RELAÇÕES INTERPESSOAIS NA ESCOLA: CULTURA ESCOLAR...
-
Upload
duongxuyen -
Category
Documents
-
view
213 -
download
0
Transcript of RELAÇÕES INTERPESSOAIS NA ESCOLA: CULTURA ESCOLAR...
RELAÇÕES INTERPESSOAIS NA ESCOLA: CULTURA ESCOLAR,
CONFLITOS E PROCEDIMENTOS DIDÁTICOS
No campo de estudos sobre cultura escolar, um conceito correlato refere-se às relações
interpessoais, espontâneas e rituais, construídas permanentemente em conexão com o
ensino/aprendizado, formando subjetividades docentes e discentes e, não raro, gerando
de conflitos. Este painel apresenta três artigos sobre os temas “relação professor-aluno e
(in)disciplina”, buscando vinculações destes com procedimentos didáticos dos docentes.
O primeiro – Os conflitos escolares nos anos finais do ensino fundamental –, faz um
recorte bibliográfico, abordando perspectivas de diferentes autores para compreender o
porquê de mudanças comportamentais de indisciplina e da ocorrência de conflitos em
classes de 9o ano de ensino fundamental, as quais dificultam o trabalho docente, em
uma escola pública estadual da Grande São Paulo. A segunda – As manifestações do
Professor Mediador Escolar e Comunitário (PMEC) acerca da resolução de conflitos –,
foi realizada em escolas públicas estaduais da capital do Estado de São Paulo e na
Diretoria Regional de Ensino correspondente. Expõe como se constituiu a função do
PMEC, apresenta conceitos de violência, conflito e mediação e destaca conflitos
comuns nas escolas e ações de mediação do PMEC. A terceira – A relação professor-
aluno: entre (in)disciplina e procedimentos didáticos –, subproduto de pesquisa coletiva
desenvolvida no âmbito de uma instituição privada de ensino superior da cidade de São
Paulo, busca responder à questão: Quais explicações diferentes pesquisadores
encontraram quanto às facilidades/dificuldades de professores e alunos se relacionarem
visando alcançar o objetivo da escolarização? Analisa quatro dissertações de mestrado
resultantes de pesquisas de campo realizadas em escolas públicas de ensino fundamental
e médio, em diferentes estados da federação. Identifica a uso das tarefas escolares para
demonstração de poder, vigilância e controle de corpos e mentes como aspectos comuns
aos quatro trabalhos.
PALAVRAS-CHAVE: Cultura Escolar, Relação Professor-Aluno, (In)Disciplina E
Mediação
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
4132ISSN 2177-336X
2
AS MANIFESTAÇÕES DO PROFESSOR MEDIADOR ESCOLAR E
COMUNITÁRIO (PMEC) ACERCA DA RESOLUÇÃO DE CONFLITOS
Eixo temático 1: Didática e prática de ensino: desdobramentos em cenas na educação pública.
Sub-tema 1.3: Modos do ensinar e aprender em experiências.
Patrícia Paloma Gonçalves Soares
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/PUC-SP
Resumo
O foco desta pesquisa foi investigar alguns elementos que definem a atuação do
Professor Mediador (de conflitos) Escolar e Comunitário (PMEC), função criada pela
Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (SEE-SP) no ano de 2010. Procurou-se
descrever e analisar as manifestações acerca de como deve ser e de como acontece a
ação desses professores na mediação de conflitos que surgem no cotidiano escolar. Para
isso foram realizadas entrevistas com professores mediadores e com supervisores de
ensino de uma Diretoria Regional, bem como o exame de documentos oficiais que
regulamentam e orientam as ações e as funções desses novos profissionais. O objetivo
foi analisar o que define e como se constitui a mediação de conflitos na legislação e em
outros documentos, como também na ação do PMEC, descrevendo os elementos
presentes na mediação de conflitos que levam à adaptação do sujeito à sociedade, na
perspectiva de Adorno (2006c; 2006d). A hipótese formulada foi que a criação da
função do PMEC foi a estratégia encontrada pela SEE-SP para lidar com determinadas
situações problemáticas na escola, visando não a busca de solução, mas a criação de
mecanismos que possibilitem a convivência com tais situações, especialmente com os
conflitos e a violência que ocorrem no interior da escola. A análise dos documentos,
assim como dos relatos dos sujeitos entrevistados, pautada nas proposições do autor
citado – principalmente as que se referem à formação, à adaptação e à barbárie –,
possibilitou a confirmação da hipótese. Constatou-se que a mediação exercida pelos
PMECs encontra-se assentada no propósito da adaptação dos alunos à ordem escolar; a
intenção é a de conduzir os conflitos, tendo em vista seu apaziguamento e a conciliação
entre as partes envolvidas com base na justiça restaurativa.
Palavras-chave: Violência na escola; Mediação de conflitos; Justiça restaurativa.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho teve por meta investigar o trabalho do Professor Mediador
Escolar e Comunitário (PMEC), profissional que atua nas escolas públicas estaduais
paulistas desde o segundo semestre de 2010 e cuja função é vinculada ao programa
Sistema de Proteção Escolar, implementado pela Secretaria de Educação do Estado de
São Paulo (SEE-SP). A função do PMEC é definida no próprio nome: mediar os
conflitos que acontecem na escola e envolve também a criação de condições de diálogo
com outros agentes da comunidade externa à escola.
Tal meta nos levou aos seguintes problemas: O que se entende por violência, por
conflito e por mediação? Porque e para que foi criada essa função no Sistema Estadual
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
4133ISSN 2177-336X
3
de Ensino de São Paulo? Qual a relação estabelecida entre o Sistema de Proteção
Escolar e as atribuições do PMEC?
Neste sentido, o objetivo desta pesquisa foi descrever e analisar como se
constituiu a ação de mediação do PMEC, de modo a entender, na perspectiva dos
conceitos de formação, adaptação e barbárie (ADORNO, 2006c; 2006d), quais
tendências surgem na mediação realizada por esse profissional.
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
A pesquisa se caracteriza por ser documental e empírica. Inicialmente foram
levantadas informações no site da SEE, a fim de explorar os documentos legais sobre o
tema. Encontrou-se uma sequência de resoluções que extinguem normas anteriores, se
completam, definem e dão corpo ao Sistema de Proteção Escolar, bem como
normatizam a função do PMEC: Resoluções SE no 19/2010, nº 1/2011 e nº 7/2012. Tais
resoluções criam os dispositivos legais do Sistema de Proteção Escolar e do Professor
Mediador Escolar e Comunitário, assim como define a atuação desse profissional (carga
horária e atividades a serem desenvolvidas). As atividades são pautadas no sistema de
Justiça Restaurativa, a qual implica na utilização de procedimentos restaurativos,
entendidos como qualquer processo no qual a vítima e o ofensor, e quando apropriado,
quaisquer outros indivíduos envolvidos ou membros da comunidade afetada pelo crime,
participam em conjunto e ativamente na resolução dos problemas nascidos do crime,
geralmente com ajuda de um facilitador (Resolução 2002/12 do Conselho Social e
Econômico da ONU).
Dois manuais publicados pela SEE foram incorporados à pesquisa documental.
Um, com o título de Manual de Proteção Escolar e Promoção da Cidadania, onde
encontramos a definição de vários conceitos que cercam questões do cotidiano escolar.
O primeiro é o de cidadania, entendida como “o conjunto de direitos e deveres a que o
indivíduo está sujeito em relação à sociedade em que vive” (SÃO PAULO, 2009, p. 9).
Outras definições são abordadas como paz, cultura de paz e violência. O manual possui
83 páginas e é destinado ao corpo docente da instituição escolar; escrito de forma bem
direta e pontual, apresenta os conflitos como geradores da violência; logo a necessidade
de mediar tais conflitos.
O outro manual, publicado no mesmo ano, Normas Gerais de Conduta Escolar,
Sistema de Proteção Escolar (2009), traz normas e regras de condutas que o aluno deve
seguir para garantir o bom andamento escolar. Começa apresentando os direitos que os
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
4134ISSN 2177-336X
4
alunos possuem em relação à instituição escolar; em seguida, apresenta seus deveres e
finaliza com um texto tratando das condutas no ambiente escolar, pontuando as
estratégias que melhor constroem e promovem um ambiente harmonioso.
No Manual de Proteção Escolar e Promoção da Cidadania (SÃO PAULO, 2009),
temos todos os itens organizados e contextualizados em situações de conflitos, que são
definidos nos seguintes termos:
Os conflitos originam-se da diferença de interesses, desejos, valores e aspirações
no convívio com a diversidade social (CHRISPINO & CHRISPINO, 2002). Os
conflitos não constituem obstáculos à paz, porém a resposta dada aos conflitos
pode 4orna-los negativos ou positivos, construtivos ou destrutivos, razão pela
qual suas formas de resolução ou mediação tornam-se foco de atenção e
intervenção (GUIMARÃES, 2003). A violência decorre da não resolução dos
conflitos ou de sua resolução de forma inadequada (SÃO PAULO, 2009, p. 11).
No mesmo manual, tem-se a definição de violência pautada na Organização
Mundial de Saúde (OMS):
Violência é o uso intencional da força física ou o poder, real ou por ameaça,
contra a pessoa mesma, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou comunidade
que possa resultar em ou tenha alta probabilidade de resultar em morte, lesão,
dano psicológico, problemas de desenvolvimento ou privação (SÃO PAULO,
2009, p. 11).
Percebe-se ao longo do texto, de forma indireta, a preocupação da SEE-SP em
proteger a escola da atual situação conflituosa que vem desencadeando a violência em
seu interior. Tal situação é reconhecida pelos agentes que gerenciam tal instituição,
tanto que organizaram um grande projeto (Sistema de Proteção Escolar) a partir do qual
se vislumbra amenizar as consequências negativas da violência presente na sociedade e
nos estabelecimentos de ensino.
Um fato interessante é que, em ambos os manuais, não existe qualquer menção
direta sobre a função do PMEC, entretanto foi detectado no Manual de Proteção Escolar
e Promoção da Cidadania (2009) a presença de um texto que focaliza a prática da
mediação dos conflitos, indicada como a melhor solução preventiva da violência na
escola. A ênfase dada à mediação é tão destacada no manual que deu surgimento à já
mencionada Resolução SE no 19/2010, a SEE publica instaura legislativamente o
Sistema de Proteção Escolar. E é nesta resolução que surge a função do Professor
Mediador Escolar e Comunitário (PMEC).
A escolha do lugar pesquisado se fez diante da leitura dos Relatórios dos
Observatórios do Núcleo de Estudo de Violência (NEV) da USP (2000, 2002). Em tais
relatórios, constatava-se que, na cidade de São Paulo, duas regiões concentram altos
índices de violência na escola, Zonas Leste e Sul. Diante disso, optamos por concentrar
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
4135ISSN 2177-336X
5
a pesquisa na zona sul. Fazendo o cotejamento entre as informações dos Relatórios dos
Observatórios do NEV com consultas às Diretorias de Ensino (DEs), foi escolhida a DE
Sul 2 por contemplar no seu atendimento três distritos tidos como de alto índice de
violência, que repercute na escola: Capão Redondo, Jardim São Luís e Jardim Ângela.
Assim, ainda na fase de elaboração do projeto de pesquisa, realizou-se visitas à DE Sul
2, a fim de aprofundar informações acerca dos PMEC, sua função e formação e definir o
campo empírico. Os responsáveis pela supervisão forneceram informações importantes,
que permitiram a definição da trajetória desta pesquisa. Além disso, apresentaram outro
manual: Manual Prático de Introdução a Justiça Restaurativa para Professores
Mediadores Escolares e Comunitários, básico para a formação inicial dos PMEC.
A perspectiva teórica escolhida foi a Teoria Crítica da Sociedade,
principalmente, as discussões trazidas por Adorno, em especial os conceitos formação,
adaptação e barbárie. Sendo o tema – a ação dos PMEC e mediação de conflitos –
expressão de um fenômeno que extrapola a educação escolar, que é o da violência,
entendeu-se que a escolha desta perspectiva teórica é coerente ante as considerações e
discussões referentes às condições que produzem e reproduzem a barbárie, pois Adorno
(2006e) discute os elementos constitutivos da violência nas relações humanas.
A relevância acadêmica desta pesquisa está no fato de se tratar de um tema (a
função do PMEC) pouco estudado até o presente. Outra justificativa da relevância é que
não encontramos trabalhos dedicados a indagar se a ação de mediação de conflitos feita
pelo PMEC, na prática, se dá na perspectiva de formação do indivíduo, tal como
definida por Adorno (2006a), ou se predomina a tendência à adaptação.
Na pesquisa de campo, o instrumento utilizado foi a entrevista. Foram feitas
entrevistas com 18 PMECs e dois supervisores da DE Sul 2. As entrevistas se
apresentam de forma bem distinta: alguns PMEC foram bastante extensos nas suas
respostas, outros mais sucintos. Considerando o contexto de todas as entrevistas, ficou a
sensação de que as respostas mais sucintas estavam atreladas ao descrito nos
documentos, e aqueles que mais ousaram se expor trouxeram elementos que os
documentos não abordam.
A organização dos dados coletados
Os dados foram organizados, à luz do que Adorno (2006f) discute sofre
formação e emancipação, uma tipologia das respostas dadas pelos entrevistados e das
informações encontradas nos documentos no que se refere aos conceitos de mediação,
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
4136ISSN 2177-336X
6
conflito e violência. Tal organização foi baseada justamente no que se encontrou na
pesquisa empírica, inspirada pelo referencial teórico.
Da leitura das entrevistas e das fichas de registro de informação documental foi
possível perceber algumas características recorrentes. A primeira é referente ao modo
como são definidos os conceitos de violência, conflito e mediação. Nos documentos e
nas entrevistas os três termos são descritos de modo semelhante ao dicionário. Essa
característica, quando verificada, foi tipificada como operacional: ligada à função
específica e ao fato da definição estar atrelada diretamente à ação prática. A
nomenclatura “operacional” foi definida por representar aquilo que de forma clara
aparece nos dados: a partir de uma dada acepção, a preocupação incide em como fazer
uso dela para resolver ou atuar sobre a situação que se avalia problemática. Tal modo de
pensamento parece reproduzir a lógica que orienta o trabalho nas indústrias e empresas:
mais importante do que qualquer reflexão sobre o problema ou a tarefa que se apresenta,
é a busca de soluções e a execução do trabalho imposto exteriormente aos indivíduos.
No caso em questão, tal modo de operar o pensamento é condicionado pela ação
imediata, sem que seja estabelecida qualquer relação, seja com o entorno, seja com a
estrutura social mais ampla.
Outro tipo criado, ante o encontrado nos dados, foi a de definição preconcebida
ou reproduzida do senso comum. Este tipo de resposta apresenta algumas semelhanças
com o tipo operacional, porém se distingue por não se constituir em uma definição
propriamente dita, mas a reprodução clara de estereótipos e clichês como, por exemplo,
relacionar problemas escolares com desestruturação familiar. Não são expostas
quaisquer referências que sustente a opinião emitida.
Por fim, o último tipo criado congrega as definições assentadas ou que recorrem
às condições sociais – nessas situações os termos expressariam que conflito, mediação e
violência são fenômenos que estão diretamente vinculados à realidade brasileira, ao
capitalismo ou à modernidade.
Os dados foram organizados em quadros. Além dos elaborados com base na
tipologia criada, outras informações também foram apresentadas em forma de quadros,
que se referem às funções do PMEC e aos conceitos que permitem o cotejamento entre
o que aparece nos documentos e o que os entrevistados expressaram. Quanto às
informações sobre as ações dos PMEC, pôde-se perceber quatro tipos: projetos,
parcerias, “apaziguamento”/mediação e trabalho burocrático (preenchimento de
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
4137ISSN 2177-336X
7
relatórios sobre o trabalho desenvolvido na escola e a ser encaminhado aos
supervisores).
Os conceitos
Foram investigados três conceitos: mediação, conflito e violência. A ideia foi
examinar como, em cada fonte consultada, aparecem tais conceitos. Nesse sentido,
pode-se dizer que nos documentos prevalecem definições operacionais. Claro que a
legislação que regulamenta algo e os manuais que ditam regras de como esse algo deve
acontecer, têm essa finalidade, porém, como se trata de ação concebida no âmbito da
política educacional e proposta para a implementação em toda a rede, esperava-se
encontrar elementos que pudessem ser orientadores do debate público sobre a questão,
envolvendo os professores, os alunos e suas famílias etc. Não é o que se verifica: os
princípios e fundamentos filosóficos (ou de outra natureza) são brevemente
apresentados. Em outros termos, aquilo que poderia levar a um processo de formação
dos professores, de fato não é concebido para isso. Trata-se de ação que pressupõe a
adesão acrítica do docente, que lidará com a prática da mediação de conflitos que,
juntamente com a violência, são definidos sem qualquer possibilidade de discussão.
Já os supervisores e PMECs entrevistados, além de oferecerem definições
operacionais, conforme os tipos identificados, se valem de grande quantidade de noções
preconcebidas. Vale a pena refletir sobre como isso está relacionado com a prática da
mediação. Talvez os cursos de formação para não sejam tão efetivos, pois os PMECs
incorporam conteúdos que são transmitidos, mas utilizam recursos que já possuem
como, por exemplo, o fato de ser professor conhecido na escola e na comunidade.
Dessa perspectiva foram organizados os Quadros 1, 2 e 3 que trazem as
informações coletadas sobre mediação, a fim de comparar e contrastar como as
diferentes fontes de informação se manifestam sobre ela. A ideia foi a de identificar
nuances.
Quadro 1. Informações sobre mediação oferecidas por documentos
A mediação é uma forma de resolução de conflitos que consiste na busca de um acordo pelo
diálogo, com o auxílio de um mediador, favorecendo a reorientação das relações sociais para
formas de cooperação, confiança e solidariedade. (Manual-PEPC, 2009, p. 54-55)
Vamos nominar mediação quando envolver apenas as pessoas diretamente conflitantes e o
mediador. (Justiça Restaurativa-PMEC, 2012, p. 48)
Quadro 2. Informações sobre mediação oferecidas por Supervisores de Ensino
“Tem aquela mediação mais simples, de você se colocar entre duas partes que estão em
conflito e tentar resolver. No caso deles é mais do que isso; é tentar antever a situação de
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
4138ISSN 2177-336X
8
conflitos. Então, a primeira grande atividade deles é fazer o mapeamento do que tem na
escola, o que tem de recursos humanos e de recursos materiais”. (SUPERVISORA 1)
“Mediação é você lidar com uma situação conflituosa antes que ela se torne violência,
trabalhar através do diálogo para que solucione um problema que virá adiante se
transformar em violência. Isso é mediar”. (SUPERVISORA 2)
Quadro 3. Informações sobre mediação oferecidas por PMECs
“Mediar é dialogar. É você tentar dialogar com as duas partes o conflito e tentar, pela justiça
restaurativa, amenizar ou eliminar a situação”. (PMEC 1)
“Na verdade pra mim, mediar não é agitar, se mediação é apaziguar, entender os dois lados,
eu venho aqui pra ter entendimento com os dois lados, não é punir, é entender resolver a
situação entre os dois, e fazer que os dois lados recuem... e fazê-los conversar, fazer as pazes,
ficarem de boa, de mãos dadas. É a minha visão”. (PMEC 2)
“Ser imparcial, não levar para um lado, pois aí eu acabo me identificando com um grupo, ser
sempre imparcial, pegar as opiniões, verificar, pegar a ocorrência, conversar e, depois, eu
tomando uma atitude, que eu consiga conciliar as duas partes, não vou dizer quem é certo ou
errado; é sempre imparcial”. (PMEC 6)
“Bom, a necessidade surge em 2010, ela surge na resolução de conflitos, pelo alto índice de
conflitos que estavam acontecendo nas escolas, então, houve a necessidade da criação desse
profissional, de ter essa incumbência, de trazer... para... da resolução dos conflitos, pois,
assim desafoga o pedagógico, da direção, vice e coordenação”. (PMEC 17)
“Mediação, para mim, seria uma forma de apaziguar... Seria organizar, fazer parte do
ambiente, fazer com que as coisas fluam de maneira positiva sem confusão”. (PMEC 14)
“E essa formação que eles dão lá, pra mim, não quer dizer nada... A minha vivência, a minha
realidade, eu sempre procurei passar para os meus alunos, o que me aconteceu, eu venho
partindo de tudo isso aí, experiência própria, experiência de vida”. (PMEC 2)
“Primeiro os valores familiares são esquecidos, segundo as informações que os jovens
recebem hoje são muito rápidas e eles são muito questionadores”.(PMEC 15)
“Uma assistente social, com asas de psicologia e coração de mãe, é uma mistura que não se
consegue separar, mesmo não tendo o diploma dessas profissões. Usa-se o coração de mãe, o
profissionalismo do assistente social e a psicologia que Deus te dá”. (PMEC 11)
“Uma família carente de tudo, por parte do governo, por parte das pessoas que não
compreendem, é muito fácil olhar para o próximo e não olhar para si”. (PMEC 16)
“Então, se vamos falar das questões sociais dentro da escola, existe um desconforto, vejo em
uma perspectiva política, e a violência que os governos exercem conosco, então os
professores não são bem remunerados, as escolas fisicamente estão deterioradas, as salas,
sujas, também são violências, não está agradável para os alunos... Se vamos falar de
justificativas sociais, é importante pensar nisso, que eles já trazem problemas de casa. O
mediador precisa conhecer os problemas sociais nos quais seus alunos estão inseridos, para
entender melhor esse aluno”. (PMEC 18)
“Eu acho que na verdade este está sendo um cargo de extrema importância, porque quando
temos problemas com o aluno e chamamos a família, nós descobrimos que o problema não é o
aluno e sim a família... O problema deles aqui é totalmente social, então isso me incomoda, eu
estou vendo muita coisa e eu não estou conseguindo resolver tudo, porque, na verdade, eu não
vou resolver nunca, pois o problema é a família e eu estou de mãos atadas, pois na família eu
não posso me meter”. (PMEC 3)
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
4139ISSN 2177-336X
9
Tanto nos documentos como nos relatos verificou-se uma variedade de aspectos
mobilizados para definir ou conceber do que se trata a prática de mediar conflito. Nos
documentos e manuais o procedimento é a definição seguida de explanação baseada em
autores estudiosos da temática. Mas chama atenção o fato de os supervisores e os
PMECs ora recorrerem ao que está disposto nos documentos, ora citarem as situações
cotidianas que os educadores, em geral, enfrentam na escola (especialmente aquelas
ligadas ao que definem como indisciplina dos alunos). Assim, mencionam estratégias de
resolução dos conflitos – o próprio ato de mediar – que foram pensadas a partir da
necessidade imediata de colocar em prática a mediação; dessa forma, parecem
reproduzir o que está nos manuais que orientam o trabalho. Também parecem se
inspirar no que o senso comum oferece de recursos para que certos litígios ou atos de
agressão não tenham graves consequências para os envolvidos. Seja com for, os
entrevistados consideram, em termos gerais, que mediar é fazer com que as partes em
conflito cheguem a um entendimento, seja com a reparação dos danos causados, seja
com o restabelecimento da harmonia perdida.
Uma parcela dos entrevistados faz alusão às condições sociais como fator
desencadeador dos conflitos e da violência. O curioso foi que apenas um sujeito indicou
a natureza da estrutura social como promotora dos problemas relacionados com a
violência na escola. A maior parte reconhece que as condições objetivas de vida
determinam os comportamentos dos alunos, mas sem fazer menção que tais condições
também são determinadas socialmente. Assim, associam problemas familiares de toda
ordem com a agressividade dos alunos. Mas, ao fazer isso, definem que a mediação é
uma espécie de terapia, a qual poderia amenizar ou compensar as carências vividas no
lar. Em outros termos, estando mais preocupados com o exercício do controle e com a
manutenção da ordem no ambiente escolar, não se verificou que o trabalho dos PMEC é
concebido como uma oportunidade de intervenção que efetivamente se constitua, para
os envolvidos, em experiência de formação (ADORNO, 2006d). Apelam para o
compromisso, sem que isso signifique verdadeiramente a experiência com o outro.
É plausível para o entendimento humano sadio evocar compromissos que
detenham o que é sádico, destrutivo, desagregador, mediante um enfático “não
deves”. Ainda assim considero ser uma ilusão imaginar alguma utilidade no
apelo a vínculos de compromissos ou até mesmo na exigência de que se
reestabeleçam vinculações de compromisso para que o mundo e as pessoas
sejam melhores. A falsidade de compromissos que se exige somente para que
provoquem alguma coisa – mesmo que esta seja boa –, sem que eles sejam
experimentados por si mesmo como sendo substanciais para as pessoas,
percebe-se prontamente (ADORNO, 2006c, p. 124).
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
4140ISSN 2177-336X
10
Nas fontes e pessoas consultadas sobre mediação, conflito e violência observou-
se que a tendência é a de considerar e destacar aquilo que permite colocar em prática a
proposta governamental – o Sistema de Proteção Escolar. Nesse sentido, temos um
movimento que é orientado no sentido de promover a adaptação dos profissionais e da
própria escola às políticas educacionais emanadas dos agentes superiores da rede de
ensino estadual. E essa adaptação parece acontecer sem que qualquer possibilidade de
debate e reflexão seja gerada. Se a educação – incluindo a ação dos professores e o
modo como a planejam – for reduzida a mera adaptação, então a formação, nos termos
definido por Adorno (2006a; 2006d) jamais se realiza. Educação, para o autor, envolve
mais do que a modelagem de pessoas, mais do que a transmissão de conhecimento;
implica na “produção de uma consciência verdadeira” (ADORNO, 2006d, p. 141).
DISCUSSÃO E RESULTADOS
Depois do percurso trilhado nesta pesquisa, é preciso destacar alguns pontos a
fim de evidenciar as relações entre a produção acadêmica e os dados empíricos.
A discussão toma como ponto de partida a situação de violência na escola. A
análise das obras que tratam dessa temática evidencia o quanto essa questão vem sendo
pesquisada por profissionais de outras áreas, e que, curiosamente, os educadores pouco
aparecem. Este foi um ponto de destaque, mesmo não sendo o foco da pesquisa. Como
falar de violência na escola, uma vez que os pesquisadores do tema não são os próprios
educadores? Não está se desconsiderando a necessidade e a importância de uma visão
mais ampliada sobre o assunto, porém, acredita-se que a discussão, ou melhor, a atuação
dos educadores seria outra, caso dedicassem mais estudos sobre esse problema.
De qualquer modo, é nítido o quanto a temática se desenvolveu nos últimos
trinta anos. A violência e sua relação com a educação foi cada vez mais destrinchada e
especificada: violência da escola, violência na escola e violência à escola. Isso permitiu
compreender como e de que maneira o espaço escolar vira palco das situações de
violência das mais variadas espécies. Conflito e mediação de conflitos são dois
elementos usados para se conhecer e caracterizar a tensão presente no espaço escolar.
Foi dessa perspectiva que se focalizou o Professor Mediador Escolar e
Comunitário (PMEC) e sua atuação na rede das escolas estaduais. Assim, a proposta de
pesquisa foi compreender como a mediação de conflitos se tornou uma peça da política
educacional, tendo em vista o combate à violência na escola.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
4141ISSN 2177-336X
11
A exploração do fenômeno não se constituiu de forma estática. Intenso e
complexo foi o esforço para sua descrição e conceituação e, ainda, a necessidade de
associá-lo ao contexto histórico e social. Verificou-se, como na legislação e nos
manuais, as definições e conceitos são apresentados de forma simplista. Este foi o
primeiro contraponto encontrado, antes mesmo da pesquisa empírica: a descrição
estática dos conceitos nos documentos que orientam o trabalho do professor mediador.
A coleta dos dados em campo permitiu a discussão, a análise e a reflexão acerca de
como as manifestações de violência são percebidas e compreendidas pelos educadores,
no caso os PMECs (e os supervisores de ensino). A análise do trabalho de mediação foi
feita à luz do conceito de formação de Adorno (2006a, 2006d). Verificou-se que os
sujeitos de pesquisa assimilam e se apropriam dos conceitos de forma pouco refletida ou
sem nenhuma reflexão: ora reproduzem o que está disposto nos documentos oficiais, ora
pautam-se no cotidiano em que estão imersos. Pouco é abordada a questão social e seus
condicionantes como componente da situação que contribui ou define a manifestação da
violência; muitos são os que não compreendem as condições e a estrutura social para
explicar o que acontece nas escolas. As manifestações sobre a prática da mediação
indicam que esta se caracteriza, predominantemente, em adaptação dos alunos e trato
dos conflitos que produzem, nos quais estão envolvidos.
Também é necessário tecer alguns comentários sobre o modo como a família é
encarada, questão que surgiu durante a pesquisa, principalmente com os PMECs
atribuindo responsabilidade a ela pelos problemas causados e vividos pelos alunos na
escola. Observou-se a perpetuação da crise da família no imaginário docente. Essa é
uma questão que merece ser pensada como futura proposta de investigação, uma vez
que a família é compreendida abstratamente: o contexto em que vive, a desigualdade, a
violência, a exploração econômica, enfim, aquilo que a constitui não é levado em conta.
Do mesmo modo, a tendência é a de só enxergar a violência “visível”: a falta de
condições básicas de existência pouco é pensada e sequer discutida. Desse modo, a
violência da falta de moradia, de saneamento, de saúde e de acesso à cultura não é
percebida; o que ocorre é a discussão sobre seu reflexo.
Outro dado que surgiu e que merece maior exploração é a existência do “tio”,
que trabalha “na boca”, lugar do tráfico de drogas, causa imediata da dependência
química e psicológica e da violência. Em comunidades periféricas das grandes cidades,
a socialização de crianças e jovens é pautada por essa espécie de instituição paralela.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
4142ISSN 2177-336X
12
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por fim, mais algumas palavras sobre a questão central da pesquisa, pautada no
quanto os conceitos que se referem a uma dada realidade são formulados de forma
estática, isto é, sem que seja possível, por seu emprego, divisar a complexidade social.
Os dados indicam que há uma forma de pensar que evoca a uniformidade, característica
da própria cultura escolar, que tende a tratar todos como iguais, desconsiderando as
diferenças existentes entre eles. Não há compreensão de que as manifestações de
violência dos alunos na escola possuem elementos próprios, mas que ao mesmo tempo
são exteriores a ela, assim como que tais elementos não são anulados uns pelos outros,
que há um nexo entre o todo e as partes que deve ser considerado. Sendo assim, o
máximo que se encontrou foi a tentativa de adaptar um sujeito particular, enquadrando-
o à totalidade expressa na ordem escolar, e isso a fim de se “solucionar”, de forma
imediata, os conflitos surgidos. Percebe-se não a busca de solução, mas sim do
apaziguamento dos ânimos, a (re)mediação de conflitos entre as partes.
Constata-se, por outro lado, que a “mediação” é tomada como “panaceia”
passível de curar uma doença social muito mais profunda causada, em última instância,
pela pobreza e pela desigualdade social e econômica. Concluir não é a palavra adequada
para descrever o que se propôs nestas considerações, pois esse não é o fim, mas parte do
percurso de discussão sobre violência que tem lugar na escola.
Referências
ADORNO, T. W. A Filosofia e os professores. In:_____. Educação e emancipação. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2006a, p. 51-74.
_____. Tabus acerca do magistério. In: _____. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 2006b, p. 97-117.
_____. Educação após Auschwitz. In: _____. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 2006c, p. 119-138.
_____. Educação – para quê? In: ____. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
2006d, p. 139-154.
_____. A educação contra a barbárie. In:_____. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 2006e, p. 155-168.
_____. Educação e emancipação In:_____. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 2006f, p. 169-185.
CHRISPINO, A. Gestão do conflito escolar: da classificação dos conflitos aos modelos de
mediação. Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas em Educação. Rio de Janeiro, v. 15, n.
54, Jan/Mar, 2007. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104403620070001 00002&lang=pt.
Acesso em 16 fev.2015.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
4143ISSN 2177-336X
13
CHRISPINO, A.; CHRISPINO, R. Política Educacional de Redução da Violência: mediação
do conflito escolar. São Paulo: Biruta, 2002.
CHRISPINO, a.; DUSI, M.L.H.M. Uma proposta de modelagem de política pública para a
redução da violência escolar e promoção da Cultura e da Paz. Ensaio: Avaliação e Políticas
Públicas em Educação. Rio de Janeiro, v. 16, n. 61, Dez, 2008. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010440362008000400007&lang=pt.
Acesso em 16 fev.2015.
CHRISPINO, A; SANTOS, T.C.S. Política de ensino para a prevenção da violência: técnicas de
ensino que podem contribuir para a diminuição da violência escolar. Ensaio: Avaliação e
Políticas Públicas em Educação. Rio de Janeiro, v. 19, n. 70, Jan/Mar, 2011. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010440362011000 100005&lang=pt.
Acesso em 16 fev.2015.
GUIMARÃES, M. R. Paz: Reflexões em torno de um conceito. In: BALESTRERI, R. Na
Inquietude da Paz. Passo Fundo: CAPEC, 2003.
NEV. Relatório de cidadania: Os jovens e os Direitos Humanos. Coordenação do projeto:
NEV-CEPIDD/FAPESP/USP/Instituto Sou da Paz, 2000.
_____. Relatório de cidadania II: Os jovens, a Escola e os Direitos Humanos. Coordenação do
projeto: NEV-CEPIDD/FAPESP/USP/Instituto Sou da Paz, 2002.
SÃO PAULO (Estado). Secretaria da Educação. Normas gerais de conduta escolar: sistema
de proteção escolar. São Paulo, 2009.
SÃO PAULO (Estado). Secretaria da Educação. Manual de proteção escolar e promoção da
cidadania: sistema de proteção escolar. São Paulo, 2009.
SÃO PAULO (Estado). Resolução SE n. 19, de 12-2-2010. Institui o Sistema de Proteção
Escolar na rede estadual de ensino de São Paulo e cria a função do Professor Mediador Escolar
e Comunitário. Diário Oficial Poder Executivo, Seção I, São Paulo, 120 (30), p. 29.
SÃO PAULO (Estado). Resolução SE n. 1 de 20-1-2011. Dispõe sobre o exercício das
atribuições de Professor Mediador Escolar e Comunitário do Sistema de Proteção Escolar e dá
providências correlatas. Disponível em http://edusp.blog.br/atual/2011/01/28/resolucao-se-1-de-
20-1-2011/. Acesso em 16 fev.2015.
SÃO PAULO (Estado). Resolução SE n.7 de 19-01-2012.Dispõe sobre o exercício das
atribuições de Professor Mediador Escolar e Comunitário do Sistema de Proteção Escolar, e dá
outras providências. Disponível em http://edusp.blog.br/atual/2011/01/28/resolucao-se-1-de-20-
1-2011/. Acesso em 16 fev.2015.
SÃO PAULO (Estado). Secretaria de Estado da Educação/ Ministério Público do Estado de São
Paulo. Curso de introdução à justiça restaurativa para Professores Mediadores Escolares e
Comunitários: Manual Prático. São Paulo, 2012.
ONU (Organização das Nações Unidas)/Conselho Econômico e Social. Resolução 2002/2012.
Princípios básicos para utilização de programas de justiça restaurativa em matéria criminal.
Disponível em justica21.org.br/j21.php?id=366&pg=0. Acesso em 16 fev.2015.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
4144ISSN 2177-336X
14
A RELAÇÃO PROFESSOR-ALUNO: ENTRE (IN)DISCIPLINA E
INTERVENÇÕES DIDÁTICAS
Eixo temático 1: Didática e prática de ensino: desdobramentos em cenas na educação pública.
Sub-tema 1.3: Modos do ensinar e aprender em experiências.
Profa Dr
a Ana Maria Falsarella
Centro Universitário de Araraquara (Uniara).
Resumo
Em minha trajetória profissional pude observar e vivenciar inúmeras e variadas
situações e relatos de indisciplina e agressões de alunos contra professores, funcionários
e outros alunos, bem como de arbitrariedades e discriminações, explícitas e implícitas,
perpetradas pela escola. Situações em que laços relacionais positivos abriam caminho
para a aprendizagem eram igualmente presentes. Aprofundar o estudo sobre relações
interpessoais e aprendizagem justifica a apresentação deste texto, que partiu do seguinte
problema: Quais explicações diferentes pesquisadores encontraram quanto às
facilidades/dificuldades de professores e alunos se relacionarem de modo a alcançar a
escolarização? Meu objetivo foi investigar como, em escolas públicas brasileiras, as
equipes escolares associam relações interpessoais à aprendizagem. O procedimento
metodológico utilizado foi a investigação documental, sendo analisadas quatro
dissertações de mestrado, cujo critério de seleção foi o de serem pesquisas qualitativas
voltadas ao ensino fundamental e médio em diferentes estados da federação. Da leitura
detalhada dos trabalhos surgiram as chaves de análise: a) Modernidade, pós-
modernidade, disciplinamento; b) Exercício do poder, cultura disciplinar, tarefa,
vigilância; c) Constituição de sujeitos, cultura disciplinar, exercício do poder; d)
Formação docente, conteúdos curriculares, violência e fracasso escolar. Os principais
aportes teóricos indicados pelos autores das quatro dissertações foram: Lyotard (2000),
Bauman (2003), Foucault (1979, 1987), Bourdieu (2002) e Certeau (2001). De minha
parte, para analisar as pesquisas, vali-me de Marin (1996 e 2015) e Pimenta (2015),
dentre outros autores. Como resultado destaca-se que a relação professor-aluno é
marcada pelo controle de corpos e mentes, o qual, em classe, se dá pela fiscalização do
professor sobre a execução das tarefas e para manutenção da ordem. Cabe esclarecer
que este trabalho é subproduto de pesquisa coletiva desenvolvida em Instituição de
Ensino Superior (IES) privada, localizada na cidade de São Paulo e envolveu
pesquisadores de várias IES.
Palavras-chaves: Relação professor-aluno; Disciplina e indisciplina; Intervenções
docentes.
INTRODUÇÃO
Quando professor e aluno se encontram frente a frente na sala de aula, um
intrincado sistema de relações se desencadeia. Cada qual traz a nível consciente e a
nível inconsciente, uma carga de valores, ideias e expectativas com relação ao outro. E
cada qual olhará a sala de aula, a si mesmo e ao outro sob essa ótica. Entre aluno e
professor jamais se formará uma relação de indiferença porque a escola, como local de
troca e de convivência humana, tem um objetivo principal: a transmissão do legado de
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
4145ISSN 2177-336X
15
conhecimentos e valores considerados fundamentais pela sociedade. Essa relação que se
estabelece em torno do tripé professor-aluno-conhecimento, não raro é conflituosa
porque esses sujeitos portam diferentes culturas, não podem escolher-se por afinidade e
dificilmente podem retirar-se frente a dificuldades relacionais.
Meu interesse pelos temas “relação professor-aluno” e “disciplina/indisciplina
escolar” vem de longa data. A chance de aprofundar o entendimento sobre eles de modo
interligado com as práticas docentes, surgiu com minha participação na pesquisa
coletiva A escola fundamental e a didática: a produção acadêmica e sua contribuição
para o ensino (2000-2011) (coord. MARIN, 2013-2016), desenvolvida no âmbito de um
programa de estudos pós-graduados em educação de uma universidade privada situada
na cidade de São Paulo, que envolveu vários pesquisadores de diversas Instituições de
Ensino Superior (IES).
A pesquisa supra citada, de cunho empírico-documental, buscou verificar como
o ensino é focalizado em pesquisas acadêmicas e identificar a possível contribuição
destas para a construção do objeto de estudo da Didática e para a inovação de práticas
de ensino nas escolas. Foram mapeados 8388 resumos de pesquisas desenvolvidas em
cursos de pós-graduação de 176 IES do país e também trabalhos do acervo do Grupo de
Trabalho (GT) de Didática, e outros GTs afins, da Associação Nacional de Pós-
Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), coberto o período entre 2000 e 2011. O
levantamento foi realizado no Banco de Teses da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (CAPES), no sítio eletrônico da ANPEd, em repositórios
digitais de universidades e sistemas integrados de bibliotecas, além de variados bancos
de dados, que pudessem complementar as informações. Todos os níveis de ensino foram
contemplados, sendo que o grupo de pesquisadores selecionou os seguintes descritores
na efetivação da pesquisa: prática pedagógica, formação docente, aprendizagem,
conteúdo didático, livro didático, alfabetização, método de ensino, saberes docentes,
material didático, intervenção didática, avaliação da aprendizagem, relação professor-
aluno, disciplina/indisciplina escolar, técnica de ensino, planejamento de ensino.
O presente artigo é um subproduto da pesquisa acima descrita em rápidas
palavras. Dos descritores elencados, discorro a respeito da relação professor-aluno e da
disciplina/indisciplina escolar, considerando as ligações destas com as intervenções
didáticas do professor. Sobre relação professor-aluno, 283 trabalhos foram encontrados
(2,2% das produções) e sobre disciplina/indisciplina escolar, 219 (1,7% das produções).
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
4146ISSN 2177-336X
16
Posso apontar como justificativa para a eleição desses focos: a observação e a
vivência, em minha trajetória profissional no ensino público e na universidade privada,
da estreita conexão – positiva ou negativa – entre o relacionamento professor-alunos e o
processo de ensino-aprendizagem. Ouvi e vi casos e mais casos de agressões de alunos
contra professores, funcionários e outros alunos, de arbitrariedades e discriminações
explícitas ou implícitas perpetradas pela escola contra alunos, bem como de situações
em que relações de confiança abriram caminho para a aprendizagem. Um caso
emblemático é o ocorrido em uma escola pública de ensino fundamental onde trabalhei:
Adriano mostrou-se rebelde desde a 1a série. O pai, bandido, foi morto a tiros
pela polícia na frente do menino. A mãe, empregada doméstica, só ganhava o
suficiente para a sobrevivência da família. Encaminhar o menino para
acompanhamento psicológico que o ajudasse a superar o trauma, nem pensar.
Em classe, Adriano agredia constantemente os colegas. Certa vez, quando
repreendido, chegou a jogar a carteira na professora, embora ela se mostrasse
bastante paciente e tentasse compreender o menino de todas as formas. Assim
se passaram dois anos. Quando chegou à 3a série, Adriano encantou-se pela
nova mestra. Um ano transcorreu sem que se ouvisse uma queixa sequer. O
menino sentava-se na primeira carteira, estava constantemente na mesa da
professora e fazia as tarefas. Caso Adriano se irritasse com algum colega,
bastava um olhar da professora para acalmá-lo. (FALSARELLA, 1996, p.5)
Casos como o de Adriano me levaram ao seguinte problema: Quais explicações
diferentes pesquisadores encontraram quanto às facilidades/dificuldades de professores
e alunos se relacionarem de modo a alcançar o objetivo da escolarização? Hipóteses não
foram formuladas, haja visto que, quando observada “ao vivo”, a relação professor-
aluno permite múltiplas e complementares entradas, por conta de diferentes vertentes
teóricas que a abordam (cognitivista, sócio-histórica e outras).
Investigar, em pesquisas desenvolvidas na área da educação, o que os
profissionais de escolas públicas brasileiras pensam e como lidam com as questões,
intimamente imbricadas, da relação interpessoal professor-aluno, da disciplina e
indisciplina e dos procedimentos didáticos adotados no trato com o conhecimento,
constituiu, assim, o objetivo primário deste trabalho. Dele decorreram os objetivos
secundários: 1. Discutir como alunos e professores se constituem como sujeitos na
relação pedagógica; 2. Levantar fatores que levam à instauração da disciplina ou da
indisciplina em classe; 3. Levantar aspectos da formação docente que contribuem para a
constituição das percepções sobre disciplina e indisciplina; 4. Contribuir para o
estabelecimento de uma visão crítica sobre como intervenções didáticas interferem
positiva ou negativamente na relação professor-aluno, levando o aluno à aprendizagem
ou à indisciplina, ao fracasso e à exclusão.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
4147ISSN 2177-336X
17
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
A abordagem do tema se deu por meio da busca das conclusões a que chegaram
outros pesquisadores que o investigaram. Trata-se, portanto, de uma pesquisa
documental com base empírica. A partir de uma leitura flutuante de 28 resumos de
pesquisas acadêmicas relacionadas aos descritores relação professor-aluno e
disciplina/indisciplina escolar (do total de 502 levantados inicialmente na citada
pesquisa coletiva), selecionei quatro dissertações de mestrado, as quais foram
exploradas com mais acuidade. Foram critérios de seleção: serem pesquisas qualitativas
e de campo, abarcarem os ensinos fundamental e médio de redes públicas e
relacionarem questões de disciplina/indisciplina e de relação professor-aluno às
intervenções didáticas do professor. Tomei um cenário diversificado, elegendo
pesquisas elaboradas em diferentes estados da federação e envolvendo variados sujeitos.
Romero (Sorocaba-SP, 2005) selecionou como sujeitos, professores, pais, coordenadora
pedagógica, inspetora de alunos e alunos de ensino médio de uma escola estadual;
Castro (Rio de Janeiro-RJ, 2006) trabalhou com professores e outros participantes dos
conselhos de classe e, particularmente, com os alunos e a professora de um 4o
ano de
uma escola de ensino fundamental; Paiva (Uberlândia-MG, 2005) tomou por sujeitos
professores e alunos de 1o ano do ensino fundamental de uma escola municipal; os
sujeitos selecionados por Santos (Belém-PA, 2011) eram professores de matemática de
escolas estaduais (ensino fundamental e médio) que estavam frequentando um curso de
formação continuada.
As próprias palavras-chave das pesquisas deram ensejo à seleção das chaves de
análise: a) Modernidade, pós-modernidade, disciplinamento; b) Exercício do poder,
cultura disciplinar, tarefa, vigilância; c) Constituição de sujeitos, cultura disciplinar,
exercício do poder; d) Formação docente, conteúdos curriculares, violência e fracasso
escolar. Os itens: relação professor-aluno, disciplina/indisciplina escolar, controle,
procedimentos didáticos e formação docente perpassam todas as categorias.
Em última instância, o que está em jogo é “a didática como disciplina específica
de formação docente, multifacetada e aglutinadora de um conjunto de dimensões, mas
que tem sido negligenciada ou tratada apenas como técnica de ensino”. (MARIN, 1996,
p. 13) Uma visão mais abrangente entende que a relação professor-aluno e a
disciplina/indisciplina são sim aspectos ligados aos estudos sobre a didática, “uma vez
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
4148ISSN 2177-336X
18
consideram a vida do aluno em suas particularidades, características e necessidades e
analisam os papéis da escola e do professor”. (MARIN, 1996, p. 13)
APORTES TEÓRICOS
Apresento, a seguir, uma visão geral sobre o pensamento dos autores mais
citados nas quatro pesquisas, a saber: Lyotard (2000), Bauman (2003), Foucault (1979,
1987), Bourdieu (2002) e Certeau (2001). Mesmo sem um aprofundamento maior, em
função dos limites de extensão do texto, entendo que essa apresentação contribuirá não
apenas para melhor entendimento daquilo que proponho, como também para indicar
pistas a futuros pesquisadores que venham a explorar tal temática.
Lyotard (2000) discute a questão da produção do saber na contemporaneidade,
que seria decorrente da morte das grandes narrativas, da perda das visões totalizantes da
história (os falsos universais), que prescreviam regras de conduta política e ética para a
humanidade. Um exemplo é o iluminismo, que entendia que a razão, o progresso
científico e a tecnologia libertariam o homem de dogmas, mitos e superstições, levando-
o à felicidade. A história mostrou, na prática, que a teoria não funcionou conforme o
previsto, pois se as condições de vida de uma parte da humanidade melhoraram,
também houve a criação de armas de destruição nunca antes imaginadas e o aumento da
degradação do planeta, ameaçando a sobrevivência de todos os seres vivos.
Para Bauman (2003), a pós-modernidade não passa de uma extensão da
modernidade; ele propõe a nova categoria de modernidade líquida, em contraposição à
modernidade sólida, que era definida pela sociedade industrial e pela guerra-fria, em
que dois núcleos de produção de julgamentos distintos e antagônicos se apresentavam: o
capitalista e o comunista. Com o fim da guerra fria, sedimentou-se a primazia do
consumo e das ferramentas virtuais de socialização. Na modernidade líquida as relações
são fluidas e frágeis. Parece que há maior liberdade, o que é um engano. O mal-estar
psíquico agravou-se entre os homens e a globalização trouxe um nova forma de
exclusão, a do não-consumidor: o estranho que mostra condições errantes e não têm
lugar no espaço social reservado aos consumidores e gastadores compulsivos.
Foucault (1979, 1987) discorre sobre as instituições modernas, dentre elas a
escola, como mecanismos práticos de confinamento, vigilância e punição. A partir do
século 19 uma sociedade disciplinar organizou meios de confinamento de pessoas em
espaços classificatórios e hierarquizados. Passa-se de um espaço fechado a outro: da
família para a escola, desta para a fábrica ou a universidade; eventualmente, para a
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
4149ISSN 2177-336X
19
prisão ou o hospital. A ideia subjacente é a de conversão do homem em máquina,
tornando-o útil, dócil e disciplinado para o trabalho. Mais recentemente, a sociedade
disciplinar estaria sendo substituída pela sociedade do controle, em que a nova estratégia
de dominação seria o poder à distância. Foucault chama de microfísica do poder a um
tipo específico de poder que se expande por toda a sociedade por meio de técnicas de
dominação que se inscrevem no inconsciente, adestrando corpos e mentes dos
indivíduos, controlando minuciosamente gestos, hábitos, comportamentos e atitudes. O
poder disciplinar precisa de pouco: olhar hierárquico, exame permanente e castigo
normalizador. Suas técnicas são feitas de minúcias, detalhes mínimos, pequenas ações
dotadas de grande poder e fáceis de constatar, por exemplo, em salas de aula: um olhar,
um psiu, a batida do apagador na mesa, o nome escrito no quadro. As relações de poder
não se restringem à sala de aula; pelo contrário, formam uma cadeia de disciplinamento
e controle nas várias instâncias do sistema educativo.
Bourdieu (2003) desenvolve o conceito de habitus em várias obras, sendo a sua
construção explicada como...
(...) o produto de um trabalho social de nominação e de inculcação ao término
do qual uma identidade social instituída por uma dessas linhas de demarcação
mística, conhecidas e reconhecidas por todos, que o mundo social desenha,
inscreve-se em uma natureza biológica e se torna um habitus, lei social
incorporada. (BOURDIEU, 2003, p. 64)
Tal trabalho de inculcação, desenhado pelo mundo social, tem início na infância,
inscreve-se na natureza biológica e, ao término, institui a identidade social de cada
sujeito. Habitus é a lei social incorporada, formada por modelos interiorizados de modo
inconsciente por meio das ações familiar e escolar.
A abertura da escola a todos oculta a manutenção do favorecimento aos já
favorecidos: basta à escola ignorar as desigualdades culturais existentes entre alunos de
diferentes camadas sociais. Há, então, a produção de portadores de um “mal-estar
crônico” provocado pelo fracasso escolar. Para Bourdieu, hoje a escola exclui como
sempre, mas mantém entre seus muros aqueles que exclui, relegando-os à não
aprendizagem. São os excluídos do interior, situação paradoxal em que estão
encurralados os alunos das famílias mais pobres, portadores de desigualdades iniciais
diante da cultura, o que explica atitudes negligentes dos alunos e provocações aos
professores e colegas. (BOURDIEU, 2002)
Certeau (2001), por sua vez, mostra como a cultura popular inventa “mil
maneiras“ de jogar e/ou desfazer o jogo da cultura dominante. No espaço instituído pelo
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
4150ISSN 2177-336X
20
dominante toma forma uma atividade sutil e, ao mesmo tempo resistente, daqueles que,
não tendo espaço próprio, atuam dentro de uma rede de forças e de representações pré-
estabelecidas, mas alterando as regras do espaço do opressor. Há astúcia nas ações dos
dominados para reagir e driblar o poder instituído, valendo-se das falhas que se abrem
na vigilância. Afinal, se há um poder que é dominante, ele não é único. Essa concepção
pode ser levada para a educação, onde o poder dominante seria representado pelas
instâncias superiores do sistema, sendo que professores e alunos, como as partes fracas
desse sistema, utilizam artimanhas para esquivar-se da dominação dos fortes sem
afrontá-los diretamente.
DISCUSSÃO
a) Modernidade, pós-modernidade, disciplinamento
Romero (2005) aponta o caráter bifronte da disciplina/indisciplina escolar,
expresso, de um lado, pelas limitações impostas aos alunos pelas normas estabelecidas
pelo Conselho Escolar e, de outro, pelo fato de as escolas estarem inseridas, hoje, em
um contexto cultural e social de flexibilidade, mobilidade e transformação. Suas
observações a levaram à conclusão de que os alunos são limitados por inúmeras
proibições, de modo que o papel fundamental da educação acaba sendo o de formar as
subjetividades discentes por meio de práticas de disciplinamento e controle que fazem
parte das tradições escolares. A busca por intervenções didáticas criativas e dinâmicas
por parte do professor ficam em segundo plano. Mesmo imersa no contexto
sociocultural pós-moderno, a escola se aferra ao conservadorismo, à imposição, ao
imobilismo e ao não-diálogo, descuida-se do cultivo da criatividade e do preparo para o
viver em uma sociedade mutante.
Para finalizar, Romero (2005), aponta a relevância de “entrar em contato com a
materialidade da indisciplina escolar através de um conjunto de vozes” (p.6), quais
sejam, professores, pais, coordenadores, diretores, inspetores de alunos e os próprios
alunos, para se contrapor ao forte controle da direção observado na escola pesquisada.
b) Exercício do poder, cultura disciplinar, tarefa, vigilância
Em sua pesquisa, Castro (2006) identificou um padrão de recorrência de forma
hierárquica de exercício do poder na escola., que privilegia o controle sobre os alunos.
A autora observou dois contextos: o da sala de aula e o do conselho de classe.
Especificamente na sala de aula, o controle do corpo é permeado pela execução da
tarefa, com cada aluno sentado em sua carteira fazendo a mesma lição. O olhar atento
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
4151ISSN 2177-336X
21
do professor aos movimento corporais demonstra a internalização de regras e normas
por parte dele próprio. Os procedimentos de controle objetivam a execução da tarefa,
que é o “ofício” do aluno que o professor deve fazer cumprir, perante a vigilância da
direção. Seguem trechos da pesquisa, em que a professora se dirige aos alunos.
Profa: “Vamos sossegar aí? Gerson (erra o nome do aluno)... vamos parar com
a necessidade de se aparecer! Vamos sentar.Eu quero vocês sentados”.(p. 89).
Gerson (que não se chama Gerson): Mas eu tô sentado”. (p. 89)
Profa: “Felipe, você já fez sua tarefa? Senta no seu lugar! Olha só, não quero
ninguém em pé. Senão não consigo ver.” (Nesse momento todos os alunos
estão sentados) (p. 89)
Profa: “Marcelo, vai sentar no seu lugar.” (p. 90)
Marcelo: “Não quero sentar não.” (p. 90)
Profa: “Você não quer ficar sentado não? Então vou tirar sua cadeira e vou te
deixar em pé até o final! Tá bom assim?”(Ela arrasta a cadeira para a frente da
sala. Ele fica passeando pela sala).”Mas também você vai ficar parado aí!”(Ela retoma o texto e Marcelo deita no chão, colocando a mochila como apoio).
”Marcelo, você vai parar de palhaçada ou vou ter que tirar você da sala de
aula?” (agora o aluno está de joelhos e apoiado na mesa). “Pega sua cadeira!
Vai lá.” (o aluno não se levanta e a professora pega a cadeira) (p. 90)
A autora reflete: A não submissão à ordem de sentar acarretou a retirada da cadeira e o aluno,
recebendo a ordem de permanecer em sua carteira, deita no chão apoiando a
cabeça na mochila e retomando a atividade proposta. Ao sugerir que o tiraria da
sala de aula, o mesmo se apoia nos joelhos e volta a escrever sobre a mesa.
Qual o sentido de tal punição? No entendimento da professora, o sentido
residiria no fato de que ao retirar a cadeira, o aluno permaneceu no espaço
destinado a ele. De outra forma, ao terminar suas tarefas, ele se levantaria e
ficaria andando pela sala. (CASTRO, 2006, p. 91)
Nas observações em classe, Castro (2006) anotou que, regularmente, a tarefa se
inicia com um exercício escrito na lousa, que deve ser copiado e resolvido pelos alunos:
Durante a cópia do exercício do quadro os alunos conversam entre si e andam
pela sala. A professora, ao notar a dispersão, ameaça que irá apagar o quadro.
Os alunos, em coro, dizem que “ainda não copiaram” e retornam para a
atividade em suas carteiras. Encerrada a cópia do quadro, os alunos se
dispersam novamente ao invés de iniciaram a resolução dos exercícios. (p. 91)
Diz a autora:
Percebemos que a tarefa é utilizada pela professora como uma forma de
controle pela ameaça. Ela, ao perceber que os alunos não estão copiando, alerta-
os dizendo que apagará o quadro. Assim, o controle da tarefa é obtido, uma vez
que a professora também possui tarefas a serem cumpridas. Ela controla a
turma pela tarefa e controla a tarefa dela mesma para cumprir sua obrigação.
(CASTRO, 2006, p. 95)
Castro (2006) conclui lembrando que educar pelo controle leva à exclusão, uma
vez que impossibilita a construção de uma escola que compreende e acolhe as
diferenças dos que escapam à padronização. Assim, há uma forte incoerência entre o
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
4152ISSN 2177-336X
22
discurso de educação emancipatória, aquela que desenvolve a consciência crítica, e
práticas pedagógicas elitistas e unificadas, iguais para todos.
c) Constituição de sujeitos, cultura disciplinar, exercício do poder
Paiva (2005) destaca os papéis relevantes que professor e aluno têm na
constituição de ambos como sujeitos, pois experimentam na escola, e na sala de aula em
particular, situações sociais significativas, que marcam suas histórias sociais e
individuais. Porém, essa relevância parece não ser devidamente reconhecida pela escola.
As ações da professora observada por ela voltavam-se em grande medida para a
manutenção da disciplina, estranhamente mesmo em uma turma que não apresentava
comportamentos indisciplinados. A explicação foi encontrada na cultura da escola. A
autora constatou a vigência de uma cultura disciplinar, desde a organização institucional
até a relação entre professores e alunos. A lógica disciplinar dominava a relação
professor-aluno-conhecimento, marcada pelo exercício de poder do docente sobre os
discentes e atingia também os procedimentos didáticos, que se mostravam repetitivos e
desatualizados, mas que a professora seguia, para obedecer às orientações da escola.
A professora desenvolvia em sua sala com os alunos, de forma predominante,
atividades na forma de folhas xerocadas, acompanhamento do livro-texto, ou
cópia do quadro, conteúdos contemplados no planejamento da escola. A
necessidade de cumprir o programa era bastante presente no modo como a
professora desenvolvia suas aulas, pois o trabalho docente tem que seguir
algumas orientações institucionais. (PAIVA, 2005, p.133)
Mesmo parecendo disciplinados, os alunos criavam mecanismos para escapar ao
controle da professora, da mesma forma que esta também apresentava um modo
peculiar para lidar com a organização institucional.
Percebíamos que as crianças obedeciam às exigências da professora, embora
constatássemos que, paralelamente, realizavam determinadas atividades
escondidas, esqueciam-se de regras e foram desenvolvendo um jeito de lidar
com a professora, aspectos esses mais marcantes na relação das crianças com
ela. (PAIVA, 2005, p. 87)
A relação da professora com a escola e com o grupo de colegas mostrou ser
tranquila. Sua forma de administrar as questões relacionadas ao comportamento
dos alunos e de lidar com as questões institucionais da escola era séria,
procurava dizer o que pensava, no entanto, notamos que, no caso das colegas de
trabalho, empenhava-se em não despertar intrigas quanto à divergência de
pensamento. Demonstrava sua opinião, porém não entrava em discussões
discrepantes. (PAIVA, 2005, p. 112)
Paiva (2005) observa que, mesmo em uma classe em que os alunos são
disciplinados e atendem ao que pede a professora, esta se mostra extremamente
preocupada com o controle disciplinar. Ao mesmo tempo, em que se mostravam
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
4153ISSN 2177-336X
23
cordatos, os alunos criavam meios dissimulados para escapar ao que lhes era imposto,
assim como também a professora apresentava um modo peculiar para lidar com a
organização institucional, participando com suas opiniões, porém sem entrar em
confrontos diretos. Para lidar com os donos do poder, professora e alunos “obedecem
sem obedecer”.
d) Formação docente, conteúdos curriculares, violência e fracasso escolar
Santos (2011) chama a atenção para a formação acadêmica dos professores (no
caso, docentes de matemática dos ensinos fundamental II e médio), que é voltada para
ministrar o conteúdo, mas não os prepara para lidar com questões complexas
vivenciadas no cotidiano das escolas, como é o caso da violência. A formação do
professor em torno de um currículo fechado e não reflexiva a respeito de questões do
próprio currículo e das relações interpessoais, leva à fixação de um habitus que
contribui para uma postura rígida diante do componente curricular que ministra e para o
exercício do poder pela imposição e pela coação.
Ao tocar na questão do habitus, Santos (2011) aponta a necessidade de uma
formação que leve os docentes a perceber que ser professor não é simplesmente
reproduzir conteúdos, pois o mais relevante é trabalhar com um currículo mais aberto e
flexível, adaptado à realidade da escola e dos alunos. Caso contrário, o ensino
permanecerá contribuindo para a existência de professores conteudistas, autoritários e,
eles próprios, propagadores de violência.
RESULTADOS
No início deste trabalho me propus levantar em quatro pesquisas desenvolvidas
na área da educação, como escolas públicas brasileiras lidam com as questões da relação
professor-aluno, da disciplina/indisciplina e dos procedimentos didáticos. Apresentei a
seguinte questão: Quais explicações diferentes pesquisadores encontraram quanto às
facilidades/dificuldades de professores e alunos se relacionarem de modo a alcançar o
objetivo da escolarização? Apresento a seguir algumas conclusões, considerando o
observado nesses quatro trabalhos.
1a. Em dissonância com uma sociedade que passa por profundas mudanças, tornando-se
mais fluida e flexível, a escola permanece aferrada a uma rígida cultura disciplinar e,
secundariamente, a uma proposta didática ultrapassada;
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
4154ISSN 2177-336X
24
2a. O controle disciplinar e a manutenção da ordem são quase obsessões para a escola;
cheia de proibições e regras, a escola limita a criatividade e a espontaneidade dos
alunos, bem como a cooperação entre eles;
3a. A curiosidade discente, por sua vez, é cerceada por procedimentos didáticos
rotineiros, repetitivos, tediosos... que levam à indisciplina e à desordem;
4a. O exercício do poder se faz pelo controle, pela imposição e cobrança das tarefas, das
lições; não se aventa a hipótese de que elas sejam desinteressantes; não se busca
intervenções didáticas mais envolventes e dinâmicas;
5a. A imposição e a cobrança das tarefas é uma das formas que a escola utiliza para
formar e controlar corpos e mentes dos alunos; mas é possível fugir a esse controle,
desobedecendo às escondidas, sem afrontar os donos do poder.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para finalizar, destaca-se que a relação professor-aluno e a (in)indisciplina
aparecem, nos trabalhos examinados, relacionadas ao controle de corpos e mentes que a
escola pretende exercer sobre os alunos (e professores). São “indisciplinados” os alunos
que não se adaptam às regras impostas; por isso são discriminados e deixados de lado,
excluídos do direito à escolarização, mesmo permanecendo no ambiente escolar. Na
sala de aula, em especial, o controle se dá pela fiscalização que o professor faz sobre a
execução das tarefas e sobre a manutenção dos alunos em seus lugares, sem conversas.
Quando a preocupação com a ordem suplanta a preocupação com a
aprendizagem, uma relação saudável entre professor e aluno, que possibilite o aprender,
é impedida. No entanto, cabe considerar que nessa relação não apenas “o professor com
seus alunos” estão envolvidos, porque eles representam grupos sociais e culturas
distintas que têm a instituição escolar como ponto de encontro.
Outro aspecto a destacar é a formação docente. Pimenta (2015) aponta a
tendência observada, especialmente em cursos de licenciatura, de reduzir o espaço da
didática nos currículos, fato preocupante porque a atividade própria do professor, o
ensino, é desconsiderada, “o que contribui para a desqualificação dos resultados da
escolaridade, em especial da escola pública, uma vez que esse fenômeno, em suas
múltiplas determinações, é o objeto de estudo da didática”. (PIMENTA, 2015, p. 81)
O observado nas quatro pesquisas analisadas mostra a escola e a docência
orientadas por um modelo desgastado: pouco crítico e reprodutivo, acomodadas às
condições concretas do cotidiano, ausente uma visão ampliada sobre os fatores que
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
4155ISSN 2177-336X
25
influenciam a instituição escolar e o exercício docente, ausente também uma reflexão
profícua sobre possíveis procedimentos e intervenções didáticas alternativas, que
possibilitem a professores e alunos se relacionarem mais positiva e produtivamente.
Por fim, cabe lembrar as influências cruzadas que atravessam a pesquisa
acadêmica e a prática escolar. A pesquisa é marcada pelas concepções, valores e crenças
que se originam na dinâmica social mais ampla, investigando a escola em função destas.
Os profissionais da escola, por sua vez, incorporam resultados de pesquisas dentro de
suas próprias concepções, valores e crenças. Daí a relevância de aproximar e integrar os
dois modos de pensamento e atuação, ambos legítimos e igualmente importantes, sobre
o mesmo objeto: a educação escolar. (MARIN, 2015, p. 33)
Referências
BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
BOURDIEU, P. A escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura. In:
NOGUEIRA M.A.; CATANI, A. (Orgs.). Escritos de Educação. Petrópolis-RJ: Vozes, 2002,
p. 39-64.
__________. Os excluídos do interior. In: NOGUEIRA M.A.; CATANI, A. (Orgs.). Escritos
de Educação. Petrópolis-RJ: Vozes, 2002, p. 217-227.
__________. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.
CASTRO, P.A. Controlar para quê? Uma análise etnográfica da interação entre professor e
aluno na sala de aula. 2006. 197 p. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Educação, Programa
de Pós-Graduação em Educação, UERJ – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro-RJ, 2006.
CERTEAU, M. A invenção do cotidiano, v. 1-Artes de Fazer. Petrópolis-RJ: Vozes, 2001.
FALSARELLA, A.M. A relação professor-aluno na escola pública: como professores e
alunos de uma escola pública municipal de 1o Grau percebem ou idealizam os fatores que
determinam a relação pedagógica. 1996. 100 p. Monografia (Especialização) – Curso de
Psicopedagogia, PUC-SP – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo-SP, 1996.
FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
__________.Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis-RJ, Vozes,
1987.
LYOTARD, J-F. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000. Título
original: La condition postmoderne. (1979).
MARIN, A.J. Os estudos didáticos no Brasil – algumas ideias. In: MARIN, A.J. (coord.).
Didática e trabalho docente. Araraquara-SP: Junqueira&Marin, 1996, p. 11-21.
__________. (Coord.) A escola fundamental e a didática: a produção acadêmica e sua
contribuição para o ensino (2000-2011). Pesquisa em fase de finalização. PUC-SP: EHPS
(Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: História, Política, Sociedade, Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo). São Paulo, 2013-2016. Apoio CNPq (Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico).
__________. A didática, as práticas de ensino e alguns princípios para a pesquisa e a docência.
In: MARIN, A.J.; PIMENTA, S.G. Didática – teoria e pesquisa. Araraquara-SP:
Junqueira&Marin, 2015, p. 17-37.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
4156ISSN 2177-336X
26
PAIVA, N. S. G. A (In)disciplina na escola e o processo de constituição de sujeitos no
cotidiano da sala de aula. 2005. 202 p. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação,
Programa de Pós-Graduação em Educação, UFU – Universidade Federal de Uberlândia.
Uberlândia-MG, 2005.
PIMENTA, S.G. O protagonismo da didática nos cursos de licenciatura: a didática como campo
disciplinar. In: MARIN, A.J.; PIMENTA, S.G. Didática – teoria e pesquisa. Araraquara-SP:
Junqueira&Marin, 2015, p. 81-97.
ROMERO, P. R. S. Educação e pós-modernidade: vozes de indisciplina escolar em uma
escola da rede pública de Sorocaba/SP. 2005. 98 p. Dissertação (Mestrado). Faculdade de
Educação. Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade de Sorocaba. Sorocaba, SP,
2005.
SANTOS, P. F. Violência escolar: o ponto de vista dos professores de matemática. 2011. 114
p. Dissertação (Mestrado). Mestrado em Ciências e Matemáticas, UFPA - Universidade Federal
do Pará. Belém, 2011.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
4157ISSN 2177-336X
27
OS CONFLITOS ESCOLARES NOS ANOS FINAIS DO ENSINO
FUNDAMENTAL: ALGUNS ELEMENTOS PARA COMPREENSÃO
Eixo temático 1: Didática e prática de ensino: desdobramentos em cenas na educação pública.
Sub-tema 1.3: Modos do ensinar e aprender em experiências.
Osana Barbosa de Abreu Pinheiro
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
Resumo
O presente texto apresenta uma discussão que visa contribuir para a compreensão de
conflitos escolares comuns nos anos finais do ensino fundamental, com base em
conceitos apresentados pelos seguintes autores: Jares (1997), Charlot (2005), Dubet
(1994, 2003), Dubet e Martucelli (1998), Fanfani (2000) e Gimeno Sacristán (1998).
Trata-se de um recorte da pesquisa Os conflitos escolares nos anos finais do ensino
fundamental: alguns elementos para compreensão, de natureza qualitativa. A pesquisa
teve por objetivo investigar os frequentes conflitos que ocorrem no interior de salas de
aula de 9o ano de uma escola pública estadual da Região Metropolitana de São Paulo.
Tendo por base sua própria experiência vivida no cotidiano escolar como professora,
esta pesquisadora constatou que os alunos, na faixa etária entre 12 e 14 anos, quando
passam para o Ensino Fundamental II, apresentam visíveis mudanças de comportamento,
tornando-se mais indisciplinados e agressivos, o que acentua consideravelmente as
dificuldades dos professores no desenvolvimento do currículo, pois grande parte do
tempo é utilizado na solução de conflitos e no restabelecimento das relações
interpessoais. Tais mudanças de comportamento, que parecem decorrentes de alterações
na maneira de pensar dos alunos com relação à escola e aos colegas, preocupam
gestores, professores e pais, e apresentam um grande desafio a ser enfrentado. O foco
principal da pesquisa foi compreender o porquê da ocorrência de tantos conflitos
escolares envolvendo os jovens estudantes, os quais acabam por excluir muitos alunos
do acesso ao conhecimento. Para atingir o foco partiu-se do estudo de produções dos
autores supra citados, que tratam da relação dos alunos com os saberes escolares e as
organizações institucionais, e que constituíram os principais aportes teóricos da
investigação sendo, por isso, aqui apresentados.
Palavras-chave: Anos finais do Ensino Fundamental II; Indisciplina, agressividade, e
conflito; Relação dos alunos com saberes escolares.
Introdução
Aprofundar estudos sobre conflitos escolares envolvendo alunos dos anos finais
do ensino fundamental II foi o objetivo da pesquisa que deu origem a este texto. Com a
inquietação sobre o baixo nível de aprendizagem, expresso em resultados alcançados
nas avaliações da e na escola alvo da pesquisa, foi possível observar como os alunos
concluem o ensino fundamental após nove anos de escolaridade. Muitos o finalizam
com sérias defasagens, fortalecendo cada vez mais, a exclusão social e cultural. As
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
4158ISSN 2177-336X
28
leituras realizadas sobre a problemática da indisciplina e sobre currículo possibilitaram
melhor aprofundamento do tema. A pesquisa foi realizada em uma escola de ensino
fundamental II, situada em um município da Grande São Paulo.
A pesquisa, de natureza qualitativa, foi levada a efeito com o uso da análise
documental e entrevistas, permitindo constatar que os alunos, na faixa etária entre 12 e
14 anos, ao ingressarem no Ensino Fundamental II apresentam, em sua maioria, uma
mudança visível no comportamento. A maneira como agem e reagem no cotidiano
escolar é muito diferente de quando ingressaram na escola. Nos anos finais, o problema
disciplinar é mais perceptível e as dificuldades enfrentadas pelos educadores se
acentuam consideravelmente. Mudanças de comportamento e na maneira de pensar têm
preocupado gestores, professores e pais, deixando para a escola, em geral, um grande
desafio a ser enfrentado. Na sala dos professores e em reuniões pedagógicas o foco é
sempre o mesmo: a indisciplina dos alunos e os conflitos escolares envolvendo essa
faixa da escolaridade. Nessa situação, pode-se observar a evasão de muitos alunos, antes
de concluírem a escolaridade. Entende-se por evasão, não somente o abandono da
escola pelos alunos, mas, sobretudo, a presença dos alunos no interior da escola sem o
devido interesse pelas atividades desenvolvidas.
Tais problemas levaram a questionamentos referentes aos conflitos escolares;
especificamente foram explorados os 9ºs anos, considerando a seguinte questão: Por que
os alunos dos anos finais do ensino fundamental, em especial os do 9º ano, perdem o
interesse pela aquisição do saber e passam a protagonizar os principais conflitos no
interior da escola? Outras questões decorrentes desta questão central também nortearam
a pesquisa: Quais são os conflitos escolares mais comuns envolvendo esses principais
atores desse momento da escolaridade básica? A escola está planejada para atender às
características dos alunos matriculados nos anos finais do Ensino Fundamental e às
necessidades formativas e de ação de seus professores? Como se manifestam a respeito
dos conflitos escolares alunos, professores e gestores da escola?
A pesquisa procurou compreender a visão de alunos, professores, gestores e pais
de alunos. Autores como François Dubet (1994, 2003), François Dubet e Danilo
Martucelli (1998), Emílio Fanfani (2000), Bernard Charlot (2005) e Xésus R. Jares
(1997) – que tratam dos conflitos escolares e da relação dos alunos com os saberes e as
organizações escolares – foram os principais apoios teóricos para a pesquisa. Também
Gimeno Sacristán (1998) foi considerado por seus estudos sobre currículo. Para este
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
4159ISSN 2177-336X
29
texto, o recorte específico consiste em apresentar as discussões e conceitos trazidos por
esses autores.
A escola como espaço de conflitos, segundo Jares
Jares (1997, p.60) define conflito como “(...) un tipo de situación en la que las
personas o grupos sociales buscan o perciben metas opuestas, afirman valores
antagónicos o tienen intereses divergentes”. Ou seja, o conflito é um fenômeno de
contradição entre pessoas ou grupos. Eles não são casuais ou neutros, mas estão
diretamente ligados a determinados tipos de ideologia, em especial à ideologia
tecnocrática-positivista, que “(...) niega y estigmatiza la existencia del conflicto” (p. 56).
O autor se refere a três tipos de visões ideológicas para explicar a existência de
conflitos na escola: a visão tecnocrática-positivista; a hermenêutico-interpretativa e a
crítica. Na visão tecnocrática-positivista de conflito, predomina a concepção tradicional
e conservadora de conflito, que o qualifica como algo negativo, não desejável, sinônimo
de violência, disfunção ou patologia “(...) y, en consecuencia, como una situación que
hay que corregir, y, sobre todo, evitar” (JAREZ, 1997, p. 58). Nessa perspectiva a
gestão dos conflitos tem a ver com mecanismos de controle da escola sobre professores
e alunos. Na perspectiva hermenêutico-interpretativa do conflito, em contraposição à
racionalidade tecnocrática, a visão mecanicista e a ideologia de controle são substituídas
pelas noções científicas e interpretativas de compreensão, significado e ação. Trata-se
de uma perspectiva eminentemente psicologicista da motivação humana do ponto de
vista individual e não no sentido sociológico. Os membros da escola são vistos em
termos de suas necessidades individuais, mais do que por suas adesões ao grupo ou por
suas ideologias compartilhadas. Assim o conflito não é negado, ao contrário, é
considerado como algo inevitável e positivo para estimular a criatividade do grupo:
“(...) um grupo armonioso, tranquilo, pacífico y cooperativo tiende a volverse estático,
apático e indiferente a la necesidad de cambiar e innovar” (JARES,1997, p.58). No que
se refere à perspectiva crítica, o conflito é visto como algo natural e inerente a todo tipo
de organização, à própria vida social e se constitui em um elemento necessário para a
mudança social: “(...) un elemento tan necesário para la vida social como el aire para
la vida humana” (JARES,1997, p. 61). Desse ponto de vista, os conflitos podem levar a
uma tomada de consciência coletiva dos membros da organização, levando o grupo a
“(...) detectar las contradicciones implícitas en la vida organizativa y a descubrir las
formas de falsa conciencia que distorsionan el significado de las condiciones
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
4160ISSN 2177-336X
30
organizativas y sociales existentes” (JARES,1997, p.62) Além disso, o enfrentamento
aberto dos conflitos pode favorecer os processos colaborativos de gestão escolar para
que
(...) las escuelas, como organizaciones sociales, se conviertan en un entorno
cultural en el que se promuevan valores de comunicación y deliberación social,
interdependencia, solidaridad, colegialidad en los procesos de toma de
decisiones educativas y desarrollo de la autonomía y capacidad institucional de
los centros escolares” (JARES,1997, p. 63).
Essa é, para o autor, a forma de se enfrentar o que ele designa como a natureza
conflitiva das escolas. Nessa perspectiva, as escolas são consideradas como “(...) campos
de lucha, divididas por conflictos en curso o potenciales entre sus miembros, pobremente
coordinadas e ideologicamente diversas” (JARES, p.64). Os diversos conflitos na
instituição escolar, suas causas, origens e manifestações são divididos pelo autor em
quatro categorias, fortemente ligadas entre si e dificilmente separáveis: as ideológico-
científicas, as relacionadas com o poder, as relacionadas com a estrutura da escola e as
relacionadas com questões pessoais e de relações interpessoais (JARES, 1997, p. 67). O
conflito está posto em todas as instituições sem exceção. Eles se apresentam, em um
processo de diversas naturezas e intensidades. Podem aparecer entre professores, alunos,
gestores, comunidade. Longe de ser casual ou neutra, essa situação reflete um tipo de
ideologia – a tecnocrática-positivista – que nega e estigmatiza a existência do conflito.
É preciso não ignorar a existência dos conflitos. Eles requerem uma tomada de
posição política, fundamentada em valores públicos democráticos e coletivos. A
existência do conflito não pode ser banalizada, por eles são inevitáveis na escola. Eles
são “(...) um tipo de situação em que as pessoas ou grupos sociais buscam ou percebem
metas opostas, afirmam valores antagônicos ou apresentam interesses divergentes”
(JARES, 1991, p.108). Ele é necessário para que as mudanças ocorram. Ou seja, o
conflito é instrumento essencial para a transformação das estruturas educativas.
A relação com o conhecimento na escola, segundo Charlot
Bernard Charlot (2005) traz para esta discussão a formação dos professores e as
suas relações com os alunos e o saber. Para esse autor, o professor é aquele que deve
mobilizar a aprendizagem e o desejo de aprender no aluno. Enfatiza a importância da
organização do trabalho não somente para a sala de aula, onde a responsabilidade de
ensino e aprendizagem está mais centrada no professor, mas, focaliza também a
responsabilidade do trabalho gestor, na organização da instituição.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
4161ISSN 2177-336X
31
Segundo Charlot (2005) a escola age de forma homogeneizada, com o
argumento da igualdade para todos. Dessa forma, não se articula de maneira adequada
para lidar com a diversidade, origem dos fracassos, conflitos, preconceitos. Não
conseguindo atender à diversidade dos alunos de meios populares, a escola devolve para
eles a responsabilidade pelo fracasso, se eximindo de responsabilidades e
compromissos. Nessa perspectiva, o saber deixa de ter importância, já que, importa
estudar para ter um futuro adequado e promissor na sociedade capitalista – o que faz
com que o saber deixe de ser instrumento para que os alunos exerçam os seus direitos e
a convivência humanizada com dignidade. A aquisição do saber, por ser hierarquizada
pela escola, deixou de ser interessante e prazerosa para ser uma situação obrigatória e
impositiva. Quando a escola hierarquiza as relações, principalmente as que se referem à
aquisição do conhecimento, não consegue trabalhar com a heterogeneidade dos alunos.
Para Charlot (2005), a definição de ser humano e de aluno se encontra em jogo
nas escolas, atualmente, e as transformações que propõe na forma de ensinar e na
formação dos professores dependem de uma escola que corresponda aos anseios e
necessidades dos alunos. Charlot (2005) nos remete a reflexões sobre o ensino e a
aprendizagem na escola: Por que é necessário levar em conta o sujeito? A resposta é
assustadora, quando se trata de refletir sobre as desigualdades sociais, principalmente
quando, se constata que a posição que a família ocupa na sociedade faz toda a diferença
na vida das crianças, ou seja, o sucesso ou o fracasso escolar dos alunos estão marcados
por sua classe social e condições financeiras. Para responder a essa pergunta o autor
identifica os processos pelos quais as crianças constroem a relação com o saber e a
escola, verificando que essa lógica não é a mesma nas diferentes classes sociais.
Dependendo da forma como a criança se relaciona, quer individual ou socialmente e
como se articula nessa relação com o saber, poderá definir sua aprendizagem. O
interesse em aprender determina a relação com o saber.
Para Charlot, alguns alunos estudam para passar de ano, outros para aprender,
outros ainda porque querem aprender sempre mais, para terem um diploma, um
emprego, etc. Estudar para passar é o processo dominante na maioria dos alunos de
classe popular. Tais alunos não entendem porque estão na escola porque não
compreenderam a importância de desenvolver uma boa relação com o saber. Mesmo
presentes estão ausentes na escola. Assim, aprender passa a ser o que o professor pede
para fazer e não adquirir conhecimentos e compreender melhor o mundo – o que leva à
seguinte percepção da responsabilidade de cada um nesse processo: a do professor é
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
4162ISSN 2177-336X
32
ensinar e a do aluno é ir à escola e ouvir o professor. Esse aluno não é ativo na
aprendizagem e acha que o professor é culpado pela sua não aprendizagem. Para o
autor, o aluno deve ser mobilizado a aprender e não motivado. A motivação é exterior
ao processo de relação com o saber, enquanto que a mobilização remete ao desejo, a
uma dinâmica interna. Pelo desejo de aprender, o aluno é capaz de se mobilizar. Assim,
a aquisição das competências cognitivas exige engajamento, dedicação nos estudos, que
se engaje em uma atividade intelectual, mas antes disso, responder a um desejo.
O autor trata também de conflitos instalados nos bairros populares e nas escolas,
questionando se a violência é um fenômeno novo. Sua resposta é que, na escola o fato
não é novo, mas as formas de violência sim, pois aparecem de maneiras diferenciadas
em quatro pontos: a) hoje se manifestam de formas mais graves que no passado (ataques
aos professores, insultos que causam angustia social); b) os jovens envolvidos em caso
de violência são cada vez mais jovens; c) entradas de bandos e gangues nos espaços
escolares para resolverem conflitos que se originaram fora da escola ou até mesmo, um
pai ou mãe que vem brigar na escola por algum motivo ou injustiça que o seu filho
sofreu. Assim, a escola não se apresenta mais como um lugar sagrado e protegido, mas,
está aberta às agressões externas.
Categorizar fenômenos como violência não é fácil. Ao contrário, as distinções
são necessárias e difíceis. É preciso fazer a distinção entre: a) a violência na escola, que
é aquela que se produz dentro do espaço escolar sem estar ligada à atividade a
instituição; vem de fora e o espaço escolar é usado por bandos para acertos de contas; b)
a violência à escola que se dá quando essa ação está ligada à instituição, quando é
pichada, incendiada, destruída etc. Os professores são agredidos bem como seus bens.
Essa violência deve ser analisada junto com a violência da escola. É uma violência
simbólica que está ligada ao modo como os agentes são tratados pela escola.
Se a escola é impotente à violência na escola é porque ela também provoca a
violência contra quem está se rebelando. Se os jovens são os principais autores da
violência, eles certamente são as principais vítimas também. Na maioria das vezes são
jovens fragilizados e excluídos, com dificuldades familiares, sociais e escolares.
A relação dos alunos com a escola, segundo Dubet e Dubet & Martuccelli
O texto Sociologia da Experiência Escolar (DUBET & MARTUCCELLI, 1998)
trata da experiência de alunos desde o inicio da escolarização até o seu término. Os
autores trazem os resultados de dez anos de pesquisa e analisam o sistema educacional
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
4163ISSN 2177-336X
33
francês e suas mudanças. Os autores analisam o sistema educacional francês da década
de 1990, marcado pela crise geral e desarticulações decorrentes do que denominam
massificação escolar.
O texto traz informações a respeito do efeito das diferenças sociais no interior do
sistema escolar. Referindo-se à distribuição social dos indivíduos, Dubet e Martucelli
(1998) afirmam que a competitividade torna a escola muito mais injusta, na medida em
que é na própria escola que se formam as desigualdades. A falta de qualificação escolar
se reflete na desqualificação social, causando assim, a exclusão escolar e a exclusão
social. Segundo os autores, sob as perspectivas dos alunos, o colégio (6ºs aos 9ºs anos)
é o ponto mais frágil da escolaridade. Os alunos não têm o sentimento de pertencimento
ao espaço escolar e a certeza do valor dos estudos desaparecem.
Para Giovanni (2011), em texto no qual analisa especificamente o
conceito de experiência escolar segundo Dubet, esse novo público de alunos e de
professores oriundos da massificação escolar descrito por Dubet (1994) e por Dubet e
Martucelli (1998) tem levado a um “(...) sentimento de distância cultural e
estranhamento dos alunos em relação às normas e regras escolares e dos professores
em relação aos alunos” (GIOVANNI, 2011, p.95). Segundo a autora, nos estudos de
Dubet “(...) a escola deixa de ser uma instituição, passando a obedecer a uma
racionalização centrada nos atores que, por sua vez, constroem um novo perfil da
escola ao construírem sua própria experiência escolar” (grifos da autora, p. 95). Para
Giovanni (2011), os resultados de estudos realizados por Dubet e Martucelli permitem
traçar o seguinte perfil da experiência escolar no percurso dos estudantes pelo ensino
elementar, colégio e liceu do sistema de ensino francês, que correspondem,
respectivamente, ao ensino fundamental I e II e ao ensino médio no Brasil:
1) A escola elementar (anos iniciais do ensino fundamental no Brasil) se
caracteriza pelo primado da lógica da integração: a escola primária permanece
sob o domínio da atração dos alunos pelo professor e da unidade da classe; a
construção da experiência escolar se dá pela identificação com o professor,
interiorização das normas e expectativas escolares e aceitação da autoridade dos
adultos; a socialização é cumprida com o processo de subordinação das crianças
às expectativas dos adultos; a experiência de subjetivação das crianças na escola
primária se dá por processos de distanciamento ou aproximação do aluno em
relação ao professor; a principal diferença na experiência escolar das crianças está
na forma como os alunos com diferentes origens sociais sentem as tensões
escolares: as crianças das classes populares percebem essas tensões como
“violência” e as da classe média as percebem sob a forma de stress, de cobranças
por desempenho.
2) O colégio (ensino fundamental II no Brasil) é o momento da dissociação entre
os processos de socialização e de subjetivação: a obediência natural dos alunos é
substituída pela exigência de reciprocidade; os alunos encontram “aliados” e
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
4164ISSN 2177-336X
34
“adversários” entre os professores e demais adultos da escola; o significado dos
estudos perde sua evidência e a utilidade dos diplomas está muito distante e
incerta para motivar os alunos; o interesse intelectual pelos estudos é muito frágil;
a motivação precisa ser coletivamente construída; uma “cultura adolescente” se
constitui paralelamente à cultura escolar, gerando uma ruptura entre “ser
adolescente” e “ser aluno”; no grupo de pares a regra é a submissão às
características do grupo; as pressões/tensões entre ele próprio (o adolescente), as
expectativas da família, as regras escolares e o que dizem os pares obrigam o
adolescente a lançar mão de um “jogo de máscaras” para escapar às rotulações
impostas.
3) O liceu (ensino médio no Brasil) é o lugar dos ritos de exclusão: a indiferença
dos alunos se dissolve: ou o indivíduo emerge plenamente da socialização na
escola ou sua identidade é marcada pelo fracasso escolar e desvalorização
pessoal; a ideia de Projeto é dominante e, com ela, a experiência escolar sofre a
influência crescente das lógicas estratégicas em função da utilidade social dos
estudos e dos diplomas, das esperanças de carreira e inserção profissional; no
liceu o aluno é confrontado com a necessidade de encontrar motivação escolar
autônoma; as situações dos alunos se diversificam: os alunos destinados às
escolas de renome, os “bons alunos” da futura classe média, os “novos alunos”
oriundos da massificação escolar e os alunos destinados às escolas profissionais;
nessa etapa da escolaridade a experiência escolar é construída por meio das
tensões entre as diferentes lógicas da ação (integração, estratégias, subjetivação);
a construção da experiência se dá, essencialmente, no cruzamento de dois ideais:
a performance escolar e o apelo à autenticidade. (GIOVANNI, 2011, p. 96 - 98).
Assim, para essa autora, a análise das experiências dos atores escolares permite
constatar que a escola, do ensino fundamental ao ensino médio, constitui para alunos e
professores, uma “experiência de desigualdades” (GIOVANNI, 2011, p. 99). Nas
palavras de Giovanni (2011), a Sociologia da Experiência Escolar “(...) revela os efeitos
das desigualdades escolares a partir da diversidade de situações e das diferenças sociais
a que se veem confrontados dia-a-dia os alunos e os professores: em ambos prevalece o
sentimento de “uma escolaridade privada de sentido” (GIOVANNI, 2011, p. 99).
A cultura escolar e a cultura dos alunos, segundo Fanfani
O autor analisa a emergência de novos tempos e novos docentes e reflete sobre a
prática tradicional dos professores e a necessidade que os mesmos construam um novo
perfil profissional. Sobre a cultura da juventude, o autor alerta para o fato de que as
práticas autoritárias e disciplinadoras não fazem mais sentido para as novas gerações,
sendo responsáveis pelos conflitos e pela desarticulação do ensino e da aprendizagem.
Para o autor, a velha escola não corresponde mais às necessidades das novas gerações,
cujos sintomas mais evidentes são a exclusão e o fracasso escolar, o mal-estar, o
conflito e a desordem, a violência e, sobretudo, a ausência de sentido da experiência
escolar para uma porção significativa de jovens adolescentes latino-americanos, em
especial aqueles que provêm de grupos sociais excluídos.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
4165ISSN 2177-336X
35
Segundo Fanfani (2000), os alunos parecem chegar numa escola que não foi
feita para eles e, dessa forma, não desenvolvem o senso de pertencimento à mesma. Tais
escolas não cumprem nenhuma função em seus projetos de vida – o que tem levado,
segundo o autor, a três problemas na escolarização massiva dos adolescentes e dos
jovens: a) distancia da identidade e cultura dos jovens em relação ao que é proposto pela
escola; b) modificações nos equilíbrios de poder entre as gerações; e c) fragilidade da
experiência escolar dos adolescentes e jovens. O fio condutor que relaciona esses três
problemas está posto na relação entre as condições de vida e cultura da população, de
um lado, e a escolarização e cultura própria das instituições escolares, de outro. Em
síntese, “(...) a escola para adolescentes deverá ser uma construção na medida em que a
própria adolescência é uma construção em plena transformação”. Para Fanfani, deve-se
pensar em escolas diversificadas e flexíveis para responder adequadamente às demandas
das novas gerações, já que uma escola para adolescentes é uma escola dos adolescentes,
onde esses alunos sejam os protagonistas do processo educativo.
Também citando os estudos de Dubet e Martuccelli, Fanfani (2000, p. 06) põe
em destaque o fato de que, um aluno do ensino médio é diferente de um aluno da escola
primária, por razões que vão além das determinações de gênero, classe social, etnia,
habitat, etc. Para Fanfani (2000), os adolescentes e jovens são portadores de uma cultura
social feita de conhecimentos, valores, atitudes, predisposições que não coincidem,
necessariamente, com a cultura escolar e, em particular, com o currículo do programa
que a instituição se propõe a desenvolver. Além disso, o autor discute a existência de
um novo equilíbrio de poder entre as gerações. Ou seja, a mudança de poder para
crianças, jovens, adolescentes e adultos também põe em crise a organização escolar,
onde a forma de desenvolver esse poder está focada na idade do aluno, já que o mundo
adulto monopoliza a instituição.
Hoje as crianças e os adolescentes são considerados sujeitos de direitos. Mesmo
assim, as instituições escolares ainda não estão atentas para essa nova configuração de
poder da instituição sobre os alunos. Os adolescentes e jovens precisam ser convidados
a participarem das decisões que vão organizar e melhorar a instituição. Garantir a escuta
do que dizem esses jovens fortalecerá a participação deles. Ou seja, recoloca-se aqui o
problema do sentido da escola. Nesse cenário, os professores precisam reconstruir o
cotidiano escolar. Os alunos devem ser ensinados a dar sentido à nova forma de
experiência escolar, na qual eles aprendam um porque ir à escola, que lhes faça sentido.
Que não seja uma obrigação, nem uma razão instrumental, mas, o amor ao
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
4166ISSN 2177-336X
36
conhecimento. Nessa perspectiva Fanfani (2000) propõe algumas características para
uma boa escola para os jovens e adolescentes: a) que valorize e considere os interesses,
conhecimentos e expectativas dos jovens e adolescentes; b) que favoreça e dê lugar ao
protagonismo juvenil; c) que não se limite a ensinar, mas que se proponha a mobilizar
os jovens para conhecimentos significativos; d) que se interesse pelos adolescentes e
jovens como pessoas totais; e) que seja flexível no tempo, na metodologia, nos modelos
de avaliação, no sistema de convivência e que leve em conta a diversidade cultural, de
gênero, religiosa, territorial etc.; f) que forme pessoas não para a esperteza, mas com
habilidades e competências úteis para a vida; g) que atenda a todas as dimensões do
desenvolvimento humano; h) que acompanhe e facilite a construção de um projeto de
vida para os jovens; i) que desenvolva o sentido de pertinência com a qual os jovens se
identifiquem. Para tanto, o autor ainda destaca quatro perigos prováveis a controlar: a
condescendência, o negativismo, a demagogia juvenil e o facilitarismo.
Finalmente, para o autor, uma das chaves para se alcançar êxito é compreender
que uma escola para os adolescentes é também, uma escola dos adolescentes, que eles
sejam não apenas uma população alvo, mas sim, protagonistas ativos com direitos
garantidos, o que nos leva à discussão sobre um currículo para os alunos e o papel dos
professores nesse processo.
Um currículo para os alunos e o papel dos professores, segundo Gimeno Sacristán
Destaca-se aqui a crítica à perspectiva segundo a qual os professores atuam
isolados uns dos outros, seguindo uma forma curricular não desenvolvida para alunos.
Certamente, essa desarticulação curricular resulta em um papel docente menos
autônomo e gerador de muitos descompassos no interior da escola.
Gimeno Sacristán (1998) salienta em seu texto questões relativas à organização
curricular e a como as propostas curriculares devem ser desenvolvidas para toda a
diversidade de alunos que há no interior de uma escola. Afirma ainda, a importância da
teoria como forma de esclarecer a prática. Apesar de haver boas propostas educativas,
ainda há uma grande dificuldade dos docentes em relação à aquisição de saberes
curriculares e à transposição desses saberes em práticas apropriadas às características
dos alunos. Os problemas básicos que o tratamento do currículo agrupa dependem,
segundo o autor, das respostas em torno de questões, como: Que objetivo o professor
deseja alcançar? Que valores, atitudes e conhecimentos estão implicados nos objetivos?
O que ensinar? Quem está autorizado a participar das decisões do conteúdo de
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
4167ISSN 2177-336X
37
escolaridade? Por que ensinar determinados conteúdos, deixando de lado muitas outras
coisas? Todos esses objetivos e conteúdos devem ser para todos os alunos ou somente
para alguns deles? Enfim, considerando que a escolaridade é um percurso, o currículo é,
para Gimeno Sacristán (1998), o guia para a caminhada estudantil do aluno. (G.
SACRISTÁN, 1998, p.126).
Em relação ao que os professores precisam transmitir, por exemplo, segundo o
autor, uma coisa é a visão que os professores expressam acerca desse processo, outra é o
que dizem e acham que ensinam, e outra mais diferente ainda, é o que, de fato, os
alunos aprendem. Ou seja, para Gimeno Sacristán (1998) é possível se detectar uma
distância muito grande entre o que está estabelecido para ensinar (currículo oficial,
regulamentado ou prescrito), o que os professores percebem e afirmam que fazem
(currículo manifesto), e o que se conseguem, de fato, ensinar (currículo real ou em
ação). Dessa distância podem se originar, muitas vezes, os conflitos escolares.
Assim, Gimeno Sacristán (1998) aborda o currículo como uma construção
histórica e social, ou seja, o currículo não é algo neutro e estático no tempo, ele não foi
sempre do modo que é hoje; sua constituição está repleta de conflitos, interesses,
objetivos, relações de poder e dominação entre os diferentes agentes envolvidos no
processo. É por esse motivo que o currículo precisa ser estudado tomando por base seu
contexto histórico e social, caso contrário não pode ser compreendido em sua totalidade.
Nas palavras do autor: “(...) o currículo não pode ser entendido à margem do contexto
no qual se configura e tampouco independentemente das condições em que se
desenvolve; é um objeto social e histórico e sua peculiaridade dentro de um sistema
educativo é um importante traço substancial” (GIMENO SACRISTÁN, 2000, p.107).
Para o autor, o currículo educacional deve ser entendido também como prática de
estudo do conteúdo de ensino, especialmente porque isso permite questionar o que deve
ser ensinado, já que a organização curricular pode ser o que Gimeno Sacristán chama de
denúncia da desorganização educativa, uma vez que, na escolarização, “(...) não se
aprende tudo, nem todos aprendem a mesma coisa, da mesma forma” (SACRISTÁN,
1998, p. 124). Assim, o autor traz à discussão, a importância do planejamento do
trabalho pedagógico para as reais necessidades sociais e políticas dos alunos, uma nova
forma de pensar sobre a política curricular.
Considerações finais
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
4168ISSN 2177-336X
38
Se, para os autores aqui citados, o saber traz prazer na aquisição de
conhecimento, a observação do dia a dia das escolas e o contato com seus agentes
revelam um aluno que, paulatinamente, vai perdendo o prazer em aprender devido a
uma organização escolar tecnocrata, cujas características são: escola de massa, que
avalia, onde o poder, o elogio e a punição estão sempre presentes.
Se podemos hoje, afirmar que estamos vivendo um período de muita dor,
barbárie e falta de humanidade, este é um cenário que a escola poderia se propor a
enfrentar com reflexões sobre a realidade, não como troca de experiências, mas como
formação – uma formação que desenvolva o estranhamento sobre as práticas autoritárias
naturalizadas em nossas escolas. Um estranhamento que resulte em conhecimento e
reflexão a respeito da escola, suas práticas e seus conflitos. Um movimento urgente e
necessário já que, nestes tempos de barbárie, a escola ainda lança mão de estratégias e
práticas de controle sobre os alunos e sobre os professores.
Referências
CHARLOT, B. Formação dos professores e globalização: questões para a educação
hoje. Porto Alegre: Artmed, 2005.
DUBET, F. Sociologia da Experiência. Lisboa: Instituto Piaget, 1994.
DUBET, F. e MARTUCELLI, D. Sociologie de l'experience scolaire. Revue
L'orientation scolaire et profissionelle. Paris: INETP, v.27, n.2, 1998, p. 169-187
(Tradução: Maria Angélia Pedra Minhoto).
FANFANI, E. T. Culturas jovens e cultura escolar. Brasília. MEC (Seminário), 2000.
Disponível em: unesdoc.unesco.org/images/0013/...134675so.pdf. Acesso em 16
fev.2016.
GIMENO SACRISTÁN, J. O Currículo: uma reflexão sobre a prática. Porto Alegre:
Artmed, 1998.
GIOVANNI, L. M. François Dubet: a experiência escolar em jogo. In: REGO, T.C.
(Org.) Educação, escola e desigualdade. Revista Educação. Rio de Janeiro/SãoPaulo:
Vozes / Segmento, 2011, p. 87-114 (Coleção Pedagogia Contemporânea).
JARES. X.R. El lugar del conflicto em la organización escolar. Revista
Iberoamericana de Educación. Madrid: OEI/CAEU, n.15, set-dez/1997, p.53-73.
Disponível em: http://www.rieoei.org/oeivirt/rie15.htm. Acesso em 16 fev.2016.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
4169ISSN 2177-336X