Reginaldo Prandi - Religiõs Negras No Brasil

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Teologia - Religiões Afro no Brasil.Candomblé - Ritos e outros

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    3

    ACIMA,

    LOGUN-ED,

    JOVEM

    CAADOR.

    PO

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    R E G I N A L D O P R A N D I

    AS RELIGIES NEGRAS NA SOCIEDADE BRANCA

    O quadro das religies negras, ou religies afro-brasileiras,

    bastante diversificado. Em seu conjunto, at os anos 30 deste

    sculo, as religies negras poderiam ser includas na categoria das

    religies tnicas ou de preservao de patrimnios culturais dos

    antigos escravos negros e seus descendentes, enfim, religies que

    mantinham vivas tradies de origem africana. Formaram-se em

    diferentes reas do Brasil, com diferentes ritos e nomes locais

    derivados de tradies africanas diversas: candombl na Bahia,

    xang em Pernambuco e Alagoas, tambor de mina no Maranho

    e Par, batuque no Rio Grande do Sul, macumba no Rio de Janeiro.

    As religiesnegras doBrasilPara uma so cio lo g ia

    do s culto s

    afro -brasileiros

    REGINALDOPRANDI professordo Departamento deSociologia da USP eautor de, entre outroslivros, OsCandombls de SoPaulo: a

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    grande parte se perdeu atravs do tempo, sen-do hoje muito difcil traduzir os versos dascantigas sagradas e impossvel manter con-versao na lngua do candombl. Alm doqueto, as seguintes naes tambm so dotronco iorub (ou nag, como os povosiorubanos so tambm denominados): ef eijex na Bahia, nag ou eba em Pernambuco,oi-ijex ou batuque de nao no Rio Grandedo Sul, mina-nag no Maranho, e a quaseextinta nao xamb de Alagoas ePernambuco.

    O candombl de nao angola, de ori-gem banto, adotou o panteo dos orixsiorubs (embora os chame pelos nomes deseus esquecidos inquices, divindades bantos),assim como incorporou muitas das prticasiniciticas da nao queto. Sua linguagemritual, tambm intraduzvel, originou-se pre-dominantemente das lnguas quimbundo equicongo. Nessa nao, tem fundamentalimportncia o culto dos caboclos, que soespritos de ndios, considerados pelos anti-gos africanos como sendo os verdadeirosancestrais brasileiros, portanto os que sodignos de culto no novo territrio em queforam confinados pela escravido. O candom-bl de caboclo uma modalidade do angolacentrado no culto exclusivo dos antepassa-dos indgenas. Foi provavelmente o candom-bl angola e o de caboclo que deram origem umbanda. H outras naes menores deorigem banto, como a congo e a cambinda,hoje quase inteiramente absorvidas pela na-o angola.

    A nao jeje-mahin, do estado da Bahia,e a jeje-mina, do Maranho, derivaram suastradies e lngua ritual do ew-fon, ou jejes,como j eram chamados pelos nags, e suasentidades centrais so os voduns. As tradi-es rituais jejes foram muito importantes naformao dos candombls com predominn-cia iorub.

    Em nosso sculo nasceu a umbanda, quetem sido reiteradamente identificada comosendo a religio brasileira por excelncia, pois,formada no Brasil, ela resulta do encontro detradies africanas, espritas e catlicas (2).Ao contrrio das religies negras tradicionaisque se constituram como religies de gruposnegros, a umbanda surge como religio uni-versal, isto , dirigida a todos. A umbandasempre procurou legitimar-se pelo apagamen-to de feies herdadas do candombl, sua

    Na Bahia originou-se tambm o muito po-pular candombl de caboclo e o menos co-nhecido candombl de egum. Mais recente-mente, no Rio de Janeiro e depois em SoPaulo, constituiu-se a umbanda, que logo sedisseminou por todo o pas, abrindo, de certomodo, caminho para uma nova etapa de difu-so do antigo candombl. O Nordeste foi ber-o tambm de outras modalidades religiosasmais prximas das religies indgenas, masque cedo ou tarde acabaram por incorporarmuito das religies afro-brasileiras ou as in-fluenciar. Trata-se do catimb, religio deespritos aos quais se d o nome de mestres ecaboclos, que se incorporam no transe paraaconselhar, receitar e curar. Esse tronco afro-amerndio tem particularidades em diferen-tes lugares, sendo chamado de jurema, tor,pajelana, babau, encantaria e cura (1).

    Tudo indica que a organizao das religiesnegras no Brasil deu-se tardiamente. Uma vezque as ltimas levas de africanos trazidos parao Novo Mundo nas ltimas dcadas do sculoXIX, perodo final da escravido, foram fixa-das sobretudo nas cidades e em ocupaesurbanas, os africanos desse perodo puderamviver no Brasil em maior contato uns com osoutros, fsica e socialmente, com maior mo-bilidade e, de certo modo, liberdade de movi-mentos, num processo de interao que noconheceram antes. Esse fato propiciou con-dies sociais favorveis para a sobrevi-vncia de algumas religies africanas,com a formao de grupos de culto orga-nizados.

    Quando se fala em candombl, geralmen-te a referncia o candombl queto, ou dachamada nao queto, da Bahia, vertenteem que predominam os orixs e ritos de ini-ciao de origem iorub. Seus antigos terrei-ros so os mais conhecidos e prestigiados doBrasil: a Casa Branca do Engenho Velho, ocandombl do Alaketo, o Ax Op Afonj eo Gantois. As mes-de-santo que alcanaramgrande prestgio e visibilidade na sociedadelocal tm sido dessas casas, como Pulquriae Menininha, sua sobrinha-neta e sucessorano candombl do Gantois; Olga, do terreirodo Alaketo; e Aninha, Senhora e Stella, docandombl do Op Afonj. O candomblqueto tem tido grande influncia sobre outrasnaes, que tm incorporado muitas de suasprticas rituais. Sua lngua ritual deriva doiorub, mas o significado das palavras em

    1 Para as diferentes modali-dades religiosas afro-bra-sileiras, ver Bastide 1975,1978; Carneiro 1936;Rodrigues 1935; Motta1985; Pinto 1935; S.Ferretti 1986; M. Ferretti1985, 1994; Eduardo 1948;Herskovits 1943; Corra1992; Oro 1994; Prandi1991a, 1993; Santos 1995;Braga 1992; Camargo1961.

    2 Camargo 1961; Concone1987; Ortiz 1978.

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    matriz negra, especialmente os traos referi-dos a modelos de comportamento e mentali-dade que denotam a origem tribal e depoisescrava, mantendo contudo essas marcas naconstituio do panteo. Comparado ao docandombl, seu processo de iniciao mui-to mais simples e menos oneroso e seus ritu-ais evitam e dispensam sacrifcio de sangue.Os espritos de caboclos e pretos-velhos ma-nifestam-se nos corpos dos iniciados duranteas cerimnias de transe para danar e sobre-tudo orientar e curar aqueles que procurampor ajuda religiosa para a soluo de seusmales. A umbanda absorveu do kardecismoalgo de seu apego s virtudes da caridade e doaltrusmo, assim fazendo-se mais ocidentalque as demais religies do espectro afro-bra-sileiro; mas nunca completou o processo deocidentalizao, ficando a meio caminho entreser religio tica, preocupada com a orienta-o moral da conduta, e religio mgica, vol-tada para a estrita manipulao sobrenaturaldo mundo.

    Desde o incio as religies afro-brasilei-ras se formaram em sincretismo com o cato-licismo, e em grau menor com religies in-dgenas. O culto catlico aos santos, numadimenso popular politesta, ajustou-se comouma luva ao culto dos pantees africanos.Com a umbanda, acrescentaram-se verten-te africana as contribuies do kardecismofrancs, especialmente a idia de comunica-o com os espritos dos mortos atravs dotranse, com a finalidade de se praticar a ca-ridade entre os dois mundos, pois os mortosdevem ajudar os vivos sofredores, assimcomo os vivos devem ajudar os mortos aencontrarem, sempre pela prtica da carida-de, o caminho da paz eterna, segundo a dou-trina de Kardec. A umbanda perdeu parte desuas razes africanas e se espraiou por todasas regies do pas, sem limites de classe,raa, cor (Prandi, 1995). Mas no interferiuna identidade do candombl, do qual se des-colou, conquistando sua autonomia. E ocandombl tambm mudou. At 20 ou 30anos atrs, o candombl era religio de ne-gros e mulatos, confinado sobretudo naBahia e Pernambuco, e de reduzidos gru-pos de descendentes de escravos localiza-dos aqui e ali em distintas regies do pas.No rastro da umbanda, a partir dos anos 60deste sculo, o candombl passou a se ofe-recer como religio tambm para segmen-

    tos da populao de origem no-africana.A presena do negro na formao social

    do Brasil foi decisiva para dotar a culturabrasileira dum patrimnio mgico-religioso,desdobrado em inmeras instituies e dimen-ses materiais e simblicas, sagradas e profa-nas, de enorme importncia para a identidadedo pas e sua civilizao. No que diz respeito religio especificamente, os cultos trazidospelos africanos deram origem a uma varieda-de de manifestaes que aqui encontraramconformao especfica, atravs de umamultiplicidade sincrtica resultante do con-tato das religies dos negros com o catolicis-mo do branco, mediado ou propiciado pelasrelaes sociais assimtricas existentes entreeles, e tambm com as religies indgenas ebem mais tarde, mas no menos significati-vamente, com o espiritismo kardecista.

    Desde sua formao em solo brasileiro,as religies de origem negra tm sido tribut-rias do catolicismo. Embora o negro, escravoou liberto, tenha sido capaz de manter noBrasil dos sculos XVIII e XIX, e at hoje,muito de suas tradies religiosas, fato quesua religio enfrentou-se desde logo com umasria contradio: a prpria estrutura social efamiliar s quais a religio dava sentido aquinunca se reproduziram. As religies dosbantos, iorubs e fons so religies de cultoaos ancestrais, que se fundam nas famlias esuas linhagens.

    O tecido social do negro escravo nada ti-nha a ver com famlia, grupos e estratos sociaisdos africanos nas suas origens. Assim, a re-ligio negra s parcialmente pde se repro-duzir aqui. A parte ritual da religio originalmais importante para a vida cotidiana, cons-tituda no culto aos antepassados familiares eda aldeia, pouco se refez, pois a famlia seperdeu, a tribo se perdeu. Na frica, era oancestral do povoado (egungum) que cuida-va da ordem do grupo, resolvendo os confli-tos e punindo os transgressores que punhamem risco o equilbrio coletivo. Quando asestruturas sociais foram dissolvidas pela es-cravido, os antepassados perderam seu lu-gar privilegiado no culto. Sobreviverammarginalmente no novo contexto social e ri-tual. As divindades mais diretamente ligadass foras da natureza, mais diretamente en-volvidas na manipulao mgica do mundo,mais presentes na construo da identidadeda pessoa, os orixs, divindades de culto ge-

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    nrico, estas sim vieram a ocupar o centro danova religio negra em territrio brasileiro.Pois que sentido poderia fazer o controle davida social para o negro escravo? Fora de suasassemblias religiosas, era o catolicismo dosenhor a nica fonte possvel de ligao como mundo coletivo projetado para fora do tra-balho escravo e da senzala.

    Se a religio negra, ainda que em sua re-construo fragmentada, era capaz de dotar onegro de uma identidade negra, africana, deorigem, que recuperava ritualmente a fam-lia, a tribo e a cidade, perdidas para sempre nadispora, era atravs do catolicismo, contu-do, que ele podia se encontrar e se mover nomundo real do dia-a-dia, na sociedade dosbrancos dominadores, responsvel pela ga-rantia da sua existncia, no importa em quecondies de privao e dor. Qualquer tenta-tiva de superao da condio escrava, comorealidade ou como herana histrica, impli-cava primeiro a necessria incluso no mun-do branco. E logo passava a significar oimperativo de ser, sentir-se e parecer brasi-leiro. Nunca puderam ser brasileiros sem sercatlicos. Podiam preservar suas crenas noestrito limite dos grupos familiares, muitasvezes reproduzindo simbolicamente a fam-lia e os laos familiares atravs da congrega-o religiosa, da a origem dos terreiros e dasfamlias-de-santo. Mas a insero no espaomaior exigia uma identidade nacional, porassim dizer, uma identidade que refletisse oconjunto geral da sociedade catlica em ex-panso. O fim da escravido, a formao dasociedade nacional, o extravasamento daspopulaes pelas amplitudes geogrficas, coma criao de possibilidades as mais diferen-tes, tudo isso s fez reforar a importncia docatolicismo para as populaes negras. Oprprio catolicismo, como cultura de inclu-so, hegemnica, no fez oposies, que nopudessem ser vencidas, ao fato de o negromanter uma dupla ligao religiosa. Pois emSo Lus, talvez o mais vivo e denso centrocultural dos sincretismos afro-catlicos, noso apenas os devotos das religies negrasque so tambm catlicos; catlicas tambmso consideradas pelos seus fiis as prpriasdivindades trazidas da frica. As religiesafro-brasileiras, em suas origens, sempre fo-ram devedoras e dependentes do catolicismo,ideolgica e ritualmente. S muito recente-mente quando a sociedade brasileira no

    precisa mais do catolicismo como a grande enica fonte de transcendncia que possalegitim-la e fornecer os controles valorativosda vida social , as religies de origem ne-gra comearam a se desligar do catolicismo.Mas isso um projeto de mudana de iden-tidade que mal comeou e que exige, antes,outras experincias de situar-se no mundocom mais liberdade e direitos depertencimento (3).

    Desobrigadas, desde o nascimento, dasquestes referentes administrao da justi-a que pressupe princpios universalistas epactos coletivos acima dos desejos individu-ais, posto que isso era domnio exclusivo dareligio geral da sociedade geral, isto , ocatolicismo; desinteressadas de contedosformadores da pessoa para o mundo profano,porque o modelo aqui branco; alimentandoo culto de deuses que se exteriorizam e seexpressam especialmente atravs da forma,no sem razo que as religies afro-brasilei-ras desenvolveram um enorme senso ritualpresidido por inigualvel senso esttico, ca-paz de transbordar os limites do sagrado parase impregnar nas expresses mais profanasque modelam a identidade nacional. Ser bra-sileiro agora ser do samba, do camaroensopadinho com chuchu, do carnaval deavenida que tudo afro-brasileiro e nadaabsolutamente religioso. Os elementos dareligio tradicional, ao serem assimilados pelacultura nacional, deixam de ser religiosos paraserem simplesmente exticos. E mesmo quan-do contedos religiosos, nessas circunstncias,so mantidos por seus cultores, como o ebpara Exu que abre o desfile da grande escolade samba de prestgio universal, isso no temnenhuma importncia para a sociedade. Esseeb, certamente privativo de um grupo quebusca firmar sua identidade religiosa singu-lar, no se publiciza a no ser como ingredi-ente esttico.

    UMBANDA, UMA RELIGIOUNIVERSAL

    No Estado do Rio de Janeiro, cerca de1920, foi fundado o primeiro centro deumbanda, que teria nascido como dissidnciade um kardecismo que rejeitava a presena deguias negros e caboclos, considerados pelosespritas mais ortodoxos como espritos infe-riores. De Niteri, esse centro foi se instalar

    3 Para outras interpretaes easpectos de sincretismocatlico nas religies afro-brasileiras, ver Valente1977; S. Ferrett i 1995;Sanchis 1995.

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    numa rea central do Rio em 1938. Logo se-guiu-se a formao de muitos outros centrosdesse espiritismo de umbanda, os quais, em1941, com o patrocnio da Unio EspritaBrasileira, promoveram no Rio o PrimeiroCongresso de Umbanda, congresso ao qualcompareceram umbandistas de So Paulo.

    A fundao, nos anos 20, daquele primei-ro centro de umbanda no Rio de Janeiro, comodissidncia pblica e institucionalizada dokardecismo, num processo de valorizao deelementos nacionais, como o caboclo e o pre-to-velho, que so espritos de ndios e escra-vos, deve ter representado uma forma deacomodao seletiva, um movimento derearranjo entre duas alternativas confluentesna perspectiva dos fundadores da umbanda:uma mais rica em contedos doutrinrios, aoutra mais centrada em prticas rituais. Okardecismo como religio de salvao, reli-gio da palavra, o candombl como religioritualstica, de manipulao do destino.

    A umbanda que nasce retrabalha os ele-mentos religiosos incorporados cultura bra-sileira por um estamento negro que se dilui ese mistura no refazer das classes sociais, numacidade que, capital federal, branca, mesmoquando proletria; culturalmente europia;que valoriza a organizao burocrtica da qualvive boa parte da populao residente; quepremia o conhecimento pelo aprendizadoescolar em detrimento da tradio oral; e quej aceitou o kardecismo como religio, pelomenos entre setores importantes fora da Igre-ja Catlica. Limpar a religio nascente deseus elementos mais comprometidos com atradio inicitica secreta e sacrificial to-mar por modelo o kardecismo, capaz de ex-pressar ideais e valores da nova sociedaderepublicana, ali na sua capital. Os passosdecisivos foram a adoo da lngua verncula,a simplificao da iniciao, com a elimina-o quase total do sacrifcio de sangue, inici-ao que ganha, ao estilo kardecista, caracte-rsticas de aprendizado medinico pblico, odesenvolvimento do mdium. Mantm-se orito cantado e danado dos candombls, bemcomo um panteo simplificado de orixs, jporm h muitos anos sincretizados com san-tos catlicos, reproduzindo-se, portanto, umcalendrio litrgico que segue o da IgrejaCatlica, publicizando-se as festas ao com-passo desse calendrio. Entretanto, o centrodo culto no seu dia a dia estar ocupado pelos

    guias, caboclos, pretos velhos e mesmo osmalficos e interesseiros exus masculinose femininos, as pombagiras, j cultuados emantigos candombls baianos e provavelmen-te cariocas (Prandi, 1994b).

    Na umbanda que se consolidar a partirde ento, a presena da entidade no transeritual volta-se mais para a cura, limpeza,aconselhamento dos fiis e clientes, afastan-do-se de outro ideal kardecista: o de comuni-cao com os mortos com o fim de estenderao mundo dos espritos atrasados e sofredo-res a doutrinao evanglica caridosa, e rece-ber dos espritos de luz orientao para odesenvolvimento de virtudes na terra, curasdo corpo e da alma, evoluo espiritual dosvivos e dos mortos.

    Quando a umbanda nascia, a Igreja Cat-lica lutava pela reiterao da autoridade dahierarquia romanizada, proclamava-se a re-ligio brasileira nica, ou nica via de dilo-go e intermediao entre o povo e o Estadoda ditadura Vargas. Nunca tendo aceitado oespiritismo kardecista, cuja base de prestgiofirmava-se sobre enorme rede de filantropiae adeso de uma intelectualidade da peque-na-burguesia tradicional urbana, a IgrejaCatlica sequer se pronunciava oficialmentesobre a umbanda em seu perodo inicial, tra-tada por ela, como por intelectuais leigos dapoca, como baixo espiritismo, portanto for-ma degenerada do kardecismo. S no finaldos anos 1940 a Igreja iria declarar-se aber-tamente contra a umbanda, reconhecendo-aipso facto como religio, e religio inimiga,e importante inimigo. Desligado da IgrejaCatlica desde a repblica, o Estado, na pr-tica, funcionou por muito tempo como umaespcie de brao armado da Igreja contra oscultos e prticas de origem africana, indgenae mesmo do catolicismo de cura pr-ultramontano. At o final da ditadura Vargas,assim como antes e pouco depois, a umbandaexperimentou amargamente sistemtica per-seguio por parte dos rgos policiais, comoj experimentara o candombl da Bahia du-rante a primeira metade do sculo, o xangpernambucano nos anos 30 e o xang alagoanopraticamente dizimado nos anos 20.

    Do Rio de Janeiro, a umbanda instala-see se expande em So Paulo rapidamente, de-pois pelo pas inteiro. Trs dcadas depoisser analisada e festejada como a religiobrasileira. A adoo da umbanda por So

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    Paulo d-se publicamente. Sua presena nacidade ocorre com grande visibilidade, aindaque os terreiros fossem obrigados a registrar-se nas delegacias policiais. A partir do finaldos anos 50, as festas populares pblicas quearregimentam a maior quantidade de devotose simpatizantes so as festas de Iemanj naspraias de Santos e Praia Grande, nos dias 8 e31 de dezembro de cada ano. Como no Rio deJaneiro e em muitas outras cidades brasilei-ras. A popularizao da umbanda em SoPaulo j ento definitiva, pois que So Pau-lo j tambm a metrpole de todos os bra-sileiros, a multido de cada um, o mercado detodas as coisas e causas, o capricho de todosos gostos, o templo de todos os deuses.

    A umbanda, ritualmente muito prximado candombl dos ritos angola e caboclo, emque j esto esquecidos os inquices bantos,substitudos pelos orixs nags, procura in-corporar na doutrina em formao as verda-des teologais do cristianismo f, esperanae caridade , as grandes virtudes catlicasadotadas pelo kardecismo, e procura empres-tar desta religio seus modelos de organiza-o burocrtica e federativa. No logra intei-ramente nem uma coisa nem outra.

    Seu panteo tem frente orixs-santos doscandombls e xangs, mas o lugar de desta-que est ocupado por entidades desencarnadassemi-evemricas, moda kardecista e africa-na, ou encantados de origem desconhecida, moda dos cultos de maior influncia indge-na: os catimbs, os candombls de caboclos,as encantarias, de onde tambm se originamcertas prticas rituais, como o uso de bebidaalcolica e tabaco. A umbanda a religiodos caboclos, boiadeiros, pretos velhos, ci-ganas, exus, pombagiras, marinheiros, crian-as. Perdidos e abandonados na vida, margi-nais no alm, mas todos eles com uma mesmatarefa religiosa e mgica que lhes foi dadapela religio de uma sociedade fundada namxima heterogeneidade social: trabalharpela felicidade do homem sofredor. kardecista esta herana da prtica da carida-de, que no kardecismo sequer separa o mun-do dos vivos do mundo dos mortos, pois estestambm precisam de ajuda na sua saga emdireo luz, o desenvolvimento espiritual. para praticar a caridade que as entidades daumbanda vm nas sesses do culto; para issoso chamadas durante a metamorfose ritualem que o sacerdote iniciado abandona seus

    papis de mortal para dar lugar personalida-de dos encantados e dos espritos. Vm paratrabalhar, como se diz, trazendo para asaflies de toda ordem explicaes e solu-es quantas vezes imploradas em desespe-ro. Explicaes e solues que pertencem aum mundo onde acredita-se no haver os li-mites da temporalidade e da materialidadeterrenas que nos ameaam traioeiramente acada instante e em cada situao de nossasvidas. Ali onde nossa racionalidade no con-ta, posto que aqui, neste nosso mundo, elaest limitada por nossa condio humana,nossa fragilidade crmica de desejos, frustra-es e apego materialidade do corpo, nossodesespero diante da dor, nossa msera incom-petncia de sermos como desejamos e comoos outros desejam que sejamos.

    A histria dessas religies aparentadas,porque medinicas, porque elos de uma mes-ma cadeia simblica da nossa prpria histriacomo sociedade em formao, porque expe-rincias de concepes de mundo, da vida eda morte, to instigantes, a histria dessasreligies que so o candombl, o kardecismo,a umbanda, e mais o tambor de mina, o batu-que, a pajelana, o catimb, tudo isso impreg-nado dos secularizados valores cristos docatolicismo pr-Restaurao e pr-VaticanoII, essa histria decifra-se com a histria dasociedade. A sociedade a esfinge. Mas parao crente, o convertido, a religio a decifra-o da sociedade. A f a privao da dvida,como algum j disse.

    O refluxo do kardecismo em favor daumbanda, que se verifica decisivamente nadcada de 50, capaz de espelhar um movi-mento de reordenamento das classes sociaisiniciado nos anos 30, mas muito mais decisi-vamente, um refazer da imagem que se expe-rimenta dessa mesma sociedade. No s omomento do nacionalismo, mas tambm dainterveno do Estado numa poltica econ-mica que prepara o pas para as mudanasprofundas que se daro no sistema produtivono segundo ps-guerra, quando a atividadeprodutiva urbana do eixo RioSo Paulo rou-ba a cena da produo rural, quando as rela-es de trabalho de base familiar e as profis-ses rurais perdem definitivamente para oprimado do assalariamento ao modo capita-lista, individual, impondo-se na constituioda sociedade brasileira princpios

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    kardecistas as virtudes e habilidades intelec-tuais do mdium condicionam e interferemna plena manifestao do esprito incorpora-do. Essa diferena leva a noes muito distin-tas de cdigo moral, autoridade, responsabi-lidade e poder.

    Embora o candombl no faa distinoentre o bem e o mal, no sentido judaico-cris-to, uma vez que o seu sistema de moralidadebaseia-se na relao estrita entre homem eorix, relao esta de carter propiciatrio esacrificial, e no entre os homens como umacomunidade em que o bem do indivduo estinscrito no bem coletivo, a umbanda, por suaherana kardecista, preservou o bem e o malcomo dois campos legtimos de atuao, mastratou logo de os separar em departamentosestanques. A umbanda se divide numa linhada direita, voltada para a prtica do bem e quetrata com entidades desenvolvidas, e numalinha da esquerda, a parte que pode traba-lhar para o mal, tambm chamadaquimbanda, e cujas divindades, atrasadasou demonacas, sincretizam-se com aquelasdo inferno catlico ou delas so tributrias.Essa diviso, contudo, pode ser meramenteformal, como uma orientao classificatriaestritamente ritual e com frouxa importnciatica. Na prtica, no h quimbanda semumbanda nem quimbandeiro que no sejaumbandista, pois so duas faces de uma mes-ma concepo religiosa.

    Assim, esto do lado direito os orixs,sincretizados com os santos catlicos, e queocupam no panteo o posto de chefes de li-nhas e de falanges, que so reverenciados,mas que pouco ou nada participam do traba-lho da umbanda, isto , da interveno m-gica no mundo dos homens para a soluo detodos os seus problemas, que o objetivoprimeiro da umbanda enquanto religio ritu-al. Ainda do lado do bem esto o caboclo(que representa a origem brasileira autntica,o antepassado indgena) e o preto-velho (sm-bolo da raiz africana e marca do passadoescravista e de uma vida de sofrimentos epurgao de pecados). Na esquerda estoos exus masculinos e as pombagiras,sincretizados com demnios catlicos, sem-pre dispostos a trabalhar para o mal, visan-do sempre o bem de seus adeptos, amigos eclientes. Embora religio surgida neste scu-lo, durante e em funo do processo intensode urbanizao e industrializao, o panteo

    da umbanda constitudo sobretudo de enti-dades extradas de um passado histrico queremonta pelo menos ao sculo XIX. Ela nun-ca incorporou, sistematicamente, os espritosde homens e mulheres ilustres contempor-neos que marcam o universo das entidades doespiritismo kardecista.

    As respostas que os umbandistas encon-tram ao se enfrentarem com a sociedade emmudana, o sentido que eles experimentamao lidar religiosamente com este mundo queeles podem manipular, e a noo de poder deorigem religiosa que eles conhecem e usampodem levar muitos deles ao desejo de senti-rem ampliadas essas respostas, essas possibi-lidades de manipular o mundo, esse poder. Aumbanda no ter sido em suas vidas a reli-gio final. enorme o nmero de ex-umbandistas hoje filiados ao candombl.

    CANDOMBL, AGORA TAMBMUMA RELIGIO PARA TODOS

    Por volta de 1950, a umbanda j tinha seconsolidado como religio aberta a todos, noimportando as distines de raa, origemsocial, tnica e geogrfica. Por ter a umbandadesenvolvido sua prpria viso de mundo,bricolage europia-africana-indgena, smbo-lo das prprias origens brasileiras, ela podese apresentar como fonte de transcendnciacapaz de substituir o velho catolicismo ouento juntar-se a ele como veculo de renova-o do sentido religioso da vida. Depois dever consolidados os seus mais centrais aspec-tos, ainda no Rio de Janeiro e So Paulo, aumbanda espalhou-se por todo o pas, poden-do ser tambm agora encontrada vicejandona Argentina, no Uruguai e outros pases la-tino-americanos, alm de Portugal (4).

    Durante os anos 1960, contudo, algo sur-preendente comeou a acontecer. Com a lar-ga migrao proveniente do Nordeste embusca das grandes cidades industrializadas noSudeste, o candombl comeou a penetrar obem estabelecido territrio da umbanda, evelhos umbandistas comearam a se iniciarno candombl, muitos deles abandonando osritos da umbanda para se estabelecer comopais e mes-de-santo das modalidades maistradicionais de culto aos orixs. Neste movi-mento, a umbanda remetida de novo aocandombl, sua velha e verdadeira raizoriginal, considerada pelos novos seguidores

    4 Sobre a presena das reli-gies afro-brasileiras empases do Cone Sul, verOro, 1993; Frigerio &Carozzi, 1993; Pi Hugarte1993; Prandi, 1991c; naVenezuela, Polallak-Eltz,1993; em Portugal,Pordeus Jr. ,1995.

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    como sendo mais misteriosa, mais forte, maispoderosa que sua moderna e embranquecidadescendente.

    Nesse perodo da histria brasileira, asvelhas tradies at ento preservadas naBahia e outros pontos do pas encontraramexcelentes condies econmicas para se re-produzirem e se multiplicarem mais ao sul; oalto custo dos ritos deixou de ser um cons-trangimento que as pudesse conter. E mais,naquele perodo, importantes movimentos declasse mdia buscavam por aquilo que pode-ria ser tomado como as razes originais dacultura brasileira. Intelectuais, poetas, estu-dantes, escritores e artistas participaram des-sa empreitada, que tantas vezes foi bater porta das velhas casas de candombl da Bahia.Ir a Salvador para se ter o destino lido nosbzios pelas mes-de-santo tornou-se um mustpara muitos, uma necessidade que preenchiao vazio aberto por um estilo de vida modernoe secularizado to enfaticamente constitudocom as mudanas sociais que demarcavam ojeito de viver nas cidades industrializadas doSudeste, estilo de vida j, quem sabe?, eivadode tantas desiluses (Prandi, 1991a).

    O candombl encontrou condies soci-ais, econmicas e culturais muito favorveispara o seu renascimento num novo territrio,em que a presena de instituies de origemnegra at ento pouco contava. Nos novosterreiros de orixs que foram se criando en-to, entretanto, podiam ser encontrados po-bres de todas as origens tnicas e raciais. Elesse interessaram pelo candombl. E os terrei-ros cresceram s centenas.

    Os anos durante os quais o candombl vira se instalar em So Paulo, grosseiramentedos meados dos 60 aos primeiros anos dos 70,e que estamos habituados a chamar simples-mente de os anos 60, marcam um perodode fundamentais efervescncias no plano dacultura e das mentalidades; profundas so asmudanas em relao aos modos de vida eaos cdigos intelectuais. Na Europa, nos Es-tados Unidos, no Brasil. No Brasil, sobrema-neira no Sudeste, nas grandes cidades, nametrpole paulista.

    So os anos da contracultura, da recupe-rao do extico, do diferente, do original. Ajuventude ocidental ilustrada se rebela, tomagosto pelas civilizaes orientais, seus mis-trios transcendentais e ocultistas (lembremo-nos dos Beatles e da peregrinao da juven-

    tude americana e europia em busca dos gurusdo Himalaia). Valoriza-se a cultura do outro.No Brasil, valoriza-se a cultura indgena. Aantropologia redimensiona a etnografia parafazer poltica indigenista. E valoriza-se acultura negra, sobretudo a negro-baiana. Asociedade sai em busca de suas razes. pre-ciso voltar para a Bahia por que no? ,acampar em Arembepe. Abrir as portas dapercepo, ir em busca do prazer, da expan-so da sensibilidade, de gratificaes imedi-atas para o corpo e para a mente.

    O inconformismo e o desprezo pela cultu-ra racional, essa mudana de rumos, est nasclasses mdias. No obstante, vale lembrarque o movimento se mostra de forma genera-lizada atravs da mdia, que j eletrnica, eprovoca novos gostos, traz novas informa-es. A intelectualidade brasileira de maiorlegitimidade nos anos 60 participar ativa-mente de um projeto de recuperao de ori-gens, que vai remeter muito diretamente Bahia.

    Em 1964, atravs da antiga TV Excelsior,Elis Regina canta Arrasto, de Ruy Guerrae Edu Lobo: Eh, meu irmo me traz Iemanjpra mim/ Nunca jamais se viu tanto peixeassim... Da modernidade da Bossa Novapartia-se para a recuperao do contedo deuma brasilidade legtima. Iemanj, diga-sede passagem, j muito conhecida no Sul-Sudeste atravs da umbanda. Mas, na medidaem que a referncia passa a ser a Bahia, oorix passa a ser referido como o da Bahia,isto , o do candombl. So anos de produode uma nova forma de cantar em que elemen-tos da cultura do candombl vo se firmandocom legitimidade entre as classes mdiasconsumidoras do que se produz de mais avan-ado no pas. Da Bossa Nova Tropiclia, osbaianos esto na ponta da renovao da m-sica popular brasileira. A msica Canto deOssanha de Vincius e Baden, ainda comElis, mas j pela TV Record, novo marco.Viro Caetano Veloso, Gilberto Gil, GalCosta, Maria Bethnia, entre os mais impor-tantes. Tudo leva Bahia: o Cinema Novo, asartes cnicas. Com O Pagador de Promes-sas, filme de Anselmo Duarte adaptado dapea de Dias Gomes, o Brasil se reconhece ese faz reconhecer nas telas do mundo inteiro.Ians, Santa Brbara da promessa, est nocentro do enredo: o padre contra, o povo afavor. O paladar do pas experimenta o sabor

    NA OUTRA PGINA,

    IEMANJ,

    A GRANDE ME

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    2

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    do azeite de dend. Aprendemos a gostar deacaraj, vatap, bob, caruru...

    Essa enorme publicidade e popularidadeque a Bahia e a cultura negro-baiana vo al-canando, atravs tambm da literatura deJorge Amado, de peas de teatro como Zum-bi (...ziquizira posso tirar..., Upa Neguinhona estrada...), apresenta-nos s venerveismes-de-santo dos candombls de Salvador:primeiro Olga do Alaketo, depois, e definiti-vamente, Menininha do Gantois. Nas vozesde Gal e Bethnia, e tantos outros, o Brasilinteiro aprende a cantar, de Caymmi, AOxum mais bonita est no Gantois... Ai, mi-nha me, minha me Menininha.... Pelamsica popular aprendemos os nomes dossantos, que tambm so os da umbanda, masagora necessrio ir at a Bahia para pedir abno de Me Menininha do Gantois, parajogar os bzios e ler a sorte, para experimen-tar o sabor do feitio, o verdadeiro.

    Esse consumo, que no do pobre, mas do jovem, do estudado, do branco metropolita,leva primeiro essa classe mdia aos terreirosda Bahia: h um novo universo no mercadoreligioso interno, altura das formas maisoriginais e hermticas do Oriente. Mas ametrpole no vai pagar por muito tempo opreo de ir to longe. Quer que a Bahia sejarefeita aqui, em So Paulo, por que no? Equando o candombl chegar, sua clientela jestar de prontido. Uma clientela de classemdia, alis, indispensvel para garantir ainfra-estrutura dessa religio, clientela quese ampliar e se diversificar muito, eviden-temente. De toda sorte, j temos a uma pr-condio importante. E o povo-de-santo quedescer da Bahia, para essa nova fronteira dametrpole do Sudeste, e que aqui abrir ter-reiros e far filhos-de-santo, refazendo aqui areligio de l, oferecendo aqui os feitios eadivinhaes l aprendidos, vai querer ser,todo ele, um filho do candombl do Gantois,um filho de Me Menininha. Mas isso outrahistria...

    nesse contexto (econmico, social ecultural), que o candombl chega e se instalaem So Paulo. Como religio, abstratamente,reforar idias de que a competio na soci-edade bem mais aguda do que se podia pen-sar, que preciso chegar a nveis de conheci-mento muito mais densos e cifrados, que opoder religioso tem amplas possibilidades dese fazer aumentar. Na prtica, enquanto gru-

    po de culto, comunidade de fiis, permitir otrnsito num espao em que no h separaoentre a intimidade e a publicidade. Onde,portanto, no h nada a esconder ou reprimir,com relao a si mesmo e com relao aosdemais. Onde tambm podemos ser o quesomos, o que gostaramos de ser e o que osoutros gostariam que fssemos. A um mesmotempo.

    Como agncia de servios religiosos ofe-recer ao no-devoto um tipo de servio emque o sagrado, o estritamente religioso, pouco exigente para quem busca uma reli-gio no para ser ou por ser religioso, massimplesmente para a soluo de um problemano resolvido por outros meios. Aos olhos docliente, a densa sacralidade do candomblpode passar despercebida. Isso permitir aohomem de mentalidade laicizada das classesmdias de onde sai o grosso da clientela docandombl na metrpole um menor ou nuloenvolvimento religioso quando se trata de umasoluo ad hoc: posto que pensada comomagia executada pelo sacerdote e menos comointerveno de uma divindade espiritual queele tem que enfrentar face to face na umbanda.Este deslocamento da magia em relao aoplano da religio, no sentido de que a magiapode ser exercida e pensada como prticaautnoma, s vezes at se vale de procedi-mentos aparentemente cientficos, isto , to-talmente dessacralizados e racionais. S queagora a religio que d legitimidade paraessa mgica autnoma e, por isso, nem considerada magia, nem julgada perniciosapara a sociedade.

    Essa legitimidade de elementos de umacultura negra, ou de origem africana, cujoceleiro mais importante a Bahia, essalegitimao da raiz, gestada pela classemdia intelectualizada do Rio e de So Paulo,que adota os artistas e intelectuais baianos,inclusive, propaga-se pela mdia eletrnica echega a todas as classes sociais. Tambm entreos pobres, que no viviam esse desejo de re-torno e rebeldia que atracou no Porto da Bar-ra, subiu a ladeira do Gantois na Federao ese embrenhou pelo Matatu de Brotas. E sealastrou inclusive entre umbandistas, que comesforo buscavam desde muito apagar justa-mente essa mesma origem no branca de suareligio, essa Bahia, essa frica. No imagi-nrio desse crente, crente que pobre, o orixoriginal, cantado e cortejado por aquele que

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    mais rico, mais escolarizado, famoso e maisbem sucedido na vida, esse orix cultuado moda antiga, moda dos candombls, vaise revelando mais forte, mais rico, mais au-tntico, mais poderoso. Mais que nunca,numa sociedade como a de agora, precisoestar atento e forte, nas palavras do inventorda Tropiclia. O novo adepto do candombldiria: mais forte.

    O sacerdcio e organizao dos ritos parao culto dos orixs so complexos, com todoum aprendizado que administra os padresculturais de transe, pelo qual os deuses semanifestam no corpo de seus iniciados du-rante as cerimnias, para serem admirados,louvados, cultuados. Os iniciados, filhos efilhas-de-santo (ia, em linguagem ritual),tambm so popularmente denominados ca-valos dos deuses uma vez que o transe con-siste basicamente em um mecanismo pelo qualcada filho ou filha se deixa cavalgar pela di-vindade, que se apropria do corpo e da mentedo iniciado, num modelo de transe inconsci-ente bem diferente daquele do kardecismo,em que o mdium, mesmo em transe, devesempre permanecer atento presena do es-prito. O processo de se transformar num ca-valo uma estrada longa, difcil e cara, sem-pre com a presena do sacrifcio de sangue(Prandi, 1991b; Motta, 1991).

    Para comear, a me-de-santo deve de-terminar, atravs do jogo de bzios, qual oorix dono da cabea daquele indivduo(Prandi, 1994a). Ele ou ela recebe ento umfio de contas sacralizado, cujas cores sim-bolizam o seu orix, dando-se incio a umlongo aprendizado que acompanhar o mes-mo por toda a vida. A primeira cerimniaprivada a que a novia (abi) submetidaconsiste num sacrifcio votivo sua prpriacabea (ebori), para que a cabea possa sefortalecer e estar preparada para algum diareceber o orix no transe de possesso. Parase iniciar como cavalo dos deuses, a abiprecisa juntar dinheiro suficiente para co-brir os gastos com as oferendas (animais eampla variedade de alimentos e objetos),roupas cerimoniais, utenslios e adornos ri-tuais e demais despesas suas, da famlia-de-santo, e eventualmente de sua prpria fam-lia durante o perodo de recluso iniciticaem que no estar, evidentemente, dispon-vel para o trabalho no mundo profano.

    Como parte da iniciao, a novia perma-nece em recluso no terreiro por um nmeroem torno de 21 dias. Na fase final da recluso,uma representao material do orix do inici-ado (assentamento ou ib-orix) lavada comum preparado de folhas sagradas trituradas(amassi). A cabea da novia raspada e pin-tada, assim preparada para receber o orix nocurso do sacrifcio ento oferecido (or).Dependendo do orix, alguns dos animaisseguintes podem ser oferecidos: cabritos,ovelhas, pombas, galinhas, galos, caramujos.O sangue derramado sobre a cabea da no-via, no assentamento do orix e no cho doterreiro, criando este sacrifcio um lao sa-grado entre a novia, o seu orix e a comuni-dade de culto, da qual a me-de-santo acabea. Durante a etapa das cerimniasiniciticas em que a novia apresentada pelaprimeira vez comunidade, seu orix gritaseu nome, fazendo-se assim reconhecer portodos, completando-se a iniciao como ia(iniciada jovem que recebe orix). O orixest pronto para ser festejado e para isso vestido e paramentado, e levado para juntodos atabaques, para danar, danar e danar.

    No candombl sempre esto presentes oritmo dos tambores, os cantos, a dana e acomida. Uma festa de louvor aos orixs (to-que) sempre se encerra com um grande ban-quete comunitrio (ajeum, que significa va-mos comer), preparado com carne dos ani-mais sacrificados. O novo filho ou filha-de-santo dever oferecer sacrifcios e cerimni-as festivas ao final do primeiro, terceiro estimo ano de sua iniciao. No stimo ani-versrio, recebe o grau de senioridade (ebmi,que significa meu irmo mais velho), es-tando ritualmente autorizado a abrir sua pr-pria casa de culto. Cerimnias sacrificiais sotambm oferecidas em outras etapas da vida,como no vigsimo primeiro aniversrio deiniciao. Quando o ebmi morre, rituaisfnebres (axex) so realizados pela comuni-dade para que o orix fixado na cabea duran-te a primeira fase da iniciao possa desligar-se do corpo e retornar ao mundo paralelo dosdeuses (orum) e para que o esprito da pessoamorta (egum) liberte-se daquele corpo, pararenascer um dia e poder de novo gozar dosprazeres deste mundo.

    O candombl, seguido de perto pelaumbanda, opera em um contexto tico no qual

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    a noo judaico-crist de pecado tem poucaou nenhuma importncia, no faz sentido. Adiferena entre o bem e o mal depende basi-camente da relao entre o seguidor e seudeus pessoal, o orix. No h um sistema demoralidade referido ao bem-estar da coletivi-dade humana, pautando-se o que certo ouerrado na relao entre cada indivduo e seuorix particular. A base moral est inscrita nocotidiano pelo catolicismo ou pelos valoresno religiosos da sociedade. A nfase da re-ligio, emblematicamente do candombl, estno rito e na iniciao, que quase intermin-vel, gradual e secreta. O culto demanda sacri-fcio de sangue animal, oferta de alimentos evrios ingredientes. A carne dos animais aba-tidos nos sacrifcios votivos do candombl comida pelos membros da comunidade reli-giosa, enquanto o sangue e certas partes dosanimais, como patas e cabea, rgos inter-nos e costelas, so oferecidos aos orixs.Somente iniciados tm acesso a essas ceri-mnias, conduzidas em espaos privativosdenominados quartos-de-santo. Uma vez queo aprendizado religioso sempre se d longedos olhos do pblico, a religio acaba por serecobrir de uma aura de sombras e mistrios,embora todas as danas, que so o ponto altodas celebraes, ocorram sempre no barra-co, que o espao aberto ao pblico. Ascelebraes de barraco, os toques, consis-tem numa seqncia de danas, em que, umpor um, so honrados todos os orixs, cadaum se manifestando no corpo de seus filhos efilhas, sendo vestidos com roupas de coresespecficas, usando nas mos ferramentas eobjetos particulares a cada um deles, expres-sando-se em gestos e passos que reproduzemsimbolicamente cenas de suas biografiasmticas. Essa seqncia de msica e dana,sempre ao som dos atabaques, designadaxir, que em iorub significa vamos brin-car. O lado pblico do candombl semprefestivo, bonito, esplendoroso, esteticamenteexagerado para os padres europeus, e extro-vertido.

    Para o grande pblico, desatento para odifcil lado da iniciao, o candombl vistocomo um grande palco em que se reprodu-zem tradies afro-brasileiras igualmentepresentes, em menor grau, em outras esferasda cultura, como a msica e a escola de sam-ba. Para o no-iniciado dificilmente se con-cebe que a cerimnia de celebrao no can-

    dombl seja algo mais que um eterno danardos deuses africanos. No emaranhado de rit-mos, danas e transes, poucos no-iniciadosdistinguem o candombl da umbanda, tantasvezes compartilhando o mesmo terreiro e omesmo grupo de culto.

    Conseqncia de sua prpria concepode moralidade e prtica de manipulao m-gica, as religies negras foram se responsabi-lizando pelo atendimento a uma grande de-manda por servios mgico-religiosos de umalarga clientela que no necessariamente tomaparte em qualquer aspecto das atividades doculto. No candombl, os clientes procuram ame ou pai-de-santo para o orculo do jogode bzios, atravs do qual problemas sodesvendados e oferendas so prescritas parasua soluo. O cliente paga pelo jogo de b-zios e pelo sacrifcio propiciatrio (eb) even-tualmente recomendado. O cliente, em geral,fica sabendo qual o orix dono de sua cabe-a e pode mesmo comparecer s festas emque se faz a celebrao de seu orix, podendocolaborar com algum dinheiro no preparo dasfestividades, embora no sele nenhum com-promisso com a religio. O cliente sabe quasenada sobre o processo inicitico e nunca tomaparte nele. Entretanto, ele tem uma duplaimportncia: antes de mais nada, sua deman-da por servios ajuda a legitimar o terreiro eo grupo religioso em termos sociais. daclientela que provm, na maioria dos terrei-ros, uma substancial parte dos fundos neces-srios para as despesas com as atividadessacrificiais. Comumente, sacerdotes e sacer-dotisas do candombl que adquirem alto graude prestgio na sociedade inclusiva gostamde nomear, entre seus clientes, figuras impor-tantes dos mais diversos segmentos da soci-edade.

    Segundo o candombl, cada indivduopertence a uma divindade especfica, que osenhor de sua cabea e mente e de quem her-da caractersticas fsicas e de personalidade. prerrogativa religiosa do pai ou me-de-santo descobrir a origem mtica atravs dojogo de bzios. Esse conhecimento absolu-tamente imperativo no processo de iniciaode novos devotos e mesmo para se fazeremprevises do futuro para clientes, assim comopara resolver seus problemas. Embora nafrica haja registro de culto a cerca de 400orixs, apenas duas dezenas deles sobrevive-ram no Brasil. A cada um destes cabe o papel

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    de reger e controlar foras da natureza e as-pectos do mundo, da sociedade e da pessoahumana. Cada um tem suas prprias caracte-rsticas, elementos naturais, cores simbli-cas, vesturio, msicas, alimentos, bebidas,alm de se caracterizar por nfase em certostraos de personalidade, desejos, defeitos, etc.Nenhum orix nem inteiramente bom, neminteiramente mal. Noes ocidentais de beme mal esto ausentes da religio dos orixs noBrasil. E os devotos acreditam que os homense mulheres herdam muitos dos atributos depersonalidade de seus orixs, de modo queem muitas situaes a conduta de algum podeser espelhada em passagens mticas que rela-tam as aventuras dos orixs. Isso evidente-mente legitima, aos olhos da comunidade deculto, tanto as realizaes como as faltas decada um.

    De fato, o seguidor do candombl podesimplesmente tomar os atributos do seu orixcomo se fossem os seus prprios e tentar separecer com ele, ou reconhecer atravs dosatributos da divindade bases que justificamsua conduta. Os padres apresentados pelosmitos dos orixs podem assim ser usados comomodelo a ser seguido, ou como validaosocial para um modo de conduta j presente.Um iniciado pode, ao familiarizar-se com seusesteretipos mticos, identificar-se com elese reforar certos comportamentos, ou sim-plesmente chamar a ateno dos demais paraeste ou aquele trao que sela sua identidademtica. Mudar ou no o comportamento no importante; o que conta sentir-se prximodo modelo divino.

    Alm de seu orix dono da cabea, acre-dita-se que cada pessoa tem um segundo orix,que atua como uma divindade associada quecomplementa o primeiro. Diz-se, por exem-plo: Sou filho de Oxal e Iemanj. Geral-mente, se o primeiro masculino, o segundo feminino, ou vice-versa, como se cada umtivesse pai e me. A segunda divindade tempapel importante na definio do comporta-mento, permitindo operar-se com combina-es muito ricas. Como cada orix particularda pessoa deriva de uma qualidade do orixgeral, que pode ser o orix em idade jovem ouj idoso, ou o orix em tempo de paz ou deguerra, como rei ou como sdito, etc., etc., asvariaes que servem como modelos soquase inesgotveis.

    s vezes, quando certas caractersticas

    incontestes de um orix no se ajustam a umapessoa tida como seu filho, no incomumnos meios do candombl duvidar-se daquelafiliao, suspeitando-se que aquele iniciadoest com o santo errado, ou seja, mal-iden-tificado pela me ou pai-de-santo respons-vel pela iniciao. Nesse caso, o verdadeiroorix tem que ser descoberto e o processo deiniciao reordenado. Pode acontecer tam-bm a suspeita de que o santo est certo, masque certas passagens mticas de sua biogra-fia, que explicariam aqueles comportamen-tos, esto perdidas. No candombl sempre setem a idia de que parte do conhecimentomtico e ritual foi perdida na transposio dafrica para o Brasil, e de que em algum lugarexiste uma verdade perdida, um conhecimentoesquecido, uma revelao escondida. Pode-se mudar de santo, ou encetar interminvelbusca desse conhecimento faltante, buscaque vai de terreiro em terreiro, de cidade emcidade, na rota final para Salvador, reconhe-cidamente o grande centro do conhecimentosacerdotal e do mais legtimo ax. Essa bus-ca, s vezes, pode levar at a frica e no raro mera etnografia registrada pela antropolo-gia daqui e de l. Reconhece-se que faltaalguma coisa que precisa ser recuperada,completada. A construo da religio, de seusdeuses, smbolos e significados estar sem-pre longe de ter se completado. Os seguido-res, evidentemente, nunca se do conta disso.

    Quando as religies negras se organiza-ram no Nordeste, no sculo XIX, elas permi-tiam ao iniciado a reconstruo simblica,atravs do terreiro, da sua comunidade tribalafricana perdida. Primeiro elas eram o elo como mundo original. Representavam o meca-nismo atravs do qual o negro africano e bra-sileiro podia distanciar-se culturalmente domundo dominado pelo opressor branco. Onegro podia contar com um mundo negro,fonte de uma frica simblica, mantido vivopela vida religiosa dos terreiros, como meiode resistncia ao mundo branco, que era omundo do trabalho, do sofrimento, da escra-vido, da misria. Bastide mostrou como ahabilidade do negro, durante o perodo colo-nial, de viver em dois diferentes mundos aomesmo tempo era importante para evitar ten-ses e resolver conflitos difceis de suportarsob a condio escrava (Bastide, 1978). Logo,o mesmo negro que reconstruiu a frica noscandombls reconheceu a necessidade de ser,

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    que as estruturas sociais tinham mais o as-pecto de estamentos que de classes, agoraele tem o sentido de escolha pessoal, livre,intencional: algum adere ao candombl nopelo fato de ser negro, mas porque sente queo candombl pode fazer sua vida mais fcilde ser vivida, porque ento talvez se possaser mais feliz, no importa se se branco ounegro. Estimativas recentes obtidas atravsde surveys nacionais atestam que os negrosainda hoje marcam maior presena nas reli-gies afro-brasileiras, onde somam, entrepardos e pretos, 42,7% da populao adultabrasileira. Sua presena relativa sobe aindamais no candombl, originariamente a gran-de fonte de identidade negra, em que che-gam a 56,8% a nica modalidade religi-osa em que o negro a maioria dos fiis.Mas h muito branco nas religies afro-bra-sileiras (51,2%) e mesmo no candombl, emque representam 39,9%. Em nmeros abso-lutos, os maiores contingentes negros so,evidentemente, catlicos e em segundo lu-gar, evanglicos (Prandi, 1995).

    O desatar de laos tnicos que, no cursodas ltimas trs dcadas, tem transformadoo candombl numa religio para todos, tam-bm propiciou um nada desprezvel alarga-mento da oferta de servios mgicos para apopulao exterior aos grupos de culto.Uma clientela j acostumada a compor vi-ses de mundo particulares a partir de frag-mentos originrios de diferentes mtodos efontes de interpretao da vida. O candom-bl oferece smbolos e sentidos hoje muitovalorizados pela msica, literatura, artes emgeral, os quais podem ser fartamente usa-dos pela clientela na composio dessa vi-so de mundo caleidoscpica, sem nenhumcompromisso religioso. O cliente de classemdia que vai aos candombls para jogarbzios e fazer ebs o bricoleur que tam-bm tem procurado muitas outras fontesno-racionais de sentido para a vida e decura para males de toda natureza. Certa-mente o candombl deste cliente bemdiferente do candombl do iniciado, masnenhum deles contradiz o sentido do outro.

    O candombl uma religio cujo centro o rito, as frmulas de repetio, poucoimportando as diferenas entre o bem e omal no sentido cristo. O candombl admi-nistra a relao entre cada orix e o serhumano que dele descende, evitando, atra-

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    OSSE, ORIX

    DAS FOLHAS.

    sentir-se e se mostrar brasileiro, como nicapossibilidade de sobrevivncia, e percebeuque para ser brasileiro era absolutamenteimperativo ser catlico, mesmo que se fossetambm de orix. O sincretismo se fundaneste jogo de construo de identidade. Ocandombl nasce catlico quando o negroprecisa ser tambm brasileiro.

    Quando o candombl, a partir dos anos1960, deslancha a caminho de se tornar re-ligio universal, afrouxa-se seu foco nas di-ferenas raciais e ele vai deixando para trsseu significado essencial de mecanismo deresistncia cultural, embora continue a pro-ver esse mecanismo a muitas populaesnegras que vivem de certo modo econmicae culturalmente isoladas em regies tradici-onais do Brasil. As novas condies de vidana sociedade brasileira industrializada fa-zem mudar radicalmente o sentido sociol-gico do candombl. Se at poucas dcadasatrs ele significava uma reao segrega-o racial numa sociedade tradicional, em

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    vs da oferenda, os desequilbrios dessarelao que podem provocar a doena, amorte, as perdas materiais, o abandonoafetivo, os sofrimentos do corpo e da almae toda sorte de conflito que leva infelici-dade. Como religio em que no existe apalavra no sentido tico, nem a conseqen-te pregao moral, o candombl (juntamentecom a umbanda, que contudo tem seu as-pecto de religio atica atenuado pela in-corporao de virtudes teologais dokardecismo, como a caridade) sem dvi-da uma alternativa religiosa importante tam-bm para grupos sociais que vivem numasociedade como a nossa, em que a tica, oscdigos morais e os padres de comporta-mento estritos podem ter pouco, variado eat mesmo nenhum valor.

    Embora a religio faa parte do dom-nio da intimidade, a relao do indivduocom a sociedade, que ela dota de significa-dos, acaba por conect-la com os processosmais gerais e coletivos da sociedade, comoa poltica, acarretando, conseqentemente,efeitos da religio nas escolhas dos segui-

    dores no que diz respeito poltica partid-ria (5).

    O candombl uma religio que afirmao mundo, reorganiza seus valores e tam-bm reveste de estima muitas das coisasque outras religies consideram ms: porexemplo, o dinheiro, os prazeres (inclusiveos da carne), o sucesso, a dominao e opoder. O iniciado no tem que internalizarvalores diferentes daqueles do mundo emque vive. Ele aprende os ritos que tornama vida neste mundo mais fcil e segura,mundo pleno de possibilidades de bem-es-tar e prazer. O seguidor do candombl pro-picia os deuses na constante procura domelhor equilbrio possvel (ainda que tem-porrio) entre aquilo que ele e tem e aqui-lo que ele gostaria de ser e ter. Nessa pro-cura, fundamental que o iniciado confiecegamente em sua me-de-santo. Guiadopor ela, o fiel aprende, ano aps ano, a re-petir cada uma das frmulas iniciticasnecessrias manipulao da fora sagra-da da natureza, o ax. No se pode ser docandombl sem constantemente refazer o

    4

    FILHAS-DE-SANTO

    DESCANSANDO.

    5 Sobre as religies afro-bra-sileiras e escolha poltico-partidria, ver Prandi,1991b, 1992; Pierucci &Prandi, 1995.

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    rito, como no se pode ser evanglico semconstantemente examinar a prpria consci-ncia procura da culpa que delata a pre-sena das paixes que precisam ser exorciza-das. O bom evanglico, para se salvar da da-nao eterna, precisa aniquilar seus desejosmais escondidos; o bom filho-de-santo preci-sa realizar todos os seus desejos para que oax, a fora sagrada de seu orix, de quem continuidade, possa se expandir e se tornarmais forte. Aceitando o mundo como ele , ocandombl aceita a humanidade, situando-ano centro do universo, apresentando-se comoreligio especialmente dotada para a socie-dade narcisista e egosta em que vivemos.

    Porque o candombl no distingue entreo bem e o mal do modo como aprendemoscom o cristianismo, ele tende a atrair tam-bm toda sorte de indivduos que tm sidosocialmente marcados e marginalizados poroutras instituies religiosas e no-religio-sas. Isso mostra como o candombl aceita omundo, mesmo quando ele o mundo darua, da prostituio, dos que j cruzaram asportas da priso. O candombl no discri-mina o bandido, a adltera, o travesti e todotipo de rejeitado social. Mas se o candombllibera o indivduo, ele tambm libera o mun-do: no tem para este nenhuma mensagemde mudana; no deseja transform-lo emoutra coisa, como se propem, por exemplo,os catlicos que seguem a Teologia da Li-bertao, sempre interessados em substituireste mundo por outro mais justo. O candom-bl se preocupa sobretudo com aspectosmuito concretos da vida: doena, dor, de-semprego, deslealdade, falta de dinheiro,comida e abrigo mas sempre tratando dosproblemas caso a caso, indivduo a indiv-duo, pois no se trabalha aqui com a noode interesses coletivos, mas sempre com ade destino individual. O candombl tambmpode ser a religio ou a magia daquele que jse fartou dos sentidos dados pela razo, ci-ncia e tecnologia, e que deixou de acreditarno sentido de um mundo totalmente desen-cantado, que deixou para trs a magia, emnome da eficcia do secular pensamentomoderno. Talvez o candombl possa ser areligio daquele que no consegue atinar como senso de justia social suficiente para re-solver muitos dos problemas que cada indi-vduo enfrenta no curso de sua vida pelomundo desencantado.

    O candombl tambm oferece a seus ini-ciados e simpatizantes uma particular possi-bilidade de prazeres estticos, que se espar-rama pelas mais diferentes esferas da arte eda diverso, da msica cozinha, do artesa-nato escola de samba, alm da fascinaodo prprio jogo de bzios, o porto de entra-da para o riqussimo universo cultural dosorixs. O candombl ensina, sobretudo, queantes de se louvar os deuses, imperativolouvar a prpria cabea; ningum ter umdeus forte se no estiver bem consigo mes-mo, como ensina o dito tantas vezes repeti-do nos candombls: Ori buruku kossi orix,ou cabea ruim no tem orix. Para os quese convertem, isso faz uma grande diferenaem termos de auto-estima.

    Na nossa sociedade das grandes metr-poles, se a construo de sentidos dependecada vez mais do desejo de grupos e indiv-duos que podem escolher esta ou aquelareligio, ou fragmentos delas, a relevnciados temas religiosos igualmente pode seratribuda de acordo com preferncias pri-vadas. A religio agora matria de prefe-rncia de tal sorte que at mesmo escolherno ter religio alguma inteiramente acei-tvel socialmente. Assim, os deuses africa-nos apropriados pelas metrpoles da Am-rica do Sul no so mais deuses da tribo,impostos aos que nela nascem. Eles sodeuses numa civilizao em que os indiv-duos so livres para escolh-los ou no,continuar fielmente nos seus cultos ou sim-plesmente abandon-los.

    O candombl pode tambm significar apossibilidade daquele que pobre e social-mente marginalizado de ter o seu deus pes-soal, que ele alimenta, veste e ao qual dvida no transe, para que ele possa ser honra-do e homenageado por toda uma comunida-de de culto. Quando a filha-de-santo se dei-xa cavalgar pelo seu orix, a ela se abre comopalco o barraco em festa, para o que talvezseja a nica possibilidade na sua pobre vidade experimentar uma apresentao solo, deestar no centro das atenes, quando seuorix, paramentado com as melhores roupase ferramentas de fantasia, h de ser admira-do e aclamado por todos os presentes, quiinvejado por muitos. E por toda a noite, ocavalo dos deuses h de danar, danar edanar. Ningum jamais viu um orix tobonito como o seu.

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