Reescrevendo a história do ensino primário : o centenário ... · da República encontra-se um...

20
31 Educação e Pesquisa, São Paulo, v.28, n.1, p. 31-50, jan./jun. 2002 Reescrevendo a história do ensino primário : o centenário da lei de 1827 e as reformas Francisco Campos e Fernando de Azevedo Diana Gonçalves Vidal Universidade de São Paulo Luciano Mendes de Faria Filho Universidade Federal de Minas Gerais Resumo Este texto analisa o lugar ocupado pelos festejos comemorati- vos do centenário de promulgação da Lei de 15 de outubro de 1827, no interior dos processos de discussão das reformas da instrução mineira e carioca, em 1927/1928. As duas reformas caracterizavam os esforços educativos anteriores como sem su- cesso, descrevendo como caótico o quadro educacional brasilei- ro. No caso do Rio de Janeiro, produzindo-se como marco na constituição de um sistema educacional, a reforma Fernando de Azevedo constituía um discurso que ao mesmo tempo projetava um novo futuro para a educação pública e pretendia romper com as iniciativas anteriores. Diverso parecia ser o caso da re- forma mineira. Num discurso articulado ora pela idéia de uma escola moderna, ora pela idéia de uma escola ativa, os reformadores mineiros se propunham a superar o passado e a construir um futuro grandioso. No entanto, não o faziam a partir de uma ruptura com a tradição e com o passado educa- cionais. Mais do que isso, buscava-se afirmar a inovação dentro da tradição, o que dava lugar a uma leitura muito mais indul- gente da escola antiga do que aquela de Fernando Azevedo. Ao reescrever o passado, esses discursos, disseminados pelas re- formas Francisco Campos e Fernando de Azevedo, produziram o presente e reverberaram no porvir, instaurando uma leitura da educação brasileira que por décadas perdurou na historiografia educacional brasileira. Palavras-chave Reformas educacionais – Memória educacional – Historiografia da educação. Correspondência: Diana Gonçalves Vidal Al. dos Juritis, 470 Res. das Hortências 07600-000 – Mairiporã – SP e-mail: [email protected]

Transcript of Reescrevendo a história do ensino primário : o centenário ... · da República encontra-se um...

Page 1: Reescrevendo a história do ensino primário : o centenário ... · da República encontra-se um galho/ramo de café que, sustentando e partindo dos respec-tivos símbolos, formam

3 1Educação e Pesquisa, São Paulo, v.28, n.1, p. 31-50, jan./jun. 2002

Reescrevendo a história do ensino primário : o c e n t e n á r i oda lei de 1827 e as reformas Francisco Campos e Fernando de Azevedo

Diana Gonçalves VidalUniversidade de São Paulo

Luciano Mendes de Faria FilhoUniversidade Federal de Minas Gerais

Resumo

Este texto analisa o lugar ocupado pelos festejos comemorati-vos do centenário de promulgação da Lei de 15 de outubro de1827, no interior dos processos de discussão das reformas dainstrução mineira e carioca, em 1927/1928. As duas reformascaracterizavam os esforços educativos anteriores como sem su-cesso, descrevendo como caótico o quadro educacional brasilei-ro. No caso do Rio de Janeiro, produzindo-se como marco naconstituição de um sistema educacional, a reforma Fernando deAzevedo constituía um discurso que ao mesmo tempo projetavaum novo futuro para a educação pública e pretendia rompercom as iniciativas anteriores. Diverso parecia ser o caso da re-forma mineira. Num discurso articulado ora pela idéia de umaescola moderna, ora pela idéia de uma escola ativa, osreformadores mineiros se propunham a superar o passado e aconstruir um futuro grandioso. No entanto, não o faziam apartir de uma ruptura com a tradição e com o passado educa-cionais. Mais do que isso, buscava-se afirmar a inovação dentroda tradição, o que dava lugar a uma leitura muito mais indul-gente da escola antiga do que aquela de Fernando Azevedo.Ao reescrever o passado, esses discursos, disseminados pelas re-formas Francisco Campos e Fernando de Azevedo, produziramo presente e reverberaram no porvir, instaurando uma leitura daeducação brasileira que por décadas perdurou na historiografiaeducacional brasileira.

Palavras-chave

Reformas educacionais – Memória educacional – Historiografia daeducação.

Correspondência:Diana Gonçalves VidalAl. dos Juritis, 470Res. das Hortências07600-000 – Mairiporã – SPe-mail: [email protected]

Page 2: Reescrevendo a história do ensino primário : o centenário ... · da República encontra-se um galho/ramo de café que, sustentando e partindo dos respec-tivos símbolos, formam

E d u c a ç ã o e P e s q u i s a , S ã o P a u l o , v . 2 8 , n . 1 , p . 3 1 - 5 0 , j a n . / j u n .3 2

Rewriting the history of primary education: t h e c e n t e n a r yof the 1827 Law and the Francisco Campos and Fernando de Azevedo reforms

Diana Gonçalves VidalUniversidade de São Paulo

Luciano Mendes de Faria FilhoUniversidade Federal de Minas Gerais

Subject

This text analyzes the role played by the celebrations of thecentenary of the promulgation of the October, 15t h 1827 Lawwithin the discussions of the reforms of the Minas Gerais andRio de Janeiro education systems that happened in 1927-1928.Both reforms depicted the previous education efforts asunsuccessful, describing the Brazilian education scene aschaotic. In the case of Rio de Janeiro, the Fernando de Azeve-do reform becomes a landmark in the constitution of aneducation system, establishing a discourse that painted a newfuture for the public education, while breaking away fromprevious initiatives. That did not seem to be the case of theMinas Gerais reform. With a discourse shaped at times aroundthe idea of a modern school, and at other times around theidea of an active school, the reformers also proposed to gobeyond the past and build a grand future. However, they didnot propose to break away from tradition and the educationalpast. The aim was here that of affirming innovation withintradition, leading to a much more complacent view of the oldschool than that of Fernando Azevedo. By rewriting the past,the discourses disseminated by the Francisco Campos andFernando Azevedo reforms have produced the present andreverberated into the future, inaugurating an interpretation ofthe Brazilian education that would persist for decades in theBrazilian education historiography.

Keywords

Education reforms – Educational memory – Historiography ofeducation.

Correspondence:Diana Gonçalves VidalAl. dos Juritis, 470Res. das Hortências07600-000 – Mairiporã – SPe-mail: [email protected]

Page 3: Reescrevendo a história do ensino primário : o centenário ... · da República encontra-se um galho/ramo de café que, sustentando e partindo dos respec-tivos símbolos, formam

3 3Educação e Pesquisa, São Paulo, v.28, n.1, p. 31-50, jan./jun. 2002

Em 15 de outubro de 1927, Francis-co Campos promulgava o decreto 7.970, Re-forma do Ensino Primário, Técnico-profissio-nal e Normal, em Minas Gerais. Uma semanadepois, em 22 de outubro, Fernando de Aze-vedo apresentava o anteprojeto da reforma deeducação, para os mesmos níveis – primário,técnico-profissional e normal –, ao ConselhoMunicipal, no Distrito Federal, Rio de Janei-ro, capital da República brasileira. Não o fi-zera em 15 de outubro, porque a sessão doConselho naquele dia havia sido suspensa.Intencionalidade, afirmada por Campos, oucoincidência, arriscava o diário carioca O jor-na l, os dois planos de renovação educacionaleram divulgados em meio às comemoraçõesdo centenário do Ensino Primário, festejadoem função da primeira lei sobre a instruçãopública promulgada no Brasil independente,em 15 de outubro de 1827.

As duas reformas caracterizavam osesforços anteriores em termos educativoscomo sem sucesso, descrevendo como caó-tico o quadro educacional brasileiro. A faltade materiais, a inconsistência dos métodos,a inadequação das instalações e a inefici-ência do ensino clamada pelos altos índicesde analfabetismo (em torno de 80%) eramos argumentos recorrentes de educadores ejornalistas na configuração da escola bra-sileira. Muito estava por fazer: esse era odiagnóstico reiterado nas grande e peque-na imprensas e nos periódicos pedagógicos.

No caso do Rio de Janeiro, produzin-do-se como marco na constituição de um sis-tema educacional, a reforma Fernando deAzevedo constituía um discurso que ao mes-mo tempo projetava um novo futuro para aeducação pública e pretendia romper com asiniciativas anteriores. Defasada da evolução dasociedade, após anos de ações isoladas e dis-persas e de intervenções pouco ou nadaalicerçadas em conhecimentos científicos epedagógicos, a escola deveria buscar outrorumo, guiada pelo saber da ciência.

Nascia uma nova educação. Finalmen-te, afirmava Azevedo, agia-se de forma a ins-talar no território nacional um sistema edu-cativo que, prevendo a obrigatoriedade, atin-giria a maioria da população infantil e se pro-punha mantê-la na escola por um período decinco anos.

Diverso parecia ser o caso da reformamineira. Num discurso articulado ora pela idéiade uma escola moderna, ora pela idéia de umaescola ativa, os reformadores mineiros se pro-punham a superar o passado e a construir umfuturo grandioso. No entanto, não o faziam apartir de uma ruptura com a tradição e com opassado educacionais. Mais do que isso, bus-cava-se afirmar a inovação dentro da tradição,o que dava lugar a uma leitura muito mais in-dulgente da escola antiga do que aquela deFernando Azevedo.

Nascia também uma nova educação,mas ela vinha, por assim dizer, de braços dadoscom a tradição católica, a qual, desde há mui-to tempo, vinha buscando formas discursi-vas emecanismos pedagógicos de modernizar-se e dedialogar com as ciências e com os novos sujei-tos sociais, cuidando, no entanto, para não serconfundida, por exemplo, com o escolanovismo.Reformar, aproximando e distanciando das pers-pectivas escolanovistas, era um desafio que osmineiros buscavam enfrentar.

Ao reescrever o passado, esse discurso,disseminado pelas reformas Francisco Campose Fernando de Azevedo, produziu o presente ereverberou no porvir, instaurando uma leiturada educação brasileira que por décadas perdu-rou na historiografia educacional.

Para discorrer sobre estas questões, opresente artigo foi dividido em três partes. Ini-cialmente aborda as discussões em torno doCentenário do Ensino Primário em Minas Ge-rais e, em seguida, no Distrito Federal, debru-çando-se sobre aspectos das reformas Francis-co Campos e Fernando de Azevedo. Por fim,analisa a produção de uma memória educaci-onal no Brasil.

Page 4: Reescrevendo a história do ensino primário : o centenário ... · da República encontra-se um galho/ramo de café que, sustentando e partindo dos respec-tivos símbolos, formam

3 4 Diana G. VIDAL e Luciano M. de Faria FILHO. Reescrevendo a...

A festa dos cem anos deinstrução primária em MinasGerais.

Em Minas Gerais, notadamente na ca-pital, Belo Horizonte, o dia 15 de outubro de27 foi um dia atípico e muito movimentado.Segundo dados dos próprios organizadores, asaber, de pessoas ligadas à imprensa oficial,mais de 6 mil pessoas compareceram ao está-dio do América Futebol Clube, para presenci-ar os festejos. Mais de 2 mil alunos de esco-las da capital se apresentaram para uma pla-téia ávida de espetáculo. Além da grande apre-sentação no estádio, envolvendo escolares e es-coteiros, ocorreram pequenos, mas intensos,festejos na Escola Normal da Capital, nas es-colas infantis, na Escola da Força Pública, den-tre outras.

Levando-se em conta a grandeza dafesta e a complexidade das “manobras” reali-zadas pelos alunos-atletas, há que se conside-rar que durante semanas, ou até mesmo me-ses, as escolas, seus alunos e professores seocuparam nos preparativos da festa.

As notícias do evento circularam na ca-pital, principalmente por meio da imprensa ofi-cial. Desta, queremos destacar dois veículos:o órgão oficial do Estado, o jornal Minas Ge-r a i s , e a Revista do ensino, órgão oficial da Di-retoria de Instrução do Estado. Ambos, naquelemomento, estavam sendo amplamente mobili-zados como estratégia de divulgação da refor-ma educacional que se pretendia e, no caso darevista, como elemento fundamental na forma-ção dos professores. O esforço de mobilizaçãoe a ação conjugada dos dois órgãos podem serpercebidos, primeiro, pela centralidade queambos dão ao evento e, em segundo lugar,pelo fato de vários textos publicados na revistaaparecerem também no jornal e vice–versa.

O Minas Gerais publica, pelo menosnos dias 14, 15, 16 e 17 de outubro notíciasdo evento sendo que, nos dias 15 e 16, boaparte do jornal é ocupada por elas. Já a Revistado ensino, tem um número especial publicado

tendo em vista os festejos, o de número 23,e o número imediatamente posterior, o 24, re-ferente ao mês de novembro, é, em boa parte,dedicado às notícias e às repercussões das co-memorações, trazendo também um grande nú-mero de fotografias das mesmas.

Estamos considerando em nossas aná-lises que, no caso daqueles textos que apare-ceram no número especial da revista e no jor-nal do dia 15/10, eles foram escritos inicial-mente para a revista; já no caso das repercus-sões, claro está que os textos foram escritospara circular nos jornais dos dias 16 e 17 e,posteriormente, foram aproveitados na revistado mês seguinte. Por isso, em se tratando dodia 15, analisaremos primeiro os textos da re-vista e, posteriormente os do jornal; no estu-do das repercussões do evento, faremos o in-verso.

O 15 de outubro na Revista doensino.

A edição comemorativa dos cem anosda lei de 15 de outubro de 1827, ao que tudoindica, foi planejada com muita atenção pelaDiretoria da Instrução. Para escrever os textosforam chamados nomes os mais representan-tes das letras e do magistério, conforme no-t i c i a o Minas Gerais. A diagramação, escolhadas imagens e fotografias reforçam esta im-pressão.

A própria capa já anuncia ao leitor ospropósitos daquele número. Ao centro há umretrato de dom Pedro I, encimado por uma es-trela, desenhada de forma a dar a impressãode intenso brilho; no alto o nome da revistae , l o g o a b a i x o , a i n d i c a ç ã o d o s e upertencimento institucional (Órgão Oficial daDiretoria da Instrução); do lado esquerdo doretrato, na parte de cima, os símbolos doImpério e, na parte de baixo, está escrito I ºCentenário do Ensino Primário no Brasil; dolado direito, na parte de cima, os símbolos daRepública e, na parte de baixo, está escritoNúmero Especial Comemorativo. Importante

Page 5: Reescrevendo a história do ensino primário : o centenário ... · da República encontra-se um galho/ramo de café que, sustentando e partindo dos respec-tivos símbolos, formam

3 5Educação e Pesquisa, São Paulo, v.28, n.1, p. 31-50, jan./jun. 2002

notar que unindo os símbolos do Império eda República encontra-se um galho/ramo decafé que, sustentando e partindo dos respec-tivos símbolos, formam um laço bem abaixodo retrato. Na parte de baixo da capa, vem aidentificação do local de sua publicação: BeloHorizonte, Estado de Minas Gerais, Brasil.

A revista se abre, na página três, com aseguinte chamada: A comemoração de hoje, s e -guido da indicação do texto que ocupa a pági-na: “A lei que criou o ensino primário no Brasil”.

Após o texto da Lei, seguem-se váriosoutros alusivos ao motivo da comemoração. Notexto “Aos educadores”, de Sandoval Soares deAzevedo, secretário do Interior do governo MeloViana, o 15 de outubro de 1827 é ponto de par-tida da ação missionária e apostólica do profes-sor e o 15 de outubro de 1927, momento dereafirmar as convicções.

Semeadores do Ideal, batalhais, há cemanos, sem descanso, nem fraqueza, apesardas rudezas do meio, das incertezas materi-ais da vida, pela terra que se modela à ima-gem de vossa bravura moral, rica de idealis-mo sagrados.Dais, sem receber, há um século, no amor devosso coração, na generosidade de vossaalma, o heroísmo de vossa dedicação, - coma exaltação de nosso passado – a confiançanesse futuro – que criaste – e já amanheceno esplendor triunfal do presente brasileiro.Como há vinte século, na Judéia, renovais omilagre da humildade: tocais de luz e religi-osidade o apostolado anônimo de vosso sa-cerdócio que fundais a própria nacionalida-de.

O texto seguinte anuncia “Como serácomemorado o dia de hoje”, trazendo umaprogramação completa dos festejos. Na mesmapágina a revista publica uma fotografia doStadium do América Foot Ball Club, onde se-riam realizados os festejos. O Stadium é mos-trado vazio, mas já dando a ver as marcas decal para a realização das demonstrações pelosalunos e escoteiros.

O quarto texto, de autoria de EmílioMineiro, tem como chamada o seguinte:“328.659 alunos freqüentam as nossas escolasprimárias”, e como subtítulo o enunciado: “Li-geiro esforço estatístico sobre o ensino primá-rio em Minas”. Nele o autor, utiliza os dadosestatísticos para dar conta da positiva evolu-ção do crescimento da matrícula em MinasGerais no período republicano: passou de pou-co mais de 43 mil para mais de 328 mil. Con-cluindo seu texto afirma:

Hoje, ainda a meio caminho do 4º decenário(da proclamação da República), quando noBrasil inteiro é comemorado o centenário dalei de 15 de outubro de 1827, que mandoucriar nas cidades, vilas e lugares mais po-pulosos das províncias escolas de primeirasl e t r a s, Minas, galhardamente, comparece en-

Revista do Ensino, Anno III - n. 23, outubro de 1927

Page 6: Reescrevendo a história do ensino primário : o centenário ... · da República encontra-se um galho/ramo de café que, sustentando e partindo dos respec-tivos símbolos, formam

3 6 Diana G. VIDAL e Luciano M. de Faria FILHO. Reescrevendo a...

tre os Estados co-irmãos e(...) com a evidên-cia convincente dos algarismos, que em todaa extensão dos seus 575 mil km quadradosestão instaladas milhares de escolas e, nessasmilhares de escolas, entoam hinos festivos àlei memorável que mandou criar em seusimenso território escolas de primeiras letras,328.659 alunos! (grifos no original)

“Cem anos depois” é o título do textode Francisco Lins que se inicia proclamandoque “há cem anos que no Brasil se fundou aescola primária... Cem anos! E andamos aindaà procura da escola ideal!”. E continua:

Aqui, durante muito tempo, tropega, humil-de, a manquejar, mal instalada, mal dirigida,mal tratada, dando causa ao riso de uns, emoutros dando causa à tristeza, a pobre pare-cia desprezada de todos, condenada a eternoridículo,Agora, parece criará alma nova...

Defendendo a necessidade de renova-ção da escola, o autor lembra do que vem sen-do discutido em congressos nacionais e inter-nacionais, inclusive no Congresso de InstruçãoPrimária recentemente reunido em Belo Hori-zonte e, também, daquilo que já vem sendoreformado pelo governo de Antônio Carlos,afirmando que “dando organização nova àsescolas primárias, além de impor-lhes o em-prego dos método modernos, já o governo re-solveu, felizmente, mais uma vez reformar osseus programas. . . ”.

No texto “Lição da pátria”, Alberto deOliveira não faz nenhuma menção às comemo-rações, mas retoma um tema muito frisadopelos outros textos: o da aproximação entre amissão do professor e a de Jesus Cristo.

Chamai, como Jesus outr’ora, os peque-ninos,Falai-lhes do Brasil, entre louvores e hinosDai grande lição!

Abílio Barreto, já à época, renomadocronista e historiador mineiro, é o autor dotexto “Instrução pública em Minas”, desde seusprimórdios até a proclamação da República, doqual vale a pena retomar o último parágrafo:

E aqui temos, em rápidos traços, o históricoda instrução pública em Minas, desde osnosso mais remotos tempos, até a proclama-ção da República, quando este ramo da ad-ministração do Estado tomou, por assim di-zer, o primeiro lugar entre todos os proble-mas que mais carinho, mais esforço e maisdedicação têm merecido dos nosso homenspúblicos.

O próximo texto a referir-se direta-mente às comemorações é o de Heitor Guima-rães, “Legionários da luz”. Nele o autor fazuma conclamação pela valorização do profes-sor primário. Após afirmar que um séculodepois da c r iação da esco la pr imár ia , adesanalfabe tização do Brasil continua a serum grave problema, o autor lembra o esforçoque tem sido feito e os obstáculos oferecidospela realidade no enfrentamento desta ques-tão. Acima de tudo, ele defende que, nas co-memorações do Centenário, é preciso renderhomenagens ao professor de primeiras letras,sujeito que desenvolve uma missão tão impor-tante e nobre, quanto ingrata, exaustiva, nãoreconhecida e incompreendida. Segundo ele, osprofessores são mal remunerados e a socieda-de nega-lhes o lugar que lhes compete, aocontrário do que faz com os professores dehumanidades e dos cursos superiores.

Há ainda, na revista, uma conjunto deoutros textos que remetem o leitor, direta ouindiretamente, para as comemorações. Destesnós gostaríamos de comentar dois. O primei-ro, na verdade, não é um texto escrito. Ele édado a ler pela conjunção de duas gravurasque ocupam uma página cada, uma ao lado daoutra, de forma que o leitor possa vê-las si-multaneamente. Elas são eloqüentes em suas

Page 7: Reescrevendo a história do ensino primário : o centenário ... · da República encontra-se um galho/ramo de café que, sustentando e partindo dos respec-tivos símbolos, formam

3 7Educação e Pesquisa, São Paulo, v.28, n.1, p. 31-50, jan./jun. 2002

mensagens. Na gravura da página esquerda,vemos, ocupando toda a parte superior esquer-da, um velho professor, de óculos, chaleco pre-to e palmatória na mão direita, com ar se-vero, apontando, com a mão es-querda, parao quadro negro, o qual ocupa o canto superi-or direito e onde está “armada” operação demultiplicação (3 x 5 = ). No canto inferior di-reito, encontra-se uma aluna, de mãos postasatrás das costas e cabeça baixa, parecendo nãoter o que dizer. O pequeno espaço deixadoneste gravura para a resposta, parece querer re-afirmar a não resposta da criança. Embaixo dagravura, em letras garrafais, está escrito AESCOLA ANTIGA.

A outra página é bem diferente. Nelauma professora, elegantemente trajada, por-tando um vestido de bolinhas pretas e sal-to alto, ocupa toda a parte direita da pági-na. De forma risonha, a professora, parececonversar com os alunos, com mão esquer-da aponta para o quadro, o qual encontra-se no canto superior esquerdo da página eonde pode-se ver, armada, a mesma opera-ção. A mão direita da professora está pousa-da sobre a cabeça de um menino, o qual, pe-las vestes remendadas, parece ser pobre. Nocanto inferior esquerdo, outro menino, ves-tindo um uniforme de marinheiro, sapatos emeias, de cabeça erguida, levanta o braço,parece querer dialogar com a professora. O

maior espaço deixado, no quadro, para a res-posta do aluno, está a demonstrar que elesabe o que responder. Embaixo da gravura,também em letras garrafais, está escrito AESCOLA MODERNA.

Três páginas adiante, o texto “A es-cola antiga”, do professor Leopoldo Pereira,retoma e reforça a representação que sequer construir e divulgar. O autor inicia afir-mando as transformações pelas quais a esco-la e o própria professor vinham passando notempo. De forma interessante ele afirma aparticularidade da memória em enaltecer eembelezar o passado, não deixando, porém,de apontar, ao final que as mudanças forampositivas e para melhor no que se refere àescola. Mas, como é a escola antiga, paraLeopoldo Pereira? “Antigamente, afirmavaele, o mestre escola, de par com o vigário dafreguesia, eram as mais respeitáveis persona-gens da aldeia.” Logo depois acrescentava;

E como era então mais penoso o trabalhode ensinar e aprender! Não havia livros; omestre tinha de fazer cartas para todos osdiscípulos. Depois do a-b-c, a carta de no-mes, e depois a carta de fora. O mestre eos próprios menos obtinham dos negoci-antes cartas comerciais para leitura na es-cola; os própr ios pais as forneciam, equando faltavam, recorria-se aos cartórios,onde o mestre obtinha e às vezes com-prava autos antigos, escritos ainda compena de pa to , que e r am o t e r r o r dameninada. Eu mesmo ainda passei pelosuplício de decifrar as abreviaturas dosescrivães do tempo d’el rei. (grifos no ori-ginal)

O autor continua apontando as dificul-dades do ensino e da aprendizagem da escrit a ,bem como para os mecanismos mobilizados pe-los professores para fazer frente às mesmas.Fala do aparecimento dos primeiros livros, o slivros de Abílio, das penas de aço, dos exames...Afirmava, ainda que:

A ESCOLA ANTIGA x A ESCOLA MODERNA

Page 8: Reescrevendo a história do ensino primário : o centenário ... · da República encontra-se um galho/ramo de café que, sustentando e partindo dos respec-tivos símbolos, formam

3 8 Diana G. VIDAL e Luciano M. de Faria FILHO. Reescrevendo a...

Não se compreendia então a escola sem ocastigo corporal: a férula era para o mestrecomo o ceptro para o rei ou o cajado para opastor. Até nas aulas de latim e francês, quenossas principais cidades possuíam durantemuitos anos, corria bem aceito o axiomaque o latim, quando não entrava pelos olhose ouvidos, devia entrar pelas unhas.Na escola primária a palmatória chamava-sesanta luzia. Por que esse nome? Como sesabe, a crença popular venera Santa Luziacomo advogada da vista, e nossos pais en-tendiam que a férula é que devia dar vistaaos cegos. (grifos no original)

Quão longe desta escola está aquelaanunciada por Alceu de Souza Novais, em seutexto “Cem anos de ensino e a ‘revoluçãocoperniquiana’”, na qual “as crianças aguardamansiosas a chegada da professora que, risonhae gentil, recebendo e retribuindo os cumpri-mentos, sente que é o centro de atração da-quele pequenino mundo” e na qual “sorri-sea boa mestra, indulgente para com os erros,embora severa para com as negligências, e re-pete a explicação, e ilustra com exemplos, re-sume em sinopse e fixa com os esquemas”?Ou aquela contada em verso por LeôncioCorrêa no poema “A escola”, em que a esco-la-jaula, “na qual a criança é a fera por do-mar”, é transformada em um “jardim claro edivino, de áureas flores e alegres colibris”?

O 15 de outubro no MinasGerais

No Minas Gerais do dia 14 de outubrode 1927, na seção dedicada à Secretaria do In-terior, podemos ler a seguinte nota:

Estiveram, ontem, no gabinete do sr. Dr. Francis-co Campos, Secretário do Interior, as profas.Luiza Valadares Ribeiro e Carmem Ribeiro, queforam convidar S. Exa. para assistir às festas co-memorativas do centenário da escola primária,no dia 15 do corrente, às 15 horas, no campo do

América Futebol Clube. (14/10/1927, p. 8.)Se considerarmos, conforme já disse-

mos, que houve um investimento do Estado e,mais ainda, das escolas em uma longa prepara-ção dos festejos, há que se duvidar da veraci-dade da informação que somente no dia an-terior ao evento o secretário teria sido convida-do para o mesmo. Seria a visita das professoraspura formalidade? Ou seria uma forma de, tam-bém, mostrar que o secretário estaria aderindoa algo preparado por outros que não diretamen-te o próprio governo? Nada impede, no entan-to, que sejam as duas coisas.

O Minas Gerais do dia 15, traz a se-guinte manchete:

“O centenário da Escola Primária no Brasil;Como será comemorada a data nesta

capital”.

Formatura de 2.000 alunos dos grupos esco-lares e escolas de Belo Horizonte; Parada de10 tropas de escoteiros; Jogos ginásticos.

Ao centro da página, como na Revista,o mesmo retrato de dom Pedro I. Na matéria deabertura afirma-se que:

A comemoração de hoje é uma que não sedelimita nas linhas estreitas de um aconteci-mento de significado infinito. É a festa sembalizes, é a festa do infinito, das grandezasincomensuráveis, porque hoje é a comemora-ção da cultura brasileira, não no âmbito deum de seus departamentos, mas no que elapossui de comum, que é a escola primária,base e berço de todas as realizações emocio-nantes e altas, de democracia e liberdade quetemos atingido.A lei (...) dando unidade ao ensino primário(...) foi o berço da escola primária oficial noBrasil.À figura cavalheiresca e arrebatada do nossoprimeiro imperador, que os historiadores tal-vez não isentem de erros graves, a d. Pedro I,de psicologia desnorteadora, o Brasil não

Page 9: Reescrevendo a história do ensino primário : o centenário ... · da República encontra-se um galho/ramo de café que, sustentando e partindo dos respec-tivos símbolos, formam

3 9Educação e Pesquisa, São Paulo, v.28, n.1, p. 31-50, jan./jun. 2002

1. Em poema publicado na R e v i s t a , n. 23, número especial.

poderá nunca deixar de render as homenagensque de direito lhe cabem.(...) Foi ele que plantou a semente do ensinojurídico...Foi Pedro I que assinou o decreto(...)escancarando(...) para a criança brasileira asportas das escolas... si o Império, não atingiua nossa instrução primária o índice em quedesejaria vê-la os bons patriotas, coube à re-pública fazer sua essa causa – única força ca-paz de propulsionar as democracias.

Esta visão ambígua de dom Pedro I, dálugar, no texto, a uma avaliação muito maispositiva de seu filho, dom Pedro II. Amantedos livros e da instrução, nosso segundo im-perador se não conseguiu fazer mais pela ins-trução do povo não foi por falta de vontade,mas devido à vastidão do território e às difi-culdades de comunicação. Tudo parece mudar,no entanto, com a proclamação da República,pois, afirma o autor:

Os republicanos, porém, compreendendo osignificado da escola e não vendo nela umadádiva da administração ao povo, mas umdireito que têm as populações de exigir dosgovernos, nunca num só momento, se de-sinteressaram do problema do ensino, queos Estados brasileiros porfiam em ministrarmelhor a seus filhos, e que atinge, no dia dehoje, a uma altitude de que devemos, semdúvida, nos ufanar, mas que não é tudoainda porque está longe – e tenhamos sem-pre em mente isso – muito longe daquelaafirmação que Leôncio Corrêa,1 em seu poe-ma quer um dia ver pronunciada pelos bra-sileiros: “Ao mundo declarar, por entre flo-res, Que em nossa pátria todos sabem ler eescrever”.

A seguir, publica-se o texto da lei de1827, seguido do detalhamento da programaçãodo dia, tal como estava na revista, com ligeirasmodificações.

A partir da página dois encontramos umasérie de textos, quase todos publicados na revis-

ta, muitos deles enfatizando que “é surpreendenteo que Minas tem realizado no terreno em que selabora a instrução de seus filhos”. (p. 2)

As repercussões do 15 deoutubro no Minas Gerais

No Minas Gerais do dia 16/10, na pá-gina oito há a seguinte chamada:

“Primeiro centenário da Escola Primária noBrasil.

O desenvolvimento do ensino no Brasil,desde a era colonial.

A luta contra o analfabetismoNotas estatísticas

Os festejos comemorativos da data, nestacapital. ”

Em seguida fala-se dos festejos co-memorativos nesta Capital, afirmando-se quenada faltou para o realce da festa de ontem,que contou com a participação de mais de 6mil pessoas e foi um grande espetáculo cívi-co.

Em seguida, o jornal publica o hinodo 1º Centenário do Ensino Primário, (letra deNestor dos Santos Lima e música de Luigi M.Guido) entoado pelos alunos no dia anterior:

Já liberta e organizadaVivia a ingente NaçãoQuando foi sancionadaA sábia lei de instruçãoCumpre às novas gerações agoraSeguir-lhes as inspiraçõesElevando a toda horaDesta pátria as tradições(...)Côro:Lembrando, a 15 de outubroDa sábia Lei a sançãoSaudamos nela o delubroDa brasileira instrução.

Page 10: Reescrevendo a história do ensino primário : o centenário ... · da República encontra-se um galho/ramo de café que, sustentando e partindo dos respec-tivos símbolos, formam

4 0 Diana G. VIDAL e Luciano M. de Faria FILHO. Reescrevendo a...

Ao fundar o ImpérioDom Pedro Primeiro vêQue de um povo o esteio sérioSó se encontra no ABCEm qualquer cidade ou vilaDe intensa populaçãoManda ouvir-se a voz tranqüilaDos pregoeiros da instrução.(...)

Já no dia 17, o Minas Gerais, com aseguinte manchete “Primeiro Centenário da Es-cola Primária, Ecos dos festejos do Dia 15”,trazia, dentre outras, informações sobre a fes-ta na Escola Regimental da Força pública.

As repercussões do 15 deoutubro na Revista do ensino

O tema das comemorações do centená-rio é retomado na Revista do ensino número24, de novembro de 1927. Nela, a referência àescola antiga é retomada na própria capa quetraz uma gravura retratando uma escola régia.Na gravura, numa das janelas da escola (naverdade uma porta com uma espécie de para-peito, parecendo querer chamar a atenção doleitor para o fato de que aquele era um espa-ço adaptado para ser uma escola), um alunoestá de castigo, ajoelhado e com orelhas deburro. Alguns transeuntes, homens e mulheres,adultos e crianças, negros e brancos, escravose livres, estão voltados para a criança castiga-da. Na porta da escola, em cujo umbral estáescrito Escola Régia, aparece o professor, delivro e porrete à mão, parecendo não gostardaquela platéia. Embaixo da imagem está es-cr i to A Escola Antiga ( reconst i tu ição deWolffe). No interior da revista, a primeira pá-gina traz uma matéria que tem por titulo OCentenário da Escola Primária, e como sub-título “Os festejos nesta Capital”, a qual ,não por coincidência, é a mesma do MinasGe ra i s do dia 16 de outubro. A diferençafundamental é que a revista traz uma gamabastante rica e variada de fotografias para

ilustrar os textos que relatam como foram ascomemorações do mês anterior.

Nos textos e no conjunto das fotogra-fias ressalta-se, em primeiro lugar, a transfor-mação pela qual passou o espaço onde ocor-reram as comemorações. Uma transformaçãosimbólica, como vem indicado logo no texto deabertura:

Pode-se dizer que o ambiente daquele‘stadium’, acostumado a acolher o ruídosdos aplausos da assistência nos dias de pug-nas desportivas, poucas vezes terá recolhidopalmas e ovações mais ardentes e entusias-tas de que aquelas que a 15 de outubro alise ouviram, prestigiando os exercícios dospequeninos escolares da juventude escoteira.

Tal transformação não impede, entre-tanto, que se perceba uma continuidade: o

Revista do Ensino, Anno III - n. 24, novembro de 1927

Page 11: Reescrevendo a história do ensino primário : o centenário ... · da República encontra-se um galho/ramo de café que, sustentando e partindo dos respec-tivos símbolos, formam

4 1Educação e Pesquisa, São Paulo, v.28, n.1, p. 31-50, jan./jun. 2002

espaço antes vazio, sem vida, é ocupado pelamultidão, não mais em busca de um certameesportivo mas do espetáculo cívico oferecidopelo estudantes e escoteiros.

Pode-se perceber, também, que se querressaltar o caráter organizado, polido, límpidodo acontecimento. Nas fotografias e nos tex-tos que as acompanham, a disciplina rítmica daginástica e da marcha são mostradas comoexemplo de trabalho organizado e ordeiro decentenas de pessoas, sobretudo de alunos.Conforme afirma Fábio Lourival, no texto “Pelarenovação de Minas”, a festa de 15 de outu-bro,

Em Minas, nunca se admirou espetáculo tãograndioso como o que nos foi proporciona-do outro dia, pelo alunos dos grupos esco-lares de Belo Horizonte, reunidos em núme-ro de mais de 2.000 no stadium do AméricaF. Club, para celebrar a data comemorativado centenário da escola primária. Admirado-o, enchemo-nos de profunda emoção, in-tenso júbilo fez palpitar todos os corações,alegria trasbordante agitou todos as almas.Admirando-o ficamos com fé mais viva nodestinos da nossa raça...

Este texto, apesar de congregar comoutros nas comemorações, destoa dos mesmospor discordar frontalmente do caráter milita-rista que o ensino de ginástica e os exercíciosfísicos vinham tomando nas escolas mineiras.

Os cem anos de instruçãoprimária no distrito federal: osjornais e o debate público

No dia 5 de outubro, o jornal cariocaA Pá t r i a , que desde o início da gestão deFernando de Azevedo na Instrução Pública ca-rioca, em janeiro de 1927, havia-se mostradofavorável às ações do educador, informava parabreve o envio, pelo prefeito, ao Conselho Mu-nicipal, de uma mensagem especial sobre a re-forma educativa no Rio de Janeiro. Em segui-

da trazia a nota oficial, também editada naspáginas de O Paiz, O Imparcial e O Jornal doB ra s i l, em que várias das características doanteprojeto eram descritas. Iniciava-se umaintensa campanha que por vinte dias iria aca-lorar os debates nos diários cariocas em tornodo tema educacional.

A imprensa que apoiava a administra-ção azevediana, como O Jornal, em que atua-va o sobrinho de José Getúlio Frota Pessoa, se-cretário-geral da Diretoria de Instrução Públi-ca, Carlos Alberto Nóbrega da Cunha; O Jor-nal do Brasil, em que o próprio Frota Pessoaescrevia; O Imparcial, que contava com a co-laboração de Carlos Sussekind de Mendonça,irmão de Edgar Sussekind de Mendonça, queassumiu a direção da Escola Profissional ÁlvaroBatista; A Noite e A Pátria, saíram a campo, re-alizando entrevistas, divulgando propostas,constituindo inquéritos. O Jornal, por exemplo,lançou o inquérito A maior tentativa de orga-nização do ensino popular, que pretendia, apartir de entrevistas com educadores cariocas,inspetores de ensino, Frota Pessoa e o próprioFernando de Azevedo, debater aspectos do pla-no reformista.

Por seu turno, os jornais de oposição,como O Globo, no qual era publicada a colu-na de Brício Filho, professor aposentado porAzevedo, Diário Carioca e O Correio da Manhã,ensaiavam críticas cujo tom era o questiona-mento da grandiosidade de propostas e dovolume de recursos envolvidos na implemen-tação do plano. A indagação de O Correio daManhã era indicativa:

Como admitir que da noite para o dia, amesma Prefeitura que, em outubro de1927, não deu lápis nem tinta às suas es-colas, possa arcar com o compromisso doensino obrigatório e gratuito para o anode 1928?

A obrigatoriedade e gratuidade doensino e a despesa com a construção e apa-relhamento das escolas eram os dois princi-

Page 12: Reescrevendo a história do ensino primário : o centenário ... · da República encontra-se um galho/ramo de café que, sustentando e partindo dos respec-tivos símbolos, formam

4 2 Diana G. VIDAL e Luciano M. de Faria FILHO. Reescrevendo a...

pais pontos destacados pela oposição.Despertadas pelo anúncio do proje-

to de reforma e alentadas pela proximidadedo que era chamado de Centenário do EnsinoPrimário, as discussões em torno da educaçãooscilavam entre a propaganda ou crítica aoprojeto de Azevedo e o diagnóstico sobre aescola no Rio de Janeiro. Apesar de ocuparemlugares diversos na enunciação de propostaspara o ensino primário, os jornais cariocascoincidiam no diagnóstico. Ao avaliar os efei-tos das políticas públicas de escolarização,apontavam para a ineficiência da escola, sin-tetizada na discussão em torno das altas taxasde analfabetismo encontradas no Brasil, masnão a ela resumida, indicando, ainda, a preca-riedade material e metodológica do ensino.

Afirmava Maurício de Lacerda em Avanguarda,

Na exposição do prefeito, que só agora vejoser profundo na matéria, descubro uma ten-tativa, pelo menos, para arrancar a instruçãopopular, do confusionismo didático com oqual se tem viciado irremediavelmente amentalidade de gerações sobre gerações.

E prosseguia:

O que temos em matéria de prédios escola-res é um sobejo dos cortiços da monarquia.O material para o ensino é uma vergonha. Oprofessorado, trabalhando acima da capaci-dade humana, vive mal pago, mal alimenta-do e mal compensado pela anarquia das leisde promoção. (“A reforma do ensino munici-pal”. Entrevista realizada com o intendenteMaurício de Lacerda. A vanguarda, 6/10/1927.)

A Pátria, utilizando-se de letras emcorpo maior que as comumente usadas no di-ário, destacava:

Apesar de trinta anos de república e desta tra-zer, entre seus mais nobres ideais, o de extin-guir o analfabetismo, levando numa mesma

igualdade de direitos a todos os brasileiros asluzes do ensino, a verdade é que pouco temosadiantado nesse caminho (“O problema do en-sino.” A Pátria, 7/10/1927)

O recurso a letras garrafais, aliás, já ti-nha sido usado por O Paiz dois dias antes aoavaliar a escola primária:

É que se lhe não tem dado o aparelha-mento educativo capaz de aproveitar to-das as consideráveis reservas de capacida-de. A falta de disciplina mental e de ades-tramento técnico como os saltos no méto-do de aquisição do conhecimento são res-ponsáveis por tais desvios e desperdícios(...)Essa “legislação fragmentária” transfor-mou o ensino municipal num conjunto depeças desconexas, e que jamais tiveramorientação verdadeiramente pedagógica,de uma ciência de educação, pois sempreapresentaram aspectos burocráticos, sobreinfluências políticas acidentais. (Ensinomunicipal. O Paiz, 5/10/1927)

Os argumentos mobilizados por O Paizeram os principais articuladores da fala deFernando de Azevedo, quando defendia a ne-cessidade de um sistema educacional integra-do, como veremos adiante.

Nos três dias que antecederam o 15 deoutubro, aumentou a intensidade do debate,acrescendo-se à discussão anterior um grandenúmero de artigos que pretendiam erigirefemérides, desenhando história oficial da edu-cação no Brasil na qual a figura de dom PedroI era a principal personagem.

“Centenário do ensino de primeiras le-tras”, publicado em O Correio da Manhã, d i a15 de outubro de 1827, exemplificava a abor-dagem:

A le i de 15 de outubro de 1927 foi verda-deiramente a criadora da instrução primáriaem nosso país.

Page 13: Reescrevendo a história do ensino primário : o centenário ... · da República encontra-se um galho/ramo de café que, sustentando e partindo dos respec-tivos símbolos, formam

4 3Educação e Pesquisa, São Paulo, v.28, n.1, p. 31-50, jan./jun. 2002

Em seu artigo 1o diz - “em todas as cidades,vilas e lugares mais populosos haverá as es-colas de primeiras letras que forem necessá-rias”.Foi essa lei sancionada por D. Pedro I e refe-rendada pelo visconde de São Leopoldo(José Feliciano Fernandes Pinheiro).A l e i de 12 de agosto de 1834 (ActoAdcional) determinou a ação do governo ge-ral quanto à instrução primária e secundária,não só na Corte, como em todas as provín-cias.A partir dessa data passaram as assembléiaslegislativas municipais a ter a incumbênciade legislar sobre a instrução pública e esta-belecimentos próprios à promovê-la.Só a instrução primária, secundária e superi-or na Corte e seu município continuou a serda competência do governo geral.Outras disposições e regulamentos houve atéque com o decreto de 17 de fevereiro de1854 na lavra de Luiz Pedreira do CoutoFerraz, depois visconde do Bom Retiro, foiremodelado o ensino primário e secundário.

Para O Pa iz , mais importante que oGrito do Ipiranga, havia sido o ato de 1827,pois “só depois dele o país iniciou verdadeiramarcha para sua independência. Ensinar a lerao povo, era dar-lhe compreensão de Pátria, desua vida, de sua história, de suas finalidadesno mundo” (“O centenário de fundação do en-sino primário no Brasil”. O Paiz, 14/10/1927).

Uma corrente de outras manifestações,cuja tônica central era a denúncia do analfa-betismo, contrapunha-se à avaliação festiva dadata.

Parece incrível que comemoremos o cente-nário da oficialização do ensino, no Brasil,com uma percentagem, estimada com oti-mismo, em 75% de analfabetos! Já chega aparecer ridículo clamar-se pela solução destegigantesco problema da educação do povo –tão velho é ele e tão batido são todos os ar-

gumen t o s d emon s t r a t i v o s d o c r imeinqualificável do poder público. Muito maisridículo, porém, é festejar-se semelhantecentenário. Ele representa uma expressãoformidável da vergonha para o país que oencontra nas condições do nosso. Devería-mos, ao invés de saudá-lo alegremente,mandar repicar os sinos em sinal de luto erecolhermo-nos, humilhados, pelo imensoopróbrio. Não é, entretanto, o que se faz.(...) (“Centenário vergonhoso”, A Manhã, R iode Janeiro, 15 out.1927)

Mas, quando ouvirmos essas palavras tãoformosas, esses discursos tão eloqüentes, te-remos sem dúvida na alma uma reflexãomelancólica. Lembraremos que há 100 anoso Brasil começava a ter instrução pública... ehoje, decorrido um prazo tão dilatado, se-gundo a palavra das estatísticas, a cifra dosanalfabetos que ainda possuímos é pavoro-sa. (“A instrução primária”. O Jornal do Bra-s i l, 14/10/1927)

Problemática de estatísticas controver-sas, o analfabetismo ora era elevado aos índi-ces na ordem de 70% a 80%, ora assumia aproporção inversa, tendo sido informado, novolume da diretoria de estatística do Ministé-rio da Agricultura, com recenseamento da po-pulação brasileira de 1920, com relação aograu de instrução, que, no Distrito Federal,75% da população adulta sabia ler e escrever(Cunha, 1929).

As estatísticas, aliás, eram usadas emapoio ao diagnóstico da insuficiência das es-colas carioca e brasileira. Enquanto alguns jor-nais davam destaque aos altos índices de anal-fabetismo, outros veículos de imprensa, comoO Paiz e O Jornal do Brasil, mesclavam, ao tomde denúncia, a divulgação de taxas estatísticasnacionais, divididas por estado, o que, se de-monstrava a precariedade do quadro geral,poderia vir a qualificar o debate introduzindodiferenças regionais. Apesar do procedimento,

Page 14: Reescrevendo a história do ensino primário : o centenário ... · da República encontra-se um galho/ramo de café que, sustentando e partindo dos respec-tivos símbolos, formam

4 4 Diana G. VIDAL e Luciano M. de Faria FILHO. Reescrevendo a...

e stes jornais, entretanto, não reforçavam a in-formação, nem destacando a variedade dosíndices, nem efetuando análises sobre possíveisrazões da diversidade das taxas por estado.

Alerta para a importância em dialogarcom a imprensa, Fernando de Azevedo, que an-tes de assumir a diretoria geral da InstruçãoPública no Distrito Federal, havia sido redatore crítico literário do jornal O Estado de S. Pau-l o, durante três anos, concedeu diversas entre-vistas e efetuou discursos e conferências emtodo o mês de outubro (e mesmo em setem-bro). Procurava criar fatos políticos e reverterpara sua administração as expectativas geradaspelos jornais, capitalizando apoio público epolítico ao lançamento do anteprojeto da re-forma.

Já em 8 de setembro, em discurso pro-ferido no Jóquei Clube, publicado como intro-dução ao anteprojeto, nesse mesmo ano de1927, Azevedo traçava um diagnóstico do en-sino primário no Rio de Janeiro e expunha asprincipais linhas do plano de reforma. As pro-postas de construção de um sistema de orga-nização escolar alicerçado nos princípios daescola comunidade, escola única e escola dotrabalho, e alerta para as necessidades de for-mação do magistério, do amparo à criançapobre e da integração do imigrante, vinhamprecedidas por uma análise do ensino em voga.

Associada à escola régia, da qual pro-vinha e ainda não se havia emancipado, segun-do o educador, a escola do Distrito Federal eraincapaz de sequer proceder a um eficientecombate ao analfabetismo.

O Estado, no Distrito Federal, ainda não en-frentou o problema da alfabetização e dasmalhas, de tecido largo e frouxo, que esten-deu, para colher a população em idade esco-lar, escapam, todos os anos, milhares de cri-anças, que não recebem instrução em esco-las públicas, nem têm meios de a pagar emestabelecimentos particulares. (Azevedo,1927, p. 15)

Desenhada como não aparelhada, ins-talada ao acaso, sem espírito de finalidade so-cial, talhada pelos moldes da velha escola pri-mária de letras, com um ensino teórico elivresco, a escola pública primária carioca, naspalavras de Azevedo, havia deixado de acom-panhar a evolução da sociedade a que perten-cia e da qual deveria ser um prolongamento.Esses problemas deveriam ser enfrentados comurgência e para eles o educador oferecia solu-ção a partir de uma amplo leque de medidasa serem implementadas em sua gestão e nassubseqüentes.

Azevedo propunha conceber a escolanão apenas como aparelho de adaptação d acriança à sociedade, mas como instrumento dereação , capacitando-a a contribuir para atransformação social. Para tanto, era precisoque a educação se configurasse em torno dosprincípios de comunidade, trabalho e escolaúnica. O indivíduo deveria ser formado pela epara a vida social, em um ambiente em que aexperiência pessoal e ativa fosse valorizada eem que todo estudo se convertesse objeto deaquisição e trabalho em comum; constituídocom a finalidade de formar o cidadão produ-tivo.

A remodelação do ensino primário en-volvia, ainda, a formação de novos quadrospara o magistério, o cuidado da infância e adisseminação do espírito nacional. Assim, osnovos ideais somente seriam propalados casoa escola normal, com suas escolas de experi-ência e aplicação, fosse reorganizada em umcentro de estudos e pesquisas pedagógicos,transformando-se em “um viveiro de verdadei-ros professores para o ensino primário”. Se cadaaluno fosse constituído em um fator de pro-dução, zelando o Estado por sua saúde, pormeio de medidas como inspeção médica edentária, educação física e higiênica, assistên-cia alimentar às crianças desamparadas e pre-paração da menina para a futura missão na fa-mília, recebendo ensinamentos sobre puericul-tura. Finalmente, se a formação para o traba-

Page 15: Reescrevendo a história do ensino primário : o centenário ... · da República encontra-se um galho/ramo de café que, sustentando e partindo dos respec-tivos símbolos, formam

4 5Educação e Pesquisa, São Paulo, v.28, n.1, p. 31-50, jan./jun. 2002

l ho produtivo fosse realizada em bases brasi-leiras, como “força de coesão política e ele-mento consolidador de nossa composição étni-ca heterogênea, acentuada cada vez mais pe-las correntes migratórias” (Azevedo, 1927, p.26-27).

As mesmas problemáticas voltaram aser abordadas nas entrevistas concedidas du-rante o mês de outubro de 1927. A ênfase nanecessidade de organização de um sistemaeducacional, negando a estrutura até entãoconstituída no Distrito Federal, o preparo do-cente e a educação para o trabalho eram ostemas centrais do artigo publicado por O jor-nal, no dia 7, os quais foram retomados e con-solidados com dados estatísticos, na entrevis-ta editada no dia 21, pelo diário A noite, ondeafirmava Azevedo:

É sabido que temos no Distrito Federal142.000 crianças aproximadamente em ida-de escolar. Dessas, apenas 70.000 recebeminstrução nas escolas públicas. Subtraindo20.000 crianças de pais abastados, que seinstruem em escola particulares, pode-seconcluir pela existência de 50.000 criançasdesprovidas de ensino. A reforma é domina-da pela preocupação de estender o ensino atodos e creio poder afiançar que, dentro depouco tempo, não existira uma só criançaem idade escolar que não receba instruçãopode deficiência de aparelhagem. (Azevedo,1929, p. 98)

Animava a fala do educador a proximi-dade da entrega do anteprojeto da reforma noConselho Municipal. No dia seguinte, 22 deoutubro, estaria diante das comissões de Ins-trução, de Justiça e de Orçamento para ofere-cer e justificar o plano elaborado.

Havia-se frustrado sua tentativa ante-rior de comparecer ao Conselho Municipal nodia 15 de outubro. A suspensão da sessão porproposta de Dioclecio Duarte em virtude dascomemorações do Centenário impedira Azeve-do de lançar o projeto naquele dia, fazendo-

o rever a estratégia cuidadosamente traçada.Os festejos realizados no Automóvel Club doRio de Janeiro, no dia 15, que contavam coma presença de crianças da escola primária, pro-fessores, pais e autoridades, haviam sido pro-gramados para as 21h, ou seja, supostamentepara após a defesa do anteprojeto no Conse-lho. A suspensão das atividades naquela Casaindiciava a falta de apoio político à reformaeducacional de Azevedo, que, de fato, só viriaa ser aprovada três meses depois, e promulgadaem 23 de janeiro de 1928 (decreto 3.281). Epermitiu, na imprensa de oposição, manifesta-ções jocosas:

Amanhã registra o calendário o 1o centená-rio da instrução primária no Brasil.Que fez o governo para uma comemoraçãocondigna?Onde as escolas a inaugurar nessa data fes-tiva? Ao menos a organização de um corpode leis sábias que resolvam, por decreto, aquestão da analfabetização no país?Nada que possa representar um corpo sé-rio de doutrina ou um acontecimento deimportância capital foi organizado emlouvor à celebração, que será feita pelaspobres crianças das escolas, obrigadas asuportar a canícula e a soalheira da Quin-ta da Boa Vista, para que Antonico Me-ningite e Fernandinho passeiem, entreelas, a sua importância duvidosa, nessacomemoração de centenário. (...) (“O cen-tenário do ensino primário”, A manhã, R i ode Janeiro, 14 out. 1927)

Diferentemente da reforma mineira queelaborou um conjunto de festejos associandoexplicitamente a comemoração do Centenáriodo Ensino Primário à administração educacio-nal em Minas, em todo o mês de outubro, nosdiários cariocas que apoiavam Fernando deAzevedo, a palavra coincidência iria marcar talaproximação. Frota Pessoa, inclusive, ensaiouuma explicação científica, publicada nas pági-nas de O Jornal, em 8 de outubro:

Page 16: Reescrevendo a história do ensino primário : o centenário ... · da República encontra-se um galho/ramo de café que, sustentando e partindo dos respec-tivos símbolos, formam

4 6 Diana G. VIDAL e Luciano M. de Faria FILHO. Reescrevendo a...

— As pessoas supersticiosas – observou-nosainda em seu gabinete – podem interpretarcomo uma “predestinação” a circunstânciade se estar precisamente agora tratando dereformar o ensino (...)Desenvolveu uma teoria determinista paradestruir possíveis superstições... [Insistia ojornal.]— Assim como o admirável prefácio deAugusto Comte, em sua célebre GeometriaAnalítica (...) contém em síntese, toda a ge-ometria analítica, e assim como a teoria danumeração encerra em si toda a aritmética,assim também essa lei história (sic) contém,em gérmen, toda a legislação da instruçãoprimária que foi promulgada nos 100 anosimediatos. Já realizou, pois, a sua ontogê-nese. Levou um século evoluindo (...).

Como a coincidência, de fato, não seconcretizou (superstições à parte), e Azevedoentregou o projeto ao Conselho Municipal nodia 22 de outubro, sendo o momento notici-ado com minúcia por O jornal, no dia 23. Noevento, estenderam-se os esclarecimentos doeducador a outros tópicos não mencionadosnas entrevistas anteriores. A leitura dos capí-tulos e sua explanação revestiram-se de um ca-ráter técnico, e o tom avaliativo da educaçãocarioca ficou subsumido à defesa do programa.Mudava a organização do discurso. O episódiodo dia 15 de outubro havia sinalizado para aimportância de uma maior atenção às questõesespecíficas aos membros do Conselho.

Às tópicas citadas anteriormente foramacrescentados informes sobre as propostas deedificação escolar e de reorganização dos ven-cimentos do corpo docente. Dois temas parti-cularmente importantes naquele fórum. O pri-meiro porque implicava a vinculação de vulto-sas somas à instrução pública, bem como noconfronto a interesses de famílias cariocas pro-prietárias das casas alugadas à instrução nomunicípio. O segundo porque tocava na essên-cia da barganha política efetuada junto ao pro-fessorado carioca. O intrincado sistema de pro-

moções e reclassificações na carreira docenteno Rio de Janeiro e o aluguel de prédios es-colares envolviam, via de regra, o favoritismopolítico e as alianças. Nos dois casos, Azeve-do interferia diretamente nos interesses doConselho. As duas questões foram peças-cha-ve do conturbado debate que decorreu entre aapresentação do anteprojeto em outubro e suaaprovação exatos três meses depois pelo Con-selho. Mas também serviram de munição tan-to no combate à administração azevediana aolongo de seus três anos (1927-1930) quantona elaboração de processos denunciando amalversação de recursos públicos, finda a ges-tão.

Na última entrevista concedida no mêsde outubro, para A Pátria, no dia 28, Azevedoretomaria as questões já debatidas anterior-mente, debruçando-se especialmente sobre anecessidade da construção de novos prédiosescolares e sobre as demandas financeiras en-volvidas na realização do projeto. Talvez embusca de apoio público e político, talvez comoefeito de retórica, ao defender as idéias quenortearam o plano de reforma recorreu ao re-gulamento sobre educação primária, naquelemomento, recém-promulgado em Minas Gerais,estabelecendo uma comunhão de propostasentre os dois códigos, firmada sobre mesmosprincípios modernos.

Tanto nos discursos quanto nas entre-vistas, Azevedo insistia em dividir com o pre-feito Antônio Prado Jr. os méritos da realiza-ção do projeto de reforma. Na conferência rea -lizada no salão do Jóquei Clube, em 8 de se-tembro, por exemplo, afirmava:

Mas, se algum dia conseguir a realizaçãodesses grandes ideais educativos em quetodos comungamos, não será preciso lem-brar-vos, entre agradecido pela vossa soli-dariedade e impelido pelo sentimento dejustiça, que não a mim, mas ao sr. Dr. An-tônio Prado Jr., que me cativa com suapresença, caberão as honras definitivas.(Azevedo, 1927, p. 28)

Page 17: Reescrevendo a história do ensino primário : o centenário ... · da República encontra-se um galho/ramo de café que, sustentando e partindo dos respec-tivos símbolos, formam

4 7Educação e Pesquisa, São Paulo, v.28, n.1, p. 31-50, jan./jun. 2002

Retribuía o apoio, ao mesmo tempoque agia de forma a renová-lo para enfren-tar as contendas políticas expressas nos jor-nais e antecipadas com respeito ao ConselhoMunicipal. Forjava, ainda, uma imagem pú-blica em que se associavam o educador, es-pecialista, e o patriota, talvez também dese-jando captar apoio entre a população, oseducadores e políticos cariocas.

Durante quatro meses estudei com afincoe carinho o anteprojeto relativo à reformado ensino ministrado pela Prefeitura. An-tes, porém, de me entregar a esse trabalhof i z uma inspeção v i sua l tão r igo rosaquanto possível nas nossas escolas (. . . )Para assentar em bases sólidas o meu an-teprojeto, fui ainda além, pois aguardei,para uma redação definitiva, o resultadodos acurados estudos procedidos durantetrês meses e meio, inclusive os domingos,por uma comissão que designei para essefim especial, e que se compunha dos srs.R e n a t o J a r d i m , e x - d i r e t o r ; P a u l oMaranhão, inspetor escolar; Jonathas Ser-rano, diretor da Escola Normal; Maria ReisCampos, professora e, durante sus perma-nência no Rio, Sud Menucci, que é, semfavor, uma autoridade na matéria (...). Fi-lo com o amor de um patriota sincero (...)aspirando senão voltar, um dia, a ocuparo meu antigo posto de professor da Esco-la Normal de São Paulo... . (“A reforma daDiretoria de Instrução.” O Jornal do Bra-s i l. 6/10/1927)

À guisa de conclusão: aprodução de uma memóriaeducacional

Se, em 1927, durante a campanhapela aprovação do projeto de reforma, inici-ada, de maneira mais contundente, no mêsde outubro, quando da divulgação da pro-posta em jornais e sua leitura no ConselhoMunicipal, Azevedo não vinculara suas idéias

ao escolanovismo; já no ano seguinte, e nosposteriores, a referência à Escola Nova seriauma constante em seu discurso.2 A rup tu racom o passado educativo, expressa no repú-dio à escola régia e à escola primária de le-t ra s ,3 paulatinamente se consolidaria numanegação à educação exercida no Império. Arenovação educacional do Distrito Federal,apresentada naquele momento ao lado dareforma mineira, assumiria a pos te r io r i apreponderância nas iniciativas reformistasdos anos 1920.

Fernando de Azevedo, escrevendo em1943 sobre a reforma implementada na ca-pital brasileira em 1927, evidenciava essastrês alterações em seu discurso.

A vigorosa afirmação dos princípios funda-mentais por que se norteou essa reforma; aspolêmicas apaixonadas que levantaram emtorno dela e do movimento de idéias quesuscitou, produzindo uma ruptura da unida-de do pensamento pedagógico, dominantesdesde o Império, deram-lhe um tal impulsoe tão grande poder de desenvolvimento quepode repercutir fortemente, colhendo-os noseu raio de influência, sobre diversos esta-dos da União. Na tempestade de protestos eaplausos, na corrente de entusiasmo ou naavalancha de críticas que levantou por todaparte, não se pode deixar de reconhecer an-tes o choque de conflitos ideológicos doque uma simples reação diante de uma re-forma com que o Brasil se integrava no mo-vimento de renovação escolar que vinha se

2. Em 8 de setembro de 1927, no salão do Jóquei Clube, afirmavaAzevedo: “É, de fato, o desenvolvimento desse aspecto social da edu-cação que pôs em foco os três princ ípios fundamentais com que ten-dem a conformar-se os grandes sistemas de organização escolar: oprinc ípio da comunidade, da escola única e da escola do trabalho”.(Azevedo, 1927, p. 17)Em dezembro de 1928, em O jornal, dizia “É o ideal da escola nova, quesegundo a nova concepção social, se pode encarar pelos seus trêsaspectos: 1) escola única; 2) escola do trabalho; 3) escola da comunidade”.

3. “A geração atual de educadores já rasgou, por impróprio às ten-dências da nova civilização, o programa de escola primária de letras,consubstanciado nos princ ípios da escola teórica e livresca, em quepermaneceu sempre à margem o lado social da obra de educação.”

Page 18: Reescrevendo a história do ensino primário : o centenário ... · da República encontra-se um galho/ramo de café que, sustentando e partindo dos respec-tivos símbolos, formam

4 8 Diana G. VIDAL e Luciano M. de Faria FILHO. Reescrevendo a...

desenvolvendo em alguns países europeus eamericanos. (Azevedo,1976, p. 165)

Empenhava-se Azevedo em desenharuma representação da reforma carioca. Por umlado, ela inaugurava o novo, rompendo com opassado imperial, e aqui desaparecia a conces-são feita anteriormente, em 1927, ao governomineiro. Era a reforma do Distrito Federal ainstauradora do novo. Por outro lado, tinhasido objeto de disputas ideológicas que tendi-am a desfigurar suas características técnicas,remetendo o conflito para a esfera política.Nos dois casos, utilizava-se de um procedimen-to narrativo, já denunciado por Marta Carva-lho, em 1989 e revisitado em 1998, em que“alternando procedimentos de condensação eesvaziamento de sentido” (Carvalho, 1998, p.336), Azevedo compunha temas e personagens,construindo uma escrita em que o movimen-to dos anos 1920 e 1930 era “unificado comomarcha ascensional pelo ‘novo’” (Carvalho,1989, p. 30) e a “memória dos renovadoreserigida em conhecimento histórico” (Carvalho,1998, p. 331).

Reiteradamente citada nas décadasposteriores, A cultura brasileira seria inspiraçãoa trabalhos na área educacional e fonte primá-ria a investigações acadêmicas. Reconhecidacomo obra de caráter científico pela comuni-dade educacional, raramente era interrogadaenquanto testemunho de um dos atores dasiniciativas ali traçadas. Texto fundador, atua-lizava e cristalizava representações sobre o en-sino brasileiro no Império e primeiros anos daRepública esboçadas na campanha de 1927,por Azevedo, e difundidas pela imprensa cari-oca nos debates acerca do Centenário do En-sino Primário, consolidando um lugar de inter-pretação do passado educativo como descaso.

No caso de Minas Gerais, a magnitu-de dos festejos do centenário da lei de 15 deoutubro de 1927 nos faz crer que o governoa tenha utilizado como importante estratégiade mobilização social em favor da educação,a o mesmo tempo em que buscava cooptar tal

mobilização dos professores, dos alunos e dapopulação em geral para a causa da reforma doensino em curso.

Similarmente ao discurso de FernandoAzevedo de 1927 (e não de 1928), a renovaçãoda escola em Minas Gerais não se fazia invocan-do diretamente a tradição escolanovista. Antes,os discursos enfatizavam que a escola antigaseria suplantada ora pela escola moderna, o r ap e l a esco la at iva. Católicos que eram, osreformadores mineiros não iriam aderir in totuma um escolanovismo que se lhes parecia ameaça-dor.

Na mesma vertente, havia, nos discur-sos mineiros, uma certa indulgência com a es-cola imperial. A escola antiga que eles se pro-punham a superar parecia ser mais a escola ré-g i a dos tempos coloniais do que a escola iso-lada do I mpério. Os tempos eram outros. Dife-rentemente dos primeiros reformadores republi-canos que nos anos iniciais do século XX sepropunham a superar as mazelas educacionaisdo Império, os reformadores dos anos 1920 jánão são tão taxativos em seus diagnósticos: seo Império católico brasileiro não fez mais pelaeducação não foi por falta de vontade política,mas pelas dificuldades inerentes ao própriomeio. A projeção do futuro se fazia, assim, coma produção de um outro passado, possibilitan-do a emergência de outras memórias, memóri-as estas muitas vezes silenciadas pelas tradiçõeshistoriográficas que viam no catolicismo e nosca tó l i cos tão somente os in im igos dosescolanovistas.

Não por acaso, em Minas, o 15 de ou-tubro é ocasião de júbilo e celebração; a festadá lugar ao novo e à tradição. Atualizando umpassado que não lhes pa rece hos t i l , o sreformadores mineiros afirmam a continuidade,o passado e o presente a partir de uma visãocristã e católica da realidade social. O tempo dareforma permite antecipar o tempo escatológicoda boa nova, permitindo repor o movimento dahistória no seu curso normal, do qual, para mui-tos, a República havia contribuído para afastaro Brasil.

Page 19: Reescrevendo a história do ensino primário : o centenário ... · da República encontra-se um galho/ramo de café que, sustentando e partindo dos respec-tivos símbolos, formam

4 9Educação e Pesquisa, São Paulo, v.28, n.1, p. 31-50, jan./jun. 2002

Referências bibliográficas

AZEVEDO, Fernando. A instrucção pública no Districto Federal. Rio de Janeiro: Mendonça, Machado & Cia., 1927.

_____. A reforma no Distrito Federal: discursos e entrevistas. Rio de Janeiro: Melhoramentos, 1929.

_____. A transmissão da cultura. Brasília: Melhoramentos/ INL, 1976.

CARVALHO, Marta. O novo, o velho, o perigosos: relendo A cultura brasi leira. Cadernos de Pesquisa. São Paulo, n. 71; p. 29-35,nov. 1989.

_____. A configuração da historiografia educacional brasileira. In: FREITAS, Marcos (Org.) Historiografia brasileira em perspectiva.São Paulo: Contexto, 1998. p.329-354.

CUNHA, Ranulpho Bocayuva. Estatística e Instrução. O Paiz, Rio de Janeiro. 25 jul. 1929.

Fontes

A MANHÃ. Rio de Janeiro. out.1927

A NOITE. Rio de Janeiro, out. 1927.

A PÁTRIA. Rio de Janeiro, out. 1927.

A VANGUARDA. Rio de Janeiro. out.1927

DIÁRIO CARIOCA. Rio de Janeiro, out. 1927.

MINAS GERAIS. Belo Horizonte, out. 1927.

O CORREIO DA MANHÃ. Rio de Janeiro, out. 1927.

O GLOBO. Rio de Janeiro, out. 1927.

O IMPARCIAL. Rio de Janeiro, out. 1927.

O JORNAL. Rio de Janeiro, out. 1927.

O JORNAL DO BRASIL. Rio de Janeiro, out. 1927.

O PAIZ. Rio de Janeiro, out. 1927.

REVISTA DO ENSINO. Belo Horizonte: Diretoria de Instrução Pública, n. 23-24, 1927.

Recebido em 30.01.02

Aprovado em 03.05.02

Diana Gonçalves Vidal Diana Gonçalves Vidal Diana Gonçalves Vidal Diana Gonçalves Vidal Diana Gonçalves Vidal é professora de História da Educação da Faculdade de Educação da USP, onde coordena o Centro deMemória da Educação. Bolsista do CNPq, vem pesquisando sobre a história das práticas escolares de escrita e leitura no Brasil,

Page 20: Reescrevendo a história do ensino primário : o centenário ... · da República encontra-se um galho/ramo de café que, sustentando e partindo dos respec-tivos símbolos, formam

5 0 Diana G. VIDAL e Luciano M. de Faria FILHO. Reescrevendo a...

entre o fim do Império e as primeiras décadas da República. Publicou, sozinha ou em co-autoria, livros, capítulos de livros eartigos sobre esse tema.

Luciano Mendes de Faria FilhoLuciano Mendes de Faria FilhoLuciano Mendes de Faria FilhoLuciano Mendes de Faria FilhoLuciano Mendes de Faria Filho é professor de História da Educação da Faculdade de Educação da UFMG, onde coordena oGrupo de Estudos e Pesquisas em História da Educação/GEPHE(www.fae.ufmg.br/gephe). Bolsista do CNPq, vem pesquisandosobre a história da cultura escolar no Brasil, tendo publicado, sozinho ou em co-autoria, vários livros, capítulos de livros e artigossobre o tema.