a cognitive agent. This internal

aspect is conscious experience.”15

Assim sendo, a consciência é entendida como um fenómeno natural no sentido

em que por um lado se relaciona e depende dos processos cognitivos ocorrentes no

cérebro e por outro lado como experiência subjetiva na medida em que depende de algo

como é sentir-se ser, neste caso, um sujeito cognitivo. No entanto, ainda ninguém sabe,

pelo menos até ao dia de hoje, como é que processos físicos no cérebro dão origem à

14 Nas palavras de Chalmers “The hard problem of consciousness is the problem of experience. Human

beings have subjective experience: there is something it is like to be them. We can say that a being is

conscious in this sense – or phenomenally conscious, as it is sometimes put – then there is something it is

like to be that being.” (Chalmers, 1996, p.2)15 Chalmers, 1995, p.4

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experiência subjetiva e se só há consciência em nós, seres humanos. O problema assim

colocado leva-nos a dizer juntamente com Chalmers que a consciência, em parte, poderá

ser explicada através de teorias materialistas ou fisicalistas, mas que existe uma outra

parte – a da experiência – que foge a estas teorias.

Outro autor que podemos relacionar com a perspetiva de Chalmers é Thomas

Nagel, mais concretamente no que diz respeito à existência de algo como é ser de forma

a explicar a experiência subjetiva inerente ao sujeito. No seu artigo “Como é ser um

morcego?”16 encontramos parte desta questão desenvolvida.

Com este artigo Nagel não pretendeu fornecer uma resposta acerca se estes

animais – os morcegos – têm ou não alguma semelhança com a nossa espécie, mas antes

procurar respostas que justifiquem a crença de que há algo como ser um morcego.

Sempre que há algo como é sentir-se ser poderemos dizer que existe experiência. Para

Nagel a consciência surge em vários níveis da vida animal mesmo que ainda tenhamos

algumas reservas no que respeita a organismos mais simples. Assim como também

introduz a hipótese de existência de consciência não só aqui no nosso Planeta, mas

também noutros Planetas e restantes sistemas solares expandindo-se deste modo para

todo o Universo. Segundo o autor, dizemos que determinado organismo é possuidor

de consciência sempre que tenha inerente a si experiências conscientes que dizem

respeito ao caracter subjetivo da experiência – qualidades fenomenológicas. Nagel

utiliza o exemplo dos morcegos, uma vez que possuem algo em comum connosco.

Tanto seres humanos como morcegos são mamíferos e isso faz-nos sentir mais

próximos deles do que de abelhas ou de seres unicelulares, por exemplo. Todavia, os

morcegos comportam-se de forma diferente de nós e têm um sistema sensorial diferente

do nosso, o que tal não significa a inexistência de algo como é sentir-se ser um

morcego.

Atualmente sabemos que os morcegos percecionam o mundo exterior a partir de

um sistema designado de ecolocalização – este sistema faz com que os seus cérebros

sejam capazes de lhes fornecer informações precisas acerca de distâncias, tamanhos,

formas, movimento e texturas de um determinado objeto com um grau de precisão

semelhante ao da visão humana.17 No entanto, do facto do sistema de ecolocalização dos

morcegos ser semelhante ao da visão humana não se segue que sejamos capazes de

16 Titulo original: “What is it like to be a bat?”17 Nagel, 2004, p.3

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experienciar ou de saber ou de sequer imaginar como é ser um morcego ou como é

sentir-se ser um morcego, uma vez que tanto a nossa experiência como a nossa

imaginação são limitadas. Nas palavras de Thomas Nagel:

“A nossa experiência fornece-nos o material básico para a nossa imaginação,

sendo o seu alcance por isso limitado. Não vale a pena tentar imaginar que temos uma

membrana nos braços que nos permite voar no crepúsculo e na alvorada e apanhar

insectos com a boca, ou que temos uma visão muito pobre e que percebemos o mundo à

nossa volta com a ajuda de um sistema de sinais sonoros de alta frequência reflectidos,

nem tão pouco nos vale a pena imaginar que passamos o dia pendurados de cabeça para

baixo num sótão. Na medida em que posso imaginar isto (o que não é muito), isto só me

diz como seria para mim comportar-me como um morcego se comporta. Mas essa não é

a questão. Eu quero saber como é para um morcego ser um morcego.” 18

Deste modo, a única coisa que seriamos capazes de saber seria como nos

comportar como um morcego, mas nunca como é ser um morcego para um morcego.

Tal conhecimento é-nos vedado assim como nenhum morcego ou outro animal sabe

como é sentir-se ser um ser humano ou uma pessoa. Apesar de não termos acesso direto

a esse conhecimento não se poderá concluir que os morcegos não são possuidores de

experiências de carácter subjetivo como nós possuímos e que não existe algo que é

como ser um morcego para um morcego. A nossa limitação, no entender de Nagel,

deve-se ao facto de possuirmos uma individualidade e uma consciência distinta da dos

morcegos. A nossa incapacidade de descrever detalhadamente as suas qualidades

fenomenológicas e de perceber como é ser um morcego para um morcego é válida

também no caso de se vir a provar a existência de consciência em outros Planetas,

sistemas solares e restante Universo. Como veremos mais tarde, toda esta questão

encontra-se relacionada com o problema mente-corpo.

A experiência consciente é sentida através de um ponto de vista o que

significa que o conhecimento de todos os fenómenos que são experienciados por outros

organismos é-nos vedado. Não possuímos tal conhecimento na medida em que só temos

acesso ao ponto de vista das experiências que são sentidas pela nossa espécie. Por

18 Nagel, 2004, pp.3-4

23

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exemplo, se alguém nos disser que se está a sentir sonolento nós sabemos como é

experienciar tal sensação. Todos nós já nos sentimos dessa forma. Todos os dias temos

essa experiência, mesmo que nada nos garanta que a experienciamos da mesma forma

que a outra pessoa. No entanto, sabemos que conseguimos, até certo ponto,

compreendê-la. Acerca disso, Nagel diz-nos:

“É frequentemente possível adoptar um ponto de vista alheio, pelo que a

compreensão de tais factos não se limita à compreensão do nosso próprio caso. Há um

sentido em que os factos fenomenológicos são perfeitamente objectivos: uma pessoa

pode saber ou dizer qual é a qualidade da experiência do outro. Contudo, estes factos

fenomenológicos são subjetivos na medida em que mesmo essa atribuição objectiva da

experiência só é possível para alguém cuja semelhança com o objecto desta atribuição

seja suficiente para lhe permitir adoptar o seu ponto de vista – compreender a atribuição

quer na primeira quer na terceira pessoa, por assim dizer. Quanto maior for a diferença

entre nós e o experienciador, menor será o sucesso que podemos esperar deste

empreendimento”19

Tal significa que não nos é possível dizer com exatidão o carácter das

experiências que determinado organismo – neste caso referimo-nos aos morcegos – está

a ter. Podemos estudar o seu comportamento e morfologia, podemos apresentar dados

acerca de como o seu sistema neuronal funciona, mas dizer tudo isto é apenas apresentar

a parte objetiva de como é constituído um morcego ou qualquer outro tipo de

organismo. Como diria Chalmers, fazer isso seria apenas apresentar respostas acerca

dos problemas fáceis da consciência, pois a parte subjetiva referente às suas

experiências e ao modo como é sentir-se ser um morcego permanece incógnita. Este é

um dos motivos pelos quais Nagel, tal como Chalmers, rejeita uma teoria puramente

fisicalista para explicar a existência da consciência. Na medida em que, o carácter

subjetivo da experiência só é percebido na sua totalidade a partir de um ponto de vista e

quanto mais nos afastamos do caracter subjetivo e quanto mais nos aproximamos do

caracter objetivo mais afastados ficamos do ponto de vista.

19 Nagel, 2004, p.6

24

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Tanto Chalmers como Nagel identificam a consciência com experiência.

“Experiência subjetiva”, “Vida interna do sujeito”, “Qualia” e a expressão “como é

ser” são outros termos utilizados por Chalmers quando se fala de consciência. Tanto

para Chalmers como para Nagel a consciência apresenta-se como sendo tão

fundamental no mundo como a matéria-energia e o espaço-tempo. Acerca disto Nagel

acrescenta que: “mesmo se as manifestações do mental evidentes para nós são locais –

dependem do cérebro, etc. – a base geral deste aspecto da realidade não é local, mas

inerentes aos constituintes gerais do universo e às leis que o governam.”20

Este elevado grau de importância que é conferido à consciência deve-se

precisamente ao facto de não existir nada no mundo que sejamos capazes de conhecer

melhor, isto é, mais diretamente do que a consciência. Para além de Chalmers entender

a consciência como sendo algo de fundamental também a entende como sendo

surpreendente, misteriosa e natural. O mistério da consciência reside precisamente no

facto de não termos dúvidas de que a consciência se relaciona de uma certa forma com

processos físicos ocorrentes no nosso cérebro, mas a verdadeira questão é saber como

e por que razão processos físicos dão origem à experiência. Aí reside o verdadeiro

mistério que envolve toda a temática acerca da consciência.21

Os problemas fáceis revelam-se fáceis porque podem ser facilmente

explicados através de um certo comportamento ou através de funções cognitivas.

Imaginemos o seguinte exemplo. A meio da noite o agente A levanta-se da cama.

Dirige-se até à sua cozinha e de um dos armários retira um copo que posteriormente

enche com água e, por fim, bebe essa mesma água. Não é preciso possuir dotes de

adivinhação ou de realizar vastos estudos para descobrir ou pelo menos para apresentar

palpites acerca da razão que levou o agente A a beber o copo de água. O

comportamento do agente basta-nos para concluir que ele, muito provavelmente, fez o

que fez porque se encontrava com sede. Ao passo que os problemas difíceis são assim

considerados precisamente porque dizem respeito em primeiro lugar ao modo como

as coisas são sentidas para o sujeito e, posteriormente porque não nos é (ainda)

20 Nagel, T. The View From Nowhere, p.821 Tal posição aparece exposta no seu artigo O Enigma da Experiência Consciente (2004, p. 4): “Não

nego que a consciência tenha origem no cérebro. Sabemos, por exemplo, que a experiência subjectiva da

visão está ligada a processos no córtex visual. Mas é exactamente esta ligação que nos deixa perplexos. É

decerto espantoso mas a experiência subjectiva parece ter origem num processo físico. E nós não fazemos

a mínima ideia do como ou do porquê disto ser assim.”

25

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possível responder à questão mencionada acima (como e por que razão processos

físicos dão origem à experiência). Um outro exemplo: pensamos nas pessoas que têm

medo das alturas. Esse medo só é sentido pelo sujeito se ele se encontrar em

determinados locais ou em determinadas situações como a atravessar uma ponte de alta

altitude ou se estiver no cimo de uma montanha a apreciar a vista que se encontra mais

abaixo, por exemplo. Esse medo deve-se claramente a algo exterior, material e, por isso

mesmo, físico. Se o agente estivesse sentado num banco de jardim a apreciar o verde da

relva em vez de estar a atravessar uma ponte a pé ou no cimo de uma montanha a

sensação de medo não existiria. Sempre que temos a sensação de medo coisas

acontecem no interior do nosso cérebro que influenciam de certo modo o nosso

comportamento (tremores, respiração acelerada são alguns exemplos do que acontece a

nível comportamental). A isto Chalmers chama de aspeto psicológico – aspeto que

caracteriza a mente tendo em conta aquilo que ela faz. Este conceito opõe-se ao aspeto

fenomenal da mente que por seu turno se relaciona com o modo como cada agente

cognitivo sente determinada coisa. As ciências cognitivas22 segundo o autor ocupam-se

do aspeto psicológico ao passo que o aspeto fenomenal se relaciona com a experiência

consciente. Assim as ciências cognitivas seriam capazes de dizer o que é que o nosso

cérebro faz quando sentimos medo, mas não a razão que conduz a que processos físicos

deem origem à experiência.

Para Chalmers estes dois aspetos – o psicológico e o fenomenal – esgotam o

mental, no sentido em que a nossa vida mental pode ser explicada ou através do

psicológico ou através do fenomenal ou através da combinação de ambos. Dizemos que

um determinado estado mental é psicológico quando desempenha um papel causal no

que se refere à explicação de determinado comportamento e que é fenomenal quando se

refere ao modo como um agente experienciou determinada coisa. Chalmers identifica o

aspeto psicológico da mente com o funcionalismo, na medida em que estados mentais

de caracter psicológico exercem relações causais entre input e output. Veja-se o caso da

dor. A teoria funcionalista caracteriza a dor como sendo um estado provocado por uma

lesão corporal manifestando a crença de que algo está mal no nosso corpo e provocando

o desejo de sair desse estado. Segundo o autor, não há dúvida de que a experiência

consciente se encontra associada a processos físicos ocorrentes no cérebro e que estes

influenciam os estados mentais de caracter fenomenológico. Para Chalmers, estados

22 Chalmers identifica as Ciências Cognitivas com a Psicologia.

26

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mentais são causados por causas materiais, mas os estados mentais não podem

influenciar o físico. Com isto parece estar, também, a defender uma teoria

epifenomenista na medida em que a tese epifenomenalista defende a ideia de que

enquanto que os estados mentais têm a sua origem em estados físicos, os estados

mentais não têm qualquer influência nos estados físicos.

Tanto Chalmers como Nagel defendem uma teoria dualista e ambos defendem a

ideia de que a mente poderá ser pensada através de dois pontos de vista sendo que um

deles é objetivo e o outro subjetivo. O primeiro é aquele que pode ser facilmente

explicado através de processos físicos ao passo que o ponto de vista subjetivo é

referente a sensações, isto é, ao modo como me sinto quando olho para um jardim

repleto de flores ou quando saboreio um pedaço de chocolate – sensações como estas

são, no entender destes dois autores, modos de representação da nossa consciência, ou

seja, modos de representação da vida interior do sujeito. Para ambos os autores uma

teoria puramente física acerca da consciência não se apresenta como sendo algo viável,

visto que estaríamos a rejeitar todo e qualquer caracter subjetivo inerente ao ser

humano. Por outro lado, tal opinião não é partilhada por toda a comunidade filosófica,

mais concretamente pelos fisicalistas ou materialistas.

Sabemos que somos constituídos por pensamentos, memórias, sentimentos,

crenças, desejos, medos e frustrações dos quais estamos, à partida, conscientes.

Efetivamente, cada um de nós, agente cognitivo humano, é capaz de recordar momentos

do seu passado, de tomar decisões e de justificar o porquê de ter feito isto e não aquilo.

Assim como também sabemos o que sentimos quando experienciamos determinados

momentos e situações quer no presente quer no passado. Temos um acesso privilegiado

a essa experiência – à nossa experiência. Uma experiência subjetiva, qualitativa ou

fenomenal – o que se queira chamar. Falo da mesma experiência de que David

Chalmers fala. O acesso a ela é direto e privilegiado na medida em que mais ninguém

tem acesso a ela, só nós temos acesso a tal experiência. Imaginemos o seguinte caso:

cinquenta pessoas vão a um museu de arte e todas elas são expostas durante um período

curto de tempo a uma mesma obra de arte. Todas elas ouvem a explicação que o guia do

museu lhes dá. No final, se perguntássemos a cada uma delas o que tinham visto todas

elas iriam fornecer-nos respostas distintas. Porquê? Ora, todas elas estiveram expostas

ao mesmo objeto, mas todas estas pessoas experienciaram-no de forma diferente.

Muitas poderão ter sentido sensações agradáveis, outras poderão ter sentido uma total

27

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indiferença e outras poderão ter sentido repulsa pelo objeto. Todas estas pessoas

estiveram conscientes do que sentiram enquanto se encontravam face ao objeto e todas

elas tiveram experiências diferentes. Todas estas pessoas poderão ter experienciado o

prazer, a dor, a repulsa, o medo e todas elas poderão ter guardado na sua memória

imagens mentais e pensamentos do que sentiram e do que viram – tudo isto é

comummente designado de estados mentais. Estados mentais são diferentes de estados

físicos, mas para cada estado físico existe um estado mental correspondente do qual

estamos conscientes. De uma forma sucinta poderíamos dizer que estar consciente é

estar consciente de alguma coisa.

Segundo um outro autor – Searle – nunca estamos simplesmente conscientes,

isto é, quando estamos conscientes de alguma coisa temos de ser capazes de responder à

questão acerca do que estamos nós conscientes. O «de» de «consciente de» por vezes é

intencional e outras vezes não o é. No seu livro A Redescoberta da Mente Searle, acerca

disto, fornece-nos o seguinte exemplo: se neste preciso momento alguém tocasse à porta

da minha casa eu estaria consciente de que me tocaram à porta e, neste caso o «de» de

«consciente de» seria intencional. Por outro lado, se o meu estado consciente se se

referir ao facto de eu estar consciente de uma dor o «de» já não é intencional. Um

estado consciente é intencional se fizer referência a algo para além de si e não é

intencional caso não represente nada para além de si mesmo.23 Assim sendo não

poderemos dizer que quando falamos de intencionalidade falamos de consciência

porque nem todos os estados conscientes são intencionais. Contudo, este ainda não é o

momento oportuno para explorarmos toda esta questão, uma vez que esta será melhor

elaborada e explicada na segunda parte do trabalho, mais precisamente no Capítulo 2 da

Segunda Parte.

Para além de nunca estarmos simplesmente conscientes de alguma coisa, na

perspetiva de Searle existem, também, vários níveis de consciência. Há uma diferença

no nível de consciência no qual me encontro enquanto estou atenta ou distraída,

acordada ou adormecida e até mesmo durante o tempo em que me encontro a dormir os

níveis de consciência variam dependendo do facto de me encontrar consciente do que

sonho ou não. Todo o pensamento acerca do que acontece enquanto dormimos, mais

concretamente acerca da questão dos sonhos surge como sendo uma questão complexa,

no sentido em que as teorias em torno desta temática não são de todo pacíficas. Para

23 Conferir Searle, 1900, pp.108-109

28

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este autor a questão dos sonhos assim como toda a questão acerca da consciência trata-

se de uma experiência subjetiva e, por isso de primeira pessoa; o sonho é ainda encarado

como sendo aquilo que faz distinção entre o estado consciente e o inconsciente.

Consciente caso me lembre de ter sonhado e inconsciente caso não me recorde. Por

outro lado, para autores como Dennett toda esta questão é encarada de um modo

distinto, no sentido em que, para Dennett, as questões acerca dos sonhos relacionam-se

com os problemas da epistemologia da consciência, a saber: um caso-tese diz respeito a

saber se os sonhos são ou não experiências.

De uma forma geral e de um ponto de vista intuitivo, os sonhos são considerados

como sendo experiências que ocorrem durante o sono e que poderão ser recordadas e

relatadas pelo sujeito assim que este desperta. Tendo em conta que a teoria da

consciência que se pretende defender diz respeito àquela que aborda a consciência como

sendo uma experiência do tipo subjetivo, a questão que se coloca é acerca se haverá

alguma coisa que é como sonhar. Em primeiro lugar, os sonhos são uma experiência à

qual só o sujeito cognitivo que sonha tem acesso, o que quer dizer que só eu tenho

acesso aos meus sonhos e sendo assim só eu serei capaz de descrever como é para mim

sonhar. No entanto, o ato de se ser capaz de fornecer um relato repleto de descrições

acerca dos mesmos encontra-se inteiramente dependente da minha memória. Por outro

lado, há que ter em conta que a memória é falível (como vimos anteriormente em

Dennett): por vezes falha, por vezes acordamos e sabemos com o que sonhamos

recordando muitos dos pormenores e outras vezes simplesmente não recordamos ou

esquecemos. Todavia, mesmo que se dê o caso de o sujeito que sonha ser capaz de se

recordar de algum pormenor do seu sonho nunca saberá até que ponto é que as suas

memórias são verdadeiras ou falsas. Acerca disto, Dennett atribui três características aos

sonhos sendo que a primeira é a apresentação consciente de várias imagens, a segunda

é a memória pois é nela que fica armazenada toda a informação acerca do sonho que

será essencial para o relato e, por último a composição que diz respeito às narrativas,

isto é, ao relato dos sonhos. Ao contrário de Searle que encara a questão dos sonhos

como sendo uma experiência subjetiva e de primeira pessoa, Dennett afirma que a

pergunta acerca dos sonhos serem ou não uma experiência é uma questão em aberto,

mas se a resposta for afirmativa essa experiência não terá qualquer propriedade

subjetiva. Por outras palavras, Dennett usa toda a questão acerca dos sonhos de forma a

colocar em causa a noção apriorista de “experiência”.

29

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Uma vez existindo vários níveis de consciência quer enquanto dormimos quer

enquanto permanecemos despertos, um outro autor, Searle, define a consciência como

sendo “um interruptor que se liga e desliga: um sistema está consciente ou não está.

Mas uma vez consciente, o sistema é um reóstato: há diferentes níveis de

consciência.”24

Podemos ainda acrescentar que a ontologia do mental é uma ontologia da

primeira pessoa, visto que cada estado mental é o estado mental de alguém. Já no que

diz respeito aos processos físicos ocorrentes no interior do cérebro eles são, segundo

Searle, de terceira pessoa. Aqui reside o problema mente-corpo ou mente-cerebro, uma

vez que o cérebro é aquela parte do corpo que, pelo menos em seres humanos, se

encontra ligada à existência de fenómenos mentais. Na perspetiva deste autor, a solução

para o problema mente-corpo não se encontra nem no dualismo (Chalmers e Nagel)

nem no materialismo (P. Churchland e Dennett), mas antes na aceitação de um

naturalismo biológico. Trata-se de uma teoria filosófica que reside na ideia de que “As

ocorrências e processos mentais fazem tanto parte da nossa história natural como a

digestão, a mitose, a meiose, ou a secreção de enzimas.”25 Deste modo, a solução para o

problema mente-corpo passaria pela aceitação de que os fenómenos mentais como

dores, desejos, prazeres, crenças, experiências visuais, gostos, odores, pensamentos,

ódio, alegria, medo, depressão entre outros seriam causados por processos

neurobiologicos cerebrais, que são também eles, características do cérebro. Esta

distinção entre mental e físico surge como sendo algo de intuitivo e do chamado senso

comum, na medida em que fenómenos como dor e prazer contam como sendo “mental”

e os processos que lhes estão associados como “físico”. Todavia, como vimos desde o

início deste primeiro capitulo autores como Churchland e Dennett não concebem a

consciência como sendo uma experiência subjetiva dependente de um ponto de vista e

como tal rejeitam a tese de que esta se trata de uma ontologia de primeira pessoa.

A partir deste ponto, sempre que se falar do termo “consciência” estarei a

referir-me tal como aconteceu com Chalmers, Nagel e Searle a uma experiência de

carácter subjetivo dependente de um ponto de vista e consequentemente de algo que

possui uma ontologia de primeira pessoa.

24 O negrito é meu. Searle, 1900, p.10825 Searle, 1900, p.15

30

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Capítulo 2 – Do Materialismo ao Dualismo Naturalista

I. Materialismo: a resposta fácil ao problema difícil. Argumentos contra o materialismo.

Quando pensamos no mundo, no qual existimos, pensamo-lo como sendo físico

ou material. Pensamo-lo deste modo precisamente porque todos os dias esbarramos com

coisas materiais – quer quando entramos dentro do nosso automóvel quer quando nos

encontramos sentados num banco de jardim quer quando tocamos acidentalmente no

braço do desconhecido que passa ao nosso lado na rua. No entanto, quando pensamos

naquilo que sentimos enquanto conduzimos que pode variar entre o sentimento de

prazer se nos encontramos a conduzir numa estrada calma, de medo se estivermos

perdidos ou de frustração se estivermos presos no trânsito durante horas. Quando

pensamos no prazer, no medo ou no sentimento de frustração não pensamos em coisas

físicas, mas antes mentais. Fenómenos mentais que surgem na nossa mente e que são

referentes a coisas físicas. Desta forma, pensamos a consciência como se esta fosse

constituída tanto por fenómenos mentais como por propriedades físicas. Relembrando

que os primeiros são referentes aos problemas difíceis da consciência e os segundos aos

problemas difíceis segundo a divisão efetuada por Chalmers. De facto, esta divisão entre

“mental” e “fisico” surge-nos na mente de forma intuitiva, contudo tanto Churchland

como Dennett colocam em causa esse conhecimento apriorista do mental defendendo

uma tese materialista. Vejamos através de Searle e mais concretamente quais são os

principais fundamentos em que o materialismo se baseia, são eles:

1. É possível apresentar uma explicação tanto da linguagem como da

cognição e restantes estados mentais ignorando a subjetivadade e a

consciência;

2. Uma vez que a realidade é objetiva, também a Ciência o é;

3. Aceitando-se a tese defendida no ponto dois deixa de fazer sentido

estudar-se a mente através do ponto de vista da primeira pessoa

passando a ser o ponto de vista da terceira pessoa considerado o melhor

método para estudar a mente;

31

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4. O ponto de vista de terceira pessoa é suficiente para conhecermos os

fenómenos mentais de outro sistema, uma vez que estes são possíveis de

conhecer a partir do comportamento;

5. Podemos explicar a essência do mental através do comportamento

inteligente e as relações causais com o comportamento;

6. Todos os factos existentes no Universo podem ou poderão, um dia, ser

conhecidos pelos seres humanos;

7. Tudo o que existe, em última análise, é físico visto que por físico

entendemos tudo aquilo que se opõe ao mental.

Para cada um destes sete fundamentos Searle em A Redescoberta da Mente

apresentou sete teses onde expõem as razões pelas quais os fundamentos nos quais o

materialismo assenta, ao contrário do que se possa pensar, estão errados.

Quando falamos de consciência vemo-nos quase que na obrigação de procurar

respostas para pelo menos três questões de máxima importância sendo que a primeira é

de origem ontológica – o que é? –, a segunda epistemológica – como descobrimos o que

é isso? –, e a terceira é referente à causalidade – o que é que isso faz? Sempre que

falamos da consciência falamos de uma ontologia da primeira pessoa, na medida em

que, como já foi referido, estados mentais como dores, desejos, frustrações e receios são

sempre estados de alguém e só esse alguém tem uma noção precisa dos estados mentais

que sente em determinado momento. Desta forma não podemos ignorar que 1. “A

consciência é importante” (o itálico é de Searle)26, uma vez que é a partir da noção de

consciência que temos noção da nossa vida mental e dos vários estados mentais pela

qual é constituída. No entanto, tal não quer dizer que estejamos conscientes de todos os

estados mentais que habitam no interior da nossa mente. Por exemplo, quando pretendo

abrir uma porta não me encontro consciente de todos os processos que tenho de levar a

cabo para que consiga, por fim, abri-la. Não penso que tenho de colocar a mão no

puxador e rodá-lo para a esquerda ao mesmo tempo que puxo a porta na minha direção.

Não, não me encontro consciente de tudo isto quando pretendo abrir ou fechar uma

porta, “No entanto, apesar de a maior parte da nossa vida mental em determinado

momento ser inconsciente, argumentarei que não temos qualquer concepção de um

26 Searle, 1900, p.34

32

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estado mental inconsciente excepto em termos derivados dos nossos estado mentais

conscientes.”27

Então, o que se está a querer dizer é que só sabemos o que é um estado mental

inconsciente porque sabemos o que é ter um estado mental consciente. Os gestos que

faço para conseguir abrir uma porta são inconscientes, na medida em que naquele

preciso momento não me encontro a pensar neles, mas sei que seriam conscientes se se

desse o caso de eu pensar neles sempre que pretendesse abrir uma porta ou enquanto

estivesse a abri-la.

Para Searle, estados mentais e processos conscientes possuem uma característica

que outros estados não possuem: essa característica é a subjetividade. A consciência e a

subjetividade são duas características fundamentais para se pensar a mente humana.

Uma vez ignoradas ficamos incapazes de fazer uma distinção entre fenómenos mentais

e fenómenos não mentais. Eis a segunda tese contra o materislismo: 2. “Nem toda a

realidade é objectiva; parte dela é subjectiva” (o itálico é de Searle).28 Segundo Searle

“(…) ontologicamente, a tese que defende que toda a realidade é objectiva é, em termos

neurobiológicos, pura e simplesmente falsa.”29, uma vez que os estados mentais têm

uma ontologia subjetiva. O tipo de subjetividade de que fala Searle não é do mesmo tipo

de que se fala quando se fala de juízos subjetivos – aquele tipo de juízos em que tanto a

sua verdade como falsidade não podem ser estabelecidas objetivamente. Quando digo

que “as margaridas são as flores mais bonitas” estou a expressar um juízo do tipo de que

falei acima. Trata-se de um juízo em que não nos é possível verificar quer a sua

veracidade quer a sua falsidade, uma vez que depende de pontos de vista e de

sentimentos quer por parte de quem faz tal juízo quer por quem o ouve. Já dizer que

“Paris é a capital de França” é estar a expressar um juízo completamente distinto do

anterior visto que se trata de um juízo objetivo e que pode ser facilmente comprovada a

sua veracidade ou falsidade. A subjetividade inerente à consciência de que Searle fala

não é de cariz epistemológica como acontecia com Dennett, mas antes ontológica.

Então, 3. “Visto que é um erro supor que a ontologia do mental é objectiva, é um erro

supor que a metodologia de uma ciência da mente deve ocupar-se exclusivamente do

comportamento objectivamente observável.” (o itálico é de Searle).30

27 Searle, 1900, p.3528 Searle, 1900, p.3529 Searle, 1900, p.3530 Searle, 1900, p.36

33

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Utilizando o exemplo de Searle, quando digo que “tenho neste momento uma

dor no fundo das costas”31 estou a expressar um estado mental específico que é “dor” e

o estado mental de “dor” é subjetivo no que respeita à sua existência. A dor que eu sinto

ao fundo das costas não é igual à dor que o meu vizinho sente, até poderá ser, mas

nunca o saberemos porque cada um sente a sua. Trata-se de uma experiência de

primeira pessoa e que só poderá ser sentida segundo um ponto de vista, também ele, de

primeira pessoa isto porque quando falamos do estado mental de dor ou de qualquer

outro estado mental falamos de um estado mental que é de alguém. A relação que

mantenho com os meus estados mentais é diferente da relação que mantenho com os

estados mentais das outras pessoas e vice-versa. Desta forma 4. “É um erro supor que

conhecemos a existência de fenómenos mentais nos outros apenas observando o seu

comportamento.” (o itálico é de Searle)32

Em A Redescoberta da Mente Searle afirma que não é através do

comportamento que concebemos a existência de fenómenos mentais não só em nós

seres humanos, mas também em animais como cães e gatos, mas antes através de “uma

concepção causal da maneira como o mundo funciona”.33 Searle concebe a consciência

como sendo subjetiva na medida em que eu tenho uma relação particular com os meus

estados conscientes que é distinta da relação que mantenho com os estados conscientes

de outra pessoa qualquer. Eu posso tentar observar a sua consciência durante horas a fio,

mas tudo o que conseguirei observar será a pessoa em si e o modo como se comporta e

o modo como ela se relaciona com o ambiente e como este, por sua vez, influencia o seu

comportamento. Pois, 5. O comportamento ou as relações causais com o

comportamento não são essenciais para a existência de fenómenos mentais” (o itálico é

de Searle)34. Acerca disto, Searle fornece-nos como exemplo os cérebros de silício.35 O

exemplo consiste numa experiência de pensamento em que o meu cérebro se encontra

em constante deterioração o que conduz à perda gradual das minhas capacidades visuais

levando-me posteriormente ao estado de cegueira. Como solução os médicos decidem

inserir no meu córtex visual pastilhas de silício. Com o passar do tempo a minha visão

vai voltando, no entanto o meu cérebro continua a deteriorar-se. Apesar destes dois

31 Conferir Searle, 1900, pp.119-12032 Searle, 1900, p.3733 Searle, 1900, p.3834 Searle, 1900, p.3935 ? Conferir Searle, 1900, pp.87-91

34

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fatores os médicos decidem não cessar o tratamento até que chega a um ponto em que

no meu cérebro não existe mais nada para além das pastilhas de silício que foram

inseridas no seu interior ao longo do tempo. Este exemplo é constituído por várias

variantes. Vejamos cada uma delas:

1. Num primeiro momento podemos imaginar que mantenho os meus

estados mentais intactos, apesar de ser um pouco improvável na

atualidade que as pastilhas de silício possam desempenhar as mesmas

funções de neurónios, por exemplo, como pensamentos, memórias, etc.

Neste caso as pastilhas de silício teriam não só solucionado o meu

problema como também tinham conseguido manter intacta toda a minha

vida mental.

2. Outra forma de imaginar o problema é a seguinte: durante todo este

processo senti que quantas mais pastilhas de silício iam sendo inseridas e

apesar de continuar a ter o mesmo comportamento que tinha

anteriormente menos consciência tinha a nível da minha vida mental, isto

é, acerca dos meus fenómenos mentais.

3. Uma terceira variante consiste na hipótese de que as pastilhas de silício

não afeteram de nenhum modo a minha vida mental, mas antes o meu

comportamento, visto que me era cada vez mais difícil levar a cabo as

ações que pretendia realizar, por exemplo. Ou seja, o meu

comportamento ia ficando cada vez mais afetado até que um dia todo o

meu corpo ficaria totalmente paralisado.

Expostas as três variantes de pensamento a pergunta que se coloca é acerca do

seu significado. No primeiro caso as pastilhas de silício desempenhavam o mesmo papel

que um cérebro intacto: mantendo a vida mental consciente intacta e desempenhando o

mesmo comportamento de estimulo-resposta. No segundo caso, as pastilhas já

apresentavam um problema na medida em que mantinham o comportamento intacto,

mas aniquilavam a minha experiência consciente e no último caso temos exactamente o

oposto do segundo. A conclusão mais importante que podemos retirar destas três

variantes de pensamento, segundo o autor, é acerca da relação existente entre a mente e

o comportamento. Assim sendo, poderemos concluir que em parte e epistemicamente

falando é certo que tomamos conhecimento de alguns dos estados mentais

ocorrentes em outras pessoas através do seu comportamento, contudo quando o

35

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assunto é a consciência abordámo-la como se se tratando de uma ontologia de

primeira pessoa. Assim sendo o comportamento e as relações causais que se traduzem

em forma de estimulo-resposta surgem como sendo irrelevantes para a existência de

fenómenos mentais. Claro que analisar o comportamento da outra pessoa diz-nos

alguma coisa acerca dos seus estados mentais, mas o que se está a pretender dizer é que

não é possível ter acesso à subjetividade desses mesmo estados, visto que a consciência

trata-se de uma ontologia de primeira pessoa.36

A sexta tese contra o materialismo consiste no facto de que 6. “É inconsistente

com o que sabemos de facto sobre o universo e o lugar que nele ocupamos que tudo é

cognoscível por nós.” (o itálico é de Searle)37

O nosso cérebro assim como o que demais existe na natureza foi fruto de certos

processos evolutivos, porém desenvolveu-se de forma distinta da que ocorreu no

cérebro de cães, gatos ou macacos. Neste momento, parece-nos certo afirmar que o

nosso cérebro é o mais desenvolvido. Não duvidamos de que nós seres humanos somos

capazes de compreender a teoria da evolução de Darwin, mas parece-nos de todo

impossível fazer com que um animal como um cão consiga compreender tal complexa

teoria. Todavia, seria um erro supor que podemos conhecer tudo. A verdade é que nem

tudo é cognoscível por nós e se o nosso cérebro é neste momento o cérebro mais

desenvolvido do nosso Planeta não implica que não possa existir algures no Universo

um cérebro ou algo semelhante a cérebros humanos mais desenvolvido do que o nosso e

capaz de compreender coisas que não são por nós compreendidas.38

Por último, a sétima e última tese diz que 7. “A concepção cartesiana do físico,

a concepção da realidade física como res extensa, não é, pura e simplesmente,

adequada para descrever os factos que correspondem a enunciados de realidade

36 Nas palavras de Searle: “Ontologicamente falando, o comportamento, o papel funcional, e as relações

causais são irrelevantes para a existência de fenómenos mentais conscientes. Espistemicamente, tomamos

conhecimento dos estados mentais conscientes das outras pessoas em parte devido ao seu comportamento.

Causalmente, a consciência serve para mediar relações causais entre estímulos de entrada e o

comportamento de saída; e, numa perspectiva evolucionista, a mente consciente funciona causalmente

para controlar o comportamento. Mas, ontologicamente falando, os fenómenos em questão podem existir

completamente e ter cada uma das suas propriedades essenciais independentemente de qualquer saída de

comportamento.” (Searle, 1900, p.91)37 Searle, 1900, p.4038 Conferir Searle, 1900, p.40-41

36

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física.” (o itálico é de Searle)39. Searle afirma que há, pelo menos, três coisas erradas na

nossa conceção do mundo e da realidade como pertencendo ao físico. Quando pensamos

no “físico” pensamos em moléculas e átomos em oposição a coisas “mentais” como

sensações de dor ou prazer. Porém, no entender de Searle a apresentação do físico em

oposição ao mental como se tudo o que existe no mundo se dividisse somente nestas

duas categorias é bastante pobre. Pobre, no sentido em que, segundo o autor, existem

coisas que não cabem nestas duas categorias, coisas como taxas de juro ou a minha

habilidade para jogar futebol. O primeiro erro consiste na tendência de se opor o físico

ao mental e que tal oposição é um erro. O segundo erro consiste na identificação do

físico com a res extensa cartesiana. Se pensarmos no físico desta forma, então tudo está

errado mesmo na ciência da Física, nomeadamente no que respeita à teoria da

relatividade em que se pensa nos eletrões como sendo pontos de massa / energia. O

terceiro erro é de cariz ontológico, no sentido que encontraríamos a questão “«Que

género de coisas existem no mundo?» por oposição a: «Que deve passar-se realmente

no mundo para os nossos enunciados empíricos serem verdadeiros?»”40 Desta forma,

esta última tese não serve apenas para colocar em causa o materialismo, mas também o

dualismo, na medida em que se fossemos questionar as duas teorias acerca de “quantos

tipos de coisas e de propriedades existem no mundo?” os primeiros responderiam que só

existiria uma (o físico) e os segundos responderiam que existiam duas coisas (o mental

em oposição ao físico). Porém, o que Searle está a tentar dizer é que existem outras

tantas coisas que não cabem nem no físico nem no mental, visto que existem outras

propriedades que têm a sua própria forma de existência: atléticas (quando atrás referi o

exemplo acerca da minha habilidade para jogar futebol) e económicas (como quando dei

o exemplo de taxas de juro).

Outro autor que teceu fortes críticas à tese materialista foi Chalmers. Para tal

apoiou-se em três importantes argumentos: 1. argumento explanatório; 2. o argumento

da concebivilidade; e 3. o argumento do conhecimento.

O primeiro argumento utilizado por Chalmers como modo de refutação do

materialismo é o argumento explanatório (The Explanatory Argument). Este

argumento tem como principal objetivo refutar a tese acerca da superveniência lógica de

forma a provar que a existência da consciência não é superveniente ao mundo físico.

39 Searle, 1900, p.4140 Searle, 1900, p.42

37

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Para tal torna-se necessário refutar o materialismo já que este afirma que tudo o que

acontece na consciência poderá ser explicado através de processos físicos. Por outras

palavras, segundo o materialismo a consciência pode ser reduzida ao físico. A sua

refutação encontra-se assente em duas premissas:

1) Estruturas físicas apenas explicam a estrutura e a função;

2) Explicar a estrutura e a função não é suficiente para explicar a consciência.

Posto isto, Chalmers conclui que o materialismo é falso pois mesmo que consiga dar

resposta aos problemas fáceis da consciência não é capaz de encarar e de estudar o

fenómeno da consciência como experiência.

Como já foi referido Chalmers encara a consciência como sendo uma

propriedade fundamental do universo e que não pode ser reduzida única e

exclusivamente ao físico. Então, o materialismo nunca poderia ser considerado, pelo

autor, como sendo verdadeiro na medida em que apenas este apenas fornece respostas

para as questões fáceis da consciência. Desenvolver toda uma teoria acerca daquilo que

a consciência é ou de como esta se processa tendo apenas em conta funções

comportamentais e cognitivas seria deixar de lado o facto de que inerente à consciência

está a experiência.

O segundo argumento referente ao argumento da concebivilidade (The

Conceivability Argument) é acerca da possibilidade de existir um sistema físico idêntico

ao nosso onde existe algo como ser consciente, mas sem alguns dos estados conscientes.

Esse sistema seria conhecido como um zombie. Um zombie seria alguém ou alguma

coisa semelhante a mim, mas sem experiências conscientes. Ou seja, seria alguém ou

alguma coisa semelhante a mim com processos cerebrais idênticos aos meus,

constituído molecularmente igual a mim e com um comportamento semelhante ao meu.

Contudo, seria completamente diferente de mim no que respeita ao ponto de vista de

primeira pessoa. A nível de terceira pessoa seria exatamente igual e impossível de ser

distinguido de qualquer ser humano semelhante a mim, mas não teria experiências da

primeira pessoa da mesma forma que eu, uma vez que elas não existiram no seu

sistema. Claro que a probabilidade de zombies existirem no mundo em que vivemos é

bastante improvável, contudo não é nada que não possamos imaginar como tendo uma

certa probabilidade de existência em outro Planeta ou em outro sistema solar que não o

nosso. Uma extensão desta ideia seria um mundo zombie (zombie world). Este seria um

mundo idêntico ao nosso, mas mais uma vez vazio de experiência de primeira pessoa. O

38

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objetivo deste argumento é uma vez mais refutar o argumento da superveniência lógica.

Chalmers refuta-o com o seguinte argumento:

1) É concebível a existência de zombies;

2) Se é concebível a existência de zombies, é matafisicamente possível existirem

zombies;

3) Se é metafisicamente possível existirem zombies, então a consciência é não-

fisica.

Disto, Chalmers conclui que a consciência é não-fisica.

O terceiro e último argumento de Chalmers – o argumento do conhecimento

(The Knowledge Argument) – de forma a refutar o materialismo, segue a via

epistemológica no sentido que mesmo que conhecêssemos todos os factos físicos,

continuaríamos a não ter acesso a todos os factos da consciência. Como exemplo surge

Mary – argumento formulado inicialmente por Frank Jackson e que Chalmers utiliza.

Mary é uma neurocientista que conhece tudo o que há para saber sobre os processos

físicos acerca da visão, mas encontra-se fechada numa sala a preto e branco e nunca

experienciou a cor vermelha. Apesar de ela conhecer todos os processos físicos

ocorrentes no cérebro desde que um determinado sujeito visualiza a cor vermelha da sua

camisola até verbalizar frases como “a minha camisola é vermelha” ela não sabe como é

ver vermelho. Nesse sentido, a questão que se coloca é a seguinte: o que acontece

quando Mary sair da sala a preto e branco e vir pela primeira vez vermelho? A

conclusão a que Jackson chega é que apesar de 1) Mary conhecer todos os factos físicos

ela 2) não conhece todos os factos, pois não conhece como é experienciar o vermelho,

então 3) o conhecimento de todos os factos físicos não é suficiente para se conhecer

todos os factos da consciência. Deste modo, mais uma vez conclui-se que o

materialismo não pode ser verdadeiro.

II. Da falsidade do Materialismo à defesa de um Dualismo Naturalista.

Como se disse desde o inicio de todo este trabalho a principal questão acerca da

consciência é acerca do “como e por que razão processos físicos dão origem à

experiência consciente?”. Referiu-se, também e por diversas vezes que a consciência era

39

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constituída por fenómenos mentais como dor e prazer e que todos estes fenómenos

tinham a sua origem em propriedades físicas. Durante a apresentação do pensamento

materialista reducionista de Patricia Churchland e da abordagem de um materialismo

eliminativo por parte de Daniel Dennett vimos que muitos dos fenómenos mentais

poderiam ser explicados através de propriedades físicas ocorridas no nosso cérebro. Um

dos exemplos fornecidos foi acerca da perceção visual das cores em relação à

apresentação da teoria neurobiológica da consciência de Crick e Kock. Segundo estes

dois autores, as oscilações ocorrentes no córtex dariam origem à consciência, porém

nada foi acrescentado acerca daquela que é a verdadeira questão. Nada foi dito por

Crick e Kock acerca do porquê destas oscilações darem origem à consciência ou qual a

conexão existente entre as oscilações e a experiência consciente. A teoria desses dois

autores apenas apresenta uma explicação física tendo em conta conceitos como

“estrutura” e “função”, porém a explicação da consciência não pode ser apresentada

tendo unicamente em conta a estrutura do cérebro e as suas funções. É precisamente

neste sentido que Chalmers afirma que existe uma lacuna explicativa (explanatory gap)

entre o nível físico e a experiência consciente. Desta forma parece fazer sentido dizer

que apesar de muitos fenómenos mentais poderem ser explicados através de

propriedades físicas a parte da experiência inerente a esses mesmos fenómenos

permanece inexplicável. Deste modo, parece certo concluir-se que a experiência

consciente não pode ser explicada única e exclusivamente através de uma redução ao

físico.

Ao longo de toda esta primeira parte o objetivo foi provar a falsidade do

materialismo tentado apoiar ao mesmo tempo um certo tipo de dualismo. A falsidade da

teoria materialista foi apresentada tanto através da exposição das sete teses contra esta

teoria por parte de Searle como dos três argumentos defendidos por Chalmers. Neste

momento, a questão que se coloca é acerca do tipo de dualismo que se pretende

defender e de que modo este apresenta uma resposta, a meu ver, mais completa do que

aquela que foi apresentada pelo materialismo. Em The Conscious Mind, Chalmers

propõe um novo tipo de dualismo, falo pois do Dualismo Naturalista que surge como

sendo uma combinação entre o dualismo de propriedades e o funcionalismo. Não fala,

portanto, de dualismo da mesma forma que este foi apresentado por Descartes onde o

ser humano seria constituído por uma substância mental capaz de influenciar processos

físicos. Fala antes de um certo tipo de dualismo de propriedades, na medida em que a

40

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experiência consciente implica propriedades individuais – propriedades fenomenais –

que são ontologicamente independentes das propriedades físicas embora estas

propriedades fenomenais possam depender das anteriores. Ou seja, o que Chalmers

defende é que existem dois tipos de propriedades: as fenomenais e as físicas e que as

primeiras têm a sua origem e são influenciadas pelas segundas, mas ao contrário do que

acontecia com o dualismo cartesiano as propriedades fenomenais não influenciam o

físico. Outra coisa que não só Chalmers, mas também Searle e Nagel defendem é que a

experiência consciente não pode ser unicamente explicada através do ponto de vista de

terceira pessoa como acontecia no materialismo. Apresentar uma reposta para a questão

da consciência através do ponto de vista de terceira pessoa seria apresentar apenas uma

parte da resposta, isto é, seria apresentar a resposta para os problemas fáceis da

consciência deixando de lado os difíceis que diriam respeito ao ponto de vista de

primeira pessoa. Relatos verbais de estados internos, o modo como conseguimos

processar informação e a apresentação das diferenças entre o sono e a vigília podem ser

facilmente explicadas recorrendo a explicações objetivas dos processos físicos

ocorrentes no interior do nosso cérebro. Porém, quando falamos de experiências visuais

(a vermelhidão do vermelho), experiências percetivas (sons, toque), experiências

corporais (dor, prazer), experiências emocionais (felicidade, tristeza) falamos de um

determinado tipo de experiência. Falamos de uma experiência que só pode ser

conhecida e sentida em primeira pessoa. Assim, do mesmo modo que apresentar uma

resposta acerca da experiência consciente tendo em conta apenas o ponto de vista de

terceira pessoa representaria uma resposta incompleta, também apresentar uma resposta

tendo em conta unicamente o ponto de vista de primeira pessoa o seria. Então, só uma

resposta que envolva tanto o ponto de vista de terceira pessoa como o de primeira

pessoa surge como sendo uma resposta satisfatória. Contudo, como explicar a sua

conexão? Existem boas razões para acreditarmos na existência de uma conexão entre o

ponto de vista de primeira pessoa e o ponto de vista de terceira pessoa. O que quer, por

outras palavras, dizer que existem boas razões para pensarmos que as experiências

subjetivas se encontram correlacionadas com os processos ocorrentes no cérebro e com

o comportamento. Então, se uma resposta acerca da experiência consciente completa

necessita tanto do ponto de vista de terceira pessoa como do de primeira pessoa, parece

haver fortes indícios que seja possível existir uma ciência da consciência. Todavia, não

uma ciência da consciência como o materialismo propõe nem como foi apresentada por

Crick e Kock, mas antes tendo em conta a parte objetiva e subjetiva da experiência

41

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consciente. De facto, existem, atualmente, alguns projetos científicos que pretendem

apresentar uma abordagem científica da consciência. Um desses projetos foi o de Crick

e Kock mais concretamente acerca de como percecionamos as cores e os próprios

objetos. A informação que nos chega acerca de objetos bem como das cores é

processada e analisada por um disparo sincronizado de neurónios instalados em várias

zonas do córtex cerebral. E, apesar de a resposta apresentada por eles não ser

considerada completa uma vez que só explica os processos objetivos da experiência

consciente, não se pode negar que saber isto nos ajuda a perceber os correlatos

neuronais (sistema neural que está diretamente associado com estados de consciência)

ligados à consciência.

Experiências conscientes têm uma estrutura complexa com conteúdos

representacionais igualmente complexos. Experiências visuais e corporais, por exemplo,

são elas mesmas experiências subjetivas complexas. Cada uma destas experiências

acarreta um enorme grau de complexidade, para tal basta pensar na quantidade de coisas

que percecionamos subjetivamente quando temos uma experiência visual de um objeto.

No momento em que olhamos para um objeto percecionamos diferentes coisas

igualmente complexas como a cor, formato, tamanho, textura… É precisamente nessa

complexidade que reside o maior obstáculo para a criação de uma ciência da

consciência tendo em conta as propriedades fenomenais e físicas. Ao passo que no que

respeita à terceira pessoa podemos facilmente apresentar conclusões tendo em conta o

comportamento e processos físicos ocorrentes nos nossos sistemas nervosos (mesmo

que muita coisa no que a isto diz respeito permaneça em aberto é altamente provável

que um dia a ciência apresente respostas) no que respeita à primeira pessoa tal é

impossível. O principal obstáculo encontra-se inerente ao grau de subjetividade e

privacidade, uma vez que as experiências conscientes acerca do que quer que seja

encontram-se diretamente relacionadas com o sujeito que está a ter essas experiências.

Para os outros, estas experiências de primeira pessoa encontram-se indiretamente

disponíveis, na medida em que só podem ser analisadas através do comportamento e de

processos cerebrais. O nosso conhecimento acerca da consciência é um conhecimento

limitado, contudo não se pode entender essa limitação como sendo paralisante. Uma das

soluções para se continuar a estudar o problema da consciência no que se refere à

experiência de primeira pessoa passaria por ter em conta os relatos verbais das

experiências conscientes de alguém. Contudo, esses relatos verbais não seriam

42

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entendidos como sendo de terceira pessoa, mas antes como um relatório dos relatos de

primeira pessoa disponíveis para o sujeito. Claro que o tratamento destes relatos como

se tratando de relatos de primeira pessoa exigem que aceitemos certas premissas: a

primeira refere-se precisamente à aceitação de que o sujeito teve mesmo as experiências

conscientes que relata e que os seus relatos são capazes de refletirem as suas

experiências conscientes. Porém, os próprios relatos verbais acerca das várias

experiências conscientes que o sujeito experiencia apresentam vários problemas. Em

primeiro lugar o sujeito que se encontra a relatar as suas experiências pode mentir-nos

ou pode ocorrer que na sua língua não exista vocabulário suficiente para descrever

determinada experiência subjetiva. Outro obstáculo referente à abordagem da

experiência consciente tendo em conta a primeira pessoa refere-se ao método. Enquanto

que os métodos utilizados na terceira pessoa foram evoluindo com o passar do tempo

principalmente devido à atenção que lhes é dada pela ciência, os métodos utilizados

para a primeira pessoa ainda se revelam primitivos. Porém nem tudo está perdido.

Assim como os julgamentos acerca das experiências subjetivas sentidas pelo sujeito não

são infalíveis, também não existe nenhum método de estudo que não apresente as suas

limitações.

De forma a concluir, o que se pretende dizer é que quando falamos de

consciência falamos de dois tipos de propriedades: as propriedades fenomenais e as

propriedades físicas. Por esse motivo, uma resposta acerca de como devemos abordar a

questão da consciência não passa pela teoria materialista visto que esta tende a explicar

a consciência através do comportamento do sujeito e de uma redução ao físico. A

resposta que proponho juntamente com Chalmers é que para que exista uma resposta

completa acerca da consciência devemos ter em vista tanto as propriedades físicas como

as fenomenais inerentes a cada indivíduo. Contudo, apesar de hoje em dia ainda não nos

ser possível apresentar um método sólido acerca do estudo da consciência tendo em

conta o ponto de vista de primeira e de terceira pessoa, tal não significa que devemos

desistir de tentar perceber a subjetividade da consciência. Se hoje esse conhecimento se

apresenta como sendo privado e limitado não se segue que daqui a 10 ou 50 anos não

nos seja possível conhecer mais e melhor essa parte da consciência. Prova disso são os

vários estudos que vão sendo levados a cabo tanto por parte da psicologia como da

ciência.

43

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Assim como um psicólogo quando se encontra face a um paciente não procura

apenas diagnosticar o estado em que este se encontra, mas também perceber o que o

conduziu até esse mesmo estado, também a ciência não deve apenas preocupar-se como

o cérebro percebe o formato ou a cor de um determinado objeto através de processos

físicos, mas também se deve preocupar com o modo com que o sujeito cognitivo

perceciona o mundo. Pois só tendo em conta as propriedades fenomenais e as

propriedades físicas será possível apresentar-se uma resposta completa acerca do

problema da consciência.

44

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Segunda Parte: Intencionalidade, Intenções e Ações

Capitulo 1 – Pessoalidade e Identidade Pessoal

I. O que é ser-se pessoa? Apresentação de duas características fundamentais.

Ao longo da primeira parte falamos sobre a consciência contrastando duas

importantes orientações na Filosofia da Mente: o materialismo e o dualismo. Como se

pôde ver muitos dos exemplos que foram utilizados de forma a clarificar as várias ideias

que se pretendia passar tiveram essencialmente como protagonistas agentes cognitivos

humanos à exceção do caso dos morcegos. Recorreu-se a estes exemplos, uma vez que

usualmente atribuímos o estado de consciência a seres humanos. Contudo, também se

verificou que quando falamos de experiência consciente referimo-nos à existência de

algo como é ser (it is like to be) e, sendo assim, a experiência consciente não se resume

única e exclusivamente aos seres humanos, mas também se estende a outros organismos

como é o caso dos morcegos. Esta capacidade que seres humanos e animais como

morcegos têm em comum é usualmente designada de senciência. No entanto, quererá

isto dizer que todos os tipos de animais são sencientes ou será que algumas espécies

escapam?

Se pegássemos num leque extenso de diferentes tipos de animais e

analisássemos a sua fisiologia e sistemas nervosos iríamos observar que alguns animais

têm um sistema nervoso semelhante ao nosso e outros não, assim como iríamos verificar

que alguns desses animais tinham, por sua vez, um sistema nervoso mais complexo e

outros mais simples e que tudo isso iria influenciar o modo como iriam ou não sentir

sensações de dor ou de prazer. Porém, analisar a experiência de sentir dor e outros

estímulos / sensações ou não sentir tendo unicamente em conta o critério fisiológico

pode-se revelar uma forma incompleta de avaliar tal questão. Por essa razão torna-se

importante juntar um outro critério que é, como não poderia deixar de ser, o

comportamental. Sabemos que quando pisamos a pata de um cão ele gane como que a

manifestar a sua dor, sabemos que um rato chia quando experiência o sentimento de dor

e, no nosso caso, um simples esgar ou um piscar de olhos pode ser indicativo de dor ou

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de desconforto, mas nós sabemos que tanto nós como os animais piscamos os olhos por

diversas razões sendo que uma delas é a sua lubrificação.

Se fôssemos inquirir um vasto número de pessoas seria quase certo que para uma

maioria seria mais fácil afirmar que animais semelhantes a nós como mamíferos e

vertebrados têm inerentes a si a capacidade de sentirem dor ou prazer ao passo que

pensar que insetos e outros seres que não mamíferos ou vertebrados possuem tal

capacidade torna-se mais complicado. Tal acontece principalmente porque quando “se

desce demasiado fundo na árvore filogenética, as pessoas perdem gradualmente a crença

de que possa existir lá qualquer experiência.”41 Porém, devido ao vasto número de

experiências que têm sido realizadas nos últimos anos, tem-se verificado que

cefalópodes como o polvo e a lula apesar de terem um sistema nervoso dissemelhante

do nosso têm respostas comportamentais bastante complexas face a estímulos enviados

pelo exterior, mas será que isto é suficiente para afirmarmos com toda a certeza de que

estes animais sentem ou não dor? A verdade é que interpretar o comportamento de

outras espécies que não a nossa de forma a descobrir se sentem ou não dor ou prazer

revela-se uma tarefa complicada ou mesmo impossível. Por outro lado, tendo em conta

aquilo que se disse desde o início – que determinado organismo é possuidor de

consciência sempre que existir algo como é ser – não podemos negar de que existe algo

como é ser um mosquito, que existe algo como é ser uma lula ou um polvo. Portanto,

não podemos negar a existência de consciência quer em organismos mais próximos de

nós como é o caso dos mamíferos e vertebrados quer em organismos mais simples como

um mosquito ou uma anémona. Contudo, esse grau de consciência apesar de ter uma

semelhança com a nossa – o estado de senciente (capacidade de sentir dor ou prazer,

etc.) – no resto é completamente distinta da nossa, pois no que respeita à nossa espécie –

Homo Sapiens – é fácil avaliar se sentimos ou não dor, em que circunstâncias a

sentimos e com que intensidade foi sentida. Somos capazes de fazer relatos

pormenorizados acerca das nossas experiências precisamente porque evoluímos num

aspeto em que mais nenhuma espécie conseguiu: somos detentores de uma linguagem

que nos permite comunicar uns com os outros a nível superior dos restantes animais

além de que o homem é um ser capaz de articular ideais e pensamentos; é um ser capaz

de tomar decisões, de escolher e de deliberar. Principalmente: é um fazedor de ações. É

um ser dotado de racionalidade. Claro que também é possível dizermos que um leão

41 Nagel, 2004, p.3

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quando vai caçar a sua presa também está a levar a cabo uma ação, no entanto só

agentes cognitivos humanos são capazes de fornecer razões para as suas ações.

Um dos primeiros autores a tratar esta questão – a da racionalidade – foi, como

não poderia deixar de ser, Aristóteles. Hoje em dia encaramos a racionalidade como

sendo uma adaptação evolutiva da nossa espécie, mas para Aristóteles a racionalidade

marcaria a principal diferença entre os homens e os restantes animais. Enquanto que os

humanos seriam detentores de racionalidade (logos) os restantes animais seriam

detentores de perceção sensorial. Também Dennett teve algo a dizer acerca da

racionalidade como sendo uma das várias condições de pessoalidade. Em Conditions of

Personhood diz-nos que quando falamos de pessoas falamos de seres a quem são

atribuídos estados de consciência (tal como já foi referido) ou a quem são atribuídos

predicados psicológicos, mentais ou intencionais; devem ainda ser capazes de produzir

relatos verbais e, por último, uma das principais diferenças existente entre pessoas e

outras entidades é o facto de que as primeiras estão conscientes a um nível em que

nenhuma outra espécie está – esse nível é usualmente designado de autoconsciência.

Deste modo, quando falamos de agentes cognitivos que são pessoas, duas

capacidades parecem sobressair, são elas: a autoconsciência e o pensamento racional.

A primeira engloba as experiências conscientes e o sentido do eu, enquanto que o

pensamento racional engloba dois tipos de racionalidade: a racionalidade teórica e a

racionalidade prática. A primeira diz respeito às nossas crenças, no sentido em que estas

serão tidas como sendo racionais se tivermos boas razões para as sustentar e se estas são

fiáveis na forma como representam o mundo. Portanto, a crença de que todos os corvos

são pretos será considerada racional se de facto ocorrer que todos os corvos sejam

mesmo pretos, ao passo que a crença de que a relva é vermelha será tida como

irracional, na medida em que tal não se verifica no mundo tal como o conhecemos. Já

quando falamos de racionalidade prática falamos da racionalidade na ação. Porém, entre

estes dois tipos de racionalidade existe espaço para a irracionalidade, sendo que um

desses casos é o auto-engano (casos em que não acreditamos naquilo que temos razões

para acreditar) e outro é a fraqueza da vontade ou akrasia (casos em que temos a

intenção de fazer algo, mas acabamos por não fazer).

Com isto pretende-se dizer que “Os seres humanos começam a ser pessoas

quando começam a ter sentido do eu e a responder a padrões de racionalidade.”42

42 Bortolotti & Harris, 2006, p.11

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Ao contrário das restantes espécies, somos seres capazes de armazenar memórias

de um passado distante ou daquilo que fizemos há cinco minutos atrás; somos capazes

de formular pensamentos de pensar que hoje está sol e que 2 mais 2 são 4; somos

capazes de aprender coisas novas e diferentes assim como somos capazes de tomar

decisões e de justifica-las. Contudo, o que acontece quando deixamos de recordar aquilo

que éramos, isto é, aquilo que tínhamos como sendo o nosso eu, ou seja, a nossa pessoa?

Num momento está tudo bem, mas noutro momento posso estar a atravessar a rua e ser

atropelada por um carro, o meu corpo cai e a minha cabeça bate nos paralelos que

pavimentam a rua. O condutor abandona o veículo, chama uma ambulância e dou

entrada nas urgências do Hospital mais próximo. Sem mais nada a que recorrer os

médicos induzem o coma. Não sabem o que esperar no instante em que acordar porque

tanto me posso recordar até ao mais ínfimo pormenor o que aconteceu ao longo de toda

a minha vida como já não reconhecer as pessoas que me acompanhavam diariamente.

Os dias passam um após outro até que, por fim, acordo. Porém, o pior acontece e não

me recordo de nada do que me aconteceu. Não sei o meu nome, desconheço o local

onde nasci assim como não me é conhecido o nome dos meus familiares e no momento

em que os vejo olho-os como se estes fossem completos desconhecidos. O que dizer

nestes casos?

Não acredito que sejamos imutáveis, como as teorias fixistas43 tendiam a afirmar

e para tal basta pensarmos na pessoa que éramos há 5 ou há 10 anos atrás. Todos os dias

esbarramos com pequenas coisas que provocam uma mudança nem sempre consciente e

imediata na pessoa que somos. Há diferenças na maneira como penso e como falo assim

como há diferenças no meu aspeto físico e na forma como encaro a vida. Todos os dias

sofremos pequeníssimas mudanças quer a nível psicológico – há diferenças entre eu-há-

10 anos-atrás, eu-ontem e eu-hoje – quer a nível físico. Ao longo da nossa vida muitas

das proteínas (coisas que funcionam como tijolos nas nossas células) existentes no

interior do nosso corpo encontram-se num processo contínuo de degradação fazendo

com que novas sejam produzidas. Quando tinha 5 anos queria ser arquiteta, hoje

encontro-me a frequentar o último ano de mestrado em Filosofia. A vida muda, as

43 Segundo a teoria fixista todas as espécies teriam sido criadas através de um poder divino e desde então

permaneceriam imutáveis por toda a sua existência. Esta teoria foi colocada em causa aquando o

aparecimento da teoria evolucionista de Darwin onde se afirmava que todas as espécies foram evoluindo

com o tempo e que nenhuma permanecia intocável sem que houvesse mudanças significas quer devido ao

ambiente quer ao fator de hereditariedade.

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circunstâncias mudam e nós também mudamos. Não quer isto dizer que somos pessoas

totalmente diferentes daquelas que éramos; encaro antes como se estivéssemos em

permanente processo evolutivo e que não somos uma pessoa nova de X em X anos, mas

antes que somos constituídos por pequenos fragmentos de todos os acontecimentos que

ao longo da vida experienciamos e dos quais estamos maioritariamente conscientes.

Neste sentido poderíamos dizer que tanto aquilo que faz com que o nosso Eu (self) se

mantenha e se reconheça como sendo o mesmo como o sentimento de consciência de si

é, precisamente, todo o conjunto de memórias que o nosso cérebro foi armazenando ao

longo da nossa vida. Uma vez perdidas essas memórias deixamos de ter acesso a esse

Eu e começamos a construção de um novo. A memória como vimos anteriormente em

Dennett surge como sendo uma característica fundamental da mente humana (mesmo

que às vezes nos induza em erro) e que marca mais uma diferença entre o nosso nível de

consciência e o nível de consciência existente nas restantes espécies. Na minha opinião,

dizer que um animal – qualquer animal – tem consciência de si ao longo do tempo

(passado, presente e futuro) não é de todo razoável. Claro que podemos estar a cometer

um erro ao afirmar tal coisa, mas pelo menos até onde nos é permitido saber não nos é

possível afirmar que tal se verifique, uma vez que não nos é possível verificar a sua

veracidade ou a sua falsidade. Não sabemos o que é sentir-se morcego, apenas sabemos

o que é sentir-se eu – eu sujeito cognitivo humano da espécie Homo Sapiens. Daí o

carácter subjetivo da consciência de que se falou desde o início.

Desta forma à questão referente acerca se seremos os únicos seres dotados de

consciência direi que tanto seres humanos da espécie Homo Sapiens como as restantes

espécies são dotadas de um certo tipo de consciência, contudo o grau de consciência

existente entre elas é diferente. Enquanto que nós (seres humanos) somos detentores de

autoconsciência que nos torna capazes de ter não somente experiências conscientes, mas

também ter consciência do nosso eu ao longo do tempo, as restantes espécies, como

macacos apenas possuem, até onde se sabe, experiências conscientes como dor, prazer

ou medo. Neste sentido, concluímos então que aquilo que nos define como “pessoas”

nada tem que ver com a espécie à qual pertencemos, mas antes às características que

fazem de nós aquilo que somos. Entre elas, duas tiveram maior destaque, a saber:

autoconsciência (experiências conscientes e sentido de si) e pensamento racional

(racionalidade teórica e racionalidade prática). Uma vez que a primeira – a

racionalidade teórica – já foi abordada, pretende-se, neste momento apresentar uma

49

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análise acerca do que se fala quando se fala de racionalidade prática a partir de dois

autores: Aristóteles e E. Anscombe.

II. Racionalidade Prática: pessoas como fazedoras de ações

Em A Ética a Nicómaco (uma das mais importantes obras sobre Ética da história

da filosofia, embora concebida de forma bastante distinta daquilo que viria a ser a Ética)

Aristóteles apresenta-nos várias investigações acerca da racionalidade prática, mais

concretamente apresenta-nos uma teoria das ações, onde encontramos dois conceitos

essenciais, são eles: a deliberação e a decisão. Acerca do primeiro diz-nos que não

deliberamos sobre “coisas eternas” nem acerca daquilo que nunca estará ao nosso

alcance, mas antes acerca daquilo que depende de nós e que se encontra ao nosso

alcance. Assim, não fará sentido deliberar acerca se podemos voar da mesma forma

como os pássaros voam, mas fará sentido deliberar sobre voar se por voar entendermos

utilizar como meio de transporte o avião. Enquanto que, quando falamos de decisão

falamos de um desejo deliberado – um desejo que é formado depois de o agente ter

passado pelo processo de deliberação. Desta forma o desejo relaciona-se com os fins

enquanto que a deliberação se relaciona com a escolha dos meios. É precisamente neste

sentido que Aristóteles surge como sendo considerado um defensor da teoria

instrumental de racionalidade, sendo que segundo a definição desta teoria

“Aquilo de que estamos a falar quando qualificamos como racional o

comportamento desse agente é de uma acção apropriada a uma dada finalidade, da

selecção e mobilização de meios com vista a um determinado fim (os fins do agente

são relativos àquilo que ele deseja, e os agentes chegam supostamente à situação de

decisão já munidos de desejos).” 44

Imaginemos o seguinte caso: se um determinado agente tiver como finalidade

comer alguma coisa de forma a saciar a sua fome terá de decidir se quer cozinhar ou se

quer ir a um restaurante. Em ambas as alternativas, terá ainda de deliberar acerca da

escolha daquilo que deseja comer. De acordo com a definição instrumental de

racionalidade diremos que a sua ação foi racional se o agente A foi ou não capaz de

44 Miguens, 2004, p.48

50

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reunir os meios necessários para satisfazer o seu desejo, isto é, o seu fim. Reunir os

meios necessários, neste caso, passaria por se dirigir até um restaurante ou cozinhar,

escolher o que comer e, posteriormente comer os alimentos que cozinhou ou que pediu

no restaurante. Desta forma poderemos dizer que a racionalidade prática se relaciona

com o comportamento dos agentes e que este é influenciado quer pelas crenças quer

pelos desejos que cada agente possui. Por outro lado, não nos podemos esquecer que

quando falamos de Racionalidade Prática falamos de Racionalidade da Ação o que quer

dizer que para percebermos com exatidão quando uma ação é ou não racional importa

dar resposta a três questões: 1) O que é uma ação; 2) Em que consiste a explicação de

uma ação; 3) O que é uma ação intencional.

Existe uma diferença entre corpos a mover-se e a agir intencionalmente em

função quer das suas crenças quer dos seus desejos. Disse-se mais atrás que a

racionalidade era um dos aspetos mais importantes para caracterizar os humanos como

pessoas e os diferenciar dos restantes animais. Contudo, quando falamos de

racionalidade não nos referimos apenas à capacidade de raciocinar com o objetivo de

solucionar problemas, de argumentar ou de ser capaz de resolver a mais difícil equação

matemática. Quando falamos de racionalidade falamos também da capacidade de os

agentes darem razões para o facto de terem feito o que fizeram e do porquê de terem

feito isto e não aquilo. Assim diremos que

“Racionalizar uma acção é dar a razão do agente para ter levado a cabo

aquela acção. Para racionalizar uma acção é sempre necessário atribuir a um agente

uma intenção, e para falarmos de intenção precisamos de (pelo menos) um desejo e

(pelo menos) uma crença relevante. Sem isto não poderemos falar de acções.”45

Desta forma, só fará sentido dizer que um determinado agente executou uma

ação e não meros movimentos corporais se e somente se o agente for capaz de fornecer

razões acerca do que fez e se de facto teve a intenção de fazer aquilo que fez. Quando

falamos de intenções falamos de um plano de um agente, plano esse que envolve

desejos de se fazer alguma coisa e crenças acerca de que os atos realizados conduzirão

ao que é pretendido. O ato de pedir e de dar razões de forma a dar uma razão para as

45 Miguens, 2004, p. 95

51

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ações realizadas por nós surge como sendo uma noção central para a nossa noção de

pessoa porque “Esclarecer a natureza do raciocínio prático e a existência de acções ao

nível pessoal é, assim, esclarecer a própria existência de ‘pessoas’”.46

E. Anscombe, no seu livro Intention começou por estabelecer diferenças entre

previsões e intenções, uma vez que existe uma diferença entre eu dizer que “amanhã irá

chover” e “amanhã irei à pastelaria”. No primeiro caso uso a evidência e ao ocorrer é

algo que não dependeu, de todo, de mim ao passo que no segundo caso trata-se de uma

intenção. Ao dizer que ”amanhã irei à pastelaria” estou a descrever uma intenção, em

que a justificação passará por fornecer a razão pela qual ir à pastelaria se apresenta

como sendo útil ou atrativo para mim. Todavia, a capacidade de fornecer razões acerca

de algo nem sempre significa que houve intenção na ação. Aliás, às vezes não houve

qualquer ocorrência de intenção. Acerca disso, Anscombe em Intention refere que

falamos de intencionalidade ao em vez de movimentos corporais sempre que o

movimento ocorrer sob uma determinada descrição e o agente for capaz de se aperceber

desses movimentos, todavia esse apercebimento terá de ser feito sem se recorrer à

observação. Por sua vez, a ação levada a cabo pelo agente será considerada intencional

se este for capaz de dar razões para o que fez sem que necessite de recorrer à

observação. Porém, o problema da ação consiste em saber em que condições os agentes

são capazes de fornecer razões para as suas ações sem recorrerem à observação nem à

racionalização da ação, isto é, sem a atribuição de razões a posteriori da ação

propriamente dita. Desta forma, não poderemos dizer que houve intenção se eu

estremecer assim que alguém me toca no ombro, uma vez que assim que me

perguntarem o porquê de ter tido essa reação o que irei fornecer não serão as

verdadeiras razões, mas antes uma racionalização da ação. O que aconteceu não foi uma

ação, mas antes um simples movimento corporal não intencional, visto que “(…) uma

acção não é intencional se o suposto agente apenas chega mais tarde ao seu próprio

comportamento e observa ou vem a tomar conhecimento de que estava a fazer alguma

coisa."47 Assim como também não será considerada uma ação intencional se eu estiver a

tamborilar os dedos em cima da mesa ao mesmo tempo que falo com alguém se só tiver

conhecimento do tamborilar através da observação ou se alguém me questionar acerca

da razão pela qual estou a tamborilar os dedos enquanto falo.

46 Miguens, 2002, p.11047 Miguens, 2002, p.114

52

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Falamos há pouco que as intenções englobam crenças e acerca disto, Anscombe

chamou a atenção para a direção de ajustamento existente entre crenças e intenções. As

primeiras pretendem retratar o mundo tal como ele é e, por isso, a direção de

ajustamento é mente-mundo, no sentido em que se a crença não representar o mundo

como ele é o problema residirá na mente porque esta não se ajustou ao mundo. Quanto

às intenções a direção de ajustamento é mundo-mente, visto que cabe ao mundo ajustar-

se à mente. Assim, uma intenção, segundo Anscombe corresponderia a “estar disposto a

agir no sentido de fazer o mundo ajustar-se-lhe, por contraste com o ajustar a mente ao

mundo.”48

Apresentadas as respostas às três questões – 1) O que é uma ação; 2) Em que

consiste a explicação de uma ação; 3) O que é uma ação intencional; – vejamos o que

resta reter de toda esta exposição acerca da racionalidade prática. Em primeiro lugar só

nos é possível falar de racionalidade prática se existirem ações, em segundo lugar só

podemos falar de ações se existir mente, uma vez que sem mente não poderíamos falar

nem de desejos nem crenças e sem estes não poderíamos falar de intenções. Neste

sentido, a questão que se coloca é acerca de como tudo isto de relaciona. É isso que

procurarei abordar ao longo do Capítulo 2.

48 Miguens, 2004, p.101

53

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Capítulo 2 – Intencionalidade

I. Estados Mentais e atos da fala: uma teoria da Intencionalidade segundo John R. Searle

Vimos no capítulo anterior que quando falamos de pessoas falamos de casos

especiais de mentes, uma vez que inerentes a si reúnem duas capacidades fundamentais

(a autoconsciência e o pensamento racional) que as tornam distintas das restantes

espécies. Apontamos que as principais diferenças entre as pessoas e os restantes animais

residem não só no facto de sermos capazes de dar razões para as nossas ações, mas

também de termos consciência de nós ao longo do tempo assim como dos nossos

estados interiores. Contudo, relembro que na primeira parte deste trabalho referi

juntamente com Searle que quando estamos conscientes não estamos simplesmente

conscientes, isto é, quando estamos conscientes estamos sempre conscientes de alguma

coisa. Por vezes o “de” de “consciente de” representa intencionalidade e outras vezes

não. Nesse sentido importa perceber quando é que o “de” de “consciente de” é

intencional e quando não o é. Porém, há que ter em conta que a teoria da

Intencionalidade em relação a estados e eventos mentais que Searle trata não engloba as

ações que os agentes poderão levar a cabo. Acerca disto, Searle, chama a nossa atenção

para o erro de descrever estados e eventos mentais como crenças, desejos, medos, entre

outros como atos mentais. Atos são coisas que se fazem: beber um copo de água ou

escrever uma carta podem ser considerados como sendo atos. Todavia, “(…) não há

uma resposta para a pergunta «Que está agora a fazer?», que seja, «Agora estou à

acreditar que vai chover» ou «a esperar que os impostos baixem» ou «a recear uma

queda na taxa de juro» ou «a desejar ir ao cinema».”49

Searle retoma o conceito de intencionalidade introduzido por Franz Brentano em

que a intencionalidade era identificada como sendo a marca do mental e que os estados

mentais (como crenças e desejos) se encontravam sempre direcionados a um ou vários

objetos. Desta forma a crença de que “a neve é branca” está direcionada ao objeto

“neve”. Porém a intencionalidade dos estados mentais não é entendida como sendo

intencional e é nesse sentido que Searle surge com a seguinte proposta: fala-se de

intencionalidade com “I” maiúsculo para caracterizar os estados mentais Intencionais e 49 Searle, 1999, p.24

54

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com “i” minúsculo para a palavra “intenção”. Assim, o que se pretende dizer é que,

apesar de a Intencionalidade ser “a propriedade de muitos estados e eventos mentais”50

não se quer com isto dizer que todos os estados e eventos mentais são Intencionais. Para

que um estado e evento mental sejam considerados Intencionais terão que ter uma

direcionalidade (directedness) ou ser-acerca-de (aboutness). Vejamos então, como

Searle define a natureza dos estados Intencionais. Uma pista já foi sendo dada acerca do

que faz com que estados e eventos mentais sejam considerados Intencionais:

direcionalidade / ser-acerca-de.

Falamos de estados e eventos mentais para falarmos de crenças, desejos,

esperanças, medos e estes são, à partida, considerados estados mentais Intencionais.

Porquê? Ora, porque sempre que existam estes tipos de estados mentais fará sentido

perguntar “acredito em quê?”, “desejo o quê?”, “tenho esperança que aconteça o quê?”

e, por último “tenho medo de quê?”. No entanto, existem outros estados e eventos

mentais como o nervosismo ou a depressão que nem sempre são dirigidos, uma vez que

nem sempre temos uma resposta acerca do porquê de estarmos nervosos ou em baixo.

Às vezes acontece que simplesmente estamos nesse estado sem razão aparente. Quando

isso acontece não podemos dizer que estes estados possuem Intencionalidade, uma vez

que não possuem a característica essencial para que o sejam que é precisamente a

direcionalidade ou ser-acerca-de.

Em segundo lugar, Intencionalidade não é o mesmo que consciência. Na

primeira parte deste trabalho chamei a atenção para o facto de não estarmos conscientes

de todos os movimentos que temos de levar a cabo quando queremos abrir uma porta e

que só temos consciência deles assim que pensamos neles. O mesmo acontece em

relação à Intencionalidade. Cada um de nós tem um sem número de crenças, mas não

estamos conscientes de todas elas. Por exemplo: eu posso ter a crença de que “a relva é

verde” sem que esteja consciente dela. Apesar de possuir Intencionalidade, na medida

em que é acerca-de-alguma-coisa, não se tratava de uma crença consciente, pelo menos

até ao momento em que pensei nela. Nesse momento ela passou a ser consciente. Ao

longo da primeira parte foi dito que nem sempre o “de” de “consciente de” é

Intencional, por vezes é e outras vezes não o é. Como exemplo, Searle chama-nos a

atenção para a diferença entre o “de” de ter uma experiência consciente de ansiedade e o

“de” existente no enunciado “estou consciente do meu medo de cobras” em que este

50 Searle, 1999, p.20

55

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“de” contém Intencionalidade. A explicação que Searle dá é que no primeiro caso a

experiência de ansiedade e ansiedade são idênticas enquanto que o medo de cobras não

é idêntico a cobras, na medida em que posso ter medo de muitas outras coisas.

Desde o início chamei a atenção para o facto de que quando Searle fala de

Intencionalidade não fala necessariamente de intenções (daí a diferença entre o I

maiúsculo para Intencionalidade e o i minúsculo para intenção). Normalmente pensa-se

que sempre que existam intenções existe Intencionalidade, porém, na abordagem de

Searle intenções são simplesmente mais um exemplo para estados e eventos mentais

como crenças, desejos, medos. Tal como os restantes estados e eventos mentais, as

intenções serão consideradas Intencionais sempre que tiverem direcionalidade, isto é,

sempre que forem acerca-de-alguma-coisa.

Desde o início desta questão foi dito que estados Intencionais representam coisas

e objetos no mundo. O mesmo acontece com os atos da fala. Para falar de ambos

(estados mentais e de atos da fala) Searle adota uma postura naturalista, no sentido em

que afirma que tanto os estados mentais como os atos da fala têm origem biológica. Os

primeiros porque “(…) são causados por operações do cérebro e realizados na estrutura

do cérebro”51 e, por esse motivo “(…) a consciência e a Intencionalidade são tanto uma

parte da biologia humana como o são a digestão ou a circulação no sangue.”52 e os atos

da fala porque apresentam-se como sendo “(…) uma extensão das capacidades,

biologicamente mais fundamentais, da mente (ou cérebro) de relacionar o organismo

com o mundo (…)”53. Estas capacidades mais fundamentais, de que fala Searle, dizem

respeito aos estados mentais. Alguns destes estados mentais são conscientes e outros

não, assim como nem todos os estados mentais são Intencionais. Estados mentais e

atos da fala serão considerados Intencionais sempre que forem “dirigidos para”

alguma coisa e / ou sempre que forem “acerca-de” alguma coisa. No entanto, estados

mentais e atos da fala possuem uma Intencionalidade distinta: aos primeiros Searle

refere-se como tendo uma Intencionalidade intrínseca e os segundos como possuindo

uma Intencionalidade derivada da mente. Isto passa-se desta forma, uma vez que, para

Searle, as capacidades representacionais dos estados mentais Intencionais não são

impostas, mas intrínsecas. Ao passo que quando falamos de atos da fala falamos de

51 Searle, 1999, p.1752 Searle, 1999, p.1753 Searle, 1999, p.15

56

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frases que podem ser transmitidas através de sons que saem pela boca ou através de

marcas que se encontram num papel que representam objetos e estados de coisas no

mundo e, dessa forma, possuem uma Intencionalidade derivada da Intencionalidade da

mente, uma vez que têm um nível físico de realização.

Ao explicar a Intencionalidade recorrendo aos atos da fala poderia conduzir-nos,

segundo Searle, a pensar que a Intencionalidade só poderia ser explicada em termos de

linguagem, contudo tal não se verifica precisamente porque este autor defende a ideia de

que a linguagem (atos da fala) deriva dos estados Intencionais e não o oposto. De forma

a tornar a sua ideia clara diz-nos que não faz sentido pensarmos que recém-nascidos que

ainda não possuem linguagem assim como animais não têm estados Intencionais. Nas

palavras de Searle: “Só alguém totalmente dominado por uma teoria filosófica negaria a

possibilidade literal de se afirmar que os bebés pequenos querem leite e que os cães

querem sair à rua ou acreditar que o seu dono está à porta.”54 Ao utilizar o nosso

conhecimento linguístico de forma a explicar a Intencionalidade Searle usa o exemplo

da linguagem como sendo um instrumento heurístico. A teoria da Intencionalidade

levada a cabo por Searle apresenta algumas semelhanças (entre elas contam-se quatro) à

teoria acerca dos atos da fala desenvolvida no seu livro Os Actos da Fala.

Tanto atos da fala como estados Intencionais possuem um “conteúdo”. Contudo,

nos atos da fala está contida uma “força ilocutória” e nos últimos, um “modo

psicológico”. O conteúdo é o que faz com que tanto atos da fala como estados mentais

sejam acerca de alguma coisa, enquanto que a força ilocutória pode ser explicada

recorrendo a um exemplo. Imaginemos o seguinte conjunto de frases:

1. O João fuma muito.

2. O João fuma muito?

3. Fuma muito, João!

4. Oxalá o João fumasse muito!

A pergunta que se coloca é a seguinte: o que está o falante a fazer quando

enuncia tais enunciados? Pelo menos uma coisa, à partida, nós sabemos: o falante

enuncia o que enuncia usando palavras de uma determinada língua que neste caso é o

português. Todavia, o falante não se limita a enunciar palavras, ou seja, ele não se limita

a dar-lhes uma ordem, ele pretende, efetivamente, dizer coisas com elas, isto é, ele

54 Searle, 1999, p.26

57

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pretende dar-lhes um significado. Segundo Searle, em 1) o falante faz uma asserção, em

2) faz uma pergunta, em 3) dá uma ordem e, em 4) exprime um desejo ou uma vontade.

Sabendo que estes quatro enunciados fazem referência a um mesmo objeto, que neste

caso é “João” e que a predicação se refere a “fuma muito”, então poderemos dizer que

“(…) a referência e a predicação são as mesmas, embora em cada caso, a mesma

referência e a mesma predicação ocorram como partes de um acto da fala completo que

é diferente de qualquer dos outros três. Assim, destacaremos as noções de referir e

predicar das noções de actos da fala completos como asseverar, perguntar, ordenar,

etc.”.55

Influenciado por J. Austin, Searle quando fala de força ilocutória refere-se a atos

da fala completos como afirmar, descrever, perguntar, ordenar, pedir, aprovar entre

tantos outros. Já em relação aos estados mentais Intencionais em vez de dizermos que

são constituídos por força ilocutória dizemos que possuem um “modo psicológico”. O

que acontece é que, tal como aconteceu com os atos da fala, também nos estados

mentais podemos ter o mesmo conteúdo, mas em diferentes modos psicológicos. Por

exemplo, em Mente, Cérebro e Ciência Searle usa o seguinte exemplo: “(…) posso

querer sair da sala, posso julgar que irei sair da sala e posso tencionar sair da sala. Em

cada caso, temos o mesmo conteúdo, isto é, que eu sairei da sala; mas em diferentes

modos psicológicos ou tipos: crença, desejo e intenção, respectivamente.”56

A segunda semelhança entre atos da fala e estados mentais Intencionais é

referente às direções de ajustamento (direction of fit). Em relação aos atos da fala

existem diferentes direções de ajustamento para as várias classes ou tipos de atos da

fala, por exemplo: quando falamos da classe assertiva dos atos da fala – enunciados e

descrições – dizemos que a sua direção de ajustamento é palavra-mundo, visto que

enunciados e descrições são tomados como verdadeiros quando se ajustam ao mundo e

tomados como falsos quando tal não acontece. Nesse caso são os enunciados e

descrições que falham e não o mundo. Já nos casos respeitantes à classe diretiva dos

atos da fala – ordens e solicitações – e, à classe comissiva – promessas e juramentos – a

55 Searle, 1981, p.3456 Searle, 1987, p.75

58

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direção de ajustamento é mundo-palavra, ou seja “Se um enunciado não é verdadeiro,

é ele que falha, não o mundo; se a ordem é desobedecida ou a promessa quebrada, não é

a ordem ou a promessa que falham, mas o mundo, na pessoa daquele que desobedece ou

que quebra a promessa.”57. Algo de semelhante se passa com as direções de ajustamento

relativas aos estados mentais Intencionais, no caso das crenças a direção de ajustamento

é mente-mundo, enquanto que a direção de ajustamento das intenções e desejos é

mundo-mente, uma vez que

“Se as minhas crenças provarem ser falsas, são as minhas crenças que falham, e

não o mundo, como mostra o facto de eu poder corrigir as minhas crenças. (…). Mas, se

falho na prossecução das minhas intenções, ou se os meus desejos não são realizados,

não poderei corrigir a situação dessa maneira, simplesmente mudando a intenção ou

desejo.”58

Apresentada esta segunda conexão entre atos da fala e estados mentais

Intencionais deparamo-nos com uma terceira que diz respeito, precisamente, ao facto de

que ambos reúnem condições de satisfação, ou seja, atos da fala e estados mentais

Intencionais podem ser verdadeiros ou falsos. Quando são verdadeiros dizemos que

reúnem as suas condições de satisfação e quando são falsos dizemos que tal não se

verifica. Neste modo “(…) um enunciado é satisfeito, se, e somente se, for verdadeiro,

uma ordem é satisfeita se, e somente se, for obedecida, uma promessa é satisfeita se, e

somente se, for mantida, e assim por diante.”59. Algo de semelhante encontramos no que

respeita aos estados mentais Intencionais: as minhas crenças serão verdadeiras se

corresponderem ao modo como o mundo é e falsas caso ocorra o oposto; os meus

desejos serão realizados ou não e as minhas intenções serão concretizadas ou não. O que

significa que “(…) a minha crença apenas será satisfeita se, e somente se, as coisas

forem tal como acredito serem, os meus desejos serão satisfeitos se, e somente se, forem

realizados, as minhas intenções serão satisfeitas se, e somente se forem executadas.”60

57 Searle, 1999, pp. 28-2958 Searle, 1999, pp. 28-2959 Searle, 1999, p. 3260 Searle, 1999, p. 32

59

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A última conexão existente entre atos da fala e estados mentais Intencionais diz

respeito ao facto de que para cada ato da fala existe um estado mental Intencional que

lhe está associado. Assim sendo poder-se-á dizer que o estado mental Intencional surge

como sendo a condição de sinceridade expresso pelo ato da fala. Acerca disto, Searle dá

o seguinte exemplo: eu não poderei dizer que “Está a nevar mas eu não acredito que

esteja a nevar”61, visto que dizer isto desta forma é contraditório. Por outro lado, há que

ter em conta que existe sempre a possibilidade de mentir – onde se expressa um ato da

fala sem que se tenha o estado mental Intencional que à partida lhe corresponderia.

Quando isto acontece dizemos que está a ser realizado um ato da fala não sincero.

Apresentadas as quatro conexões entre atos da fala e estados Intencionais e

relembrando mais uma vez que os primeiros possuem uma Intencionalidade derivada

enquanto que os segundos possuem uma Intencionalidade intrínseca, a questão que

importa dar resposta reside no seguinte: como derivam os atos da fala dos estados

Intencionais? De uma forma geral, mas concisa diremos que sempre que pronuncio um

enunciado estou a expressar ou alguma crença ou algum desejo ou algum medo, por

exemplo, uma vez que atos da fala reúnem as mesmas condições de satisfação que o

estados Intencionais. Consequentemente, sempre que pronuncio um enunciado para

além de reunir as mesmas condições de satisfação que os estados Intencionais e de ter

uma certa força ilocutória também me encontro a expressar o estado psicológico

correspondente aos estados Intencionais. Então, dir-se-á que os atos da fala têm um

duplo nível de Intencionalidade.

Apresentada a teoria da Intencionalidade de Searle e sabendo que não há um dia

em que não pratiquemos ações importa saber de que forma é que intenções e ações se

relacionam.

61 Searle, 1999, p. 30

60

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Capítulo 3 – Intenções e Ações

I. Como é que intenções e ações se relacionam? Uma possível resposta a partir de John R. Searle

Em enunciados do tipo “Eu quero andar de bicicleta” ou “Eu tenciono andar de

bicicleta” estão representados estados Intencionais (desejo e intenção, respetivamente) e

cada estado representa as suas condições de satisfação (essas condições serão satisfeitas

se eu for andar de bicicleta e não serão satisfeitas se eu não for andar de bicicleta).

Neste sentido, Searle apresenta uma definição provisória de ação intencional: “uma ação

intencional equivale simplesmente às condições de satisfação de uma intenção.”62 Desta

forma todas as ações que reúnem condições de satisfação são consideradas como sendo

ações intencionais. Esta não é, de todo, uma definição correta e completa do que é uma

intenção intencional, assim como também não era uma definição correta aquela que foi

apresentada anteriormente a partir de Aristóteles e mais tarde através de Anscombe.

Essa incompletude poderá ser facilmente percebida se tivermos em conta um exemplo

de Searle acerca do homem que queria pesar 70 quilos no Natal. Certamente que não

podemos negar de que se trata de uma ação intencional. Como vimos anteriormente,

para Anscombe uma ação seria intencional sempre que o agente fosse capaz de dar as

razões para ter feito o que fez e, muito provavelmente, se perguntássemos ao homem a

razão pela qual ele deseja pesar 70 quilos no Natal ele seria capaz de nos dar um certo

número de razões. Por outro lado, também seria uma ação intencional se tivermos em

conta a definição provisória de ação intencional fornecida por Searle. Porém, Searle

pretende chamar-nos à atenção para a existência de muitas outras ações (ações gerais)

que são levadas a cabo entre o momento em que o homem diz pela primeira vez “quero

pesar 70 quilos no Natal” até que chega ao Natal com os tão desejados 70 quilos.

Intuitivamente percebemos que existe uma conexão entre ações e intenções e

que a minha intenção de fazer seja o que for será satisfeita se a minha ação for realizada.

Segundo Searle, não podem existir ações sem intenções. Por outro lado, mesmo que o

evento representado no conteúdo da minha intenção ocorra tal não significa que esse

evento seja, efetivamente, a condição de satisfação na minha ação. Por exemplo, se eu

62 Searle, 1999, p.113

61

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digo que “quero ser rica” e eu fico rica dizemos que o meu desejo foi satisfeito, no

sentido em que não interessa como fiquei rica. Por outro lado, se imaginarmos que Bill

quer matar o seu tio e que acidentalmente atropela um transeunte que por acaso é o seu

tio veremos que, neste caso, não podemos dizer que as condições de satisfação da ação

foram preenchidas. Assim como também não podemos dizer que ele teve a intenção de

matar o seu tio, uma vez que a forma como ele o matou não foi intencionalmente, mas

antes acidentalmente.

Na maior parte das vezes pensamos nas ações que queremos levar a cabo antes

de as realizarmos – neste caso dizemos que sabemos o que vamos fazer porque já temos

a intenção de o fazer. Porém, nem todas as intenções são assim. Imaginemos o caso em

que quero sair de casa e assim que consigo sair alguém me pergunta “tinhas a intenção

de abrir a porta?” e neste caso eu poderei dizer que “não, simplesmente abri-a”, uma vez

que a minha intenção primordial era sair de casa. No entanto, segundo Searle a minha

ação de abrir a porta é intencional, porém a intenção encontra-se na ação propriamente

dita e não em mim, isto é, não houve uma intenção prévia. Dizemos que houve uma

intenção prévia se a intenção for expressa linguisticamente na forma “Vou fazer A” ou

“Farei A”, enquanto que a intenção em ato (quando não penso previamente na ação)

surge como “Estou a fazer A”. Assim, dizemos que há uma intenção prévia sempre que

“ (…) o agente age com base na sua intenção, ou que executa a sua intenção, ou que a

tenta executar;”63.

Antes de continuarmos, temos de ter bem assente duas coisas: a primeira é que

para Searle todas as ações englobam intenções, no entanto algumas destas intenções são

prévias e outras são em ato. Portanto, neste momento importa perceber com maior

clareza esta distinção entre intenções prévias e intenções em ato. Searle dá o exemplo

acerca de alguém que se encontra sentado a pensar num problema filosófico e que

repentinamente se levanta e começa a andar de um lado para o outro. O ato de se

levantar e andar de um lado para o outro, segundo o autor, são intenções, porém antes

de as realizar essa pessoa não pensou nem disse algo como “agora vou levantar-me e

andar de um lado para o outro”. Poderia ter dito, mas, neste caso, não é necessário

formar uma intenção, isto é, essa pessoa não precisa de formular um plano acerca do

como se vai levantar e andar de um lado para o outro, assim como nenhum de nós pensa

em todas as ações que tem de levar a cabo para conseguir abrir uma porta, por exemplo.

63 Searle, 1999, p.118

62

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Nestes casos simplesmente agimos. Mesmo quando formulo a intenção de “agora vou

abrir a porta” existe pelo meio um certo número de ações que tenho de levar a cabo para

que consiga abrir a porta, tais como: levantar o braço, abrir a mão, agarrar o puxador e

puxar. Tal quer dizer que “todas as acções intencionais têm intenções em acção, mas

nem todas as acções intencionais têm intenções prévias.”64 Para além disso e tendo por

base os exemplos em que se verificou que para além da intenção base de uma ação

existem outras tantas ações em ato temos de acrescentar mais uma característica acerca

desta problemática. Searle afirma que existe uma conexão entre intenções prévias e

intenções em ato – ambas são auto-referenciais. Seguidamente veremos como é que essa

conexão é estabelecida.

Intenções prévias e intenções em ato são consideradas auto-referenciais, visto

que é a intenção que causa a ação e esta, por sua vez deve ser a execução dessa

intenção. Porém, o que se quer dizer com “execução” neste sentido? Pretende-se dizer

que “a intenção tem que ter um papel causal na acção, e o argumento a favor disso é

simplesmente que, se quebrarmos a conexão causal entre intenção e acção, não teremos

mais um caso de execução da intenção.”65 Este carácter auto-referencial pode ser melhor

explicado recorrendo a um exemplo: imaginemos que eu digo ao agente A para sair da

sala e que ele me responde “eu vou sair da sala, não porque me mandaste, mas porque já

ia sair da sala”. Neste caso, segundo o autor, não podemos dizer que o agente A

desobedeceu à minha ordem, contudo apesar de o agente A ter saído da sala ele não saiu

tendo por base a razão que lhe dei para sair da sala. Deste modo o carácter auto-

referencial neste exemplo só existiria se o agente A tivesse saído da sala devido à razão

que lhe dei para sair e não porque era isso que ele já tencionava fazer

independentemente da minha ordem. Outro exemplo explorado por Searle refere-se à

questão sobre “o que se passa no caso das acções simples, tais como erguer o braço? O

que acontece quando se realiza a acção intencional de erguer o braço?”66

Searle responde a estas duas questões dizendo que existem duas componentes

referentes à ação intencional de erguer o meu braço: a primeira é a experiência de

erguer o braço e o movimento físico do braço. Estas duas componentes não existem de

forma independente uma da outra, uma vez que a experiência de erguer o braço tem

64 Searle, 1999, p.11965 Searle, 1999, p.12066 Searle, 1999, p.121

63

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Intencionalidade e, portanto, também tem condições de satisfação. A experiência de

erguer o meu braço tem um conteúdo Intencional, uma vez que quando ergo o meu

braço tenho uma certa experiência. O conteúdo Intencional será satisfeito se eu tiver a

experiência de erguer o meu braço e este subir e não será satisfeito se eu erguer o meu

braço sem que tenha a experiência de ergue-lo assim como também não será satisfeito

caso eu tenha a experiência de erguer o meu braço e acontecer que este não suba.

Observamos então que no ato de erguer o braço estão reunidas duas componentes sendo

que uma delas é referente ao conteúdo Intencional (experiência de agir) e a segunda às

condições de satisfação desse conteúdo (o movimento do braço). Relativamente à

Intencionalidade contida na experiência de agir a direção de ajustamento é mundo-

mente, uma vez que caso tenha a experiência de erguer o meu braço e mesmo assim este

não suba direi que fui eu que falhei e não o mundo, isto é, eu tentei erguer o meu braço

e mesmo assim não consegui. Enquanto que a direção da causalidade é da experiência

de agir para o evento, no sentido em que se eu conseguir erguer o meu braço (que é o

mesmo que dizer quando o conteúdo Intencional é satisfeito) dizemos que a experiência

de agir causou a subida do meu braço (que corresponde ao evento). É precisamente

neste sentido que Searle defende a premissa de que “Nesta abordagem, a acção, (…), é

uma transacção causal e Intencional entre a mente e o mundo.”67

Visto que não há um termo para aquilo que nos dá conteúdo Intencional à nossa

ação intencional, Searle inventou um. Que é, precisamente, a “experiência de agir” –

uma experiência que reúne as qualidades fenoménicas e lógicas inerentes à experiência

Intencional. Esta experiência de agir como conteúdo Intencional surge de forma a

marcar a diferença fenoménica entre o caso em que um agente sobe o braço e o caso em

que o agente simplesmente observa o braço a subir independentemente das suas

intenções. Ao passo que as qualidades lógicas se relacionam com as condições de

satisfação referentes à experiência de erguer o braço.

Até aqui exploramos quatro importantes conceitos: intenções prévias, intenções

em ato, movimento corporal e ações. Agora o problema reside em saber qual a relação

entre estes quatro elementos. Para tal será necessário perceber com exatidão quais os

conteúdos Intencionais que encontramos nas duas intenções (intenções prévias e

intenções em ato).

67 Searle, 1999, p.123

64

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Apesar de intenções prévias e intenções em ato serem auto-referenciais as

primeiras representam a ação completa assim como as suas condições de satisfação, ao

passo que as intenções em ato apresentam (e não representam) o movimento físico

assim como as suas condições de satisfação. Searle acrescenta ainda que nas intenções

prévias o “objeto Intencional” é a ação completa enquanto que no segundo o “objeto

Intencional” é o movimento. Deste modo, o que se está a pretender dizer é que “a

intenção prévia representa e causa a acção inteira, mas a intenção em acto apresenta e

causa apenas o movimento corporal.”68

Dissemos que uma ação será considerada intencional sempre que reunir dois

componentes: um componente Intencional e um evento que é o seu objeto Intencional.

Contudo, existem ações que designamos como sendo ações não intencionais. Vimos,

anteriormente em Anscombe, que uma ação seria considerada como sendo uma ação

não intencional sempre que o agente não fosse capaz de realizar a ação que pretendia ou

sempre que ele não conseguisse justificar o porquê de ter feito o que fez. Parece

bastante óbvio, que nessa perspectiva o fundamental não era tanto a ação em si, mas

antes a descrição da mesma. No entanto, para Searle encontramos exatamente o oposto,

no sentido em que para este autor o que é fundamental são os factos, isto é, a ação em si,

e não as descrições. Vejamos o exemplo do cão que corre pelo jardim perseguindo uma

bola. Nesta caso, o cão está a realizar uma ação intencional (ao perseguir a bola) e uma

ação não intencional (à medida que corre pelo jardim vai estragando algumas flores).

Deste modo,

“O sentido em que um e o mesmo evento ou sequência de eventos pode ser ao

mesmo tempo uma acção intencional e uma acção não intencional não tem qualquer

conexão intrínseca com uma representação linguística, mas, antes, com uma

apresentação Intencional. Alguns aspectos do evento podem ser condições de satisfação

do conteúdo Intencional, outros podem não o ser; e sob o primeiro conjunto de aspectos,

a acção é intencional, sob o segundo, não o é; embora não seja necessário haver algo de

linguístico na maneira como o conteúdo Intencional apresenta as suas condições de

satisfação.”69

68 Searle, 1999, pp.130-13169 Searle, 1999, p.138

65

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Outro aspeto importante acerca do pensamento de Searle acerca das ações e

intenções é que para além de afirmar que o importante é a ação em si mesma e não as

descrições acerca dela, também afirma que do facto de alguém saber que ao realizar a

sua ação existirão consequências não se segue que ao realizar a ação o agente pretendia

que estas ocorressem. Pensar isso, segundo Searle, é um erro porque “Pode-se saber que

algo ocorrerá como resultado da própria acção embora a sua ocorrência não seja parte

das condições de satisfação da intenção.”70. Por exemplo, quando temos de extrair um

dente do siso o dentista sabe que a ação de extrair o dente, no final, poderá ter como

consequência a dor. Contudo, não é, de todo, sua intenção causar dor ao paciente. Se no

final, o paciente não tiver dor, o dentista não irá pensar que a ação de extrair o dente foi

uma ação falhada, mas antes que estava enganado. Ou seja, o dentista não falhou na sua

ação, apenas estava enganado acerca da sua crença de que a seguir à extração o paciente

iria sentir dor. Então, as condições de satisfação da sua intenção (extrair o dente) foram

satisfeitas, mas as condições de satisfação da sua crença (a seguir à extração do dente, o

paciente sentirá dor) não foram.

A partir daqui será feita a ligação entre intenção e responsabilidade por ações.

Quando pensamos nas pessoas como sendo capazes de realizar ações intencionais e não

intencionais pensamos automaticamente que essas mesmas pessoas são responsáveis por

aquilo que fazem. No entanto, por vezes, atribuímos responsabilidade tanto às várias

coisas que as pessoas fazem, sem que tenham tencionado faze-las como às coisas que

elas tencionaram fazer. Um exemplo para o primeiro tipo poderá ser o caso em que um

condutor atropela acidentalmente um transeunte e um exemplo para o segundo caso

poderá ser a pessoa que é obrigada a passar um cheque de 10.000 euros porque tem uma

arma encostada à cabeça. No primeiro caso, o condutor não teve a intenção de atropelar

o transeunte e, mesmo assim é considerado responsável pela sua ação, mas no segundo

caso o agente teve a intenção de passar o cheque de 10.000 euros e mesmo assim não é

considerado responsável, uma vez que foi condicionado a agir de determinada maneira.

Outra coisa que dissemos no primeiro capítulo desta segunda parte é que quando

falamos de intenções falamos de desejos e de crenças, porém, segundo Searle, não

podemos reduzir intenções prévias a desejos e crenças devido ao carácter auto-

referencial do qual falamos anteriormente. Todavia, mesmo que tal redução não faça

sentido tal não quer dizer que quando tenho a intenção prévia de “Fazer A” não tenha a

70 Searle, 1999, p.140

66

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crença de que, de facto, é possível fazer A. Assim como também não significa que eu

não tenha o desejo de fazer A. Assim, tal como Aristóteles afirmou que não faz sentido

deliberar acerca de coisas que não dependem de nós, isto é, não faz sentido pensar

“quero que chova” porque nunca serei capaz de fazer com que chova. Chover ou não

chover não é algo que depende de mim. Também Searle afirma algo parecido quando

diz que não faz sentido tencionar intenções que não me são possíveis pôr em ação. Nada

me impede de desejar estar em dois sítios ao mesmo tempo, contudo sei que tal não me

é possível. Por isso, não faz sentido dizer que “quero estar aqui e ali ao mesmo tempo”

porque tal não é uma ação que eu consiga levar a cabo. Assim, tal como não posso

tencionar que chova também não posso tencionar estar em dois sítios ao mesmo tempo,

uma vez que “dada a auto-referencialidade das intenções só posso pretender aquilo que

a minha intenção puder causar”.71

Posto tudo isto, resta-me apenas especificar com maior pormenor por que razão

existe uma relação mais estreita entre ações e intenções do que entre crenças e estados

de coisas. Quando pensamos na ação de erguer o braço sabemos que esta ação reúne

duas componentes sendo que a primeira é a intenção em ato (o que estou a fazer agora)

e o movimento de erguer o braço. Se a primeira componente não estivesse presente não

haveria como existir ação e se não existisse a segunda a minha ação de erguer o braço

não teria sucesso. Por essa razão dizemos que não poderá haver ações sem que haja

intenções, visto que toda as ações mesmo que não tenham uma intenção prévia têem

uma intenção em ato. Assim, à questão acerca do que falamos quando falamos de ação

responderemos que falamos de ação sempre que existir um evento onde ocorra uma

intenção em ato. Se esta – a intenção em ato – causar as suas condições de satisfação

diremos que foi uma ação intencional que viu satisfeitas as suas condições de satisfação;

caso não reúna diremos que foi mal sucedida. Por outro lado, quando falamos de uma

ação não intencional falamos de uma ação intencional que foi ou não bem sucedida, mas

que contém aspetos que não foram pretendidos como condições de satisfação da

intenção em ato. Claro que podemos dizer que fazemos muitas coisas de forma

intencional diariamente como tossir, espirrar, piscar os olhos, porém para este autor,

coisas como estas não são consideradas ações, uma vez que não têm intenções em ato.

Posto isto, concluiremos que para que exista ação são necessárias três coisas: a

intenção prévia, a intenção em ato e o movimento, uma vez que “A intenção prévia

71 Searle, 1999, p.142

67

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causa o movimento através do causar a intenção em acto, a qual causa e apresenta o

movimento como sua condição de satisfação.”72

Por outras palavras, o que se pretendeu concluir ao longo deste capítulo é que

não nos é permitido falar de ações sem falarmos de intenções, uma vez que existe uma

conexão entre ações e intenções. Essa conexão dá-se no sentido em que existem dois

tipos de intenções: as intenções prévias (quando pensamos previamente na ação antes de

a levarmos a cabo) e as intenções em ato (quando simplesmente agimos). As primeiras

representam a ação completa enquanto que as últimas apresentam unicamente o

movimento. Por último, concluiu-se que aquilo que dá conteúdo Intencional às nossas

ações é a experiência de agir. Deste modo, uma ação terá um conteúdo Intencional

sempre que essa experiência estiver presente na sua ação e será não Intencional sempre

que não houver experiência de agir.

72 Searle, 1999, p.146

68

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Conclusão

Ao longo de todo este trabalho abordou-se dois importantes temas da Filosofia

da Mente: a consciência e a intencionalidade. Ambos são temas que interessam a várias

disciplinas tanto das áreas da Filosofia como das ciências humanas (como é o caso da

psicologia e do direito, a segunda mais concretamente ligada à intencionalidade, na

medida em que esta se relaciona com a responsabilidade) como das chamadas ciências

duras. Acerca da consciência, apesar de serem várias as disciplinas interessadas em

encontrar uma resposta completa e satisfatória, nos dias de hoje, ainda não nos é

possível apresentar uma resposta livre de lacunas e de mal entendidos sem que se dê

inicio a acesos debates. Porém, do facto de ainda não existir uma resposta pacificadora

acerca desta problemática, tal não significa que não possamos apresentar uma possível

resposta. A resposta que se tentou apresentar ao longo de todo este trabalho é aquela

resposta que me parece ser a mais completa e que mais sentido faz, ou seja, é aquela

resposta com a qual eu mais me identifico.

A tese que procurei defender e espero que tenha ficado suficientemente claro é

que não podemos tentar apresentar uma resposta acerca do que se fala quando se fala de

consciência reduzindo tudo a processos físicos como defende a tese materialista

apresentada neste trabalho através de Patricia Churchland e de Daniel Dennett. O

materialismo não me parece ser aquela teoria que traga consigo a resposta mais

completa acerca da problemática da consciência, na medida em que ao reduzir tudo ao

físico algo permanece de fora. Esse algo é a experiência subjetiva do sujeito que, como

vimos, diz respeito ao modo como o sujeito sente as coisas e as perceciona. Assim,

sempre que dizemos coisas como “a relva é verde” ou “este gelado é delicioso” não nos

encontramos apenas a reportar eventos físicos, mas também qualidades subjetivas das

nossas experiências mentais conscientes. Com isto, pretendeu-se dizer que por base

desta experiência subjetiva estão processos físicos, mas também se pretendeu deixar

claro que nem os estados mentais nem os qualia têm qualquer tipo de influência nos

processos físicos.

Para uma defesa de uma resposta deste tipo foi fundamental recorrer-se à divisão

entre problemas fáceis e difíceis da consciência explorados por David Chalmers.

Certamente que não podemos pôr em causa muitos dos factos óbvios da Física como é o

69

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caso da lei da gravidade ou então de tudo aquilo que foi sendo dito por parte das

neurociências acerca do modo como o nosso cérebro perceciona os objetos. Embora não

possamos duvidar de tudo isto, também não me parece plausível negar que sou

possuidora de qualia, de uma experiência subjetiva que é, precisamente, uma

experiência de primeira pessoa à qual eu tenho um acesso direto e privilegiado.

Contudo, autores como Patricia Churchland e Daniel Dennett surgem com um

pensamento acerca da consciência assente fundamentalmente na ideia de que a

consciência pode ser explicada única e exclusivamente através da explicação dos

processos físicos ocorrentes no cérebro e na aniquilação dos qualia. No caso de Daniel

Dennett, essa aniquilação surge como sendo a peça-chave de toda a sua teoria acerca da

consciência. Pois, para Dennett, insistir numa defesa dos qualia, isto é, de uma

experiência fenomenológica é estar a querer negar todos os avanços científicos

conduzidos pela Ciência.

Como vimos, Dennett, através do modelo de Esboços Múltiplos pretendeu

relacionar a consciência com a memória afirmando que nem sempre temos consciência

das coisas no momento extato em que estas ocorrem e que prova disso, segundo o autor,

são as narrativas. Por vezes, pensamos que estamos a relatar um acontecimento tal e

qual ele ocorreu, quando tal poderá não corresponder à realidade. Assim, vimos que

Dennett aborda a questão da consciência através de um ponto de vista epistemológico e

não ontológico nem de primeira pessoa e que ao aniquilar os qualia está a substitui-los

por crenças. Essa substituição ocorre, na medida em que os relatos levados a cabo tendo

em conta a nossa memória são traduzidos por crenças que consequentemente serão tidas

como verdadeiras ou falsas. Porém, como pretendi dizer, apresentar uma resposta deste

tipo é apenas aceitar a parte objetiva da consciência e ignorar, por outro lado, aquilo que

corresponde ao verdadeiro problema da consciência. São fenómenos como o sofrimento

causado por uma dor intensa, segundo a minha opinião, que constituem o verdadeiro

problema da consciência. Assim, o que se pretendeu afirmar a partir de Chalmers foi um

dualismo naturalista, no sentido em que a consciência é encarada como sendo um

fenómeno natural, uma vez que, por um lado se relaciona e depende dos processos

cognitivos ocorrentes no cérebro e por outro, trata-se de uma experiência subjetiva,

visto que depende de algo como é ser alguma coisa. Outro autor que se revelou

importante para a apresentação de uma resposta ainda mais completa acerca da

consciência foi John R. Searle, na medida em que para este, a consciência é uma

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ontologia de primeira pessoa, visto que estados mentais como dores e desejos são

sempre estados de alguém e só esse alguém tem uma noção clara e precisa dos estados

mentais que sente em determinado momento. Por outro lado, os processos físicos

ocorrentes no cérebro são de terceira pessoa. Desta forma, a partir das sete teses contra

o materialismo expostas por Searle e dos três argumentos defendidos por Chalmers

argumentou-se a favor da falsidade do materialismo ao mesmo tempo que se defendeu

um certo tipo de dualismo – o Dualismo Naturalista. Este surge como sendo uma

combinação entre o dualismo de propriedades e o funcionalismo, no sentido em que a

experiência consciente implica a existência de propriedades fenomenais que têm a sua

origem e são influenciadas pelas propriedades físicas, contudo as primeiras não têm

qualquer influencia nas últimas. Assim, o que se pretendeu afirmar é que aceitar uma

tese puramente física seria deixar uma parte da questão da consciência de fora – a parte

subjetiva –, mas aceitar uma tese onde se teria unicamente em conta a experiência

subjetiva do sujeito estaria igualmente errada e incompleta. Desta forma, o que se

concluiu acerca da questão da consciência é que a forma mais completa de pensar Este

problema – o da consciência – é pensar e aceitar que a consciência é constituída tanto

por propriedades fenomenais como por propriedades físicas.

Normalmente quando pensamos em seres humanos pensamo-los como sendo em

primeiro lugar pessoas e em segundo lugar como sendo possuidores de consciência. Foi

precisamente neste sentido que abordei a questão de pessoalidade e de identidade

pessoal, uma vez que tinha em mente dois objetivos: o primeiro consistia em perceber o

que faz de nós pessoas e o segundo consistiu na procura da resposta acerca se seríamos

ou não os únicos seres possuidores de consciência. Acerca disto concluiu-se que aquilo

que faz de nós pessoas nada tem que ver com a espécie à qual pertencemos, mas antes

às capacidades que possuímos. Foram referidas duas: a autoconsciência que

corresponde às experiências conscientes e ao sentido do eu e a racionalidade que

engloba a racionalidade teórica e a racionalidade prática. Quanto ao segundo objetivo

chegou-se à conclusão que tanto nós como os restantes animais temos algo em comum,

esse algo é a senciência, ou seja, tanto nós como os outros animais somos capazes de ter

experiências conscientes de dor e de prazer, por exemplo. Contudo, quanto mais

afastada da nossa espécie um certo organismo estiver, mais dificilmente conseguimos

atribuir algum grau de consciência. Desta forma, a principal diferença apontada de

forma a diferenciar as pessoas dos restantes animais foi a racionalidade – tanto teórica

71

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como prática. Evoluímos num sentido em que mais nenhuma espécie conseguiu: somos

seres racionais e como tal somos capazes de pensar, raciocinar e de apresentar razões de

forma a justiçar o porquê de termos feito isto e não aquilo. Somos seres capazes de agir

em função das nossas intenções que como vimos, a partir de Anscombe dependem de

pelo menos de um desejo e de uma crença. Também vimos que não poderíamos falar de

ações sem a existência destas três características (intenções, desejos e crenças) assim

como também não poderíamos se faltasse o fundamental: a mente.

Por último, com este trabalho também pretendi deixar claro que quando estamos

conscientes não estamos simplesmente conscientes, visto que sempre que estamos

conscientes estamos conscientes de alguma coisa. Este “de” de “consciente de”, por

vezes é intencional e por vezes não é. No sentido de deixar clara esta distinção decidiu-

se apresentar a teoria da Intencionalidade a partir de Searle de forma a perceber quando

é que estados mentais são Intencionais e quando não o são. Em primeiro lugar verificou-

se que para cada estado mental existe um ato da fala que lhe é correspondente e ambos

possuem Intencionalidade sempre que apresentem uma direcionalidade ou sejam acerca-

de alguma coisa. No entanto, a Intencionalidade referente a cada um deles corresponde

a um tipo diferente: os estados mentais possuem uma Intencionalidade intrínseca ao

passo que os atos da fala possuem uma Intencionalidade derivada. Para além da

direcionalidade existem mais duas características que fazem parte da natureza dos

estados Intencionais: Intencionalidade não é o mesmo que consciência e intenção é um

tipo de Intencionalidade (daí a diferenciação entre o “i” minúsculo e o “I” maiúsculo.

Por fim, procurou-se perceber como é que intenções e ações se relacionavam tendo em

conta a teoria da Intencionalidade.

Apresentar a teoria da Intencionalidade de Searle foi fundamental para a segunda

parte de todo este trabalho, visto que permitiu o fornecimento de uma explicação mais

clara acerca da relação entre ações e intenções e assim melhor fundamentar as questões

da pessoalidade entretanto introduzidas. Segundo Searle não há ações sem intenções:

entre elas existe uma conexão. As ações que são por nós levadas a cabo podem conter

intenções prévias – sempre que pensamos na ação que pretendemos levar a cabo antes

de agir – e intenções em ato – quando não pensamos previamente e simplesmente

agimos. Por outras palavras, sempre que agimos existe uma intenção prévia e intenções

em ato. Tal, foi observado a partir do exemplo do cão que corre para apanhar a bola e

entretanto estraga as flores do jardim. A intenção prévia diz respeito ao apanhar a bola e

72

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a intenção em ato, por sua vez, é referente ao ato de estragar as flores. Ao passo que a

intenção prévia representa a ação completa, a intenção em ato apenas apresenta o

movimento. Entre estas duas intenções existe uma conexão, na medida em que são auto-

referenciais. Essa conexão foi explicada da seguinte forma: a relação existente entre

estas duas ações é auto-referencial, uma vez que é a intenção que causa a ação e esta por

sua vez deve ser a execução dessa mesma intenção.

No que respeita a ações intencionais e não intencionais concluiu-se que uma

ação intencional tem inerentes a si dois componentes sendo que um deles é respeitante à

experiência e o segundo ao movimento. Uma vez que a experiência tem um conteúdo

Intencional, também irá ter condições de satisfação sendo que estas apenas serão

consideradas satisfeitas se, de facto, houver experiência. Por outro lado, quando falamos

de uma ação não intencional falamos de uma ação intencional que contém aspetos que

não foram pretendidos como condições de satisfação da intenção em ato. Dizemos que

ocorreu uma intenção não intencional quando o agente A tinha como intenção matar o

seu tio e acidentalmente (numa ação em ato) atropela alguém que, por acaso, é o seu tio

e este morre.

Em contrapartida, sem intenções e acções não teríamos no mundo os fenómenos

da pessoalidade e de identidade pessoal que, conforme foi defendido neste trabalho,

constituem as mentes propriamente humanas.

73

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Bibliografia

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