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MENOR B E MENOR PRESO? Nove em cada dez brasileiros sao favoraveis a reducao da maioridade penal, a despeito da oposicao do governo federal, de juristas, da Igreja Catolica e de organizacoes de direitos humanos. 0 que explica tanto clamor pelo encarceramento dos adolescentes infratores? por RODRIGO MARTINS ilustractio de MARCELO CIPIS 0 INICIO DE ABRIL, 0 universitario Victor Hugo Deppman, de 19 anos, foi aborda- do por urn rapaz ar- mado na porta de casa, em Sao Paulo. Mesmo apos entregar o celular, sem es- bocar qualquer reacao, acabou executa- do corn urn tiro na cabeca. A morte bru- tal logo ganhou destaque na midia e rea- cendeu um debate que se arrasta ha mais de duas decadas no Brasil, sempre de vol- ta a baila quando a classe media se ye vi- tima de novo ato de barbarie: a reducao da maioridade penal. 0 assassino, soube- -se mais tarde, era urn adolescente infra- tor reincidente. Ele assumiu a autoria do crime, ocorrido tres diavantes de com- pletar 18 anos. Como nao haviaatingido a idade para a responsabilizacao criminal, voltou a cumprir medida socioeducativa na Fundacao Casa.Antes dos 21 anos, de- ve estar solto, como determina o Estatuto da Crianca e do Adolescente. Diante da repercussao na midia e em meio aos protestor convocados por ami- gos e familiares, o instituto Datafolha saiu as ruas para aferir a opiniao da po- pulacao quanto a possibilidade da redu- cao da maioridade penal, prevista em mais de 50 projetos em tramitacao no Congresso. 0 resultado: 93% dos paulis- tanos mostraram-se favoraveis a respon- sabilizacao criminal de jovens a partir dos 16 anos, e nao mais aos 18, como de- termina a atual legislacao. A adesao ma- cica a ideia poderia ser influenciada pe- lo calor dos acontecimentos. Mas, passa- dos doffs meses, o Vox Populivoltou as ru- as corn a mesma pergunta, dessa vez em uma pesquisa de abrangencia nacional. A conclusao foi estarrecedora: 89% dos entrevistados acham necessario encar- cerar os adolescentes infratores. Urn consenso popular que desafia as politicas publicas em yoga na socieda- de. 0 resultado das pesquisas contraria a posicao defendida pelos governos Lula e Dilma, a opiniao de juristas que en- xergam na proposta um "populismo pe- nal", o entendimento da Igreja Catolica 28 WWW.CARTACAPITAL.COM.BR

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MENOR B E MENOR PRESO?

Nove em cada dez brasileiros sao favoraveis a reducao da maioridade penal, a despeito da oposicao do governo federal, de juristas, da Igreja Catolica e de organizacoes de direitos humanos. 0 que explica tanto clamor pelo

encarceramento dos adolescentes infratores? por RODRIGO MARTINS ilustractio de MARCELO CIPIS

0 INICIO DE ABRIL, 0

universitario Victor Hugo Deppman, de 19 anos, foi aborda- do por urn rapaz ar-

mado na porta de casa, em Sao Paulo. Mesmo apos entregar o celular, sem es- bocar qualquer reacao, acabou executa- do corn urn tiro na cabeca. A morte bru- tal logo ganhou destaque na midia e rea- cendeu um debate que se arrasta ha mais de duas decadas no Brasil, sempre de vol- ta a baila quando a classe media se ye vi- tima de novo ato de barbarie: a reducao da maioridade penal. 0 assassino, soube- -se mais tarde, era urn adolescente infra- tor reincidente. Ele assumiu a autoria do

crime, ocorrido tres diavantes de com-pletar 18 anos. Como nao haviaatingido a idade para a responsabilizacao criminal, voltou a cumprir medida socioeducativa na Fundacao Casa.Antes dos 21 anos, de-ve estar solto, como determina o Estatuto da Crianca e do Adolescente.

Diante da repercussao na midia e em meio aos protestor convocados por ami-gos e familiares, o instituto Datafolha saiu as ruas para aferir a opiniao da po-pulacao quanto a possibilidade da redu-cao da maioridade penal, prevista em mais de 50 projetos em tramitacao no Congresso. 0 resultado: 93% dos paulis-tanos mostraram-se favoraveis a respon-sabilizacao criminal de jovens a partir

dos 16 anos, e nao mais aos 18, como de-termina a atual legislacao. A adesao ma-cica a ideia poderia ser influenciada pe-lo calor dos acontecimentos. Mas, passa-dos doffs meses, o Vox Populivoltou as ru-as corn a mesma pergunta, dessa vez em uma pesquisa de abrangencia nacional. A conclusao foi estarrecedora: 89% dos entrevistados acham necessario encar-cerar os adolescentes infratores.

Urn consenso popular que desafia as politicas publicas em yoga na socieda-de. 0 resultado das pesquisas contraria a posicao defendida pelos governos Lula e Dilma, a opiniao de juristas que en-xergam na proposta um "populismo pe-nal", o entendimento da Igreja Catolica

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• Castigo. Sao comuns relatos de agressoes contra internos que tentam fugir

e de incontaveis organizaeOes de defesa dos direitos da crianca e do adolescen-te, a vislumbrar na reducao da maiori-dade penal mais maleficios que benefi-cios. Curiosamente, nenhum outro te-ma polemico da agenda nacional mobi-liza tamanha concordancia da popula-cao. Segundo diferentes pesquisas, pro-posicoes como pena de morte e casamen-to gay, por exemplo, costumam dividir a populaeao ao meio. Ao menos urn quar-to defende a legalizaedo da maconha ou a descriminalizacao do usuario de dro-gas. 0 que explicaria, entao, o aparente paradoxo logico? Por que boa parte da populacao que se mostra liberal em te-mas igualmente polemicos a tao taxati-va quando se trata de prender adolescen-tes como bandidos comuns?

"Nao se pode dizer que todos os que apoiam a reducao da maioridade pe-nal sao conservadores ou reacionarios. Dentro de urn universo tao amplo, ha se-guramente cidadaos corn posicOes pro-gressistas em relacao a direitos civis e individuais, mas que se sentem acua-dos pela violencia e seduzidos por solu-eties magicas", avalia o cientista politico Marcos Coimbra, diretor do Vox Populi. "No mundo todo, ha uma predisposicao da opiniao piiblica a acreditar que a vio-lencia so vai reduzir corn mais repressao, mais prisOes e penas mais duras. E nao ha uma defesa enfatica do argumento con-trario. Corn a espetacularizacao dos cri-mes cometidos por menores natelevisao, quem se dispOe a dizer abertamente que a prisdo para os adolescentes nao e justa?"

Especialistas, ONGs de direitos hu-manos e organismos internacionaisbem que tentam demonstrar as falacias da proposta. "Os adolescentes sao mais vi-timas que autores de violencia. Em 2011, eles foram re sponsaveis por, aproxima-damente, 1,8 mil homicidios, 8,4% do to-tal. No mesmo ano, 4,3 mil jovens entre 12 e 18 anos incompletos foram assassi-nados. Mas quando urn garoto negro é morto na periferia poucos dao atencao.

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Fonte: DMF/CNJ

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internagao

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analfabetos

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de drogas

PERFIL DO INFRATOR

1 anos

é a idade media

MASMORRAS JUVENIS

Porcentual dos adolescentes que relataram sofrer abusos nas unidades de internacao

agress'ao fisica por parte da PM

agressao fisica por parte dos

funcionarios

190 0

castigo fisico

nao frequentavam mais a escola

I? EPOR /

EM 2011, OS ADOLESCENTES FORAM RESPONSAVEIS POR 1,8 MIL

HOMICIDIOS. NO MESMO ANO, 4,3 MIL JOVENS ENTRE 12 E 18 ANOS

INCOMPLETOS FORAM ASSASSINADOS

A midia costuma dar destaque apenas quando cidadaos de classe media ou alta sao as vitimas", critica Mario Volpi, co-ordenador do programa de Cidadania dos Adolescentes do Unicef, ligado as Nacties Unidas. "Em 2011, os homici-dios cometidos por menores represen-taram 3,7% do total de casos no Brasil. Nos EUA, onde diversos estados tratam adolescentes como adultos, inclusive na eventual aplicacao de pena de morte ou prisao perpetua, eles foram responsa-veis por 11% dos assassinatos."

a avaliacao do advogado Rafael Custodio, da ONG Conectas, o que esti em jo-go é a politica penal que o Brasil pretende adotar. Se

o foco e punitivo, o Pais tende a seguir o exemplo americano de encarceramento em massa. Trata-se de uma abordagem distinta do direito restitutivo, que preco-niza a recuperacao dos infratores para a futura reinsercao social. "E impossivel de isso ser feito num presidio comum, ainda mais com a atual superlotacao. Hoje, a po-pulacao carceraria brasileira a superior a 550 mil detentos, e ha urn deficit de 200 mil vagas. 0 Estado nao garante a segu-ranca dos presos, eles sao alvo de extor-silies do crime organizado. Para sobrevi-ver nesse ambiente hostil, muitos se as-sociam a faccOes criminosas."

De fato, nao parece fazer sentido jo-gar os 60 mil jovens que cumprem me-didas socioeducativas em presidios con-vencionais se o objetivo é tird-los do cri-me. Ainda que 43,3% deles sejam infra-tores reincidentes, no encarceramento adulto a mediae ainda pior. Sete em ca-da dez presos que deixam o sistema peni-tenciario voltam ao crime, uma das maio-res taxas de reincidencia do mundo. Mas nao deixa de ser legitima a preocupacao da populacao corn sua propria seguran-ca, afirma Renato Janine Ribeiro, profes-sor de Etica e Filosofia da Universidade de Sao Paulo. "Se a reducao da maioridade FO

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Visaes. Malta insiste na reducao da maioridade. Mesmo apos a morte da filha, Friedenbach propbe uma alternativa

O SISTEMA CARCERARIO TEM

550 MIL DETENTOS E UM DEFICIT DE 200 MIL VAGAS.

ONDE COLOCAR OS ADOLESCENTES?

penal nao é boa, qual é a melhor opcao? Deixartudo como esta? Estamos perden-do tempo corn esse sim ou nao para a mes-ma proposta, e os chamados `setores pro-gressistas' nao apresentam alternativas."

0 filosofo teme que a solucao simplista de reduzir a ida-de penal apenas sirva para antecipar a praticadelituo-sa entre os adolescentes.

Caso a maioridade passe a valer a partir dos 16 anos, por exemplo, o que garantiria que o trafico nao passasse a aliciarjovens de 13 ou 14 anos, por exemplo? De toda forma, prop& uma alternativa:"Quando urn adulto alicia urn menor para praticar um roubo e o adolescente matauma pes-soa, o adulto deveria ser responsabiliza-do pelo homicidio. 0 mesmo deveria va-ler para qualquer outro crime".

Abuscapor opcOes tambemlevou ove-readorpaulistanoAriFriedenbach (PPS) a propor outra inovacao. Em 2003, ele so-freu corn o brutal assassinato de sua fi-lha Liana, de 16 anos, caso ern que hou-ve a participacao de urn adolescente. Defensor ardoroso da reducao da ,maio-ridade penal, mudou de opiniao."E inefi-caz, pois estimula os criminosos a recru-tar adolescentes ainda mais novos", pon-dera. "Mas nao posso conceber que urn estuprador ou um homicida de 16 anos cumpra no maximo tres anos de interna-cao. Por isso, acho que para cinco crimes

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de maior potential ofensivo (homicidio, latrocinio, estupro, roubo a mao armada e sequestro) o adolescente deve, sim, serjul-gado e condenado. Permanece numa ins-tituicao como a Fundacao Casa ate corn-pletar 18 anos e depois termina de cum-prir a sentenca num presidio comum."

proposta livraria da ca- deia adolescentes envol- vidos corn pequenos fur- tos ou corn trifle() de dro- gas, por exemplo. Estes

continuariam a cumprir medidas so- cioeducativas nos moldes atuais. Mas o texto proposto pelo vereador ainda

espera alguem disposto a apresent-lo no Congresso. E os mais conservadores insistem na punicao ampla e irrestri-ta. "Crianca a quem toma mamadeira, faz xixi no colo da mae e dorme no ber-co. Quem rouba, mata e estupra é bandi-do e ponto", esbraveja o senador Magno Malta, autor de urn projeto que preve a responsabilizacao criminal de qualquer cidadao, independentemente da idade. Da Assembleia Legislativa de Sao Paulo, o deputado estadual Campos Machado puxa urn abaixo-assinado para tentar emplacar urn plebiscito sabre o tema. "E uma forma de furar a blindagem do govern federal, que impede a discussao

do tema no Congresso. Vamos deixar o povo decidir."

Se a disputa politica assemelha-se a uma briga de foice, no meio juridico o certhrio nao é tao distinto. Ministros do Supremo Tribunal Federal, como Gilmar Mendes e Marco Aurelio Mello, ja se ma-nifestaram contra a alteracao das re-gras. Mesma opinido tem o presidente da Associacao dos Magistrados Brasileiros (AMB), Nelson Calandra. "0 sistema carcerario esta superlotado, nao a pos-sivel botar mais gente." Mas uma pes-quisa feita pela entidade em 2006, corn mais de 3 mil entrevistados, revelou que 61% dos juizes brasileiros sao favoraveis a proposta. Entre os promotores, a diver-gencia tambem 6 grande. "Jogs-los naca-deia nao resolvers nada, precisamos re-cuperar esses jovens", opina o promotor paulista Fernando Henrique de Moraes Araujo, corn 14 anos de experiencia na Vara de Infancia e Juventude. "E cho-cante a legislacao permitir a impunida-de dos adolescentes enquanto aviolencia estagrassando na sociedade", rebate o co-lega Oswaldo Monteiro da Silva Netto.

AN/ urn equivoco dizer que os menores infratores estao impunes. Se o cumprimento das medidas socioeducati-vas nao esta surtindo o efei-

to esperado, devemos reavaliar o traba-lho feito corn os jovens, e nab jogs-los nu-ma cela", avalia a defensora publica pau-listana Juliana Ribeiro. "As instituicOes que abrigam os infratores nao funcio-nam adequadamente. Os monitores por-tarn-se como carcereiros. A escola reline em uma mesma sala adolescentes de di-ferentes niveis de aprendizado. Os psico-logos e assistentes sociais estao sempre sobrecarregados. E sao corriqueiras as demancias de agressao contra os inter-nos. Cansei de ver garotos corn sinais de espancamento, cabeca rachada... E es se tratamento que precisa ser revisto, e nao a legislacao." •

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